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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-29 

Dossiê 2 - História da educação matemática

A Coleção Matemática, Metodologia e Complementos para professores primários, de Ruy Madsen Barbosa: uma análise

La colección Matemáticas, metodología y complementos para maestros de primaria, de Ruy Madsen Barbosa: un análisis

Antonio Vicente Marafioti Garnica1 
http://orcid.org/0000-0003-0750-8483

Natalia Cristina Milanez2 
http://orcid.org/0000-0001-6391-5636

1Doutor em Educação Matemática. Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, SP, Brasil. E-mail: vicente.garnica@unesp.br.

2Mestre em Educação Matemática. Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, SP, Brasil. E-mail: na_milanez@hotmail.com.


RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar a coleção Matemática, metodologia e complementos para professores primários, utilizando o referencial teórico metodológico da Hermenêutica de Profundidade, proposto por Thompson (1995), em conjunto com a ideia de Paratextos Editoriais, de Genette (2009). A Coleção, cujo autor é Ruy Madsen Barbosa e cuja primeira edição é de 1966, é composta por três volumes. A análise dessa obra nos permite apontar tanto elementos que, nela, nos pareceram inovadores do ponto de vista didático e pedagógico, quanto o modo como, nela, aparentemente, seu autor defende valores próprios à prática científica da Matemática em detrimento do que se considera ser adequado como guia à formação de professores.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de livros; Movimento Matemática Moderna; História da Educação Matemática Brasileira; Ensino Primário; Formação de Professores

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar la colección Matemáticas, metodología y complementos para maestros de primaria, utilizando el marco metodológico teórico de la Hermenéutica de Profundidad, propuesto por Thompson, junto con la idea de Genette de Paratextos Editoriales. La Colección, cuyo autor es Ruy Madsen Barbosa y cuya primera edición es de 1966, consta de tres volúmenes. El análisis de este trabajo nos permite señalar elementos que, en él, parecían innovadores desde el punto de vista didáctico y pedagógico, y la forma en que, aparentemente, su autor defiende valores específicos de la práctica científica de las matemáticas en detrimento de lo que se considera adecuado como guía para la formación del profesorado.

PALABRAS CLAVE: Análisis de libros; Movimiento Matemática Moderna; Historia de la educación matemática brasileña; Escuela primaria; Formación de profesores

ABSTRACT

The main goal of this text is to perform a hermeneutic examination of a set of books entitled Mathematics, Methodology and Complements for primary school teachers. Such analysis was developed according to Thompson´s Depth Hermeneutics and the idea of paratexts as proposed by Genette. The book set is comprised of three volumes published in 1960s by Ruy Madsen Barbosa. From a didactical and pedagogical point of view, such hermeneutic exam shows some points that can be considered innovations. However, elements of a conservative nature could also be detected, such as those in which the author seems to defend some values related to the scientific practice of mathematics instead of values considered more suitable to guide teachers in their teaching practices.

KEYWORDS: Textbook analysis; New Math Movement; History of mathematics education in Brazil; Elementary school; Teacher education

Introdução

Parte da biblioteca do professor Ruy Madsen Barbosa foi doada por sua família3 ao acervo do Grupo de Pesquisa História Oral e Educação Matemática (GHOEM). O professor Ruy Madsen faleceu em julho de 2017, e já em 2018 os livros estavam disponíveis para consulta, ainda que em fase de organização, no Acervo do GHOEM, localizado em Bauru (SP). Dentre esses materiais havia dois volumes de uma coleção de três livros intitulada Matemática, metodologia e complementos para professores primários A primeira edição do primeiro volume dessa Coleção foi publicada em 1966, e nos chamou a atenção seu público-alvo, os professores primários, já que desconhecíamos, até então, obra desse ator voltada para essas séries que então compunham o chamado Ensino Primário. Anteriores a ela, tivemos acesso a apenas dois livros impressos publicados pelo mesmo autor, ambos em volumes únicos: Um curso moderno elementar de análise combinatória, de 1963, e Combinatória e probabilidades, de 1964. No que diz respeito à sua produção como autor de livros didáticos, Ruy Madsen publicou um total de 16 títulos4, 13 deles em volumes únicos, 2 em dois volumes (publicados em 1975 e 1984) e a Coleção Matemática, metodologia e complementos para professores primários, em três volumes.

Em nosso Grupo de Pesquisa temos um histórico considerável de análises de livros-texto, todas desenvolvidas segundo um mesmo referencial teórico metodológico conhecido como Hermenêutica de Profundidade (HP), do que foi natural tomarmos esse mesmo referencial para o estudo dessa Coleção. A HP foi proposta pelo sociólogo inglês John B. Thompson, em seu livro Ideologia e Cultura Moderna, de 1995, e refere-se à interpretação do que esse autor chama de formas simbólicas5, que, de modo sintético, podem ser caracterizadas como construções humanas intencionais tomadas como foco dos que, em contato com elas, se dispõem a interpretá-las. Em resumo, a Hermenêutica de Profundidade pode ser apresentada como um referencial teórico-metodológico proposto por John Thompson como sendo radicado em dois territórios - a Sociologia e a Filosofia -, visando à interpretação de formas simbólicas. Se à Filosofia cumpre nutrir o referencial com considerações acerca dos limites e potencialidades das interpretações (ou leituras), à Sociologia cabe direcionar essa hermenêutica à compreensão da ideologia que cerca/constitui as formas simbólicas. Essa ênfase na necessidade de abordar a ideologia que cerca a forma simbólica talvez seja um diferencial desse referencial em relação aos demais referenciais mobilizados atualmente.

