Prólogo
As frases, apresentadas no início deste artigo, foram pronunciadas pelo presidente da República, durante a realização da “Marcha para Jesus”, em Brasília, no dia 10 de agosto de 2019. Elas são parte de um discurso conservador que ganhou força nos últimos anos, no Brasil e em vários outros países do mundo. Entre outras coisas, esse discurso ignora as conquistas de grupos minoritários e movimentos sociais que lutam por representatividade, visibilidade e igualdade de direitos.
Esse conservadorismo que ganha força no Brasil também produz impacto na educação: filosofia e sociologia têm a sua importância colocada em xeque por políticos que defendem a suposta neutralidade do currículo. Por esse viés, disciplinas das ciências humanas são consideradas menos importantes, ao contrário da matemática, por exemplo, que goza de um estatuto privilegiado nessa lógica direitista, pois é considerada neutra e potente para a formação de mão de obra qualificada para desenvolver tecnologias de ponta.
Neste artigo, defendemos que, de onde menos se poderia imaginar - as aulas e os livros de matemática -, é possível discutir temas relacionados a gênero, subvertendo a lógica conservadora que busca abafar até a morte essas discussões, pois “[...] algumas vezes não é uma questão de primeiro ter o poder e então ser capaz de agir; algumas vezes é uma questão de agir, e na ação, reivindicar o poder de que se necessita” (BUTLER, 2018, p.65). Sim, a matemática pode ser uma disciplina escolar estratégica para que a não-neutralidade dos currículos se manifeste e coloque em movimento ações de contraconduta às relações de poder postas pelo conservadorismo de certas parcelas da sociedade brasileira.
Assim, por intermédio de alguns exemplos que apresentam resultados de investigações realizadas por pesquisadorxs da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), pretendemos responder à questão: O que pode um currículo de matemática, no que concerne às discussões sobre questões de gênero?
As discussões sobre gênero no campo da educação matemática não são novas. O que é novo é a importância estratégica de tematizar esse assunto nas aulas de matemática, dada a configuração política que vivemos atualmente no Brasil. Desse modo, tomamos a explicitação das discussões sobre gênero nas aulas de matemática como um ato político potente, o qual pode resultar em um embate, uma luta para que se explicitem e que sejam denunciados preconceitos e estereótipos machistas aos quais as mulheres são expostas e que as colocam em uma posição de inferioridade em relação aos homens.
Ato 1: Do natural ao estranhamento
A matemática escolar é, com certa frequência, tratada como uma disciplina neutra, pois, invariavelmente, é trabalhada em sala de aula de modo descontextualizado, despersonalizado e despersonificado (GODOY, 2002). E mais, uma parte da população de docentes e futuros membros dessa comunidade que lecionarão a matemática escolar considera que a contextualização e a interdisciplinaridade devem ser associadas à história da matemática, às ciências da natureza e às engenharias, mas não às ciências humanas. Mas por que não associar à matemática escolar às ciências humanas? Qual é o grande mito, tabu?
A falta de familiaridade com a área inicialmente parece uma boa resposta - afim de deixar que a área seja abordada por quem a conhece com profundidade -, mas afinal qual é o conhecimento de docentes de matemática sobre ciências da natureza e engenharias? Outra resposta, comumente dada, seria que aplicações em assuntos não dominados por docentes banalizam a matemática, sendo assim rechaçadas.
Discursivamente, nenhuma resposta se sustenta, ou melhor, resiste à crítica, contudo, a proposta não é (será) apresentar argumentos que poderiam invalidar cada uma das possíveis respostas, mas sim, na medida do possível, desnaturalizar o fato de que não há outra saída senão aceitar que a matemática escolar é assim mesmo, descontextualizada, despersonalizada e despersonificada.
Em outro momento, escrevemos que a desconfiança deveria ser uma característica pulsante nas comunidades discente e docente (GODOY, 2015).
E ainda consideramos que o desconfiar precisa acompanhar tanto discentes quanto docentes, contudo, para além dele, o estranhar, como antagônico ao naturalizar-normalizar também precisa ser verbalizado-reverberado nas aulas da matemática escolar. Com a pretensa intenção de estranhar em vez de naturalizar-normalizar, conflitar em vez do consensuar o presente artigo tem como objetivo colocar em evidência dois elementos que fazem parte dos intramuros das salas de aulas da matemática escolar - o livro didático e a própria aula de matemática -, que podem oportunizar a discussão sobre questões que afligem a sociedade contemporânea. No presente artigo a temática evidenciada será a questão do gênero.
