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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-22 

Dossiê 2 - História da educação matemática

Narrativas que contam uma história sobre um grupo escolar rural

Narrativas que cuentan una historia sobre un grupo escolar rural

Mirian Maria Andrade1 
http://orcid.org/0000-0001-5004-6320

Grasielly dos Santos de Souza2 
http://orcid.org/0000-0001-6932-3754

1Doutora em Educação Matemática. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: andrade.mirian@gmail.com.

2Mestre em Ensino da Matemática pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: grasiellysantossouza@yahoo.com.br.


RESUMO

O artigo apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado que teve como objetivo elaborar compreensões sobre um Grupo Escolar Rural paranaense, uma experiência educacional pública implantada por volta da década de 1940 e extinta em meados da década de 1970, que representa um número pequeno no conjunto de escolas rurais paranaenses. Para tanto, mobilizamos a metodologia História Oral para produzir narrativas orais, cujos colaboradores foram professores e alunos desse Grupo Escolar. Ao analisar o que registram essas narrativas orais, por meio dos pressupostos de uma análise de singularidades, exercitamos uma escrita na vertente de uma análise narrativa ficcional, permitindo uma (re)construção da história da educação rural naquela comunidade. Disso resulta uma escola rural cheia de interpretações e possibilitando algumas percepções sobre o direito à educação.

PALAVRAS-CHAVE: História Oral; Grupo Escolar Rural; História da Educação Matemática; Narrativa

RESUMEN

El artículo presenta los resultados de una investigación de maestría que tuvo como objetivo elaborar entendimientos sobre un Grupo de Escuelas Rurales de Paraná, una experiencia educativa pública implementada alrededor de la década de 1940 y extinguida a mediados de la década de 1970, que representa un pequeño número en el conjunto de escuelas rurales en Paraná. Para eso, movilizamos la metodología de Historia Oral para producir narrativas orales, cuyos colaboradores fueron maestros y estudiantes de este Grupo Escolar. Al analizar lo que registran estas narraciones orales, a través de los supuestos de un análisis de singularidades, ejercemos una escritura en términos de un análisis narrativo ficticio, permitiendo una (re)construcción de la historia de la educación rural en esa comunidad. Esto da como resultado una escuela rural llena de interpretaciones y que permite algunas percepciones sobre el derecho a la educación.

PALABRAS CLAVE: História Oral; Grupo Escuela Rural; Historia de la Educación Matemática; Narrativa

ABSTRACT

The article presents the results of a master's research. The objective was to develop understandings about a Rural School Group in Paraná, a public educational experience implemented around the 1940s and extinguished in the mid-1970s, which represents a limited number of rural schools in Paraná. Therefore, we mobilized the Oral History methodology to produce oral narratives, whose collaborators were teachers and students at this School Group. Analyzing these oral narratives, with the assumptions of an analysis of singularities, we exercise a writing in the aspect of a fictional narrative analysis, allowing a (re)construction of the history of rural education in that community. This results in a rural school full of interpretations and enabling some perceptions about the right to education.

KEYWORDS: Oral History; Rural School Group; History of Mathematics Education; Narrative

O contexto, as intenções e os caminhos...

Contar histórias, narrar, relatar, enunciar... Contar história é uma arte de contá-las de novo. Cada voz traz novas histórias, “meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só, meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias” (LISPECTOR, 1964, p. 6). E essa nossa história tem um objetivo: compreender um Grupo Escolar Rural por meio das narrativas de alguns de seus personagens; professores e alunos. Nos parametrizamos na metodologia da História Oral e assim essa história foi se construindo, ganhando vida, pulsando!

Este texto, então, trata dos resultados de uma pesquisa de mestrado sobre uma escola rural e que envolve sujeitos que nos contaram suas histórias. No nosso caso, os nossos narradores protagonizaram o movimento de um Grupo Escolar Rural, e ainda, vivenciaram parte de suas vidas em prol de uma educação campesina3, no Norte Pioneiro do Estado do Paraná, no período de 1947 a 1977. Trata-se do Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, localizado na zona rural do município de Bandeirantes-PR, nas imediações de um complexo de uma usina de açúcar e álcool.

Ao lançarmos nosso interesse sobre o Grupo Escolar, olhamos para um movimento, para um tempo, para uma prática em suas diversas formas de se manifestar, de se presentificar, nos variados modos com que ela foi apropriada pelos sujeitos e pela história. Não é mais o passado como algo dado, mas o passado construído, (re)criado no presente e possibilitando novas compreensões. Interrogamos os vestígios, as memórias, os rastros, os tons e os sons das experiências e como elas foram possíveis, o que motivou a permanência e, ainda, o que disparou as alterações num determinado cenário educacional rural.

Sobre experiência, nossas inspirações estão em Larrosa (2002): “a experiência é o que nos passa, nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (p. 21), que não considera a experiência apenas como o que se faz, mas principalmente, o que nos toca, e quando toca nos transforma de alguma maneira, deixando marcas.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2016, p. 25).

Buscamos não por explicações de experiências, mas por versões que nos possibilitem despertar para elaborar outras histórias que nos fazem pensar num futuro educacional, analisar e refletir sobre as escolas rurais de um passado.