Segundo Thompson, toda forma simbólica opera para criar (ou manter) uma determinada relação de poder de um grupo sobre outro. Vivemos num mundo de poderes e contrapoderes, num universo que é, forçosa e irremediavelmente, ideologizado, e a manutenção ou imposição de uma determinada relação de poder caracteriza as instituições. Segundo a discussão proposta por esse autor, estudar ideologia implica estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. Particularmente, Thompson expõe alguns dos modos pelos quais a ideologia opera. Ela opera por legitimação (já que relações de dominação são sempre vistas como legítimas, ou seja, como justas e dignas de apoio); por universalização (já que acordos institucionais globais - tidos como os melhores para todos - são decorrência de interesses de alguns grupos ou indivíduos); por dissimulação (relações de poder são sempre ocultadas, obscurecidas, representadas de modo a desviar nossa atenção, visando a nos fazer desconsiderar elementos tidos como indesejáveis); por fragmentação (segmentando grupos e pessoas de modo a evitar ideias que podem se tornar um problema para os grupos dominantes); e por reificação (que implica a invenção de uma tradição artificial para que se acredite ser permanente e natural uma situação que é transitória e histórica).

Assim, afirmar que se pretende mobilizar a Hermenêutica de Profundidade para analisar determinada forma simbólica (seja um livro, uma pintura, uma prática, um hábito, uma apresentação oral, uma legislação, uma coreografia, um poema etc) traz embutida a questão geradora essencial a esse referencial, ou seja: “Qual ideologia essa forma simbólica cria ou ajuda a manter?”, ou seja, implica perguntar “Como essa forma simbólica estabelece e sustenta determinadas relações de dominação e quais relações de dominação são essas?”.

Dos referenciais teórico-metodológicos

Ainda que uma discussão mais detalhada sobre o referencial teórico metodológico da HP não possa ser feita aqui, é importante afirmar que são três os movimentos analíticos propostos por Thompson para efetivar uma interpretação visando a compreender a ideologia que cerca uma forma simbólica. Esses movimentos têm sido chamados de (i) análise formal ou discursiva, (ii) análise sócio-histórica e (iii) interpretação-reinterpretação. Correndo o risco natural a qualquer simplificação radical, poderíamos afirmar que a análise formal ou discursiva trata do estudo da forma simbólica “em si”, sua manifestação mais concreta (no nosso caso, os livros que compõem a Coleção), enquanto a análise sócio-histórica trata dos entornos de produção, circulação e apropriação dessa forma e, finalmente, a interpretação-reinterpretação permeia, e ao mesmo tempo sintetiza todo o processo interpretativo, costurando as compreensões obtidas nos demais movimentos de análise e atuando na produção do que se poderia chamar “um resultado”6 da interpretação.

A fase da análise formal ou discursiva, segundo as determinações de Thompson, não serve apenas para descrever a forma simbólica “em si”, mas volta-se à tentativa de compreender os seus “modos de ser”, seu “lugar” e seu “contexto”, ou seja, como ela se mostra para esse leitor que tenta analisá-la de modo a formar um discurso inicial a seu respeito, inclusive direcionando os apontamentos que comporão a análise sócio-histórica, ou seja, o estudo sobre as “cercanias” da Coleção, quando o entorno da forma é mais detidamente investigado. Essa análise sócio-histórica diz respeito à época em que os livros foram elaborados e a materiais que podem nos ajudar a compreender concepções e intenções do autor ao elaborá-los. Se na análise discursiva estudamos o modo como os capítulos de distribuem nos livros, de que modo os conteúdos são hierarquizados e apresentados em cada capítulo, tentando também compreender as intenções do autor quanto ao que o levou a constituir a obra daquele modo - e não de outro -, a análise sócio-histórica se propõe - talvez seja possível dizermos assim - a compreender como, talvez, o tempo e o espaço - as circunstâncias - em que a obra foi produzida levaram o autor a fazer as escolhas que fez respondendo às condições daquele seu tempo-presente.

Ao estudar o processo de circulação da Coleção, pudemos perceber que ela foi distribuída e usada em vários estados brasileiros, tendo boa aceitação, visto que em apenas dois anos houve, no mínimo, quatro edições publicadas. O público-leitor, segundo o próprio autor indica, são professores primários em exercício, futuros professores primários, professores primários em aperfeiçoamento, professores de Matemática, professores de Prática de Ensino ou Metodologia e futuros professores de Pedagogia, ou seja, abrange professores com ou sem formação específica em Matemática. Obviamente fica implicada nessa instância da análise a necessidade de conhecer seu autor. As informações sobre Ruy Madsen Barbosa foram buscadas em suas publicações e nas inúmeras entrevistas que ele concedeu a outros pesquisadores, já que, tendo ele falecido antes do início dessa pesquisa, não nos foi possível entrevistá-lo. Como sabemos, qualquer esforço biográfico que tenha a intenção de dizer quem alguém “realmente” foi, como viveu etc, é tão ingênuo quanto impossível. O que se pode fazer, na tentativa de se aproximar de um biografado, é buscar resíduos, indicativos, pistas do que ele/ela fez, de como se apresentava, com quem convivia, a que se dedicava etc, conversando com ele/ela próprio(a), com pessoas que com ele/ela conviveram, acessando textos que dizem respeito a isso. Esse conjunto de esforços nos permite criar uma versão plausível de alguém (uma identidade), nos permite costurar um sentido para o que esse alguém fez e/ou foi, numa pluralidade de perspectivas, pois ninguém é um e uno ao longo de toda uma vida, mas um conjunto de desejos, práticas, realizações, sonhos e circunstâncias.