Para isso, inicialmente será apresentado um excerto teórico a respeito da temática do artigo. Na sequência será elucidada a situação ‘livro didático-matemática-gênero’ e, posteriormente, a situação ‘aula de matemática-gênero’.
Cena 1: Excertos teóricos sobre gênero-livro didático de matemática
O material curricular ‘livro didático’, não raramente, é protagonista nas aulas da matemática escolar, uma vez que exerce - no tempo-presente do cenário educacional - papel essencial no cotidiano do trabalho docente. Compreendido como um artefato cultural, o livro didático influencia a experiência escolar em suas distintas dimensões (GARCIA, 2013) e provoca “debates no interior da escola, entre educadores, alunos e suas famílias, assim como em encontros acadêmicos, em artigos de jornais, envolvendo autores, editores, autoridades políticas, (...)” (BITTENCOURT, 2004, p. 471, apud SILVA; GODOY, 2018, p. 160).
Esse protagonismo pode ser observado também pelo fato de que “em diversas escolas da rede pública de ensino, o livro didático é [acaba sendo] o único material impresso para utilização em sala de aula” (FRISON et al, 2009, apud SILVA; GODOY, 2018, p. 160).
O protagonismo do livro didático, não raramente, presente no trabalho docente da matemática escolar, reforçado pelos interlocutores que, timidamente, anunciamos, nos inquieta. Inquietação produzida pelo silenciamento de discussões envolvendo contextos sócio-político-econômico-cultural que, frequentemente, são oportunizados nas aulas e nos livros de didáticos de matemática, mas que acabam sendo naturalizados, invisibilizados.
Em tempos em que as disciplinas escolares - que, naturalmente, constroem suas aulas dialogando com esses contextos - são perseguidas e correm o risco de sumirem das escolas públicas brasileiras, a matemática escolar pode (e deve) lançar-se ao ataque e explicitar que, sim, é possível bradar nos intramuros das salas de aulas uma ou várias matemáticas que se mistura(m)-confunde(m) com o social, o político, o econômico, o cultural, ... (sem, todavia, banalizar o conhecimento matemático e as questões da contemporaneidade).
Aqui se faz uma presença urgente ao livro didático, à aula, à pessoa docente de matemática, qual seja a de visibilizar a contemporaneidade (relações de gênero, raça, etnia, sexualidade,...) que a virada cultural conservadora pretende guetificar.
No presente artigo escolhemos a-guetificar as relações de gênero nos intramuros das aulas da matemática escolar. O nosso desejo é reforçado pela importância dada ao livro didático como formador de valores que “configuram concepções de conhecimentos, de valores, identidades e visões de mundo” (FRISON et al., 2009, p.4), podendo ser visto como um reflexo da sociedade. Tendo em vista a importância desse material curricular, torna-se relevante analisar como nele estão dispostas as relações de gênero, pois tais representações podem servir de modelo para os estudantes no processo de construção de suas identidades (CASAGRANDE; CARVALHO, 2006).
Primeiramente, há a barreira de linguagem sexista ainda predominante. Silva (2004) ressalta a invisibilização provocada por essa linguagem que é comumente utilizada. Nos livros didáticos utilizados como referência no 2º Ato é comum termos enunciados que não especificam o sexo das personagens, sendo o masculino sempre o utilizado: os jogadores, os políticos, o piloto, os funcionários. A representatividade feminina da generalização no masculino é nula.
Alves (2004) afirma que a linguagem sexista não apenas reforça, mas legitima a dominação masculina. O autor reflete o machismo em ditos populares, piadas, palavrões: a posição feminina é relativizada e normatizada, pois todos esses se baseiam no modelo assimétrico de hegemonia masculina. A mulher tem menor inserção política, social e cultural na hierarquização - supostamente natural - que a coloca em segundo lugar. Ele ainda afirma a necessidade de problematização dos vícios de linguagem, pois - para uma sociedade igualitária, ainda distante - é preciso reelaborar discursos e representações de gênero.