Apresentamos nossos registros numa narrativa ficcional, segundo os ideiais de White (2014)4, e nela buscamos salientar os movimentos de um Grupo Escolar Rural, sem a pretensão de redigir traços sobre a sua história, mas sim redesenhar e (re)constituir atos da história educacional campesina, nos permitindo compreender não só o universo escolar mas, também, compreendermos algo que desconhecíamos5. Perguntamos e procuramos formas de romper com alguns dos silêncios e, por outro lado, questionamos as condições históricas que permitiram que esta experiência não permanecesse sepultada no passado. Trata-se, muitas vezes, de um re-dizer criador.

Explícitas nossas intenções, na próxima seção discorremos sobre a importância das narrativas orais como fonte para esta pesquisa, sobre como mobilizamos a História Oral para produzir tais narrativas e disparamos uma possibilidade de análise narrativa sobre narrativas orais.

Narrativas orais, História Oral e análises

Uma configuração aberta, uma possibilidade de (re)escrita das condições em que ocorreu a implantação deste Grupo Escolar, dos modos em que se deu a atuação dos professores, um trafegar por uma trajetória composta de alterações e adaptações, chegando à história de uma escola rural implantada e impulsionada no final da década de 1940 retratada por meio das narrativas orais.

Assim a narrativa não é uma mera comunicação de uma informação, é uma exposição das experiências de um sujeito, de um narrador, que exprime singularidades, pois é subjetiva, intencional e traz uma tessitura de informações abordando múltiplas possibilidades de leituras e de produções de significados. “Uma forma de constituir realidades, isto é, a narrativa não se limita à expressão de dimensões singulares sobre a experiência vivida, mas, de modo potente, configura a construção social da realidade” (TIZZO, 2019, p. 257).

Desta forma, a História Oral pode ser entendida como uma metodologia que permite construir fontes históricas. “Situa-se no terreno da contra generalização e contribui para relativizar conceitos e pressupostos que tendem a universalizar e a generalizar as experiências humanas” (DELGADO, 2010, p. 14). Deste modo, as entrevistas, podem ser vistas como alicerce, já que a constituição de fontes históricas ocorre por meio das narrativas que são constituídas a partir da oralidade. Na busca por constituir uma história do Grupo Escolar, nos debruçamos para as possibilidades metodológicas pautadas na História Oral e acreditamos que essa metodologia possibilita que essa profusão de vozes reverbere, registrando, sempre de modo inaugural, marcas de uma experiência educacional.

Nesta pesquisa mobilizamos a História Oral Temática, voltada para um momento específico da vida dos narradores: suas experiências em relação ao Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes, e em vários pontos as histórias de vida dos narradores entrelaçaram-se ao tema estudado. Buscamos, a partir da História Oral, trazer à cena um olhar para as experiências e as subjetividades dos sujeitos.

A partir de leituras prévias sobre a história dos Grupos Escolares Rurais no estado do Paraná, bem como do contexto educacional, histórico e social da época, e com um grupo de depoentes já estabelecido6, elaboramos um roteiro para a realização das entrevistas. As questões norteadoras tinham o intuito de nos possibilitar conhecer os aspectos da instituição escolar, numa sequência que abordasse um movimento que partia de uma visão externa do Grupo Escolar, bem como suas instalações e por vestígios que nos “dissessem” sobre como foi constituído, os intresses envolvidos nessa construção, como isso foi possível e aos poucos percorrendo até adentrar às salas de aulas, abordando aspectos da relação que conectava os professores, os diretores, a comunidade, os recursos de ensino e de aprendizagem.

Após realizar as entrevistas com nosso grupo de depoentes, iniciamos o tratamento dos áudios de cada entrevista. Realizamos a transcrição, que trata-se da escrita, palavra por palavra e também da tentativa do registro de entonações, das pausas, das expressões de tudo que foi dito naquele momento da entrevista. O pesquisador procura reproduzir o mais fiel possível a todos os elementos linguísticos no diálogo entre pesquisador e narrador durante a entrevista, sem cortes e nem acréscimos. Entretanto, entendemos que ao transcrever uma entrevista alguns elementos podem se perder, há uma limitação da escrita de transportar para o papel todos os aspectos que compõem a entrevista. Sobre isso nos solidariza Matucheski (2016, p. 342):

Antes de encerrar este texto, quero registrar uma tristeza minha: em quase todas as gravações das entrevistas é possível ouvir os pássaros cantando na UFPR Litoral. Esse registro me faz lembrar a paz que sinto quando estou no espaço da UFPR Litoral, e isso - aqueles sons, aquela paz - deixou o processo de transcrição menos penoso e mais lírico, mas trouxe também uma angústia: “O que fazer, nas textualizações, quanto ao canto dos pássaros?”... Não consegui uma resposta para isso. Então, registro, aqui, a limitação do papel, a limitação do texto escrito, e a minha limitação como autora destes textos: não consegui registrar o canto dos pássaros; não consegui registrar as lágrimas de um colaborador desta pesquisa; e não consegui registrar o que senti enquanto realizava essas entrevistas.

