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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.27 no.spe Uberlândia dic. 2020  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v27nea2020-15 

Artigos

Neurodesenvolvimento na Primeira Infância: aspectos significativos para o atendimento escolar na Educação Infantil

Neurodevelopment in early childhood: significant aspects for early childhood education

Neurodesarrollo de la infancia temprana: aspectos significativos para la educacíon infantil

1Doutora em Educação em Ciências. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. saianicrespi@gmail.com.

2Doutora em Educação em Ciências. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. deisinoro@gmail.com

3Doutora em Educação em Ciências. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. marciafnobile@hotmail.com.


RESUMO

Este estudo apresenta aspectos relacionados ao desenvolvimento cerebral durante a Primeira Infância. Aborda sinteticamente a estrutura e a maturação do Sistema Nervoso, bem como o papel das experiências iniciais no desenvolvimento infantil. O estudo constitui-se como uma pesquisa qualitativa respaldada por fundamentos teóricos sobre aspectos relacionados à maturação cerebral e ao processo de desenvolvimento infantil, coletados através de revisão bibliográfica em autores das áreas de Neurociências, Psicologia e Educação como Bee e Boyd (2011), Cosenza e Guerra (2011), Domingues (2007), Kandel (2014), Lent (2019) e Papalia, Olds e Feldman (2006), Carrazoni (2018), Oliveira e Lent (2018) e Polo e Santos (2018). Os dados apresentados indicam que o desenvolvimento cerebral é um processo complexo, dinâmico e condicionado a aspectos biológicos, culturais e ambientais, fortalecendo a importância da prática pedagógica na Educação Infantil para o neurodesenvolvimento humano.

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento cerebral; Primeira infância; Educação Infantil

ABSTRACT

This study presents aspects about children neurodevelopment, specifically during the first six years of life, a period recognized as Early Childhood, in addition to synthetically addressing the structure and maturation of the Nervous System, as well as the role of early experiences to children’ development. The study is a qualitative research supported by theoretical foundations collected through literature review in authors from Neurosciences, Psychology and Education fields such as Bee and Boyd (2011), Cosenza and Guerra (2011), Domingues (2007), Kandel (2014), Lent (2019), Papalia, Olds and Feldman (2006), Carrazoni (2016), Oliveira and Lent (2018) and Polo and Santos (2018). The data presented indicate that the brain development is a complex and dynamic process conditioned to biological, cultural and environmental aspects, strengthening the importance of pedagogical practice in Early Childhood Education for human neurodevelopment.

KEYWORDS: Brain development; Early childhood; Early Childhood Education

RESUMEN

Este estudio presenta aspectos relacionados con el neurodesarrollo durante la infancia temprana. Se discute sintéticamente la estructura y maduración del sistema nervioso y el papel de las experiencias iniciales en el desarrollo infantil. El estudio constituye una investigación cualitativa apoyada por fundamentos teóricos sobre aspectos relacionados con la maduración cerebral y el proceso de desarrollo infantil, recogido por revisión bibliográfica en autores de las áreas de Neurociencias, Psicología y Educación como Bee y Boyd (2011), Cosenza e Guerra (2011), Domingues (2007), Kandel (2014), Lent (2019), Papalia, Olds y Feldman (2006), Carrazoni (2016), Oliveira y Lent (2018) y Polo y Santos (2018). Los datos presentados indican que el desarrollo cerebral es un proceso complejo, dinámico y condicionado a los aspectos biológicos, culturales y ambientales, fortaleciendo la importancia de la práctica pedagógica en la educación infantil para el neurodesarrollo humano.

PALABRAS CLAVE: Desarrollo cerebral; Infancia temprana; Educación Infantil

Introdução

Avanços recentes em pesquisas relacionadas às áreas de Neurociências e Educação têm demonstrado que o desenvolvimento humano condiciona-se a duas variáveis dialógicas: a cultura e os fatores biológicos e genéticos intrínsecos à espécie humana. De modo geral, o estudo sobre o desenvolvimento humano pode ser descrito como uma análise sistemática e ampla sobre todo o ciclo de vida dos indivíduos, sendo um campo de estudo científico que investiga “como as pessoas mudam, bem como as características que permanecem razoavelmente estáveis durante toda vida” (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2006, p. 47).

Por outro lado, estudos que investigam o desenvolvimento infantil se focam na “sequência de mudanças físicas, cognitivas, psicológicas e sociais que as crianças experimentam na medida em que vão crescendo” (COLE; COLE, 2004, p. 28), ou seja, trata-se do progressivo amadurecimento da criança em suas múltiplas dimensões.

Seja de forma ampla, ou específica aos anos iniciais da vida, é fundamental considerar que o desenvolvimento humano é marcado por influências internas e externas ao indivíduo e que para melhor compreendê-lo, faz-se necessário buscar fundamentos teóricos sobre esse processo em diferentes campos de pesquisa.

Dentre as diversas áreas do conhecimento que estudam o desenvolvimento infantil, as Neurociências apresentam significativo potencial de contribuir para o campo da Educação, já que, por se tratar de um conjunto de áreas de pesquisa interdisciplinares que, com respaldo de tecnologias de neuroimagem como a Ressonância Magnética Funcional (fMRI), produzem dados sobre o cérebro em funcionamento durante a realização de determinadas tarefas e permitem um maior entendimento sobre como o cérebro aprende, constrói memórias, processa emoções, entre outras funções significativas.

