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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-10 

Dossiê 1 - Formação do professor para o atendimento em ambiente hospitalar

Morte e Classe Hospitalar: possibilidades para uma formação compreensiva do ser hospitalizado via hermenêutica-fenomenológica

La muerte y la clase Hospitalaria: posibilidades para una formación integral del ser hospitalizado a través de la hermenéutica fenomenológica

1Professor Doutor Titular da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil. E-mail: hiranpinel@gmail.com.

2Doutorando em Educação e Mestre em Ciencias das Religiões. Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Vitória, Espírito Santo, Brasil. Bolsista CAPES/DS. E-mail: ichbinherberth@gmail.com.

3Doutorando em Educação e Mestre em Educação. Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil. E-mail: rodrigobravin@gmail.com.


RESUMO

O objetivo deste artigo é descrever de forma compreensiva a morte como possibilidade do Ser-no-mundo da Classe Hospitalar e as implicações para a formação de educadores que atuam nesse espaço. A metodologia utilizada foi a revisão de literatura e a nossa fundamentação teórica é a obra “Ser e Tempo” de Martin Heidegger (2012). Alguns conceitos próprios de Heidegger como “Dasein” e “Umwelt”, entre outros termos, como desenvolvida na chamada primeira fase de Heidegger em sua obra “Ser e Tempo”, perpassarão nosso trabalho. O Ser-no-mundo da Classe Hospitalar experimenta, com a internação, mudanças psíquicas e também na sua vida social que podem se transformar em angústia e medo da morte. Nesse sentido, um educador amoroso e compreensivo reconhece a morte como uma possibilidade existencial desse educando, mas atua no sentido de desenvolver práticas que colaboram para que ele amplie suas possibilidades de ser e consiga transcender o ambiente do hospital.

PALAVRAS-CHAVE: Morte; Classe Hospitalar; Fenomenologia; Educador compreensivo

RESUMEN

El propósito de este artículo es describir exhaustivamente la muerte como una posibilidad de estar en el mundo de la clase hospitalaria y las implicaciones para la formación de educadores que trabajan en este espacio de transición entre educación y salud. La metodología utilizada fue la revisión de la literatura y nuestra base teórica es el trabajo Ser e Tempo de Martin Heidegger (2012). Algunos de los conceptos propios de Heidegger como "Dasein" y "Umwelt", entre otros términos, tal como se desarrollaron en la llamada primera fase de Heidegger en su obra "Ser y tiempo", impregnarán nuestro trabajo. The Hospital Class Experiencias de estar en el mundo, con hospitalización, cambios psíquicos y también en su vida social que pueden convertirse en angustia y miedo a la muerte. En este sentido, un educador cariñoso y comprensivo reconoce la muerte como una posibilidad existencial de este estudiante, pero actúa para desarrollar prácticas que colaboran para que expanda sus posibilidades de ser y logre trascender el ambiente hospitalario.

PALABRAS CLAVE: Muerte; Clase hospitalaria; Fenomenología; Educador comprensivo

ABSTRACT

The purpose of this article is to comprehensively describe death as a possibility for the Hospital Class Being-in-the-world and the implications for the training of educators who work in this space. The methodology used was the literature review and our theoretical foundation is the work “Being and Time” by Martin Heidegger (2012). Some of Heidegger's own concepts like “Dasein” and “Umwelt”, among other terms, as developed in Heidegger's so-called first phase in his work “Being and Time”, will permeate our work. The Hospital Class Being-in-the-world experiences, with hospitalization, psychic changes and also in their social life that can turn into anguish and fear of death. In this sense, a loving and understanding educator recognizes death as an existential possibility of this student, but acts to develop practices that collaborate so that he expands his possibilities of being and manages to transcend the hospital environment.