Como nos antecipa a citação de Matucheski (2016), seguida da transcrição dos áudios, há um tratamento que é possível dar aos textos, que chamamos de textualização. Compreendemos a textualização como um processo de produção de significados, que segundo Tizzo (2019, p. 379):

[...] ao procedermos com o exercício de textualização, nos envolvemos com um processo de elaboração de compreensão dos aspectos que circundam as experiências que foram narradas pelo depoente, já que tentamos estabelecer coerências para os enunciados, e avaliar os significados que eles têm para quem os enuncia.

Desta forma, a fonte constituída a partir das negociações não é mais a gravação, nem a transcrição, “o que se tem é a fonte constituída que pode estar repleta de novos significados produzidos pelo colaborador” (GONZALES, 2017, p. 38).

Antes de serem publicadas para os fins da pesquisa, as narrativas passaram por um processo de legitimação do narrador (depoente). Ao término das negociações sobre esses textos, solicitamos por parte dos colaboradores a assinatura de uma Carta de Cessão de Direitos sobre a textualização7.

Com as narrativas orais finalizadas, iniciamos um momento de análise, que segundo Gonzales (2017) “servem para tecer as compreensões sobre o que se busca responder. O que difere nessa etapa dos trabalhos é o modo como se organiza e se elaboram as compreensões” (p. 39).

Na procura de como desenvolver uma análise sob as fontes constituídas, neste trabalho, nossa intenção foi elaborar uma narrativa ficcional de narrativas segundo as ideias de White (2014). Para tanto, buscamos, inicialmente, realizar uma análise de singularidades com o respaldo teórico em Martins-Salandim (2012).

Propomos, então, a produção de uma análise sobre e a partir de cada entrevista, lançando um olhar para os pontos que nos chamaram a atenção em cada uma delas e buscamos “focar as potencialidades que as formas artísticas carregam para nortear - e deixar-se nortear - pelas narrativas geradas” (GARNICA, 2008, p. 86).

Buscamos e encontramos em Martins-Salandim (2012) o nosso respaldo e a inspiração para a nossa análise de singularidades, uma vez que consideramos as vozes que nos contaram sobre as situações vivenciadas no Grupo Escolar. Essa análise é que nos deu suporte para realçar as singularidades de cada depoente e, por meio dessa, pudemos evidenciar e registrar algumas características sobre a escola ( como arquitetura do prédio escolar, as regras, demandas e rotina instituídas, condições do trabalho docente, os contextos e relações presentes no ambiente escolar) aqui tematizadas. Na perspectiva da autora, a análise de singularidades pode ser entendida como um processo de sistematização de uma etapa analítica que intenciona registrar, sob o olhar do pesquisador, aspectos que caracterizam os entrevistados e os depoimentos compostos a partir de uma entrevista. Neste sentido, “buscamos registrar nossas percepções de como cada narrativa apresenta-se, seu fio condutor, suas marcas” (MARTINS-SALANDIM, 2012, p. 242).

Para a escrita da narrativa ficcional nos apoiamos nos ideiais de White (2014) que aponta que “a história é um tipo de arte”. As narrativas históricas, segundo ele, são manifestações verbais ficcionárias, cujo conteúdo são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em seu comum com os seus equivalentes na literatura, do que com os seus correspondentes nas ciências (WHITE, 2014, p. 39). Para White (2014), o que distingue os relatos históricos dos ficcionais são, em essência, os conteúdos, mais do que a forma de apresentá-los, pois o conteúdo dos relatos históricos são acontecimentos reais, coisas que realmente ocorreram e não acontecimentos imaginários inventados pelo narrador.

Feitas essas considerações sobre História Oral e narrativas orais, apresentaremos brevemente - devido à restrição de páginas que um artigo demanda - alguns recortes do que a análise de singularidades ressaltou nas narrativas orais, que sob nosso olhar fornecem uma ruptura de certas verdades cristalizadas, permitindo uma nova visão para a transformação do ambiente educacional.

As singularidades (vistas por nós) nas narrativas

Postas as considerações acima, reconhecemos que não há um modo único de olhar para as narrativas orais produzidas. Podemos, sob diferentes perspectivas, obter esse olhar, levando em conta que a história não é uma mera descrição do que aconteceu.

Então, realizamos a análise de singularidades segundo o respaldo de Martins-Salandim (2012), como discorremos anteriormente. Na análise de singularidades cada uma das narrativas foi analisada individualmente, buscando olhar tanto suas peculiaridades quanto as informações que cada uma delas nos dava sobre o tema que nos propusemos compreender. A intenção foi focar nas experiências narradas e no modo como a narrativa foi estruturada: o que mais podíamos ouvir daquela narrativa para além do nosso tema específico de pesquisa?

Percebemos e evidenciamos que algumas narrativas foram estruturadas a partir do desenvolvimento profissional do depoente; outras em relação ao desenvolvimento do Grupo Escolar, como a escola foi adquirindo importância para a comunidade; outras pautam-se no desenvolvimento estrutural da instituição; outras ainda em relação ao modo como o depoente se percebia como estudante daquela escola; outras têm como eixo as circuntâncias pessoais, o modo como os depoentes vão sendo envolvidos em diferentes situações dentro da escola.