Deste modo, o presente estudo busca apresentar fundamentos teóricos sobre as especificidades do desenvolvimento cerebral durante a Primeira Infância4, especificamente durante os três primeiros anos de vida, abordando questões como a estrutura e a fisiologia do Sistema Nervoso (SN), a plasticidade cerebral, os marcos do desenvolvimento infantil, os períodos sensíveis e a relevância dos vínculos afetivos nessa faixa etária.

O estudo também intenta apresentar dados sobre a oferta da Educação Infantil (EI) no Brasil, preconizando a importância da Primeira Infância para o desenvolvimento integral da criança nessa faixa etária.

Materiais e métodos

O estudo caracteriza-se como uma pesquisa teórica, de natureza exploratória. Faz uso de uma metodologia qualitativa respaldada em fundamentos teóricos coletados na revisão bibliográfica de autores relacionados à áreas de pesquisa em Neurociências como Cosenza e Guerra (2011), Kandel (2014), Lent (2010, 2019), Luria (1981), Oliveira e Lent (2018), Polo e Santos (2018) e Shore (2000). Apresentam-se também fundamentos teóricos coletados em autores que buscam a interlocução entre Neurociências e Educação como e Domingues (2007) e Lima (2016), bem como autores da área de Psicologia do Desenvolvimento como Bee e Boyd (2011), Cole e Cole (2004) e Papalia, Olds e Feldman (2006).

De acordo com Gil (2008, p. 27), o uso da pesquisa exploratória justifica-se no entendimento de que essas são “desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato”, fazendo uso habitual de levantamento bibliográfico a fim de apresentar uma discussão entre especialistas sobre determinada temática. Neste estudo, o uso do levantamento bibliográfico visa promover esclarecimentos sobre o SN e sobre o desenvolvimento cerebral nos três primeiros anos de vida da criança.

O SN e o desenvolvimento do cérebro infantil

O desenvolvimento humano é um processo complexo que possibilita o progressivo domínio de diferentes habilidades físicas, motoras, cognitivas e psicossociais, desde as mais primárias às mais refinadas. Para Cole e Cole (2004) esse processo deriva da interlocução entre duas instâncias, a natureza, intrínseca ao sujeito, e a educação. Neste contexto específico, a natureza refere-se às predisposições biológicas herdadas pelo indivíduo, enquanto a educação diz respeito às influências do ambiente social e cultural sobre ele, particularmente aquelas advindas das relações interpessoais, da família, da escola e da comunidade.

A interação entre os fatores biológicos e as condições ambientais, como as relações sociais, os vínculos afetuosos, os estímulos, a rotina de sono, a alimentação adequada e a atenção à saúde constituem a base do desenvolvimento humano, fomentando novas aprendizagens. Nesse sentido, Lima (2007, p. 9) afirma que o desenvolvimento humano é fruto da interação entre a cultura e a herança biológica da espécie, sendo que, durante o aprendizado, “a criança se vale de disposições internas do desenvolvimento da espécie humana e se vale do que o meio lhe oferece como possibilidades para a aprendizagem”.

Bee e Boyd (2011) esclarecem que o neurodesenvolvimento tem início ainda no período gestacional, sendo durante os primeiros anos de vida se estabelece a arquitetura cerebral que servirá de base para as todas as etapas posteriores da vida. No decorrer da Primeira Infância observa-se o progressivo amadurecimento de diferentes regiões cerebrais, fator que permite a aquisição e a construção de novas habilidades cada vez mais especializadas.

Em termos biológicos, os seres humanos se diferenciam das demais espécies de animais pela incrível complexidade de seu SN. Este sistema, composto por diversos órgãos espalhados pelo corpo, age na captação, na interpretação e na transmissão estímulos sensoriais por todo o organismo, decorrendo de seu funcionamento os movimentos voluntários e involuntários, a coordenação motora, as sensações, as emoções, o raciocínio lógico, entre outros fatores igualmente relevantes.

Estruturalmente, o SN pode ser subdivido em Sistema Nervoso Central (SNC) e Sistema Nervoso Periférico (SNP). O SNP é uma estrutura complexa localizada fora do encéfalo e da medula espinhal, tendo como função primordial conectar o restante do corpo ao SNC, sendo formado por feixes de fibras nervosas responsáveis pela transmissão de impulsos nervosos, além de gânglios, aglomerados de neurônios distribuídos pelo corpo.

O SNC é formado pelo encéfalo e pela medula espinhal. De acordo com Lent (2010) o encéfalo divide-se estruturalmente em três partes: o metencéfalo, que inclui o cerebelo e a parte mais inferior do tronco cerebral; o mesencéfalo, que recobre a parte superior do tronco cerebral e o prosencéfalo, que compreende o restante do cérebro, constituído pela área límbica, o tálamo, o hipotálamo, a amídala, o cérebro e a crosta cerebral. O cerebelo conecta-se com o tronco cerebral, relacionando-se com a modulação da força, a amplitude dos movimentos e ao aprendizado das habilidades motoras.