KEYWORDS: Death; Hospital Class; Phenomenology; Understanding educator

Toda pessoa, mesmo a um milésimo de segundo antes de morrer, tem direito à educação escolar, bem como, a não escolar. Merece cuidado nos seus modos de ser sendo junto ao outro no mundo, afinal viver é muito difícil e complicado, mas, por outro lado, é algo bom e alegre, por isso, insistimos em respirar a vida, inventando sentido para ela.

Hiran Pinel.

Introdução

A atuação do profissional de Pedagogia não acontece somente no ambiente formal da escola, mas também em outros espaços, como é o caso da educação não escolar que é desenvolvida na Classe Hospitalar e/ou no Atendimento Pedagógico Domiciliar (APD). Nesse caso, o aluno que por motivos de saúde está impossibilitado frequentar a escola tem seu direito à continuação dos estudos garantido por essas duas modalidades de ensino.

Discutiremos os amparos legais tanto da Classe Hospitalar quanto da APD em uma parte específica do texto. Por ora, pensemos na importância de se trazer a questão da morte como possibilidade no atendimento ao aluno enfermo, estando ele hospitalizado ou no atendimento domiciliar, pois, muitas vezes, não é refletida e/ou aceita como parte da vida. Ao mesmo tempo, é importante questionar se a formação docente dos educadores que atuam nesses espaços abarcam o morrer como horizonte existencial dos educandos.

A discussão sobre a morte, de uma forma geral, apresenta-se ainda hoje como um tabu para a sociedade ocidental contemporânea e, na Classe Hospitalar talvez não seja encarada como um evento, ainda que triste, possível. Assim, às vezes assume-se uma perspectiva de que nunca virá.

Porém, o findar está aí como um modo de ser-no-mundo e do qual ninguém escapará. Mas, pelo fato de não ser comum essa discussão, quando vemos alguém partir isso nos afeta, fazendo com que pensemos em nossa própria condição existencial, sobre a finitude da vida, de um projeto de vida, de não mais poder cumprir uma agenda, viagem e não estar próximo de quem amamos. Ou, olhando de outro modo, a morte pode vir de forma simbólica: uma neurótica tentativa de evitá-la (KOVÁCS, 1992).

Essas questões, como defende Dastur (2002), fazem parte de um discurso o qual cabe à fenomenologia refletir, pois é ela, como postura metodológica, que irá colaborar com a reflexão sobre si mesmo e sobre o “[...] caráter finito de sua própria existência” (p. 57).

A proposta metodológica da hermenêutica-fenomenológica heideggeriana será a guia desse trabalho e seguirá um percurso breve, pelo qual tentaremos refletir sobre alguns pontos no tocante à morte, classe hospitalar e a atuação do profissional da educação dentro de um cenário de possibilidade de morte.

Para isso, na primeira parte do texto, apresentaremos brevemente algumas das leis e diretrizes que amparam a garantia do atendimento educacional fora do ambiente escolar - chamamos aqui de educação não escolar, no qual tanto a classe hospitalar quando o APD são parte. No segundo momento vamos refletir sobre alguns conceitos utilizados pelo pensador alemão Martin Heidegger (1989-1976), especialmente seu pensamento sobre a morte à luz da sua hermenêutica-fenomenológica. Em seguida, buscamos elaborar uma reflexão compreensiva sobre a atuação do pedagogo no ambiente hospitalar, assim como discutir as possibilidades da atuação desse profissional junto ao aluno enfermo.

Abordaremos, no bojo da discussão, a necessidade de tratar da morte como parte da formação do pedagogo, propondo, assim, uma abertura para o cuidado em suas múltiplas dimensões. Ao final, apontaremos algumas reflexões não conclusivas e abertas a outras possibilidades de compreensão.

Sobre o ser-aí heideggeriano - “Dasein” - importante salientar que há diferentes definições na tradução dessa palavra (FERREIRA; et al, 2017), mas utilizaremos aqui sempre “Dasein”, pois melhor se aproxima dos textos e livros que traremos aqui para este estudo.