Em cada narrativa, o conjunto retratado representa os aspectos educacionais recriando, por fim, uma versão da própria escola, o sentido de ser aluno, de ser professor e todos os valores vinculados ao Grupo Escolar representado (a disciplina, a hierarquia, a padronização e o respeito...). De tudo o que escutamos, percebemos uma série de liturgias que indicam determinados rituais intrínsecos à escolarização que permeavam o cotidiano do Grupo Escolar e hoje se manifestam como pregnâncias nas memórias.

Podemos pensar que nas aulas, esses rituais fossem mais singelos, mas à medida que a escola republicana se institucionalizava como espaço formativo de cidadãos, se fez necessário o investimento em muitos aspectos simbólicos que, pela recorrência em que aconteciam, marcaram as memórias daqueles que passaram pelos Grupos Escolares.

As falas estão permeadas pelas lembranças e crenças daquilo que o depoente acredita como aspectos essenciais de ensino e de aprendizagem ao posicionarem-se. Algumas narrativas reconstituíram o universo cultural que lhe era peculiar ao descrever como era o modo de ensino na época, (salas de aulas simples, pouco aparato, aulas tradicionais baseada na tríade ler-contar-escrever...) e a proposta educacional de ensino do Grupo Escolar.

As narrativas revelaram a presença constante, nessa escola, dos castigos; revelaram aspectos únicos do Grupo Escolar, como a figura da diretora, a passadeira que havia no chão, as questões sobre o uso do uniforme; as estruturas físicas da escola; as exigências das professoras; a rotina escolar que envolvia, entre outros, rituais cívicos, como cantar o Hino Nacional todos os dias. Os colaboradores destacam também as rigorosas regras de disciplinas, cujo cumprimento era diariamente fiscalizado, tanto fora da sala de aula, pela diretora, e dentro da sala, pelos professores. Apresentam-nos um campo composto de castigos, de advertências e de medos, regras eram necessárias em todas as aulas e para o cumprimento de atividades desenvolvidas dentro da escola. Havia, ainda, um comprometimento, uma liberdade consciente entre o que se podia fazer e realizar dentro do espaço escolar.

As narrativas permitem-nos compreender um pouco mais sobre as transformações no ensino primário, como a seriação, uma sala de aula para cada turma, as diferenças de estruturação de perspectivas na educação rural paranaense, arquitetura do prédio escolar, características da estrutura, a organização da escola, o papel do professor e as condições de trabalho docente.

Possibilitam, também, acesso à cultura escolar do Grupo Escolar no que se refere ao ensino de matemática e, sobretudo, um breve panorama sobre a formação das professoras dessa escola. Ao ouvir as narrativas das professoras é possível perceber as diferenças e as semelhanças na formação delas para o ensino de matemática e a sinalização de uma formação lacunar sem aprofundamento dos conteúdos matemáticos.

A maioria das professoras tinha formação no Curso Normal e nem sempre a articulavam à suas práticas de sala de aula. Esse descompasso da formação e a prática refletia-se, sobretudo, na forma de atuação das professoras e, em especial, no modo como desenvolviam os conteúdos. Com relação à disciplina de matemática para algumas professoras o que se aprendeu no curso Normal estava “muito distante” daquilo que iriam ensinar aos alunos do Grupo Escolar. Já para uma professora, que não possuía formação no curso Normal, e apenas uma formação de primeiros anos, ela reproduzia o que aprendera em seu curso primário (as operações básicas e a tabuada) e, também por isso, ela se auto caracterizava como uma “boa” alfabetizadora.

É latente nas narrativas que o ensino de matemática no Grupo privilegiava o ensino do sistema decimal - praticamente restrito à aprendizagem da contagem - as quatro operações fundamentais, “resolução de problemas” (que eram problemas de aplicação) e as tabuadas do dois ao nove. Em relação às tabuadas os trabalhos eram intensos para cumprir o objetivo principal: decorá-las. Tal habilidade, para as professoras, era essencial para que se conseguisse resolver situações que envolviam as operações matemáticas de divisão e multiplicação. Com as lacunas em sua formação, as professoras buscavam desenvolver estratégias para ensinar os conteúdos matemáticos, ainda mais numa escola que estava desprovida de recursos didáticos. Elas percebiam a possibilidade de utilizar os recursos dos próprios alunos, como seus materiais escolares ou materiais à disposição na zona rural. Especialmente para contagem, elas utilizavam sementes, fósforo e sabugos, numa tentativa de aproximar a realidade do aluno aos conteúdos da Matemática.

Suas narrativas, seus protagonismos, são caracterizados pelo movimento peculiar à arte de contar. As histórias dos nossos personagens e suas palavras tecem um enredo que inclui lembranças, registros, observações, silêncios, análises, emoções, reflexões, testemunhos. Projetando imagens de uma escola do meio rural, lançam-nos sob seus sonhos de uma educação rural, traços de uma cultura escolar, contornos entre a poeira da estrada e os caminhos da história da educação rural.

Vozes que estampam um chão, um lugar, uma escola. Num campo assim, de várias memórias, registradas em vários textos, disparamos nossas compreensões sob essas variadas versões por meio de uma narrativa. A seguir apresentamos alguns recortes da narrativa ficcional que elaboramos.

Um fino tecido de muitos fios: eis uma narrativa do Grupo Escolar...