Kandel (2014), por sua vez, explana que a medula espinhal tem como função receber e processar as informações sensoriais captadas pela pele, articulações e músculos dos membros e do tronco, além de controlar os movimentos destes. O tronco encefálico, composto pelo bulbo, ponte e mesencéfalo, compõe-se por diversos conjuntos de nervos cranianos, especializados no processamento de informações relacionadas à audição, paladar e equilíbrio. O tronco encefálico:

recebe informação sensorial da pele e dos músculos da cabeça e fornece o controle motor para a musculatura da cabeça. Ele também transmite informação da medula espinhal para o encéfalo e do encéfalo para a medula espinhal, regulando níveis de alerta via formação reticular (KANDEL, 2014, p. 9).

Por sua vez, o cérebro é “a porção mais importante do SN e atua na interação do organismo como o meio externo, além de coordenar suas funções internas” (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 25), correspondendo por aproximadamente 70% do peso do SN e sendo responsável pelo controle de funções como a linguagem, a memória, o raciocínio e a emoção. O cérebro é formado por dois hemisférios, o direito e o esquerdo, que se encontram interligados por um profundo sulco denominado corpo caloso. Essa é uma estrutura formada por diversos feixes de fibras nervosas que garantem a comunicação entre os dois hemisférios, além de atuar na interpretação de informações advindas dos estímulos sensoriais.

Os hemisférios cerebrais apresentam funções especializadas, que atuam conjuntamente para a execução de diferentes tarefas mentais em decorrência do funcionamento do corpo caloso. Em Luria (1981, p. 27) encontramos o entendimento de que os processos mentais são altamente complexos e não se encontram localizados em uma área específica do cérebro, ao contrário, “ocorrem por meio da participação de grupos de estruturas cerebrais operando em concerto, cada uma das quais concorre com a sua própria contribuição particular”. Ou seja, seria um equívoco acreditar que as estruturas que compõem o SN agem de maneira totalmente independente uma das outras, quando de fato existe uma interdependência entre elas para a execução das tarefas mentais.

De forma sintética, Luria (1981) postula que o SN é composto por três unidades funcionais, sendo a primeira unidade composta pela medula, tronco cerebral, cerebelo, sistema límbico e o tálamo. A segunda unidade, formada pelo lobo occipital, lobo temporal e lobo parietal. Já a terceira unidade, compõe-se pela ação do lobo frontal; do córtex pré-frontal; do córtex pré-motor e do córtex pré-central.

Desse modo, para o referido autor as diferentes estruturas do SN e as regiões cerebrais constituem um sistema funcional complexo que possibilitam, através da ação conjunta, a realização de tarefas mentais superiores, como o pensamento, a linguagem, a atenção, a memória o comportamento e a aprendizagem.

No cérebro encontram-se cinco lobos corticais dispostos proporcionalmente entre o hemisfério esquerdo e o hemisfério direito, recebendo os nomes de: lobo occipital, lobo temporal, lobo parietal, lobo frontal e lobo da ínsula. Com exceção do lobo da ínsula, que se localiza no interior do sulco lateral do cérebro, a nomeação atribuída aos lobos corresponde aos ossos do crânio que recobrem cada um deles.

Similarmente, Cosenza e Guerra (2011) ressaltam que embora o cérebro aja de forma interligada e dialógica, no entanto, os autores apontam que cada lobo amadurece em ritmo próprio e apresenta algumas funções predominantes que auxiliam na execução dessas tarefas. Na Figura 1 é possível observar a disposição dos lobos, salvo a ínsula que para ser visualizada requer o afastamento dos lábios da fissura lateral.

Fonte: Imagem adaptada de Falavigna e Neto (2012, p. 42).

FIGURA 1: Disposição dos lobos cerebrais 

Lent (2010) elucida que o lobo frontal, localizado no porção frontal do crânio, desenvolve-se gradualmente durante o primeiro ano de vida e apresenta funções relacionadas às funções executivas, como a cognição, o raciocínio, a fala, o movimento, a motivação, o planejamento, o pensamento abstrato e a memória de trabalho. O lobo parietal, localizado na porção superior e central da cabeça, é essencialmente responsável pelo processamento dos sentidos e das sensações táteis.

O lobo occipital, que se encontra na parte da cabeça oposta ao lobo frontal, processa informações visuais, enquanto o lobo temporal, localizado nas laterais da cabeça, acima das orelhas, tem como função o processamento de estímulos auditivos, sendo também encarregado pelas memórias e linguagem. Lent (2010) ainda destaca que o lobo da ínsula aparenta estar conectado com o funcionamento do sistema límbico, com a coordenação dos processos emocionais e com o paladar.

Para que ocorra a recepção, a condução e o processamento de informações entre os lobos e demais estruturas que compõem o SN, o cérebro humano conta com aproximadamente 85 bilhões de neurônios. De acordo com Cosenza e Guerra (2011, p. 25) “os neurônios conduzem a informação por meio de impulsos elétricos que percorrem a sua membrana e a passam a outras células por meio de estruturas especializadas, as sinapses”, uma zona de contato entre os neurônios onde são liberados neurotransmissores, substâncias químicas produzidas pelos próprios neurônios e responsáveis pela transmissão dos impulsos nervosos e pela comunicação entre as células nervosas do SN.

Os neurônios são células nervosas formadas por um corpo celular principal, chamado de soma, do qual se projetam prolongamentos neuronais denominados dendritos. Estes agem como receptores de impulsos nervosos vindos de outros neurônios, sendo que através deles que “cada neurônio recebe as informações provenientes dos demais neurônios a que se associa” (LENT, 2010, p.16) e um axônio, uma extensão do corpo celular principal, sendo mais longo que os dendritos e responsável por transmitir sinais químicos para outras células nervosas.