Educação inclusiva e Classe Hospitalar: legislações e definições

A gênese das práticas pedagógicas hospitalares fora do Brasil marcam as três primeiras décadas do século 20. Na França, surgiram os atendimentos às “crianças adaptadas”, que foram se estendendo por outros países da Europa. No Brasil, a pedagogia hospitalar data em 1950, no Rio de Janeiro, no Hospital e Escola Menino Jesus. (LIMA; PALEOLOGO, 2012). Nesse sentido, pensando em atender às exigências internacionais de inclusão de crianças no seio escolar e abrindo caminhos para novos espaços para a educação inclusiva, o Brasil tem se voltado, desde a década de 1990, à elaboração de políticas públicas que pudessem atender às demandas da educação especial e inclusiva.

No início do ano de 2008, um grupo de trabalho apresentou ao Ministério da Educação um documento que pudesse mostrar o caminho percorrido até aquele momento, no tocante às ações desenvolvidas nos últimos anos, como tentativa de superar os privilégios em torno da história da educação como mantenedora da divisão de classes e não garantia do direito à educação, mesmo com a Constituição Federal universalizando essa política pública.

Segundo consta no documento do Ministério da Educação, algumas ações do atendimento especializado, no Brasil, remontam à época imperial:

No Brasil, o atendimento às pessoas com deficiência teve início na época do Império com a criação de duas instituições: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, em 1854, atual Instituto Benjamin Constant - IBC, e o Instituto dos Surdos Mudos, em 1857, atual Instituto Nacional da Educação dos Surdos - INES, ambos no Rio de Janeiro. No início do século XX é fundado o Instituto Pestalozzi - 1926, instituição especializada no atendimento às pessoas com deficiência mental; em 1954 é fundada a primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE e; em 1945, é criado o primeiro atendimento educacional especializado às pessoas com superdotação na Sociedade Pestalozzi, por Helena Antipoff. (BRASIL, 2008, p. 6).

Essas primeiras ações, ainda conforme o documento, do atendimento dos excepcionais passa a estar fundamentado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, n° 4.024/61, e de forma preferencial na escola regular. Nesse viés, essa foi a primeira lei que estabeleceu as diretrizes da educação no Brasil, reconhecendo-a como um direito de todos e apontando sua aplicação escolar ou não escolar (BRASIL, 1961).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, n° 9394/1996, dispõe em seu artigo 4º, como dever do Estado, garantir o atendimento especializado gratuito “[...] aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino” (BRASIL, 1996). Em setembro de 2018, o então presidente do STF, senhor José Antônio Dias Tóffoli, sancionou a Lei 13.716/18 que alterou a Lei 9.394/96, acrescentando à redação do artigo 4º o artigo 4ª-A, cujo texto determina que “é assegurado atendimento educacional, durante o período de internação, ao aluno da educação básica internado para tratamento de saúde em regime hospitalar ou domiciliar por tempo prolongado”. (BRASIL, 2018).

Voltando ao documento formulado pelo MEC em 2008, o mesmo enfatiza a educação especial como complementar ao ensino regular.

Em 1999, o Decreto nº 3.298 que regulamenta a Lei nº 7.853/89, ao dispor sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, define a educação especial como uma modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de ensino, enfatizando a atuação complementar da educação especial ao ensino regular. (BRASIL, 2008, p. 9).

Dessa forma, o decreto fundamentou as propostas que depois foram apresentadas na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a qual visa assegurar o atendimento a esses três públicos definidos na lei: alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.