Essa história não começa com um “era uma vez”, como num passe de mágica que nos transporta, eu e você, para uma terra, um lugar muito distante, cheio de encanto, num tempo sem tempo, com personagens fabulosos e estranhos, um mergulhar ao fundo do encantamento.

As terras (nem tão encantadas e nem tão distantes) em que se passam esta história são as do Estado do Paraná, mais precisamente, do norte do Estado do Paraná, no município de Bandeirantes. Num tempo, medido pelos minúsculos grãos de areia que escoam vagarosamente pela pequena fissura, silenciosamente as areias do tempo correm, escorrem, fazem com que os dias passem sem ser perceptíveis. Um passado contado e revivido pelas vozes que nos contaram fatos, que fizeram florescer a história por onde a poeira já fazia morada, se escondia, silenciava! Escondidos sob as marcas temporais, as memórias, as lembranças, estavam esperando a chance de despertar e este movimento de pesquisa ecoou feito um lampejo, como a brisa, o fertilizante necessário para que brotassem daquele chão, as histórias, pela arte de rememorar.

Terras conhecidas como terra vermelha, terra roxa, que fizeram surgir plantações de cana de açúcar e uma usina de açúcar, bem ali. Neste momento a porta se abriu, a população foi surgindo numa multidão e se instalou, veio gente de todo lado, construindo suas casas de madeira, simples e modestas, casas, casinhas, casarão... o tamanho era insignificante, lá cabiam todos e isso era dignificante. Inúmeras delas, espalhadas pela extensão dessas terras, talvez, podemos dizer que essas eram, também, terras de esperança.

Neste tempo bem demarcado, de vida dura, a data foi um convite para todos virem bem de perto. Em 1947, sobre essa terra se estendia uma possibilidade de acesso à educação, uma escola: o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes. Entre a poeira e a fumaça, entre a usina e a estrada, entre as casas e as passagens, dividindo neste espaço a extensão de todos os quintais.

A escola situava-se em um terreno seco, ao centro das casas de madeira, com teto de telhas que giravam em torno de si como um novelo, ao lado de uma usina cinza de pedras, desdobrando roldanas, soltando fumaça. Eram construções de diferentes alturas, ligadas por uma estrada de poeira, e ali ergueu-se, com linhas e curvas arquitetônicas, o prédio escolar. Eis o que contam sobre a sua fundação: homens e mulheres que trabalhavam nas terras cortando cana, das mais diferentes raças, tinham um sonho, sonhavam com uma escola para seus filhos e, então, o dono da usina decidiu construir uma escola para atender o sonho de seus colonos e demais moradores da região.

Não se sabe qual mandamento induziu os fundadores a dar essa forma à escola. O que se sabe, com certeza, é que quando se pede para quem quer que seja, que descreva sua vida escolar nessa escola, este sempre descreve-a no meio das casinhas. Talvez uma escola diferente, desfraldando estandartes e rastros, mas sempre construída a partir dessa combinação de elementos do espaço.

Pela estrada passavam todos e passava tudo, passavam os “boias-frias”, passavam as crianças, entre idas e vindas... Estrada de poeira, eram aquelas que os levavam para o trabalho todas as manhãs, era a mesma estrada de terra vermelha que guardava no final a esperança florida, a escola. Por esse caminho, sob o ar livre, de longe vinha a menina com suas vestes, roupas limpas, sem uniforme. Nessa escola em que o uniforme não marcava presença pelas condições que se encontravam a comunidade, o importante era a escola ser acessível a todos. Assim faziam esse percurso, traziam em suas mãos o caderno, o lápis e a borracha. Por esse caminho vinha João, vinha Maria, vinha..., vinham todas aquelas crianças devagar surgindo pela curva da estrada.

Abriu-se a porta e, ao entrar, o que viu causou espanto. Era uma escola com coordenadas espaciais e temporais, os olhos das crianças se encantavam com tudo! Seus olhos eram preenchidos com as formas da escola. Encantava-se, também, quem via o rosto dos alunos. Tinham o prazer de observar quantos traços diferentes entre si atravessavam a escola: traços retos sobre as pilastras, curvas sobre o quadro de giz, traços cobertos uns pelos outros, curvas sobrepostas, quantas variedades de formas de janelas apresentavam-se diante à escola: retangulares, quadradas, com meias-luas. Quantas espécies de pavimento cobriam o chão: de pedregulhos, de tijolos, de lajotas, de vermelho à vermelhão. Em todos os pontos, a escola oferecia surpresas para os olhos: um conjunto de vasos ao final do corredor, uma passadeira estendida pelo chão vermelho, salas de aulas com carteiras de madeira. Na porta da escola via-se as professoras, o olhar percorria as paredes, o corredor, como se fossem páginas escritas, que continham, que escondiam. Feliz era aquele que todos os dias tinha a escola que ensinava saberes ao alcance dos olhos e nunca acabava de ver as coisas que ela continha.