Durante o início do período gestacional os neurônios não apresentam função específica, no entanto, no decorrer das primeiras semanas de vida intrauterina, estes migram para diversas partes do córtex cerebral e dão origem aos axônios e dendritos e se especializam em diferentes funções.

A multiplicação de dendritos e conexões sinápticas, especialmente durante os últimos dois meses e meio de gestação e nos primeiros seis meses a dois anos de vida, é responsável por grande parte do aumento do peso do cérebro e permite a emergência de novas capacidades perceptivas, cognitivas e motoras (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2006, p. 169).

Nos três primeiros anos de vida, a arquitetura cerebral passa por intensas transformações estruturais em resposta a interação entre fatores biológicos, experiências e relações interpessoais que a criança estabelece no meio que a cerca. Nesse período, os neurônios presentes no SN, passam a associar-se e estando associados uns aos outros, criam redes neurais que se fortalecem a medida que são utilizados com maior frequência (Lent, 2019). O fortalecimento dessas redes neurais favorece a transmissão de informações previamente adquiridas através de alguma experiência vivenciada e que passam a ser evocadas com maior facilidade, garantindo, desta forma, a aprendizagem e a formação de memórias.

Todavia, como aponta Shore (2010), os neurônios não são as únicas células nervosas existentes no SN. As células gliais ou neuroglias, também são células nervosas e apresentam como principal função dar sustentação aos neurônios, contribuindo para sua defesa contra microrganismos nocivos, além de operar diferentes funções ligadas com a contribuição direta ou indireta com o “processamento de informações pelo sistema nervoso, seja modulando a transmissão sináptica entre neurônios ou trocando sinais com eles” (LENT, 2010, p. 74).

Se por um lado o amadurecimento dos neurônios garante o aperfeiçoamento das conexões neurais, por outro, este “aperfeiçoamento se deve em muito às células gliais, as quais revestem as rotas neurais de uma substância gordurosa chamada mielina” (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2006, p. 170). O acúmulo mielina nos axônios dos neurônios permite, portanto, uma melhor comunicação entre as células nervosas, que passam a transmitir os sinais elétricos com mais rapidez e regularidade.

O processo de mielinização dos neurônios é essencial para o neurodesenvolvimento, tendo início na gestação, alcançando grande intensidade aos cinco de idade e se estendendo até a vida adulta. Esse processo promove, entre outros, o desenvolvimento das rotas neuronais responsáveis pelos sentidos e pela visão no cérebro humano.

As rotas relacionadas com o sentido do tato - o primeiro a se desenvolver - já estão mielinizadas na época do nascimento. A mielinização das rotas visuais, que amadurecem mais lentamente, começa no nascimento e continua durante os 5 primeiros meses de vida. Rotas relacionadas com a audição podem começar a ser mielinizadas já no quinto mês da gestação, mas o processo não se completa antes dos 4 anos. As partes do córtex que controlam a atenção e a memória, que demoram mais para se desenvolver, não se encontram plenamente mielinizadas até o início da vida adulta (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2006, p. 170).

Ao nascimento, o cérebro humano é consideravelmente imaturo se comparado com o cérebro de outros animais e esta imaturidade é passível de observação com o suporte de técnicas de neuroimagem como a ecografia cerebral, que de forma não invasiva observa o funcionamento do cérebro neonato em tempo real (BEE; BOYD, 2011). Um dos fatores condicionados à imaturidade cerebral do recém-nascido é a sua total dependência física para com seus progenitores e/ou cuidadores, em comparação com outras espécies de animais, cujos cérebros são comparativamente mais maduros ao nascimento.

Intuitivamente, é lógico compreender porque os estágios finais da maturação do sistema nervoso ocorrem fora do útero materno. A estrutura óssea da pelve é um empecilho à expulsão do feto, pois lhe oferece uma barreira mecânica. O canal do parto apresenta aproximadamente 11 centímetros de diâmetro e deve possibilitar a passagem do feto naturalmente. O recém-nascido apresenta, em média, um perímetro cefálico de 34 cm e, portanto, um diâmetro aproximado de 9 cm. Estima-se que, se o ser humano nascesse com as capacidades motoras semelhantes às de um macaco recém-nascido, nossa gestação deveria ter 12, e não nove meses de duração. Admitindo-se que aos 3 meses de vida pós-natal os bebês apresentam um perímetro cefálico de 46 cm (13 cm de diâmetro), isto inviabilizaria a passagem do feto pelo canal de parto, já que haveria uma desproporção cefalopélvica definitiva (LENT, 2010, p. 106).

Deste modo, condicionados às características genéticas e físicas da espécie humana, o SN ao nascimento não se encontra pronto. A maturação cerebral no pós-parto é progressiva e ocorre à medida que o bebê interage com o ambiente, promovendo a ocorrência de sinapses, a interligação entre os neurônios no SN e o amadurecimento progressivo das redes neurais que contribuirão para o domínio de habilidades cada vez mais complexas.

Como ponderado por Cosenza e Guerra (2011), Domingues (2007) e Oliveira e Lent (2018), o neurodesenvolvimento é um processo longo, dinâmico e marcado por etapas vinculadas a faixas etárias, que podem não ocorrer exatamente no mesmo tempo e da mesma forma para todos, visto que a maturação cerebral está diretamente relacionada aos fatores biológicos individuais e aos estímulos provenientes do meio em que cada sujeito se encontra.