O professor Ruy foi um dos idealizadores do curso de Matemática criado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (UNESP) em 1966, mesmo ano da publicação dos livros que aqui estudamos. Também na década de 1960, ele foi um dos criadores e membro da primeira diretoria do GEEM (Grupo de Estudo do Ensino da Matemática) e do CRAEM (Centro Regional de Aperfeiçoamento do Ensino de Matemática), coletivos que tiveram forte influência para que o Movimento Matemática Moderna (MMM) circulasse no Brasil. Como esses grupos estão diretamente relacionados com o MMM e os livros são - como pudemos perceber - como que um folder desse Movimento, fomos levados a conhecer e entender melhor esse Movimento. Sabemos também que o professor Ruy ministrou cursos para professores e foi ele próprio docente do curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Esses são elementos importantes para entendermos por que Ruy Madsen, a certa altura de sua carreira, dedicou-se a produzir um livro didático e, mais especificamente, um manual voltado ao ensino primário.

Além disso, tão importante quanto aproximar-se de seu autor e compreender faces da produção de uma determinada forma simbólica, é conhecer aspectos de sua circulação, seu recebimento, o público (no caso, o público-leitor) a quem ela se dirige/dirigia, as pessoas envolvidas nesse Movimento, os locais e situações específicas (contexto histórico e social) que fazem parte desse processo de produção e apropriação, os vários porquês da sua criação e as relações de poder que marcam essas formas simbólicas.

A HP é flexível para operar e articular-se a outras técnicas de investigação. Em nosso caso, optamos por também operar com a ideia de Paratextos Editoriais, de Gérard Genette (2009), percorrendo os peritextos (paratextos internos) e os epitextos (paratextos externos) da Coleção.

Genette (2009, p.9) define paratexto como todos os elementos que fazem um livro ser um livro e mostrar-se como livro a seus leitores e, de maneira geral, a um público. Já se percebe, aqui, que Genette trata especificamente de textos escritos, enquanto a proposta de Thompson - não custa reiterar - é mais ampla, estando voltada à interpretação de formas simbólicas. Entendendo que um texto escrito é uma forma simbólica (o que o desenvolvimento da HP mostrará ainda mais claramente no correr das análises, evidenciando cada vez mais a forma simbólica, ainda que ela já tenha sido tomada como tal) a aproximação entre Genette e Thompson é, nessa nossa tentativa de analisar a Coleção Matemática, metodologia e complementos para professores primários, possível.

Em uma análise que se dispõe a tratar com paratextos, o foco se volta tanto para os conteúdos “internos” das obras quanto para outras estratégias e elementos “próximos” a essas obras, ou seja, os conteúdos “externos” (GENETTE, 2009). São paratextos e, portanto, estão no horizonte de nossa atenção, por exemplo, o corpo do livro, o modo como os temas estão dispostos e são tratados, assim como as cores, as formas, os títulos, os subtítulos, os prefácios, dedicatórias, ilustrações, anexos etc., ou seja, busca-se fazer uma descrição detalhada e criteriosa de cada um dos três volumes analisados. Deve-se considerar também os materiais próximos à obra, como listas da editora que fazem referência ao livro, prospectos de divulgação, matérias em jornais e revistas sobre a obra, folders, propagandas, textos críticos, referências utilizadas e registradas pelo autor. Esses elementos são também, segundo Genette (2009), paratextos, pois fazem com que a obra seja aquela obra, voltada para um (e atingindo um) público específico, defendendo concepções específicas, sendo discutida e apresentada publicamente de modos específicos por seu autor, seu editor, seu leitor, e não uma outra obra qualquer.

O movimento de Interpretação/Reinterpretação, por sua vez, é dedicado a tecer uma ligação entrelaçando as duas análises “anteriores”, detectando as aproximações e divergências entre seus “resultados”, de forma a interpretar e construir criativamente um discurso sobre a obra e a ideologia que a cerca, atribuindo-lhe possíveis significados, ou seja, “uma explicação interpretativa do que está representado ou do que é dito” (THOMPSON, 1995, p.375).

Ao mesmo tempo que os leitores analisam um livro, um texto, ou mesmo esta dissertação, estão tecendo interpretações e reinterpretações a seu respeito, pois o significado não está no texto nem é estático: é flexível posto que é atribuído7 pelo leitor.

A abordagem teórico-metodológica atribuída a Thompson é, aqui, portanto, tomada como uma caixa de ferramentas para interpretar as informações que fomos organizando no processo de análise. “A hermenêutica pressupõe um texto8 ou uma expressão que tenha algo a dizer e que pode ser interpretado ou re-dito de outra maneira” (GARNICA, 1993, p.46) e, assim, é um movimento de pensamento em que o hermeneuta deve ultrapassar as informações apresentadas a ele como produtos estáticos, no caso dos livros didáticos, na tentativa de evidenciar o seu ponto de vista, as intenções manifestadas pelo autor e o modo como, segundo as compreensões do intérprete, essas intenções chegam a um determinado público. “As formas simbólicas representam algo, elas dizem alguma coisa sobre algo, e é esse caráter transcendente que deve ser compreendido no processo de interpretação.” (THOMPSON, 1995, p. 376).

Desse modo, tenta-se compreender as relações entre a produção, a circulação e a interferência do contexto sociopolítico nesse movimento hermenêutico. A fase de interpretação/reinterpretação, do ponto de vista do relato (seja uma dissertação ou tese, seja um livro, um artigo, uma apresentação oral, por exemplo) que divulga a hermenêutica realizada, pode ser vista como um arremate do processo interpretativo9.

Iniciando a análise

Para a análise discursiva ser construída com um olhar minucioso, é necessário olhar e tentar atribuir significado ao corpo dos três volumes que compõem a Coleção Matemática, metodologia e complementos para professores primários. Essa nossa análise teve como base três edições do primeiro volume: uma primeira edição (de 1966), uma segunda edição (do ano de 1967), e uma quarta edição (do ano de 1968), o que já pode ser um indicativo de uma boa aceitação dos livros no mercado livreiro da época, o que, por sua vez, pode ter ocorrido pelo fato da Coleção inscrever-se como parte dos esforços para a divulgação do Movimento Matemática Moderna no Brasil, que ocorreu naquele período e foi colocado em ação, principalmente, pela intensa produção de livros didáticos. Dos volumes II e III a análise foi feita a partir da primeira edição, de 1966.