Salas de aulas bem poucas, dentro havia algumas carteiras, um quadro de giz e, bem à frente, a mesa da professora. Ao fundo um armário, crianças separadas em grupos chamados “séries”, um chão vermelho, um corredor bem limpo, ao meio uma passadeira. Corredor este não tão comprido levava para a porta de entrada, do lado de fora um pátio, depois se tem as extensões de todos os quintais. É preciso esquecer quase tudo que sabe sobre escola de hoje para se entender essa daqui. Então, nos arriscamos a dizer que sob a visão daqueles que vivenciaram esse Grupo Escolar, a escola era um luxo!

Ah! A passadeira, sempre a passadeira, é passagem, é regra, é a passadeira! Sem muito charme, mas na escola que ensinava saberes, ela ganhava um lugar de destaque. Ganha destaque, também, nas memórias. Frequentavam-se, passeavam-se, juntos ou isolados, deslizavam-se seus passos bem calculados, sobre a passadeira, nada de pisar fora. Ai, de quem pisar fora! Jamais! Não podia pisar fora da passadeira, e todos obedeciam... é passagem, é regra, é a passadeira! E regras nessa escola eram sempre obedecidas. Aos olhos de outros alunos, a passadeira era vista como sinônimo de limpeza. Limpeza é outra palavra que caracteriza muito essa escola, era possível notar desde o chão vermelho até a luz que iluminava, a limpeza também fazia morada nessa escola que ensinava saberes, em meio à fuligem, em meio à poeira. É passagem, é regra e também limpeza! Atravessavam a passadeira com passos equilibrados, chegavam à sala de aula antes de as professoras começarem a ensinar os novos saberes, havia o momento de rezar. Todos em pé, postura! Sem brincadeiras, era um momento para agradecer.

O pátio escolar, com o chão recoberto por tijolos, que nos dias luminosos uma sombra refletia às folhagens, não havia nada de diferente, um espaço sem muito encanto para as crianças brincarem. Nesse espaço contemplavam fascinados a Bandeira Nacional hasteada em seu mastro. Cantavam o Hino Nacional, esticavam o fio pendurado, subiam a bandeira, todos enfileirados, permaneciam assim até a “dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil”! Muito bem delimitado, todos os dias antes das aulas começarem nessa escola que ensinava saberes, os alunos sabiam que esse ritual era necessário. Quando enfileirados não se distinguia qual é um qual é outro, todos bem comportados nessa vida rotineira seguindo sempre o mesmo itinerário: formavam a fila no pátio, cantavam o Hino Nacional e hasteavam a bandeira; depois seguiam para a sala de aula todos organizados, um de cada vez, cuidado! Não pisem foram da passadeira! Todo dia tinha início e era guiado pela passadeira, pelo hino e pela prece.

A escola era um “modelo” de educação, é assim que todos se referem àquela escola. Espaço que recebia durante as manhãs e as tardes todas as crianças que residiam em seu entorno. O soar do sino avisava que estava na hora de começar a aula, todos já sabiam que tinham que ir para a fila. Era assim que iniciava mais um dia de aula em que a gurizada aprendia novas lições na escola. Passadeira, hino, prece, badalar do sino, fila! Aprendiam números, contas, ler e escrever, a lição da vida, num tempo com tempo, a educação fez moradia e refletia a luz que procuravam. Nesse espaço localizado bem no centro das casinhas de madeira, as crianças se aproximavam, estudavam com o que tinham, não importava o que diziam, era tudo assim, na simplicidade de um povo.

Chegando à sala de aula aquela criançada já sabia que naquele espaço não se permitia brincadeiras dissociadas do contexto escolar, já estavam cientes, seja pelos pais ou pelos confidentes, que a hora de estudar era sagrada, nada de incidente, era permitido apenas estudar e obedecer. No espaço escolar, na sala de aula, nada muito sofisticado, se ensinava o básico, o essencial: ler, contar e escrever. E a obedecer!

Nas salas as professoras ensinavam saberes. Ah! As professoras, quem são elas? De onde vinham? Na luta diária pela felicidade, no cotidiano para quem ainda não sabe, em manhãs de cinzas, em tardes de sol e em noites sem estrelas, lá vinham elas, dentro de ônibus ou penduradas num caminhão, elas também travaram grandes batalhas neste movimento de educação.

Assim chegavam à escola. Todos os dias as professoras, com as suas autonomias, cultivavam o misterioso processo de ensino e de aprendizagem, folheavam e ensinavam folhear as cartilhas e os livros, desfiavam o que podiam usando o giz no quadro, letras, sílabas, palavras, números, contas, tabuada, era assim que elas alfabetizavam.

Uma série de relatos, professoras que atribuíram ao Grupo Escolar um constante sortimento de qualidades, quando comparando às escolas da cidade. Professoras que iam e vinham diariamente que até se tornou habitual e os defeitos e as dificuldades de ensinar na escola rural perderam a excelência num ajuste de virtudes. Captaram uma imagem sólida e compacta da escola e o resultado: era melhor trabalhar nessa escola do que em uma escola da cidade!, disseram elas. Assim, para as professoras que ali passaram, em certas horas, em certas estradas, surgiu a suspeita de que ali havia algo de inconfundível, de raro, talvez até magnífico; sentiram o desejo de descobrirem o que era, por isso sempre enfatizavam que lecionavam numa escola em que não só crescia em função do nome e se deram conta da escola que crescia sobre o solo.