Desde o período pré-natal, o desenvolvimento cerebral pode ser afetado por condições ambientais internas e externas ao indivíduo como a alimentação materna e seu estado geral de saúde, o afeto e o vínculo parental, o consumo de álcool e substâncias tóxicas durante a gestação. Após o nascimento, e especialmente, durante a Primeira Infância, estes fatores continuam interagindo e influenciando a maturação cerebral e a aquisição de funções cognitivas que servirão de base para etapas posteriores da vida.

Observa-se que o amadurecimento cerebral na Primeira Infância implica não apenas na criação de novas ligações entre neurônios através das sinapses, na aquisição e no aperfeiçoamento de habilidades e na expressão de comportamentos distintos, mas também no crescimento da massa cerebral, visto que, como esclarecem Cosenza e Guerra (2011), por volta do nascimento, o cérebro humano pesa cerca de 400g e ao final do primeiro ano de vida, terá duplicado sua massa, pesando cerca de 800g.

Este aumento de massa relaciona-se com a plasticidade cerebral e com a formação de novas ligações entre os neurônios através do prolongamento dos dendritos que criam uma ramificada rede de comunicação neural em resposta à estimulação ambiental. Nas palavras de Costa (2018, p. 53),

Nas etapas iniciais do desenvolvimento do cérebro e durante toda a infância a espessura cortical, isto é, a substância cinzenta que constitui a camada externa ou córtex cerebral é de maior espessura. Mudanças quantitativas na relação da substância branca, estrutura abaixo do córtex cerebral e a cinzenta são dependentes da idade e estão intimamente relacionadas à mielinização. (...) Como consequência da mielinização e organização das conexões cerebrais há aumento volumétrico da substância branca associada à redução progressiva da espessura cortical.

Papalia, Olds e Feldman (2006, p. 166) acrescentam que ao nascimento, o cérebro neonato tem apenas 25% de seu futuro peso adulto de 1.5kg, sendo que graças à neuroplasticidade, o cérebro atinge quase 70% de seu peso total até os três anos de vida e “aos 6 anos, ele tem quase o tamanho adulto, mas o crescimento e o desenvolvimento funcional de partes específicas do cérebro continuam durante a idade adulta”.

Lent (2019, p. 82) ainda afirma que o aumento da massa cerebral também ocorre “devido ao aumento da cobertura de mielina nas fibras nervosas, o que resulta em maior velocidade de condução do impulso nervoso, ou seja, aumento da eficiência na comunicação das áreas cerebrais”. Com o aprimoramento da comunicação entre as diferentes áreas do cérebro, o desenvolvimento cerebral inicial é rápido e intenso durante os três primeiros anos de vida.

No decorrer das primeiras semanas de vida pós-parto, os bebês são capazes de aprender através da associação de estímulos agradáveis e/ou desagradáveis e pela estimulação ambiental repetitiva (Bee; Boyd, 2011). Esta aprendizagem indica o impacto do ambiente, dos estímulos e das variadas ações dos adultos que cercam o bebê no desenvolvimento e na aprendizagem durante este período da vida que servirão de base para as fases posteriores.

A evolução das capacidades motoras dos recém-nascidos é um claro exemplo da influência do ambiente e dos estímulos na maturação cerebral e no aperfeiçoamento de habilidades. As habilidades motoras, sensoriais e perceptuais são rudimentares ao nascimento se aperfeiçoam gradualmente à medida que a criança interage com o mundo.

Em comparação com as capacidades motoras, as capacidades sensoriais e perceptuais de um recém-nascido são relativamente funcionais ao nascimento, considerando que de acordo com Bee e Boyd (2011), os bebês ao nascer são capazes de focalizar os dois olhos no mesmo ponto a uma distância de 20 a 25 centímetros, sendo esta a melhor distância focal para discriminar o rosto da mãe em relação a outros rostos com relativa facilidade. Eles também podem discriminar algumas vozes específicas; sentir os sabores doce, amargo, ácido e azedo, além de identificar odores corporais familiares, incluindo discriminar o cheiro da mãe ao cheiro de outra mulher.

Ao nascer com essas habilidades básicas, o recém-nascido encontra-se em uma situação propícia para fortalecer sua interação com a mãe e com outros cuidadores regulares, criando vínculos afetivos de apego que poderão aumentar suas chances de sobrevivência (Oliveira; Lent, 2018). Em decorrência dessas relações sociais iniciais, o cérebro do neonato interage com o ambiente e paulatinamente começa a se modificar, aprende através de experiências vivenciadas, molda comportamentos e adquire habilidades cada vez mais complexas.

Ao passo que estabelece relações de apego com a mãe, o pai e seus cuidadores mais próximos, o bebê garante não apenas a sua sobrevivência, mas também desenvolve respostas emocionais cada vez mais complexas. Oliveira e Lent (2018, p. 35) postulam que,

por volta dos 3 meses de idade, observa-se um maior direcionamento dos comportamentos de apego por parte do bebê. Se antes ia com todo mundo, agora começa a não sorrir tanto para estranhos, mas anda não definiu quem é sua base segura. Somente em torno dos 6 meses de idade forma um apego genuíno. A pessoa mais importante torna-se sua base segura a partir da qual explorará o mundo. Diante de uma pessoa estranha ou uma situação nova, olhará para a mãe (e/ou para o pai) para saber se deve se aventurar. Terá medo do desconhecido e ansiedade de separação das pessoas importantes.