Não apenas a linguagem, as figuras que cercam discentes ajudam na perpetuação da desigualdade de gênero. Casagrande e Carvalho (2006) fizeram a análise de livros didáticos de matemática do início das décadas de 1990 e 2000 da 5ª e 6ª séries. Considerando a importância dessa ferramenta para os processos de ensino e de aprendizagem, as autoras buscaram as representações apresentadas nos livros e que poderiam servir de modelos para a construção e definição da identidade discente. Para elas, a diferença entre as representações de gênero dos dois períodos analisados foi pouca: mantém-se a forma distinta que contribui para a socialização diferenciada de meninas e meninos. Meninos, mais frequentemente representados, têm autonomia e espírito aventureiro, enquanto meninas aparecem com comportamento passivo e relacionadas ao cuidado com a família e afazeres domésticos.
Posto isso, diversas instâncias atuam como possíveis constituintes de uma pedagogia cultural; dentre elas, a escola atua como um espaço de legitimação de ideologias sociais e culturais, porém, de forma discreta, de modo a fazer com que pensemos que a sociedade em que vivemos é justa e natural (LOURO, 2019; APPLE, 1989).
Para Butler (2019, p. 56), gênero é um conjunto de atributos flutuantes com efeito performativamente produzido e “imposto pelas práticas reguladoras da coerência de gênero”, tendo o poder operando na produção da estrutura binária (masculino-feminino) em que se pensa tal conceito. Dessa forma, é impossível separar a noção de gênero dos embates políticos e culturais nos quais ele é produzido e mantido. Os chamados ‘gêneros inteligíveis’, aqueles que estão em estado de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, acabam assumindo o lugar de ‘real’, consolidando e incrementando “sua hegemonia por meio de uma autonaturalização apta e bem-sucedida” (BUTLER, 2019, p. 69). Dessa forma, os ‘gêneros inteligíveis’ da nossa cultura ocidental seriam os homens brancos e heterossexuais, e todos aqueles que têm sua expressão de gênero incoerente com a norma cultural imposta, têm a sua existência questionada (BUTLER, 2019).
Tendo em vista tais gêneros inteligíveis, construídos sob uma perspectiva heteronormativa, são produzidos padrões de como deve ser o comportamento de um menino ou menina. Se, por exemplo, uma garota gosta de jogar futebol, comportamento normalmente atribuído ao gênero masculino, ela poderá sofrer discriminação e ser desencorajada a praticar tal esporte. Tais atribuições de gênero também ocorrem no campo das ciências, sendo as ciências exatas uma área normalmente representada por figuras masculinas, escapando da tal neutralidade que lhe é conferida (LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016). Os livros didáticos, não só de matemática, acabam tendo papel fundamental na reprodução de padrões de gêneros, pois a “coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui como domínio imaginável do gênero” (BUTLER, 2019, p. 131).
A forma celebrativa como são tratadas as diferenças nos livros didáticos tem o problema de não questionar as relações de poder que atuam na produção de tais distinções, gerando novas dicotomias, como “a do dominante tolerante e do dominado tolerado ou da identidade hegemônica, mas benevolente e da identidade subalterna, mas respeitada” (SILVA, 2009, p. 98). É necessário entender e trazer à sala de aula discussões do porquê certos padrões são considerados os ‘normais-naturalizados’ na sociedade em que vivemos e como eles foram construídos. Essa análise histórico-cultural ajuda a compreender a atual situação em que vivemos e constrói um pensamento crítico acerca de identidade de gênero (LOURO, 2011; MAIA et al., 2012). A falta de discussões, como essas, leva à reprodução de desigualdades e preconceitos dentro do ambiente escolar (ALMEIDA; LUZ, 2014).
Ato 2: Livro Didático-Matemática-Gênero
A partir daqui, apresentaremos alguns resultados de análises feitas por pesquisadorxs de dois Programas de Pós-Graduação em coleções de livros didáticos dos anos iniciais (UFMS) e dos anos finais (UFPR) do ensino fundamental. Essas pesquisas descreveram como livros didáticos de matemática direcionam tipos específicos de comportamentos desejáveis. Em outras palavras, como os livros também ensinam a ser homem ou mulher na nossa sociedade.
Nas investigações realizadas por pesquisadorxs da UFPR, os livros utilizados foram os de matemática dos 6º e 9º anos do Ensino Fundamental (EF II) de Centurión & Jakubovic (2015), aprovados no PNLD de 2017 (ainda em vigência). A escolha dos anos se deu, por serem eles, as etapas inicial e final do EF II. O objetivo da análise foi investigar como a questão de gênero aparece no livro didático de matemática do EF II. Essa pesquisa foi publicada integralmente no e-book resultante do evento SIGESEX, realizado em 2019 pela UFMS (GODOY; LIMA; MUSHA, 2019).