Pelo modo como os temas estão dispostos e são tratados, percebemos a interferência do Movimento Matemática Moderna (MMM) no texto dos três volumes, pois tudo é feito segundo uma abordagem que parte da ideia de conjuntos (mais explorada, do ponto de vista teórico-formal, no primeiro volume), havendo tópicos que atualmente só são desenvolvidos no ensino superior, em cursos de Álgebra Moderna, como, por exemplo, a discussão sobre Isomorfismos. Ao mesmo tempo em que os três volumes possuem características semelhantes, como a de ser um guia para o professor, eles também mostram distinções marcantes. Segundo o prefácio do volume I, a Coleção é constituída por três partes: “Primeira parte: Aritmética teórico-prática”, na qual são tratados os conteúdos matemáticos (de um ponto de vista formal), a “Segunda parte: Metodologia”, na qual é apresentada uma discussão sobre a metodologia que o professor deve usar em sala de aula, e a “Terceira parte: Complementos”, que, como o próprio título aponta, é um complemento para as partes anteriores. No estudo dos três volumes constatamos que cada uma dessas partes equivale a um dos volumes da Coleção.

Na sequência deste artigo apresentamos uma síntese das análises de cada um dos volumes da Coleção, seguida de uma conclusão sobre a íntegra do movimento de análise que, ao mesmo tempo, considera os três volumes da Coleção. O leitor certamente entenderá a impossibilidade de apresentarmos, aqui, de forma detalhada, todas as peculiaridades e particularidades da hermenêutica realizada. Para esse detalhamento indicamos aos interessados o relatório de pesquisa (MILANEZ, 2020) em que a interpretação foi inicialmente tornada pública10.

A aritmética teórico-prática

O volume I, reservado, segundo o autor, ao tratamento teórico-prático da Aritmética, pauta-se pela sequência linear dos conteúdos. Não há muitas figuras, mas as que foram inseridas possuem edição de arte muito singela que, se, por um lado, não têm apelo visual significativo, por outro podem ser reproduzidas facilmente pelo professor na lousa.

A geometria não aparece como suporte em momento algum, e os conteúdos são tratados de forma essencialmente algébrica. Um exemplo disso são as propriedades dos conjuntos, das operações entre conjuntos, e das operações aritméticas básicas, trabalhadas enfaticamente. Em todo o livro é utilizada, muito fortemente, a ideia de conjuntos, que dá suporte - implícita ou explicitamente - a todas as discussões, e na Álgebra Moderna está o pano de fundo para todos os conceitos desenvolvidos no volume.

O rigor matemático é uma marca indiscutível, bem como, por um lado, o cuidado com a linguagem matemática e, por outro, o claro descuido com a língua materna, com a diagramação e com a revisão gráfica e textual. Ainda que a justificativa dos resultados apresentados deva se dar, segundo o autor, na forma de demonstrações formais - sempre sugeridas, mas deixadas para detalhamento num “segundo estudo” - não há discussões/argumentações mais aprofundadas sobre os temas, e o que se vê mais frequentemente são as regras e os “modos de fazer”, dados a partir de exemplos.

A brevidade é outro elemento que caracteriza o volume: todos os capítulos e seus tópicos são bastante curtos, o que permite supor que, ao contrário do que se poderia imaginar a partir do prefácio, o autor tinha como seu leitor preferencial um professor já familiarizado com os conceitos e as operacionalizações nele apresentados. Inexistem discussões de natureza pedagógica aliadas ao tratamento matemático, que, reitere-se, é bastante formal.

Nos tópicos destinados aos exercícios, há os que devem ser feitos na sequência de apresentação do conteúdo e aqueles que devem ser deixados para um segundo estudo11. Nota-se, inclusive, que esse “segundo estudo” (quando seriam feitas as demonstrações e trabalhados os exercícios mais “delicados”), ao qual não raramente o autor faz referência, é composto por uma série de demonstrações - provavelmente voltadas aos professores com formação específica em Matemática, que são parte de seu público-alvo - das quais são apresentadas apenas alguns passos, sem detalhamentos. Poucos capítulos incluem o que o autor chama de problemas, e os que há, em sua maioria, trazem questões diretivas do tipo: calcule, determine, verifique, represente. Algumas respostas são apresentadas, todas, entretanto, sem maiores elaborações.

Da Metodologia proposta aos professores primários

O Volume II da Coleção, como já anunciado no prefácio do primeiro Volume, tem como foco o estudo da metodologia para o ensino de aritmética, visando a instruir o professor, num tom eivado de autoridade e autoritarismo, sobre o que ele “deveria” fazer em sua prática cotidiana para tratar os conteúdos apresentados no primeiro volume. Trata-se de um texto mais descritivo, com muitos exemplos de recursos didáticos, distante, nesse sentido, daquele texto teórico voltado aos conteúdos matemáticos que caracteriza o Volume I.

Ainda que a ideia de conjunto seja também muito marcada, são mais perceptíveis nesse volume os esforços do autor em apresentar questões e procedimentos práticos, abandonando um pouco a ênfase na linguagem formal que caracterizou o volume anterior, claramente ancorado no Movimento Matemática Moderna. Ainda que seja um equívoco reduzir o MMM a uma ênfase ao uso formal da linguagem, é certo que, seja como diretriz dada, seja como essa diretriz foi praticada e entendida, o cuidado com a linguagem matemática é um dos elementos que se tornaram característicos do ideário. Desse Movimento, fica também o registro do próprio autor quanto a ter testado suas sugestões em salas de aula reais, ainda que não fique claro, no texto, se essas testagens foram sistemáticas e amparadas em protocolo específico - seguindo o ideário - ou se são apenas lastreadas em experiências pessoais do autor, que teve longa carreira como professor.