Pesquisas relacionadas às Neurociências apontam para a existência de períodos sensíveis na infância para a aquisição de habilidades importantes para o desenvolvimento integral do indivíduo. Lent (2019, p. 77) descreve esses momentos como períodos críticos, que ocorrem especialmente durante as fases iniciais do desenvolvimento, podendo ser definidos como “intervalos em que os mecanismos de plasticidade cerebral estão especificamente ativos e mais suscetíveis a receber a estimulação adequada proveniente do ambiente”.

Em concordância, o NCPI destaca em um documento intitulado “O impacto do desenvolvimento na Primeira Infância sobre a aprendizagem” que por períodos sensíveis são “momentos de maior capacidade de modificação e maleabilidade dos circuitos cerebrais em resposta a determinada experiência ambiental” (NCPI, 2014 p. 3). Assim, os períodos sensíveis garantem maior prontidão biológica do cérebro para a aprendizagem de determinadas habilidades em certos períodos da vida e mediante a estimulação adequada.

Por outro lado, Lent (2019, p. 78) indica que, seguindo uma cronologia razoavelmente flexível, estes períodos “podem variar entre as crianças, produzindo ritmos diferentes de desenvolvimento psicológico e, algumas vezes transtornos de desenvolvimento” e, por conseguinte, não podem ser entendidos como os únicos momentos nos quais ocorre determinada aprendizagem, já que esse entendimento errôneo poderia gerar mais prejuízos aos educandos. Assim, é essencial que os docentes compreendam esse conceito, mas que não se limitem a ele em seus planejamentos pedagógicos.

Por não serem momentos estanques na cronologia do desenvolvimento infantil, mas por indicar períodos em que o cérebro se encontra em prontidão para o aprendizado de determinada habilidade, Carrazoni (2018) esclarece que se uma criança não desenvolver uma habilidade no tempo considerado comum à sua faixa etária, não existem impeditivos para que, com as devidas experiências, estimulações e práticas, a criança venha a adquiri-la em momento posterior.

Seguindo o entedimento de que existem períodos nos quais as crianças geralmente apresentam o domínio progressivo de determinadas habilidades, é comum observar entre o primeiro e o segundo mês de vida do bebê a capacidade de seguir objetos com as mãos, a de esboçar sorriso social, a de começar a firmar a cabeça e de reconhecer as feições humana. Além disso, no decorrer do desenvolvimento padrão infantil, entre entre o terceiro e o quarto mês, ela firma a cabeça, leva objetos grandes à boca e brinca com as mãos. Adiante na cronologia do desenvolvimento,

do quinto ao sexto mês, o bebê: aprimora os itens citados no terceiro e quarto mês e senta com apoio; do sétimo ao oitavo mês: senta sem apoio; expressa as primeiras sílabas sem significado e entende seu nome e o sentido de “não”; do nono ao décimo mês: acena como se quisesse se despedir de alguém e bate palmas; segura objetos com dedos em pinça; aumenta o entendimento do nome e o sentido do “não”; começa engatinhar (ou não); ergue-se com apoio e anda com apoio de duas mãos (no final do nono mês e no início do décimo mês); do décimo primeiro ao décimo segundo mês: expressa as primeiras palavras; anda com apoio de uma mão; coopera ao vestir e anda sozinho (até os dezoito meses) (DOMINGUES, 2007, p. 48).

Até o primeiro ano de vida, a criança vivencia o aparecimento da linguagem, processo possibilitado pela interação entre a cultura em que se encontra inserida, as experiências vivenciadas, as estimulações recebidas e os circuitos neurais relacionados com esta habilidade. Lent (2010, p. 64) esclarece que nesse período, o vocabulário aumenta ao passo que ocorre a “diferenciação dos neurônios das regiões temporais, especialmente da chamada formação hipocampal, uma área cerebral ligada à consolidação da memória”, favorecendo o desenvolvimento léxico e linguístico da criança.

Já o segundo ano de vida é marcado pela aquisição de outras importantes competências, como a compreensão plena e expressão da linguagem; o início da socialização; a inferência sobre os estados mentais e emocionais dos outros, dando inicio ao que chamamos de empatia; ajuste social, que permite à criança a análise do que pode ser feito ou não em determinado contexto e local e a autoconsciência.

É essencial compreender que durante os dois primeiros anos de vida pós-parto “as partes do cérebro entram em funcionamento progressivamente, de forma que, no terceiro ano de vida, a criança apresenta o cérebro todo em funcionamento” (LIMA, 2016, p. 24), permitindo a ocorrência de aprendizagens complexas neste período através do aumento das sinapses e da consequente intensificação da atividade cerebral.

Por essa razão, aos dois anos de idade, os cérebros infantis são tão ativos quanto os cérebros de adultos, sendo que as sinapses entre os neurônios intensificam-se e “aos três anos, os cérebros das crianças são duas vezes e meia mais ativos do que os dos adultos, e continuam dessa forma, ao longo da primeira década da vida” (SHORE, 2000, p. 56).