Para isso, xs pesquisadorxs analisaram quantitativamente imagens com representações humanas e, dentre essas, àquelas que reforçam os estereótipos de gênero e quais vão contra. Além disso, quantificaram o número de representações de pessoas pensando, perguntando ou respondendo, de professores, de professoras e de igualdade de gêneros. Com base na bibliografia utilizada, também investigaram de forma qualitativa tais imagens, separando algumas que chamaram mais atenção no sentido de manutenção ou de oposição a estereótipos de gênero para uma análise mais concreta. O primeiro resultado obtido está organizado no Quadro 1.
CATEGORIAS | Quant. | Percentual |
---|---|---|
Reforçam o estereótipo | 34 | 17,5% |
Combatem o estereótipo | 8 | 4,1% |
Pensando, perguntando ou respondendo (gênero masculino) | 33 | 17,0% |
Pensando, perguntando ou respondendo (gênero feminino) | 26 | 13,4% |
Professores | 16 | 8,2% |
Professoras | 8 | 4,1% |
Igualdade de gêneros | 69 | 35,6% |
TOTAL | 194 | 100,0% |
Fonte: Os autores (2019)
Em relação ao Quadro 1, percebemos que os livros didáticos analisados, por meio de suas imagens de representação humana, têm se preocupado em movimentar sentidos a respeito da igualdade de gêneros, todavia, o caminho é longo, uma vez que ainda precisamos conflitar os estereótipos que reforçam os papéis desempenhados, tradicionalmente, por mulheres e homens no Brasil. A mulher, invariavelmente, está associada à moda, família, cuidados da casa, planejamento de festas, culinária e trabalhos manuais mais delicados, como origami; e o homem ao carregamento de peso, práticas de esportes, encarregado de serviços gerais de reforma e até dirigindo. O homem é uma figura imponente, aventureira e detentora de poder, usualmente vista fora de casa, enquanto a mulher é delicada, feminina e é responsável pelos afazeres da casa, tais como as compras do mês. Quase não há imagens que retratam mulheres em lugares de prevalência masculina - motogirl, atletas, jogatina -, e homens dividindo espaço com mulheres em atividades manuais - dobradura, recorte e desenho. Por fim, percebemos na análise, que não há o domínio masculino da fala e do conhecimento - mulheres também são questionadoras e detentoras do conhecimento.
Para ilustrar algumas dessas situações foram selecionadas quatro imagens, sendo três do livro do 6º ano e uma do livro do 9º ano.
Na Figura 2, há uma mulher com a filha comprando materiais escolares e outros itens - cadernos, tintas, pincéis, tesoura, cola, esquadro, transferidor. A caixa da loja, também mulher, recebe o dinheiro da mãe pelos itens. A imagem reproduz muitos estereótipos de gênero em uma situação simples: a mulher associada à imagem familiar e, como mãe, responsável por atender às necessidades da criança; a garota associada ao trabalho manual delicado, claro pelos itens comprados (materiais de pintura, desenho, recorte e colagem); a caixa da loja, como mulher, em um trabalho majoritariamente feminino. Não há a ocorrência de homens representados nessas situações, comuns para quem têm crianças, e nem como caixas de papelaria, supermercados etc. Há poucos garotos representados desenvolvendo trabalhos manuais. Mulheres continuam como alvo dessa representação: elas começaram a aparecer em áreas de prevalência masculina, mas eles continuam em seus lugares tradicionais. Naturalizar essas situações é reafirmar o papel da mulher da sociedade tradicional: esposa, mãe, cuidadora do lar, delicada, recatada.
Na Figura 3, pode-se observar mais uma representação estereotipada da figura feminina, nesse caso, a ilustração da mulher cozinhando para as crianças, com uma roupa “tipicamente” feminina, o vestido rosa. Em nenhum dos livros didáticos encontramos imagens de homens realizando tarefas domésticas (cozinhando, limpando a casa, cuidando das crianças, entre outras), reforçando que esse tipo de atividade é “restrito” à mulher.