O Plano Nacional de Educação - PNE, aprovado pela Lei 13.005 de junho de 2014, estabeleceu metas (MEC, PNE, meta 4) para o atendimento especializado desse público específico e deu as devidas providências quanto ao financiamento público. Ainda sobre o amparo legal do atendimento não escolar (BRASIL, 2014), o Estatuto da Criança e Adolescente - ECRIAD, Lei 8.069/90 (BRASIL, 1990), dispõe sobre o direito ao lazer e, a Lei 13.257/16, discorre sobre políticas públicas para primeira infância e o direito a cuidados específicos, conforme suas necessidades (BRASIL, 2016). Há, também, duas resoluções importantes que orientam as ações, práticas pedagógicas, formação de professores e infraestrutura para o Atendimento Educacional Especializado - AEE. São elas: a Resolução nº 2, de setembro de 2001, que institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001) e a Resolução nº 4, de outubro de 2009, que cria as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica - AEE (BRASIL, 2009).

Essas duas diretrizes foram por nós discutidas em artigo recente (FERREIRA; et al, 2018) no qual trazemos duas definições importantes: a educação inclusiva visa o direito de todos no espaço escolar, sem distinção, como forma de fomento ao convívio mútuo; a educação especial aponta para o cuidado especial e especializado de alunos com alguma deficiência, transtorno e altas habilidades. Dessa forma, requer que a escola desenvolva ações específicas para esse público como o preparo de profissionais e espaços adequados de forma a garantir o direito constitucional à educação.

Cabe aqui destacar o atendimento escolar nos hospitais ou o que chamamos de atendimento não escolar. O Ministério da Educação, através da Secretaria de Educação Especial, elaborou em 2002, um documento intitulado “Classe hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar: estratégias e orientações” (BRASIL, 2002), que estruturou ações específicas no âmbito da classe hospitalar / domiciliar e definiu o atendimento aos educandos que apresentem alguma necessidade de atendimento especial por suas limitações específicas de saúde. Dessa forma, reconhece que:

Com relação à pessoa hospitalizada, o tratamento de saúde não envolve apenas os aspectos biológicos da tradicional assistência médica à enfermidade. A experiência de adoecimento e hospitalização implica mudar rotinas; separar-se de familiares, amigos e objetos significativos; sujeitar-se a procedimentos invasivos e dolorosos e, ainda, sofrer com a solidão e o medo da morte - uma realidade constante nos hospitais. (BRASIL, 2002, p. 10).

Note a importância de se reconhecer a mudança estrutural e psíquica que o ambiente hospitalar pode produzir no aluno. A doença afeta o mundo existencial da pessoa; afeta seu horizonte, sonhos, projetos de vida. Dessa forma, acreditamos na importância de se reconhecer que há um rompimento com a rotina do hospitalizado e significativa mudança do seu cotidiano. A falta da companhia dos familiares, amigos e da vivência na escola pode gerar traumas. Dessa forma, uma classe hospitalar acolhedora poderá propiciar que esses rompimentos sejam menos traumáticos, sobretudo na mudança de ambiente entre escola e hospital. Assim, cabe sinalizar que a “[...] hospitalização não deve ser vista como um rompimento do elo entre a criança/adolescente e a escola, nem a perda do direito de estudar.” (FERREIRA; et al, 2015, p. 641), aliás, pelo contrário.

Nesse ambiente (mundo circundante) do aluno hospitalizado, cabe refletir sobre a morte como possibilidade imediata e inevitável, que gera sentidos e afeta, não apenas o aluno hospitalizado, mas, também, a família, a equipe de saúde, etc. Ao tratarmos da morte nesse contexto sugerimos um tipo de profilaxia pedagógica - ou uma “[...] lógica diferenciada de atenção” (HOLANDA; COLLET, 2012, p. 35) sobre o sujeito hospitalizado. Assim, propomos refletir sobre essa questão à luz da hermenêutica-fenomenológica de Martin Heidegger.