Tocava um sino. Terminava o tempo da aula. As professoras saíam. Os alunos iam embora. Outros entravam. Começava uma nova aula. Novos saberes eram ensinados. Como as professoras ensinavam? Adentravam em rotinas de letras, números e muita leitura, o que ensinavam transformava aquelas crianças em pessoas alfabetizadas. Quem ali chegava, da porta podia ouvir a professora tomando leitura, logo ao lado se ouvia o ressoar da tabuada. Assim eram os saberes ensinados nessa escola. Separados por grupos, cada grupo aprendendo uma nova lição.

Saberes ministrados em tempos definidos, um após o outro, seja português ou matemática, sem recursos metodológicos apropriados e assim iam inventando ferramentas e técnicas, à medida que se defrontavam com a necessidade surgia um cartaz, algumas sementes, recursos poucos evidentes, lecionar era uma arte! Para que os alunos apreendessem, tudo o que se achava era utilizado, ensinar matemática com sementes, com grãos ou com qualquer outra plantação que se encontrava pelo chão, era uma tecnologia da época. Números, contas de adição e subtração, a matemática ensinada dessa maneira era, para eles, uma inovação.

Provas. Reprovas. Aprovação. Nessa escola a ordem era estudar, com as provas marcadas os alunos revisam seus cadernos, tudo era levado muito a sério. Chegou a prova de leitura, em suas carteiras prestavam a atenção, tudo bem sincronizado, começava a prova. No quadro, o texto para a leitura coletiva e individual, a professora que organizava: começava com um, terminava em outro. A diretora também aplicava provas, havia a prova oral: aluno por aluno, um de cada vez, seguiam até a sala da diretora, chegavam suando frio de nervoso, hora da prova! A diretora analisava a leitura, tomava a tabuada, perguntava sobre tudo. Era assim que a criança era cobrada e avaliada. Para alcançarem a aprovação todos corriam atrás, estudavam, decoravam, aprendiam, era assim que funcionava e no final os resultados: aprovado, aprovada... Pode-se dizer que nessa escola não havia tanta reprovação. Na escola que ensinava saberes havia muita educação. Havia a passadeira, o hino, a prece, o badalar do sino, a fila, as provas, a aprovação e pouca reprovação.

Nessa escola havia disciplina, concentração, alegria e eficiência. Tudo muito bem controlado pela diretora. “Olha! A diretora”! A primeira que chegava e a última que ia embora. Com seu jeito enérgico, bem respeitada, não dava mole para a criançada, era ela quem controlava tudo, bem delimitado, regras e deveres, nessa escola que se ensinava saberes. Feito o maestro que controla a sinfonia, essa diretora coordenava e controlava a disciplina, a educação, a falta de obediência e a bagunça, tocava a escola ao seu ritmo. Reconhecida pelas professoras, a diretora, sempre auxiliava e dava todo o apoio necessário para tudo e para todas, foi uma figura muito marcante para quem passou pela escola, seja para aluno ou para professora, ela deixou um legado de boa conduta, dedicou a sua profissão sem dar espaço para controversas. Assim podemos chegar à conclusão que bastava percorrer pela escola para ver o respeito que havia pela diretora, em toda sua extensão, dentro ou fora, a figura da diretora. Não é possível ouvir sobre essa escola, sem ouvir sobre a diretora.

Nessa escola havia deveres, havia castigos e muita obediência, as crianças não desrespeitavam, sabiam o que podiam e o que não podiam fazer. Ao saírem de suas casas os pais já desfiavam um rosário de sermões, nada de brigar ou desobedecer a professora. Desobedecer era palavra tão ouvida pela molecada, que o medo fazia morada, o respeito acima de tudo, nessa escola que ensinava saberes, os alunos eram educados também para obedecer.

Agora a escola que ensinava saberes se tornou um museu: os habitantes, os alunos e as professoras a visitam por meio das memórias, correspondem aos seus desejos, contemplam-na imaginando, percorrendo por cada lembrança e deslizando pela espiral das vivências em forma de caracol.

Em 1977, o Grupo Escolar, como grupo, se desbota, apagam-se os florões, os traços e as curvas perdem seus contornos. A escola que ensinava saberes definhou-se, desfez-se. Acabou o Grupo Escolar, seus costumes, suas ideologias de ensino e deu lugar a outra escola e outros valores... Não há mais o Hino Nacional e o hastear da bandeira, não há mais a prece, o badalar do sino silenciou-se e não dispara mais a formação da fila. Não há fila, não há regras, não há castigos, não há obediência, nem provas, nem a diretora! Perderam-se os documentos oficiais, mas há memórias, há histórias que não se perderam quando se fecharam as portas e as janelas do Grupo. A escola continuou, o Grupo continuou nas memórias. Continuou a passadeira. Ah, a passadeira... que passa, que leva, que continua viva em memória e suas distintas funções sempre permanecerão.

***

Nessas terras os saberes continuaram a ser ensinados, não mais pelo Grupo Escolar Usina Bandeirantes, mas seu prédio, com algumas modificações, com outro nome, outros costumes, outras realidades continou por alguns anos sendo o abrigo educacional de muitas pessoas dessa comunidade.