Observa-se na Figura 4-A duas crianças brincando na praia. Inicialmente, destacamos o estereótipo da cor das roupas usadas pelas duas crianças, ou seja, o garoto com roupa na cor azul e a garota com a roupa cor de rosa. Um segundo ponto a ser destacado refere-se ao tipo de brincadeira de cada criança. O garoto, mais à frente da imagem, joga bola, enquanto a garota constrói esculturas de areia ao fundo. Reforça-se a ideia do garoto bom em esportes e da garota graciosa e com gosto pelos trabalhos manuais delicados. Garotas têm pouco incentivo para a prática de esportes, considerando as modalidades femininas invisibilizadas e as atletas pouco reconhecidas. Um exemplo disso é a Copa do Mundo de Futebol Feminino, que, em 2018, teve sua premiação aumentada pela FIFA para US$30 milhões, porém a competição masculina chegou a ter uma premiação de US$400 milhões em sua última edição (PAULINO, 2018). Tendo isso em vista, a Figura 4-B, do Mundial Júnior de Atletismo de 2012, é de grande importância para uma representatividade positiva que vai de encontro aos estereótipos de gênero.
A pesquisa realizada por Deise Souza, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UFMS (em andamento), analisou 103 livros didáticos de matemática dos anos iniciais das coleções aprovadas no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2016, sendo 69 de alfabetização matemática (1º; 2º e 3º anos) e 34 de matemática (4º e 5º anos).
Em uma análise específica sobre como os livros de matemática apresentam brinquedos como tema atrativo para se ensinar matemática, Deise Souza identificou uma regularidade discursiva do que poderíamos classificar como brinquedos e brincadeiras “de menino” e “de menina”.
Foram 528 figuras que apresentavam alguma forma de interação criança-brinquedo ou criança-brincadeira. O Quadro 2 a seguir mostra um importante resultado da pesquisa:
Tipos de brinquedos | Nº de imagens com meninas | Nº de imagens com meninos | Nº de imagens com meninas e meninos |
---|---|---|---|
Bonecas | 83 | 0 | 3 |
Bichos de pelúcia | 35 | 0 | 0 |
Bolas | 35 | 155 | 1 |
Boliche | 14 | 11 | 0 |
Bolhas de sabão | 2 | 0 | 0 |
Carrinhos | 3 | 117 | 0 |
Jogo (figurinhas, dardos) | 0 | 5 | 0 |
Bolinha de gude | 8 | 34 | 1 |
Pião | 0 | 4 | 0 |
Super-heróis | 0 | 16 | 1 |
Videogame | 2 | 4 | 0 |
Fonte: Adaptado de (VALERO; SILVA; SOUZA, 2019)
Além do que é evidenciado pelo Quadro 2, por exemplo, brincar de bola é atividade de menino e brincar de boneca é de menina, essas brincadeiras constroem e normalizam práticas sociais do que é esperado de um homem e de uma mulher.
O brincar de boneca está ligado, em geral, ao cuidado, à atenção e à generosidade. Assim, ao ver Ana dando um terço de suas bonecas, a matemática da divisão e do cálculo com frações se relaciona com valores feminilizados, como o cuidado com o outro.
Ainda encontramos exceções, como no exemplo: “Sofia, irmã de Lucas, coleciona carrinhos, ela tinha 20 carrinhos e ganhou 5 em seu aniversário. Quantos carrinhos ela tem agora?” (MATRICARDI, 2014, p. 110).
No entanto, “Sofia” é apresentada como “irmã de Lucas” (o que nos parece uma justificativa para o fato de uma menina poder colecionar carrinhos: ter um irmão!). Essa parece uma estratégia discursiva para mostrar que existe uma certa pluralidade, e não regularidade, nas ações legitimadas como sendo de meninas e meninos. A nosso ver, exemplos como esse são o que Paul Dowling chamou de “ritual de genuflexão [ajoelhar, reverenciar] para o discurso da igualdade de oportunidades e para desarmar bombas antissexistas” (DOWLING, 1991, p. 4, tradução nossa), reforçando não as lutas sociais por igualdade, mas a própria diferenciação.
O currículo de matemática opera por intermédio de uma técnica muito refinada: dá uma suposta liberdade, mas, ao mesmo tempo, mostra modos específicos de ser. É o caso do exemplo a seguir, no qual o livro apresenta:
A atividade convida o(a) estudante a vestir o boneco e a boneca “como preferir”. Interessante notar que, mesmo com roupas íntimas, os bonecos já reproduzem modos de ser menino e menina (cueca azul e calcinha rosa).