Mundidade, Dasein e a proposta hermenêutica-fenomenológica na analítica de Heidegger

Para alcançar a proposta metodológica de uma hermenêutica-fenomenológica, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) propôs, antes, investigar a cerca do ser-no-mundo. Dessa forma, para ele, era preciso, como uma prévia investigação, delimitar o que seria mundo (Welt). Em sua obra “Ser e Tempo” (1927), Heidegger alerta para a superação da análise imediata e apressada que se faz do mundo. Ora, diz Heidegger, o que “[...] se dá dentro do mundo”? (HEIDEGGER, 2012, p. 197). Dizemos com o pensador que, no mundo, há casas, árvores, cadeiras, pessoas, mas também astros, estrelas, o cosmo. Mas, mas não é somente isso que define mundo - as coisas (das ding). O que permeia o mundo é, para o filósofo alemão, ente. Mas, há também, algo constitutivo desse mundo que Heidegger chama de mundidade (HEIDEGGER, 2012).

Aprofundando um pouco mais a questão: qual mundo fala Heidegger? Ele fala da “mundidade” (Weltlichkeit). É nela que a essência do Dasein (questão chave de sua filosofia) se manifesta. É o Dasein junto às coisas, nas suas relações múltiplas; ser-com outro e com tudo que lhe afeta. Dessa forma, o mundo do Dasein é o mundo em acontecimento, por isso é temporalidade. O mundo é um constante encontro de coisas, incluindo pessoas (pessoas se encontram, mesmo na sua solitude), pois o afetamento da vida é um jogo contínuo que não é só toque corporal. Por isso, Heidegger (2012, p. 199) insiste que “mundidade é um conceito ontológico (como estudo filosófico dos entes) e significa a estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo.” Note a palavra “constitutivo”. Ela é importante para dizer que a vida se faz cotidianamente na sua relação com o mundo. Ao mesmo tempo o mundo está em constante transformação com a vida que nele habita. A essência do Dasein se encontra na sua existência. Dessa forma, a manifestação do ser-eu-mesmo é sempre uma manifestação própria e originária. (HEIDEGGER, 2012). Dessa forma, “[...] mundidade é, por conseguinte, ela mesma um existenciário.” (HEIDEGGER, 2012, p. 199).

O que expomos resumidamente acima nos leva para outro campo do pensamento heideggeriano. Ao desenvolver uma análise existencial sobre o conceito de mundo (mundidade), Heidegger propõe um pensar sobre o ser-desse-mundo. O ser que habita esse mundo em suas múltiplas relações é o ser-aí (Dasein). Como já apontamos acima, Dasein é a palavra chave para o pensamento de Heidegger. De forma geral, ela é traduzida para “ser-aí”, “Da” significa aí, o algo que se manifesta no imediato; “Sein” é, literalmente, ser (como no infinitivo da língua portuguesa). Dasein é toda a possibilidade da vida fática do homem. Por isso não é ser nem ente, mas a abertura para o possível entendimento em seu “[...] estado de ânimo”. (HEIDEGGER, 2012, p. 407). O Dasein é analisado numa perspectiva existencial; de seu existir cotidiano; de sua manifestação e iluminação: ex-sistencial - no jogar-se ou projetar-se para fora, em sua verdade (Aletheia), seja autêntica ou inautêntica. Assim, a analítica existencial é, também, uma chave de leitura do método heideggeriano. Pois nessa análise o ser-no-mundo é visto em sua completude existencial, também, em seu aspecto transcendental. (HEIDEGGER, 2012).

Acreditamos que podemos, agora, esboçar brevemente o método (ou podemos dizer: uma postura metodológica) que Heidegger utiliza em sua análise da existência cotidiana do sujeito. Adotando os postulados da fenomenologia de seu antigo mestre, Edmund Husserl (1859-1938), que considera o ser no mundo, Heidegger (2012) elabora uma fenomenologia própria em busca do sentido do ser. Para ele, ir às coisas mesmas é uma tarefa da fenomenologia, mas, também, é sua responsabilidade mostrar o “fenômeno” a partir de si mesmo.