Restam o nome, o lugar em que está situada, as memórias... Nos dias atuais, não se vê mais quase nada! Há quem diga: “ Está lá embaixo” e é preciso acreditar; os lugares são desertos. Á noite, encostando o ouvido no solo, às vezes se ouve “ e lá vem a diretora...”

Finalizando...

Professores e alunos do Grupo Escolar permitiram-nos redigir essa história, eles que nos deram o ritmo, as cores, as palavras e as suas narrativas orais, por sua vez, possibilitaram a compreensão de experiências educacionais, que vai além da busca da verdade dos fatos. Afinal, narrar é contar uma história, narrar-se é contar uma história da qual também fomos ou nos sentimos personagens. Podemos entender que a história, constituída na narrativa pelos depoentes com o pesquisador, é uma história de interpretações que nos auxilia e nos permite a compreensão de uma escola rural. E percebemos que o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes é, para eles, orgulho, memória e possibilidade.

Suas vozes aqui ecoaram, ganharam destaque. Assim essa história segue um caminho em que o chão é desenhado pela memória, um mosaico, um conjunto, um acervo que é especial, história e memória, dispostos num arranjo que está associado a uma disposição do olhar que constituímos e elaboramos na condição de organizadores. Esta narrativa é apenas uma das muitas formas de compor uma produção ficcional que se alimenta de poderosos saltos imaginativos configurados sob a visão de quem presenciou esta escola.

Essa organização, segundo entendemos, permitiu a exposição/criação de um Grupo Escolar a partir da busca pela correlação entre pontos, linhas e regiões de conexões entre e nas narrativas orais, segundo um olhar que transmuta, um olhar carregado de teorias, de experiências e de vozes que autorizam o pesquisador a dizer desse jeito, nesse momento, o que julga plausível e pertinente dizer.

As narrativas, de modo geral, potencializam produzir conhecimento sobre nossas subjetividades, formações de sujeitos e acontecimentos, levando-nos à intenção de dados mundos, à criação de realidades múltiplas (WHITE, 2014). Trazer a narrativa ficcional à cena, mostrando o quanto foi importante para o estudo é exercitar e discutir como podem nos oferecer recursos vários para a compreensão de uma realidade, em especial realidades de instituições escolares.

Não entendemos esta experiência desvinculada de seu tempo, de seu lugar e de suas práticas. Por isso não tivemos a pretensão de (re)constituir “a experiência do Grupo Escolar”, de abarcar a realidade em sua totalidade, pois acreditamos que sempre haverá outros pontos de vista a serem contemplados, sempre será possível criar outros “Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes”. Esse exercício, para nós, possibilitou problematizarmos aspectos de uma instituição escolar rural, atribuir compreensões que temos elaborado sobre narrativas, memória, história, historiografia, fontes e análises, bem como metodologia, exercitando na forma de comunicar, na escrita, facultando outras compreensões, outras interpretações sobre o dito, o que nos permite reafirmar que comunicar algo de diferentes formas é dizer coisas diferentes, construir conhecimentos outros, quiça novos.

Por meio dessa pesquisa elaboramos um produto educacional, uma coleção de livretos composta por três volumes, a coleção: “ Eu Conto, Tu contas, Nós contamos: histórias sobre o Grupo Escolar Rural Usina Bandeirantes”. Os livretos, que reúnem as narrativas dos nossos colaboradores, recontam a história da educação local e regional a partir do mundo rural e aborda a riqueza dessas experiências escolares. Os livretos foram organizados em três volumes: sendo o primeiro volume constituído pelas narrativas dos ex-alunos, o segundo é composto pela narrativas das professoras que lecionaram no Grupo Escolar e o terceiro e último volume consta a narrativa que disparamos sobre a escola a partir do ouvido.

Por fim, a narrativa ficcional apresentada parece nos possibilitar finalizar, sem concluir. A História Oral lida com histórias e as histórias não podem ser reduzidas a um significado único (PORTELLI, 2016). Com diversos fios soltos, deixamos um convite para que você possa estranhar a composição e potencializar novas inquietações, novos Grupos Escolares.

Referências

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3Neste texto, assim como na nossa pesquisa, utilizamos o termo campesino(a) como um sinônimo de rural.

4Para White (2014), o estilo não se encontra apenas no campo da escrita, mas na sua interação com o escritor, o estilo literário não inviabiliza a representação da realidade. “São, em essência, os conteúdos, mais do que a sua forma de apresentá-los, pois ―o conteúdo dos relatos históricos são acontecimentos reais, coisas que realmente ocorreram, e não acontecimentos imaginários, inventados pelo narrador” (WHITE, 2014, p. 65, grifos do autor).

5Os documentos oficiais do Grupo Escolar referente ao período estudado não foram encontrados. Foram realizadas buscas na Secretaria Municipal de Educação e, também, em escolas do município cujas informações nos apontavam como possíveis lugares em que haviam sido guardados os documentos do Grupo Escolar, porém não houve êxito em nenhuma das nossas buscas.

6Nosso grupo de depoentes foi composto por três alunos e cinco professoras do Grupo Escolar.

7As textualizações da cada entrevista que realizamos encontram-se em Souza (2019) junto às cartas de cessão de direitos para uso das entrevistas.

Recebido: 01 de Abril de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

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