A partir dessa pretensa liberdade, o livro propõe algumas soluções:
O livro propõe, sim, outras formas de se vestir o boneco, além das apresentadas. Mas o dispositivo que propõe, também exige a confissão: “conte aos colegas e ao professor”. Essa técnica constrange e inibe, separando o que pode ser dito do que não pode ser dito.
A matemática das combinações não aceita todas as combinações. Há combinações idealizadas, combinações esperadas, combinações normalizadas para meninos e combinações normalizadas para meninas.
As pesquisas, descritas até aqui, movimentam um currículo-matemática-gênero que opera um modo muito específico de ser menina e ser menino no mundo contemporâneo. A seguir, mostraremos como esse currículo também opera na aula de matemática.
Ato 3: Aula de matemática-gênero5
O relato de experiência que será apresentado, aborda a questão de gênero a partir da encenação de violências simbólicas comuns à sala de aula e a escolha se deu, tendo em vista o suposto distanciamento da matemática com temas da sociedade contemporânea.
Para tanto foi desenvolvida uma aula (com explicações no quadro de giz e resolução de exercícios) sobre probabilidade, com duração de 100 minutos (duas horas-aula) e a participação de aproximadamente 15 alunos (discentes e o professor da disciplina Matemática no Ensino Médio - MEM). A aula foi ministrada por uma aluna-professora e um aluno-professor caracterizados. O aluno-professor foi vestido de mágico e a aluna-professora foi vestida de ajudante do mágico (nos moldes das apresentações televisivas mais clássicas envolvendo mágicos e suas ajudantes). Em diversos momentos da aula, a dupla discente-docente e o professor-aluno (professor da disciplina MEM) agiram de forma propositalmente machista - em alguns momentos diretamente, por meio de falas, interrupções constantes a mulheres e liderança masculina; e em outros indiretamente, por omissão e discurso de questão. O objetivo do relato de experiência, bem como da aula aplicada foi expor os diversos machismos que ocorrem frequentemente em sala de aula e por vezes passam despercebido.
O comportamento - reproduzido na aula aplicada para posterior discussão - perpetua a naturalização da submissão da mulher, estereotipando-a como ser afetivo e frágil. O traje escolhido para a ajudante foi o típico utilizado por assistentes de mágicos: roupas curtas e apertadas, que sensualizam e deixam a mostra o corpo da mulher. A dominação masculina que se instituiu nos corpos femininos os tornam objetos simbólicos, fazendo com que a mulher exista, primeiro, para o olhar dos homens e que a dita feminilidade seja uma forma da mulher atender às expectativas masculinas (BOURDIEU, 2019). À mulher, não cabem as ciências exatas - no máximo a licenciatura, devido à sua vinculação com a ética do cuidado. Não há espaço de fala, e fica nítido quais profissões uma mulher deve ocupar. Carros e futebol são conhecimentos tipicamente masculinos, e à mulher resta a culinária e os afazeres domésticos. O arquétipo feminino é balizado e cerceado: o lugar da mulher está bem definido.
O material utilizado e entregue aos discentes foi uma folha de exercícios selecionados de alguns livros de matemática do ensino médio6. Algumas questões foram alteradas para que o nível de dificuldade fosse condizente com o conteúdo ministrado na aula; o teor das questões, contudo, se manteve: representações das figuras femininas e masculinas em seus respectivos papéis sociais.
Cena 1: A aula per se
Para iniciar a aula foi escolhido um desafio motivador (o problema de Monty Hall7). Depois disso, o aluno-professor, caracterizado de mágico, e a aluna-professora, caracterizada como ajudante do mágico, prosseguiram a aula com um número de mágica utilizando um baralho de cartas. Nota-se aqui que as roupas escolhidas foram representativas: a mulher com maquiagem, saia e camisa justa, e o homem de gravata, cartola e capa. A aluna-professora era apenas um acessório atrativo e o aluno-professor, centro das atenções e detentor do conhecimento. Durante a aula, a aluna-professora foi apenas uma expectadora, enquanto o aluno-professor comandou a aula circense envolvendo mágica-e-probabilidade.