Papalia, Olds e Feldman (2006, p. 276) apontam que a maturação progressiva do SN leva a criança ao domínio de funções motoras aos três anos de idade, período em que a criança demonstra um controle mais eficiente de músculos e movimentos amplos, o que lhe confere maior destreza para lançar ou chutar um bola, correr, pular, girar e equilibrar-se, isso porque o “desenvolvimento das áreas sensória e motora do córtex permite melhor coordenação entre o que as crianças querem fazer e o que sabem fazer”, além disso seu corpo está mais preparado para tais atividades físicas, tornando possível o progressivo domínio dessas ações.

Até os três anos de idade, o pensamento já mostra-se menos egocêntrico ao passo que a compreensão do ponto de vista do outro aumenta, favorecendo o fortalecimento de relações sociais e vínculos afetivos. Na esfera cognitiva, a memória e a linguagem se aprimoram e a criança demonstra maior capacidade de prestar atenção, de repetir sequências e recontar pequenas histórias.

Observa-se, assim, que em decorrência ao progressivo amadurecimento cerebral nos três primeiros anos de vida, a criança passa a exercitar habilitades sensoriais, motoras, cognitivas, socioemocionais e linguísticas cada vez mais especializadas.

O atendimento escolar na Primeira Infância

No Brasil, o perído entre o nascimento e aos seis anos completos recebe o nome de de Primeira Infância, nomenclatura essa que advém do Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257 de 8 de março de 2015). Este período da vida tem sua relevância reconhecida desde a Constituição Federal de 1988, que identifica as crianças como cidadãos brasileiros, com direitos a serem garantidos para o exercício da sua cidadania. Entre esses direitos, destaca-se o acesso à educação. O acesso da população infantil à essa etapa da educação brasileira é um direito garantido na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei número 9.394/1996, com pleno respaldo na Constituição Federal de 1988.

A EI é atualmente a primeira etapa da Educação Básica nacional e marca a entrada das crianças no ambiente escolar. O Ministério da Educação (MEC), em seu website5 relacionado às metas do Plano Nacional de Educação (PNE), esclarece que a Meta 1 deste, trata sobre a universalização, até 2016, da EI na pré-escola para crianças de 4 a 5 anos de idade, bem como a ampliação da oferta de EI em creches de forma a atender, no mínimo 50% das crianças de até 3 anos, até o término da vigência do PNE, em 2024.

Nesse website, o MEC apresenta números sobre o atendimento e matrícula escolar de crianças de zero a 5 anos de idade, coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) através do Censo Populacional de 2010 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) - 2013 e 2015. Em relação à taxa de atendimento escolar na pré-escola para crianças de 4 a 5 anos de idade, os dados apresentados nesse website, indicam atendimento escolar para 81,4% desse público. Por outro lado, o percentual de crianças de até 3 anos de idade que frequenta a creche, encontra-se em torno de 23% dessa população.

Observa-se que, muito embora o percentual de atendimento escolar em pré-escola se aproxime ao determinado pela Meta 1, a universalização dessa etapa da Educação Básica não foi atingida no ano de 2016, que era o prazo determinado pelo PNE. Ademais, os números apresentados apontam que faltando menos de cinco anos para o término da vigência do PNE, o percentual de crianças atendidas na creche, encontra-se distante do mínimo de 50% estabelecido no PNE para a ampliação do acesso à creche para crianças de até 3 anos de idade.

Levantamentos mais atuais sobre a matrículas realizadas na EI, como os publicados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) nas Sinopses Estatísticas da Educação Básica 2019, relativos ao Censo Escolar do ano anterior, apontam um somatório de 8.972.778 crianças matriculadas na EI, sendo 3.755.092 de matrículas na Creche e 5.217.686 na Pré-escola.

Os dados estatísticos sinalizam que o Brasil caminha rumo à universalização do atendimento escolar para a faixa etária de 4 a 5 anos, no entanto, o acesso à creche para as crianças de zero a 3 anos de idade requer esforços contundentes voltados para a elaboração e a aplicação contínua de políticas públicas que visem condições concretas para garantir o direito de acesso à educação para essa parcela da população. Nesse sentido, Carrazoni (2018, p. 74) esclarece que:

O peso dos primeiros cuidados na formação do cérebro é alto e sob o ponto de vista da economia, atender com qualidade esses grupos é um bom negócio para os países. O investimento no pré-natal e na infância trazem benefícios a médio e longo prazos, com redução de gastos com jovens e adultos, com evasão, repetência, violência, justiça criminal entre tantos outros.

Essa fala reforça a relevância do atendimento escolar na EI voltado à Primeira Infância. Numa sociedade com significativas diferenças sociais, econômicas e regionais, na qual nem todas as crianças encontram-se inseridas em lares estáveis, saudáveis e seguros, e não recebem condições básicas de saúde, lazer e de alimentação, é fundamental reconhecer que é na escola que muitas crianças receberão a oportunidade de viver sua infância de forma plena, em um ambiente seguro, afetivo, saudável e estimulante.

Carrazoni (2018, p. 74) acrescenta que por o cérebro ser mais plástico durante os primeiros anos de vida, as influências ambientais presentes no cotidiano das crianças podem promover significativos impactos em seu desenvolvimento e que, por conseguinte, a EI “tornou-se uma exigência imprescindível, especialmente em áreas de populações vulneráveis”.