O texto parece ser mais uma conversa entre o autor e os professores, sempre tentando colocar os alunos em cena, suas dificuldades, e os procedimentos tidos como os mais adequados para o ensino. É uma marca significativa do discurso do autor, nesse volume, o cuidado com a individualidade do professor, suas circunstâncias, e a variedade e particularidade dos alunos do início da escolarização, bem como a ênfase na estratégia das práticas com materiais didáticos, curiosidades, jogos e problemas. Assim, se compararmos as abordagens do autor até aqui, podemos perceber uma certa falta de sincronia entre discursos, que ora se apoia num formalismo árido, formal e sem concessões, ora busca aproximar-se do professor em um estilo textual que parece tentar criar uma atmosfera de cumplicidade. Ora fala o matemático experiente, que não faz concessões quanto às exigências do rigor, da linguagem e da formalização, ora fala o professor, que parece pautar-se pela lacunaridade e precariedade da formação dos professores, à época, face à nova Matemática que se impunha. Em ambos os casos, entretanto, trata-se de um discurso com boa dose de autoritarismo - ora fundado no pleno conhecimento da área de que trata, ora guiado pela excelência de sua prática docente. São, porém, discursos disjuntos, uma das identidades desaparecendo quando se impõe a presença da outra.

Há, em diversas passagens, críticas explícitas do autor em relação a outros autores e suas obras - algumas que ele, inclusive, responsabiliza por desvirtuar o ideário da Matemática Moderna no país - e embora seja marcada a sugestão para desencorajar tanto a memorização quanto o tratamento mecânico das operações, as regras - muitas delas apenas enunciadas, mas insuficientemente justificadas (quando justificadas) - estão bastante presentes neste - e nos outros - volume da Coleção. Impera a ideia de metodologia como uma sequência articulada de passos: as descrições passo-a-passo, as caracterizações de conceitos em itens e subitens, o uso de (e a ênfase em) nomenclaturas específicas, o tratamento exaustivo de casos, por exemplo, reforçam essa nossa impressão.

O tratamento gráfico do volume é bastante elementar. Nota-se isso desde a ausência de cores, passando pela simplicidade de esquemas e desenhos, até chegarmos aos problemas de impressão gráfica, com muitos borrões e falhas. A linguagem usada pelo autor, embora próxima do professor, não é das mais corretas do ponto de vista gramatical, e o uso de alguns termos e expressões aproximam as discussões de natureza metodológica mais da experiência aparentemente vivida pelo autor e do senso comum do que de obras e autores específicos no assunto, que teriam abordagens mais delicadas e bem trabalhadas do ponto de vista teórico-educacional. Em alguns casos, as justificativas para as sugestões do autor aos professores parecem estar radicadas mais em seu conhecimento acerca do que a Matemática é, de sua expertise acerca dos conteúdos e métodos matemáticos, do que, propriamente, num conhecimento didático e pedagógico fundamentado. De todo modo, a composição final do volume, no que diz respeito à sua materialidade, é descuidada, tanto do ponto de vista gráfico quanto do ponto de vista da revisão textual.

A sugestão - frequente e enfática - de que o professor deve usar diversos recursos didáticos (como jogos, narrativas, desenhos, diagramas etc.) dá um tom diferenciado ao texto, marcando-o sobremaneira. Além disso, ainda que não faça concessões que muitas vezes nos pareceram ser necessárias, o autor explicita saber que seu texto será usado por professores com formação deficitária e que mantém certo “distanciamento” da Matemática que deveriam ensinar.

Os Complementos

Tendo chegado ao terceiro volume, é interessante reiterar como a Coleção foi pensada para dar conta de justificar seu título. O primeiro volume trata mais propriamente do que poderíamos chamar de parte teórica da Matemática e, como o próprio autor afirma, tem a função de levar o professor a aprender, já que ele deve “saber mais” do que tem que ensinar aos estudantes. O primeiro volume, portanto, segundo o autor, contém muito mais informações além daquelas que o professor usará para ensinar na escola primária. Aposta-se na linguagem Matemática formal, nas definições e nomenclaturas específicas, pois esse é o livro de um professor para professores, não para um público leigo.

Já o volume II tem a intenção de tratar da metodologia (parte prática) do ensino, do que é recomendável para o ensino de cada um dos conteúdos. Trata-se de um volume de “orientações pedagógicas”, composto por textos dedicados aos professores, incentivando-os a guiar os estudantes. Segundo Oliveira, Silva e Valente (2011, p. 134), durante o MMM no Brasil, o professor do ensino primário deveria “assumir o papel de orientador das descobertas, primeiramente intuitivas, que seriam sistematizadas e formalizadas gradativamente e tratadas sem grandes preocupações com a simbologia”. Dessas recomendações, entende-se que a Coleção segue rigidamente aquela relativa a orientar descobertas, uma sugestão bastante enfatizada no discurso do autor. Entretanto, embora haja indicações do autor aos professores sobre apostar na intuição, fica muito claro que o conjunto dos livros não abre mão da simbologia, da notação e da nomenclatura formais. A ênfase na sistematização e na formalização - muitas das vezes precoces e pouco discutidas -, se considerarmos o que pontuam Oliveira, Silva e Valente (2011), faz com que o livro por um lado defenda arduamente o Movimento Matemática Moderna ao mesmo tempo em que, por outro lado, o subverta, talvez pela certeza do autor, intensamente declarada, quanto à excelência de sua formação em Matemática, tornada, então, mais do que o MMM, guia para a elaboração da Coleção.