A analítica existencial, através de uma postura fenomenológica, deve sempre perguntar pelo sentido do Ser, ou seja, pelo modo-de-ser-ele-mesmo. (HEIDEGGER, 2012). Assim, orientando e conduzindo a questão do ser-aí, que para ele foi abandonada pela metafísica, o pensador propõe em sua analítica existencial ir ao encontro da “verdade do ser” (Aletheia). A fenomenologia é uma forma de interpretação desse “iluminar” do Dasein em sua manifestação única e autêntica, pois cabe a ela ser a ciência do ser-do-ente. Por isso, seu sentido é metodológico. Dessa forma, sendo a fenomenologia uma forma de interpretação (da coisa mesma visada imediatamente), ela é também uma forma de hermenêutica. Assim:

[...]. A fenomenologia do Dasein é uma hermenêutica na significação originária da palavra, que designa a tarefa da interpretação. Agora, na medida em que pela descoberta do sentido-do-ser e das estruturas-fundamentais do Dasein em geral se põe à mostra o horizonte para toda outra pesquisa ontológica do entre não-conforme ao Dasein, essa hermenêutica se torna ao mesmo tempo “Hermenêutica”, no sentido da elaboração das condições da possibilidade de toda investigação ontológica. [...], a hermenêutica, como interpretação do ser do Dasein, [...]. (HEIDEGGER, 2012, p. 127).

O ponto de partida da fenomenologia é a hermenêutica do Dasein, pois dessa interpretação (circular e crescente) alcança-se a “verdade do ser” e para ela volta. É sobre essa fenomenologia-hermenêutica que iremos esboçar a questão da morte do ponto de vista de uma psicopedagogia-fenomenológica-existencial, em busca de uma análise compreensiva em uma Classe Hospitalar.

Morte e Classe Hospitalar: como essas questões se encontram numa perspectiva Heideggeriana?

A morte é tradada em “Ser e Tempo” como uma questão iminente e imanente no Dasein heideggeriano. Para o pensador alemão, parece ser impossível captar toda verdade (Aletheia) de uma vida sem considerar sua finitude, ou seja, a morte como participante da vida. A abordagem heideggeriana apresenta a morte como questão da analítica existencial na busca pelo sentido do Ser ele mesmo. Essa análise está mais detalhada no “primeiro capítulo” da “segunda seção” de “Ser e Tempo”.

Para alguns leitores desse filósofo (ABDALA, 2017), essa abordagem perpassa a chamada primeira fase de Heidegger, antes da “viragem” (die kerhe). O pensador germânico, em sua primeira fase, aborda a morte como a busca pela compreensão e acesso do “ser-um-todo”. Nesse sentido, vida e morte participam da completude do Dasein. Após a viragem, o filósofo volta sua questão para outra direção: o homem não é mais como essencialmente um ser-para-a-morte, mas um ser-morrente, ou simplesmente um ser mortal. (ABDALA, 2017).

Tomando como porto de apoio a questão da morte em “Ser e Tempo”, veremos que a análise heideggeriana traz a morte como algo que está constantemente a espreita, como faz parte do cotidiano da vida. Contudo, diferentemente do que se pode pensar, a morte somente pode ser percebida e compreendida por outro. Ao findar de uma vida, o Dasein deixa de ser e sua temporalidade somente é experimentada por outro que a vivencia. Assim, em sua explicação:

[...] o atingir do todo do Dasein na morte é ao mesmo tempo a perda do ser do “aí”. A passagem ao já-não-ser-“aí” priva precisamente o Dasein da possibilidade de experimentar essa passagem e de entende-la como experimentada. (HEIDEGGER, 2012, p. 657).