Em vista destes argumentos, o atendimento escolar de qualidade durante a Primeira Infância apresenta significativo potencial para agir como um equalizador social, ofertando oportunidades educacionais mais igualitárias para grupos sociais distintos, já que historicamente a parcela mais rica da população brasileira tende a matricular seus filhos em creches particulares, enquanto os seguimentos sociais com baixa renda condicionam-se à oferta de vagas públicas.

Polo e Santos (2018, p. 76) ressaltam ainda que o atendimento escolar na EI deve ser encarado como prioridade nas políticas públicas, visto que,

Em primeiro lugar, há extensa evidência de que a Primeira Infância constitui janela de oportunidades em termos de desenvolvimento. A arquiterura cerebral em construção e a maleabilidade das capacidades humanas, em geral presente nessa fase, ampliam o potencial para que as políticas públicas, que melhorem o ambiente da criança, resultem em benefícios substanciais para ela e para os que com ela convivem. Em segundo lugar, o processo de aprendizado requer um esforço contínuo em oferecer à criança um contexto escolar seguro e estimulante já que defasagens surgidas na Primeira Infância acabam por limitar a capacidade de aprendizado nas fases posteriores da vida e torna, desse modo, a escola menos atrativa para o indivíduo. Em terceiro lugar, e na medida em que a literatura registra que boa parte dos gahos de desenvolvimento decorrentes da frequência à EI perdura (em especial, o progresso socioemocional), investimentos realizados no início da vida tendem a elevar a qualidade do bem-estar das pessoas por um prazo relativamente maior do que os realizados em idades mais avançadas.

Em vista dos argumentos apresentados, compreende-se ser fundamental que as creches e pré-escolas sejam vistas como locais que fomentam o desenvolvimento infantil e que o atendimento escolar voltado para a Primeira infância “demanda não apenas os cuidados funcionais, mas um programa pedagógico que aproveite a oportunidade dos períodos críticos dessa fase da vida” (LENT, 2019, p. 81) para que as crianças possam vivenciar experiências diversificadas que poderão auxiliar em aprendizagens futuras e no seu desenvolvimento integral, considerando as especificidades e potencialidades do neurodesenvolvimento na Primeira Infância.

Considerações finais

O atendimento escolar voltado à parcela da população brasileira que se encontra na Primeira Infância tem sido expandido de forma relativamente lenta nos últimos anos. Embora seja possível observar nos dados estatístivos um crescente no número de matrículas tanto na creche quanto na pré-escola, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que Meta 1 do PNE de 2014 seja concretizada.

Nessa paulatina ampliação de acesso das crianças à EI, é essencial que a qualidade da educação ofertada seja observada. Dentre muitos fatores relevantes, um dos aspectos determinantes para que atendimento escolar voltado à Primeira Infância atinja resultados positivos, é a compreensão sobre as especificidades relacionadas ao desenvolvimento da faixa etária atendida, visto que, nessa etapa da Educação Básica atende-se crianças em uma fase da vida em que ocorrem intensas transformações na estrutura cerebral, promovidas por meio de um processo complexto e heterogêneo de amadurecimento que possibilita a paulatina aquisição e ampliação de habilidades básicas que servirão de base para habilidades mais complexas.

O presente estudo demonstrou que no contexto das discussões relacionadas ao desenvolvimento infantil, ressalta-se a relevância dos primeiros anos de vida para a constituição do sujeito por se tratar de um período de intensas mudanças fisiológicas, cognitivas e comportamentais. Os autores referenciados convergeram para o entendimento de que o desenvolvimento neurobiológico infantil associa-se tanto aos fatores genéticos e ambientais, quanto aos relacionamentos sociais, aos vínculos afetivos e ao modo que a criança interage com as experiências à que é exposta cotidianamente.

Esse entendimento aponta para a importância de haver um esforço significativo para que todas as crianças brasileiras estejam inseridas em ambientes seguros, acolhedores e saudáveis, nos quais elas sejam respeitadas enquanto indivíduos em desenvolvimento e onde ocorra uma oferta contínua de estímulos positivos e experiências significativas.

No ambiente escolar da EI isso significa garantir que o atendimento à criança não se restrinja apenas à observância de suas necessidades básicas relacionadas à alimentação e à higiene, mas que esses locais promovam a indissolubidade entre o cuidar e o educar, através do exercício cotidano do cuidado e da oferta de estímulos de qualidade, atividades pedagógicas intensionais, lúdicidade, vivências culturais, vínculos afetivos estáveis e oportunidades pedagógicas diversificadas que fomentem o desenvolvimento integral dos bebês e crianças.

Sobre o desenvolvimento infantil, o estudo também destacou que, sob a influência de diferentes fatores internos e externos que corroboram para a maturação cerebral, crianças com idades próximas não se equiparam plenamente em termos de aquisição e domínio de habilidades. Desse modo, entende-se que é essencial que as práticas pedagógicas voltadas à EI sejam pautadas no entendimento de que as vivências promovidas no ambiente escolar respeitem e valorizem as particularidades e os contextos individuais de cada criança que nele se encontra, buscando promover, de fato, experiências variadas, consistentes e significativas para todas as crianças no ambiente escolar.

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4De acordo com o Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.257 de 2016, no Brasil entende-se por Primeira Infância o período entre o nascimento e os seis primeiros anos de vida de uma criança.

5Website do MEC/PNE: http://simec.mec.gov.br/pde/grafico_pne.php. Acesso em 10 ago. 2019.

Recebido: 01 de Janeiro de 2020; Aceito: 01 de Junho de 2020

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