O Volume III, que traz os complementos dos quais o título fala, contém um pouco de cada um dos conteúdos já apresentados nos volumes anteriores, sendo a eles agregados alguns itens novos. Segundo o autor, o terceiro volume é voltado a apoiar o professor que visa a uma aula mais plural e, em alguns casos, até mesmo divertida.

A Coleção não é uma série de três livros a serem efetivamente adotados em sala de aula, já que não têm nos estudantes o seu público alvo: trata-se de uma Coleção que pode ajudar os professores em seus cotidianos escolares, algo que, em termos mais recentes, se poderia chamar de paradidático, ou seja, uma série de textos de apoio didático-pedagógico. Uma afirmação do autor, no volume II, à página 99, claramente explicita a intenção dessa sua Coleção: “/.../ auxiliar a formação do professor primário, ou /.../ que este livro sirva de consulta”. É importante lembrar que, também segundo o prefácio da primeira edição do Volume I, esse terceiro volume deveria servir apenas como livro de consulta aos professores primários e de Pedagogia, como recurso auxiliar ao professor de Matemática e como livro de consulta ou livro-texto aos professores de Prática de Ensino e Metodologia.

Os temas relativos à Geometria são bastante negligenciados na Coleção, ocorrendo apenas nesse terceiro volume, como “complemento”, portanto. Deve-se ressaltar que, sequencialmente, o tratamento ao conceito de volume antecede o do conceito de área. Em entrevista à Lima (2006), o autor Ruy Madsen relata que o tratamento outrora dado ao tema volume dos corpos, basicamente reduzia-se aos teoremas de Geometria no Espaço, “que /.../ [eram] um bocado pesado para o nível dos nossos alunos daquela época”, e que a ideia de trabalhar com o princípio de Cavalieri surgiu no grupo GEEM. Deve-se considerar que, na Coleção, o tratamento do conteúdo “Volumes de corpos” é sucinto, o que também ocorre com o tratamento relativo às áreas, um deles não sendo exigido como pré-requisito do outro, o que talvez indique ser uma casualidade a sequência escolhida para apresentá-los no livro, ou que o terceiro volume da coleção foi elaborado como um conjunto de tópicos independentes, a serem usados conforme a necessidade dos leitores.

Mais uma vez, consideremos a afirmação de Oliveira, Silva e Valente (2011, p. 163):

Longe de ser abandonado pelos autores, o ensino de geometria é apresentado como uma nova proposta, na qual se identificam duas tendências marcantes. Uma que incorpora as transformações geométricas, na abordagem defendida por Félix Klein; a segunda, hegemônica, que reforça a geometria euclidiana com uma abordagem diferenciada, seja na incorporação de novos axiomas, assim como na inclusão da geometria experimental (OLIVEIRA, SILVA, VALENTE, 2011, p. 163).

A Coleção aqui estudada não segue nenhuma dessas características no que diz respeito à Geometria.

Nos volumes II e III é usual encontrarmos textos similares a conversas entre autor e professor/leitor, e entre leitor/professor e estudantes. O autor sugere encaminhamentos, possibilidades e até mesmo antecipa aos professores as dúvidas dos alunos às quais terá que responder e os comentários que deverá considerar ou fazer. Seu tom, entretanto, é o tom da autoridade, da prescrição, sendo usuais as frases iniciadas com “O Professor deverá...”, ainda que em outros momentos ele tente tecer discursos, digamos, mais leves, que parecem ter a intenção de criar um ambiente de proximidade e cumplicidade com os leitores.

Em toda a coleção é fácil perceber que a maioria dos conteúdos tratados nos capítulos anteriores é reutilizada, continuada, complementada e exemplificada, na tentativa de construir uma ponte entre os temas que foram, os que estão sendo e os que serão discutidos. A forma sequencial e lógica na elaboração dos Volumes da Coleção é ditada pelo autor que certamente deve seguir as legislações e conteúdos programáticos em vigor à época. Mas o discurso autoral é carregado de uma autoridade que o autor tem - e não deixa de invocar - por sua atuação prévia como matemático e como professor de Matemática.

A ideia de conjuntos é algo muito presente, e sustenta todo trabalho em relação aos conteúdos matemáticos, ainda que essa ênfase explícita se dilua de volume a volume. Principalmente no volume I - em que são discutidos os conceitos matemáticos e dadas algumas demonstrações - essa ideia-base central ao Movimento Matemática Moderna - bem como as ideias de formalização e estruturação - é nitidamente marcada.

O cálculo mental ou aproximado é aconselhado em todos os volumes da Coleção, assim como o trabalho com jogos e a abordagem escolar que considera as situações reais e cotidianas como motivações relevantes. Paralelamente, pode-se notar que embora haja uma crítica quanto à memorização e às regras “dadas” pelo professor, os três volumes da Coleção com frequência valem-se desses recursos que o autor critica. Isso é bastante claro em todos os volumes, mas especificamente marcante no terceiro, em que abundam, sem justificativa aprofundada, as fórmulas de volumes e áreas. É ainda no terceiro volume que mais fica nítida uma abordagem que sabemos ser cara ao autor, a Matemática Recreativa, que ele explorará em outros livros, posteriores a essa Coleção, e em dissertações e teses por ele orientadas quando já atuando como orientador em Programas de Pós-graduação.

Há figuras em todos os volumes, sempre de elaboração singela e em preto e branco, sem aprimoramentos gráficos. Por abordar elementos de geometria, a pouca presença de figuras é ainda mais notada no terceiro e último volume da Coleção, no qual é apresentada a única listagem bibliográfica relativa a toda obra.