Nesse sentido, presumimos que a situação de morte em uma classe hospitalar é um vivenciar a morte de outros. Quem morre - o findar de um Dasein - não experimenta a compreensão de seu próprio findar. Por isso, é compreensível entender porque o luto é uma experiência tão forte para quem vivencia uma morte. O luto traz ao sujeito o sentimento de perda e desorganização. (SANTOS; YAMAMOTO; CUSTÓDIO, 2018). Isso porque a morte carrega sentidos existenciais. Quem vivencia a morte vivencia a possibilidade de seu próprio findar - o não-ser-mais. A condição de perda de uma vida é a “[...] evocação de nossa condição mortal”. (FREITAS, 2013, p. 98). É, ao mesmo tempo, uma experiência “assustadora”, pois ainda (se) constitui como um tabu, algo que não se fala em nossa sociedade.

O temor pelo inesperado, pela possibilidade imediata do fim do Dasein, essa existência temporal e inacabada, trás o chamado luto antecipatório (CARDOSO; SANTOS, 2013). Assim, é também importante a formação dos profissionais que trabalham diretamente com a situação de morte (TEIXEIRA et al., 2019). Em especial ao (a) pedagogo (a), que atua na classe hospitalar, destacamos a importância que sua formação inicial e continuada possam estar abertas à questão da morte como possibilidade imediata no atendimento ao aluno.

(In)conclusões

Nosso objetivo com esse texto foi, a partir do reconhecimento da morte como possibilidade do ser-no-mundo da Classe Hospitalar, refletir sobre a importância de uma formação pedagógica compreensiva, amorosa e conectada com o cotidiano do hospital, para que os educandos internados enfrentem o rompimento com a escola, amigos, família, a solidão e angústia de modo que consigam ampliar suas possibilidades de ser. Tratamos de nossa questão, sempre que possível, à luz da analítica existencial heideggeriana.

Por ora, a discussão permeou questões que envolveram a morte como questão para a classe hospitalar e pedagogia não escolar. De Heidegger, abordamos de forma geral sua filosofia sobre a morte e seu método hermenêutico-fenomenológico como postura teórica e de leitura compreensiva do Dasein. Por fim, apontamos para um horizonte de possibilidades. Qual seja: refletir sobre como a morte pode ser significativa na pedagogia hospitalar, junto aos alunos hospitalizados em suas possibilidades de morte e a necessidade de formação para melhor abordar tal questão.

Entendemos que falar sobre a morte, sobretudo na classe hospitalar e na educação escolar e não escolar, é voltar nosso olhar para um fenômeno que “está aí” e, de certa forma, precisa ser pensado, mesmo que sob uma perspectiva possível, de uma pedagogia que se apropria da compreensão hermenêutica-fenomenológica para descrever um ser-aí (Dasein) em sua existência - a vida acontecendo enquanto não chega seu findar.

A nosso ver, a questão da morte é ainda pouco debatida, quando no contexto da classe hospitalar. Talvez, por isso, alguns autores apontem que a morte, bem como o luto, são constantemente afastados do nosso cotidiano, como se fossem evitáveis (FREITAS, 2013). Olhando a questão sob a perspectiva de Heidegger (2012), não há como fugir do findar da vida. A morte faz parte do cotidiano, ou melhor, está atrelada ao Dasein, ao sujeito em sua vivência cotidiana e sua inevitável finitude. Embora não possamos compreender nosso findar próprio, podemos compreender a morte do outro e ao mesmo tempo refletir sobre nossa condição existencial.

Defendemos que os educadores em geral e, principalmente, os da classe hospitalar e da educação não escolar, sobretudo no atendimento junto ao aluno em situações de doenças graves, tenham condições e acesso à formações que incluam a morte como possibilidade no cotidiano do seu trabalho. Para nós, o pensar sobre a morte na formação pedagógica é estar atendo ao cuidado (Sorge) que na perspectiva de Heidegger (2012) inclui preocupação com o outro, mas também amor, pois cuidar é amar o outro em suas diferentes situações existenciais e se comprometer, no caso do ambiente hospitalar, com a garantia do direito à educação e à saúde.

Referências

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Recebido: 01 de Abril de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

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