Após a exposição dos conceitos e propriedades básicas sobre a probabilidade, o aluno-professor apresentou e resolveu três exercícios com a turma; o primeiro deles sobre futebol, o segundo sobre fórmula 1 e terceiro sobre moda. O primeiro será apresentado a seguir para exemplificar o tipo de exercício selecionado.
Os demais exercícios seguiram essa linha, com o exercício de fórmula 1 (Questão 2) perguntando sobre as posições de um piloto na corrida - com artigos masculinos - e o de moda (Questão 3) perguntando das combinações possíveis de roupas de Márcia, uma mulher. Os três exercícios foram escolhidos para evidenciar o discurso de questão comumente apresentado: a construção social de “coisas de homem” e “coisas de mulher”, com mulheres associadas a roupas e homens a futebol e carros; e a linguagem sexista que generaliza piloto e competidores, remetendo a homens.
Uma discente-aluna pediu para realizar a leitura do diálogo da Questão 1 e, quando a aluna-professora afirmou que era um papel masculino, retrucou que Ricardo poderia ser uma garota. Com uma expressão desconfortável, a aluna-professora deixa a discente-aluna realizar a leitura, mas não conversa sobre o assunto. Outra discente-aluna, irritada com a falta de atenção, questiona xs alunxs-professorxs se a aula é só para os meninos, mas não obtém resposta.
O professor-aluno (professor de fato da disciplina, portando-se como aluno) comentou que a explicação do aluno-professor era melhor do que a da aluna-professora; ao ouvir isso, a aluna-professora senta e deixa o aluno-professor comandar totalmente a aula.
Cabe destacar que antes da realização da prática pedagógica, fez-se um acordo com o professor-aluno para que fizesse comentários machistas, incluindo um roteiro feito pela dupla que ministrou a aula. O objetivo aqui era mostrar que, mesmo quando o machismo inicia com discentes, a omissão e falta de intervenção docente também é uma ação machista.
Além do roteiro para o professor-aluno, havia um para a aluna-professora e o aluno-professor (alunxs-professorxs).
Cabe destacar que nenhum roteiro foi seguido à risca, mas a essência se manteve8.
Em toda a aula, o machismo perdurou: na fala da dupla que ministrou a aula e do professor-aluno, na omissão, no discurso de questão, nas interrupções constantes a mulheres. Nos momentos mais explícitos, algumas pessoas pareciam desconfortáveis, mas não houve reclamações além das citadas anteriormente. Algumas discentes-alunas esboçaram revolta, mas devido ao exemplo das duas colegas ignoradas, não se manifestaram.
A resolução de Monty Hall finaliza a aula, deixando a turma intrigada, pois, durante o semestre, foi anunciado que o tema da aula seria gênero.
Cena 2: A discussão e o feedback após a aula
Após a finalização, cada participante comentou sobre a aula. Diversos elogios à mágica e ao desafio motivador, bem como críticas à organização do quadro e à falta de mais registros escritos. Elogios à paciência para explicação de assuntos mais simples e ao interesse em sanar todas as dúvidas. O que se destacou, contudo, foram os questionamentos dos participantes: a aula não seria sobre gênero? Para eles, foi apenas mais uma aula de probabilidade, o gênero foi deixado de lado.
Xs alunxs-professorxs então explicam que a questão de gênero estava lá o tempo todo, apenas com a manutenção da relação assimétrica de gênero. Relembrando os diversos momentos da aula, dá-se visibilidade aos machismos corriqueiros: o pouco (quase inexistente) espaço de fala da mulher; a construção social dos papéis feminino e masculino; a linguagem sexista invisibilizadora; as “piadas” e coerções às mulheres; a omissão frente ao machismo de outra pessoa. Todos esses pontos tomaram vida com a atitude da dupla discente-docente e do professor-aluno, além do discurso de questão: machismo falado, escrito e ignorado, porém em nenhum momento discutido. Em momento algum houve neutralidade, apenas reprodução da cultura androcentrista.
Algumas pessoas então confessaram não ter percebido tudo isso, mas outras relataram estranheza diante do silêncio da aluna-professora e do aluno-professor frente às provocações machistas do professor-aluno. Criou-se então uma discussão sobre os machismos presenciados diariamente - na família, na roda de amigos, na escola - e a necessidade de se conversar abertamente sobre o tema. Muitas ações que perpetuam as relações assimétricas de gênero são naturalizadas; perdura, portanto, o machismo que limita, diminui, agride e marginaliza mulheres. Não é necessário ir longe: o machismo mora ao lado, está na mesa de bar com amigos e amigas, no almoço de domingo em família, na sua aula favorita, basta prestar atenção.