Sintetizando para finalizar

Uma análise hermenêutica como a que desenvolvemos não se encerra, já que a expressão “análise hermenêutica” deve ser tomada como sinônimo de “leitura”. Não se trata de qualquer leitura, mas de uma leitura que visa a atribuir significados plausíveis, ancorados no objeto que se analisa e na história desse objeto e de seu contexto, na história do modo como ele, uma forma simbólica, circula no mundo. Uma análise assim, portanto, pode sempre ser refeita, complementada, acrescentada ou reduzida, dependendo de quem analisa e dos materiais que se tem à mão sobre o que é analisado.

Em nosso caso, pretendemos apresentar uma leitura da obra Matemática, metodologia e complementos para professores primários, de Ruy Madsen Barbosa, uma coleção em três volumes produzida à década de 1960. Percebemos a vinculação e a aproximação desses livros - que nos pareceram claras - com o ideário da Matemática Moderna, o que nos levou a buscar elementos para entender esse Movimento ao mesmo tempo em que buscávamos atribuir significado à Coleção, posto que o objeto que se analisa sempre alimenta buscas a materiais complementares que nos ajudem a compreendê-lo, ao mesmo tempo em que a compreensão que vem desses tantos materiais alimenta leituras possíveis do que está sendo analisado. Essa constatação é próxima do que se tem chamado de “círculo hermenêutico”: um movimento contínuo no qual se interpreta para compreender e, compreendendo, interpreta-se. Toda leitura, portanto, ocorre nesse círculo que sempre pode ser reiniciado, refeito, revisto, retomado, complementado.

Nossa leitura foi feita juntando ao que pensamos ser uma descrição e interpretação detalhada e cuidadosa dos três volumes que compõem a Coleção, elementos da vida e da produção do seu autor, bem como aspectos educacionais do período em que a obra foi produzida. Mesclando uma análise do texto “em si”, ou seja, dos livros, a uma análise do contexto (a época da produção, seu espaço de circulação, seu autor, seus vínculos a alguns ideários etc), como propõe Thompson, e norteados ainda pelos paratextos da obra - como propõe Genette -, pensamos ter apresentado uma leitura da Coleção que ressalta tanto aspectos que podem ser vistos como inovações didáticas e pedagógicas - pautadas seja na história do autor dos livros, seja no momento histórico em que ele os produziu - quanto aspectos mais conservadores, como a defesa de valores e concepções próprios à prática da Matemática, como, por exemplo, a prioridade do conteúdo vinculada à necessidade de um tratamento formal às vezes um tanto quanto precoce e desconectado das necessidades da escola e da formação de professores da época. O deslizamento da prática científica da Matemática para a prática pedagógica é, nos parece, uma das marcas fundamentais da ideologia que cerca a Coleção. A opção pela ênfase na resolução de problemas por heurísticas variadas, o recurso à Matemática Recreativa, o cuidado com aspectos psicológicos das crianças, o uso de materiais instrucionais específicos, a defesa da necessidade de recusar abordagens de treinamento, memorização e repetição etc estão entre os aspectos que, à época, respondiam a um movimento maciço de renovação do ensino de Matemática e não se pode aferir até que ponto essa defesa é, devido a esse movimento de renovação, declaratória ou legítima, dado haver, na Coleção, o deslizamento de práticas ao qual nos referimos anteriormente.

Para essa nossa análise, usamos entrevistas que o autor da Coleção concedeu a vários pesquisadores, bem como várias edições de cada um dos volumes e, é claro, materiais complementares - basicamente livros, artigos, trabalhos acadêmicos e recortes de revistas e jornais. De todo esse material, tendo como foco a Coleção Matemática, metodologia e complementos para professores primários, de Ruy Madsen Barbosa, resultou este nosso trabalho. Há, ainda, aspectos a serem nele mais aprofundados, como o “trânsito” dessa Coleção do professor Ruy Madsen no seio do GEEM, grupo no qual parece ter sido mais influente e significativa, no que diz respeito ao ensino primário, a abordagem do GRUEMA (Cf., p.e., Vilela, 2009). Mais distanciados desses valores defendidos por Ruy Madsen - que defendemos estarem ancorados nas práticas e valores promovidos no campo da Matemática profissional - e optando por uma elaboração mais próxima à formação do professor de primeiras letras, os trabalhos publicados pelo GRUEMA tiveram uma circulação e uma permanência - no que diz respeito à História da Educação Matemática brasileira - muito mais nítida e significativa. Se considerarmos, por exemplo, a quantidade de edições e as características editoriais e gráficas da Coleção de Ruy Madsen por nós estudada, veremos que elas estão muito distantes daquelas dos livros elaborados pelo GRUEMA, por exemplo. Essas observações, embora iniciais, podem ser pontos de fuga para uma complementação a essa nossa hermenêutica. Do mesmo modo, pensamos que poderia ser feito um estudo mais detalhado sobre as referências bibliográficas usadas por Ruy Madsen Barbosa como suporte para elaborar sua Coleção: é lacunar a lista de autores e obras citadas por ele no que diz respeito a livros e pesquisadores considerados viscerais para o MMM, e é perceptível não haver referência aos autores estrangeiros (que inclusive passaram pelo Brasil, em eventos dos quais Ruy Madsen participou) que, em entrevistas, ele afirma terem sido importantes para sua imersão no Movimento. Na listagem das referências do autor, são mais nítidos, a uma primeira visada, os ecos da Escola Nova... Esses são dois dos vários temas que ainda podem ser explorados para a complementação dessa nossa leitura sobre a Coleção Matemática, Metodologia e Complementos para professores Primários.

Eram várias as atividades do prof. Ruy Madsen à época da elaboração e do lançamento da Coleção: além de membro do GEEM, ele fazia parte da direção do Grupo, ministrava cursos e palestras, atuava em curso de especialização, participava de eventos e produzia materiais didáticos. É, portanto, nesse contexto de produção variada e intensa que a Coleção foi pensada, elaborada e divulgada. Uma das preocupações do autor, em todas essas atividades, estava relacionada à formação de professores, que ele julgava insuficiente e ineficiente, resultando numa preparação lacunar, que colocava em sala de aula professores despreparados. Note-se que, aparentemente, o adjetivo “despreparados” (usado por ele mesmo) não diz respeito apenas à lacunaridade na formação matemática, mas também qualifica aqueles professores que não aderiram ao MMM. Isso, por sua vez, pode tanto causar estranheza - Ruy Madsen conhecia o contexto de formação de professores e sabia dos problemas que eles tinham em relação à Matemática, o que certamente implicaria dificuldades para que esses professores usassem a Coleção - quanto justificar a ênfase no formalismo que costura toda a Coleção - não era suficiente discutir Matemática com os professores: era também necessário exigir que eles se aproximassem e aceitassem um ideário específico, aquele do MMM, nos termos em que ele, autor, propunha.

Devemos, por fim, registrar que compusemos esse estudo pensando na possibilidade de levá-lo não apenas ao ambiente de pesquisa, mas também às salas de aula de cursos de Licenciatura em Matemática, esperando poder contribuir para novas leituras - dessa mesma e de outras obras - e, em última instância, com a formação de professores que ensinam Matemática e com a História da Educação Matemática Brasileira.

Referências

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GARNICA, A. V. M. Considerações sobre a Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur. Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 16, p. 43-52, 1993. DOI: https://doi.org/10.1590/s0101-31731993000100003.Links ]

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MILANEZ, N.C. A Coleção Matemática, Metodologia e Complementos para professores primários, de Ruy Madsen Barbosa: um estudo. 2020. 216f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. [ Links ]

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THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. [ Links ]

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3Os primeiros contatos para a cessão e a transferência dessas obras foram intermediados pelo professor Antonio José Lopes, Bigode, a quem agradecemos.

4Esse total foi declarado - e por nós conferido - pelo próprio Ruy Madsen em seu Lattes.

5As formas simbólicas, segundo Thompson (1995, p. 182), podem ser caracterizadas por cinco aspectos: o (i) intencional, pois elas são criadas com algum propósito (no caso dos livros, eles foram elaborados com alguma intenção do autor); o (ii) convencional, pois toda forma segue alguma convenção, sendo esse o aspecto que possibilita uma comunicação entre a forma simbólica e o hermeneuta (no caso dos livros, há padrões que podem ser encontrados e interpretados, como por exemplo a sequência de suposições, a clareza e a correção da linguagem, a simbologia própria da área da qual o livro trata etc.); o (iii) estrutural que, no caso dos livros, se mostra na organização da forma simbólica, na maneira como os conteúdos internos do(s) volume(s) são estruturados e estão relacionados; o (iv) referencial: uma forma simbólica sempre faz alusão a algo, se dirige a algo ou alguém: os livros que estudamos são voltados para o ensino, para a discussão de alguns conteúdos, visando um leitor, uma escola, uma disciplina etc.; o (v) aspecto contextual, já que toda forma simbólica é produzida e circula em um determinado contexto. No estudo de um livro didático, é importante, por exemplo, entender a cultura escolar e as políticas educacionais da época em que ele foi produzido e circulou.

6Deve-se notar que a caracterização do movimento de interpretação-reinterpretação vale-se fortemente da não linearidade que marca a HP, já que esse movimento ocorre durante todo o processo, sintetizando, aos poucos, os movimentos anteriormente descritos, enquanto é também responsável pela produção do que se poderia chamar “resultado” da hermenêutica desenvolvida. Ainda que a apresentação formal - o registro da hermenêutica realizada - seja linear devido às imposições da elaboração escrita, ela é o esforço do hermeneuta para comunicar um processo que de modo algum ocorreu numa sequência ordenada de passos.

7Nos parece importante realçar essa ideia, posto que, mais usualmente, toma-se o significado como estando NO TEXTO, e a função do intérprete como sendo a de EXTRAIR esse significado (o registro das intenções do autor) do texto. Essa posição, segundo nosso ponto de vista, é a expressão de um equívoco significativo que representa todo um campo teórico já ultrapassado. O significado é, como tenta realçar o sublinhado da frase, ATRIBUÍDO pelo leitor/intérprete ao texto, segundo uma série de predisposições, circunstâncias e compreensões desse leitor/intérprete.

8Texto, aqui, já deve estar claro ao leitor, não se reduz a texto escrito, mas a configurações simbólicas que, estando no mundo, são passíveis de interpretação. Trata-se de uma concepção aliada àquela de Paul Ricoeur.

9Muitos estudos já foram realizados mobilizando a HP e tendo a HP como objeto de análise. Visando à consistência deste artigo, tratamos de esboçar panoramicamente esse referencial, de modo que o leitor interessado possa esmiuçá-lo, se desejar, a partir das referências apresentadas ao final. Cabe, entretanto, reforçar que as análises (ou fases, ou momentos) que compõem a HP não são, em seus processos de elaboração, nem sequenciais nem lineares (ao contrário do processo de apresentação dessas análises), ocorrendo, de modo geral, todos, ao mesmo tempo.

10Mais especificamente, indicamos este trabalho ao leitor pois nele estão apresentados os recortes textuais da Coleção que justificam cada uma das afirmações feitas sobre ela neste artigo.

11O “segundo estudo”, convém pontuar, não é um tópico ou volume específico da coleção, mas uma simples indicação deixada em algumas passagens do texto, querendo significar que aquele assunto (exercício, demonstração ou explicação teórica) deveria ser retomado pelo professor em outro momento, e não necessariamente na sequência em que aparece no corpo do texto.

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

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