Ato 4: Gênero e os intramuros das aulas da matemática escolar: em revista
Como elemento central das aulas de matemática, o livro didático pode tanto legitimar quanto questionar um discurso dominante nos intramuros da sala de aula. Os livros analisados, tanto dos anos iniciais, quanto dos anos finais do ensino fundamental não apresentam apenas o arquétipo submisso e recatado da mulher, mas também mulheres questionadoras, detentoras do saber e ocupando novos espaços e funções que, outrora, eram dominados por homens. A mulher é diversa, frequentemente está em ambientes masculinos, todavia, continua sendo alvo do machismo estrutural e dificilmente divide seu lugar concebido (o lar e seus afazeres, suas profissões típicas, suas atividades e interesses delicados) com o homem. Apesar desse avanço, ainda se faz necessário legitimar cada vez mais o espaço da mulher na sociedade contemporânea mediante representações assertivas que respeitem a pluralidade da mulher e do homem, bem como sua equidade.
O livro didático, possivelmente, o material curricular mais usado nas aulas da matemática escolar (mas não só nessa disciplina) pode fomentar discussões pertinentes sobre assuntos que extrapolem o conhecimento matemático, sem banalizá-lo; se faz necessário, contudo, que nós, docentes de matemática, enxerguemos para além da moldura do quadro, ou seja, para além daquela matemática escolar descontextualizada, despersonalizada e despersonificada.
A situação envolvendo a aula de probabilidade foi contextualizada, prendeu a atenção dos participantes, mas veladamente naturalizou o machismo. Neste sentido, a contextualização e a encenação - bem conduzida pela caracterização de mágico-ajudante da dupla que ministrou a aula - legitimou, implicitamente, a dominação masculina e elucidou que a distração (fomentada pela encenação) pode enviesar e docilizar os sujeitos-alunos sobre a questão do gênero, perpetuando um discurso dominante branco-masculino-homofóbico.
Percebemos com a situação em questão que é comum as pessoas se indignarem com o machismo mais explícito - falas diretas sobre o lugar da mulher. As discentes da turma, constantemente interrompidas, sentiram a usurpação do seu espaço de fala: foram silenciadas. Apesar disso, os detentores da fala não a usaram para protestar - o que comumente acontece quando é presenciado o machismo de uma pessoa próxima.
Para a possibilidade de uma sociedade com equidade de gênero, é necessário questionar, estranhar e desnaturalizar essas condutas e experiências. Agentes de suma importância na formação de um indivíduo, docentes precisam revisitar-ressignificar- contestar as antigas, porém, ainda presentes, práticas sociais do modelo assimétrico que coloca o homem hierarquicamente no controle.
Os participantes da aula compreenderam a importância da discussão de gênero e da autofiscalização para evitar a reprodução de machismo. Urge a necessidade de frear a legitimação das desigualdades dicotômicas entre mulheres e homens, e as críticas feitas aqui são essenciais e podem contribuir para o pavimento de um caminho em direção a uma sociedade equânime, de mulheres empoderadas. O tradicional comportamento docente não é imparcial, pois o machismo parece intrínseco ao ambiente escolar. Dessa forma, é comprovada a alarmante necessidade de se falar de gênero nas escolas, principalmente, nas aulas de uma disciplina historicamente categorizada como neutra, a matemática escolar.
A matemática escolar entendida como uma prática social discursiva pode e deve produzir sentidos para além do seu corpus per se, mas tal significação somente ocorrerá se nós, docentes de matemática, sairmos da nossa gaiola didática-pedagógica e alçarmos voos maiores.
Nada disso ocorrerá de maneira espontânea, por isso, a importância de se evidenciar as duas situações propostas neste artigo. Elas e tantas outras já produzidas ou em produção devem ser reverberadas, sempre que possível, nos espaços escolares e de formações docentes que ministram matemática. Inicialmente, elas causarão desconforto, aversão, repulsa, mas num espaço dialógico-comunicativo tais sentimentos serão, aos poucos, superados e, a partir daí, será possível experienciar situações onde a matemática escolar possa conflitar em vez de consensuar, neste caso, a dominação masculina e o arquétipo submisso e recatado da mulher.