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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-17 

Artigos de Demanda Contínua

Interdisciplinaridade e Alfabetização Científica: um ensaio sobre os dois lados da mesma moeda

Interdisciplinariedad y Alfabetización Científica: un ensayo sobre las dos caras de la misma moneda

Nuria Pons Vilardell Camas1 
http://orcid.org/0000-0003-3992-7914

Marcelo Lambach2 
http://orcid.org/0000-0001-7168-5498

Fernando Roberto Amorim Souza3 
http://orcid.org/0000-0003-2969-5371

1Doutora em Educação. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: nuriapons@gmail.com.

2Doutor em Educação Científica e Tecnológica. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: marcelolambach@utfpr.edu.br.

3Doutorando em Formação Científica, Educacional e Tecnológica. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: fernandoamorim.ifpr@gmail.com.


RESUMO

O presente trabalho visa buscar nos fundamentos teóricos elementos para um diálogo entre a interdisciplinaridade e a alfabetização científica. Parte do pressuposto de que o ensino fragmentado em um currículo compartimentado em disciplinas se constitui como uma barreira para a construção do conhecimento, tendo em vista que, por via de regra, as disciplinas são fechadas em si, sem diálogo umas com as outras. O texto segue balizado por um questionamento: é possível a alfabetização científica sem a perspectiva interdisciplinar? Em face da natureza proposta para este trabalho, tenta-se um convite, sem convergência ao fim, a nos colocar em um estado dialético sobre nossa própria prática docente diante dos desafios na promoção da alfabetização científica. Conclui-se que, em virtude da compartimentação do currículo escolar, a alfabetização científica não logrará êxitos sem a perspectiva da interdisciplinaridade no ensino de ciências.

PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade; Alfabetização científica; Ensino de ciências

RESUMEN

El presente trabajo tiene por objeto buscar en los fundamentos teóricos elementos para un diálogo sobre la interdisciplinariedad y la alfabetización científica. Se basa en el supuesto de que la enseñanza fragmentada en un plan de estudios compartimentado en disciplinas constituye una barrera para la construcción del conocimiento, teniendo en cuenta que, por regla general, las disciplinas están cerradas en sí mismas, sin diálogo entre sí. El texto se guía por una pregunta: ¿es posible la alfabetización científica sin una perspectiva interdisciplinaria? Debido a la naturaleza de la propuesta de este trabajo, estamos tratando de invitar, sin convergencia al final, a situarnos en un estado dialéctico sobre nuestra propia práctica docente frente a los desafíos de la promoción del alfabetismo científico. Se concluye que debido a la compartimentación del currículo escolar, la alfabetización científica no tendrá éxito sin la perspectiva de la interdisciplinariedad en la educación científica.

PALABRAS CLAVE: Interdisciplinariedad; Alfabetización científica; Enseñanza de las Ciencias

ABSTRACT

The present work seeks to find elements in the theoretical foundations to spur a dialogue on interdisciplinarity and scientific alphabetization. It is based on the assumption that when teaching is fragmented in a curriculum compartmentalized into disciplines, it constitutes a barrier to the construction of knowledge-moreover when disciplines are, as a rule, closed in on themselves and bereft of mutual dialogue. The text is guided by the question: is scientific literacy possible without an interdisciplinary perspective? Due to the nature of this proposal, we attempt an invitation towards a dialectical state of our own teaching practice in face of the challenges posed by scientific literacy promotion. In virtue of the compartmentalization of school curricula, we conclude that science literacy will not succeed without the premise of interdisciplinarity in the teaching of science.

KEYWORDS: Interdisciplinarity; Scientific literacy; Science teaching

Introdução

O debate conceitual sobre a interdisciplinaridade e a alfabetização científica, embora temas relativamente novos, tem exaustivamente ocorrido nos ambientes acadêmicos. Busca-se neste texto compreender suas diferenças e aproximações. Entretanto, há a clareza de que não se pretende trazer resultados de análises de pesquisas, mas sim contribuir com a reflexão emergente no ensino de Ciências. Portanto, não serão apresentadas conclusões fechadas, uma vez que não será possível elaborá-las pela própria natureza da Ciência. O objetivo é instigar uma problemática para que se possa pensar a respeito, dialogar e encontrar possíveis caminhos para que seja possível estabelecer as diferenças e as aproximações entre dois campos do saber: alfabetização científica e interdisciplinaridade no ensino de Ciências.

Para os pesquisadores convencionais, o que muda é apenas o estilo textual, concordando-se com Adorno (2003, p. 20): “[...] para os maus ensaios não são menos conformistas do que as más dissertações”. Basta lembrar que os filósofos deixaram seus pensamentos em ensaios, a exemplo podemos citar: A água e o sonho: ensaio sobre a imaginação da matéria, de Bachelard (2018); A constelação pós-nacional: ensaios políticos, de Habermas (2001), entre tantos outros.

Contudo, pretende-se aprofundar, radicalizando a análise, de modo que possam emergir reflexões a respeito do objeto do presente ensaio. Radicalizar no sentido de ir à raiz, buscar elementos epistêmicos que contribuam com esse debate, sem dogmatismos. Entende-se que tanto o objeto quanto o pensamento estão em movimento. A probabilidade de acerto somente acontece em algo estático, no universo tudo caminha, corre e pula no tempo e no espaço.

Nenhum método científico será capaz de estabelecer a verdade. Ela não é propriedade nem se concretiza pela afirmação dogmática, mesmo utilizando-se procedimentos rígidos (ADORNO, 2003). Ao explicar como o ensaio se apropria dos conceitos, o autor faz uma analogia, dizendo ser comparável ao:

[...] comportamento de alguém que, em terras estrangeiras, é obrigado a falar a língua do país, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que aprende na escola. Essa pessoa vai ler o dicionário. Quando tiver visto trinta vezes a mesma palavra, em contextos sempre diferentes, estará mais seguro de seu sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados, geralmente estreita demais para dar conta das alterações de sentido em cada contexto e vaga demais em relação às nuances inalteráveis que o contexto funda em cada caso (ADORNO, 2003, p. 30).

Adorno (2003, p. 30) reflete ainda que esse é um tipo de aprendizagem guiado pelo erro e acerto e o mesmo ocorre com o ensino:

[...] e o mesmo ocorre com o ensaio enquanto forma; o preço de sua afinidade com a experiência intelectual mais aberta é aquela falta de segurança que a norma do pensamento estabelecido teme como a própria morte. O ensaio não apenas negligência a certeza indubitável, como também renuncia ao ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para além de si mesmo, e não pela obsessão em buscar seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados [...]. (ADORNO, 2003, p. 30).

Não mais importante que o produto da reflexão que este ensaio pretende trazer, destaca-se a ousadia de se romper com a razão tradicional. Seria paradoxal emergir algo novo preso a formalidades de métodos. Assim sendo, o convite está posto, e a motivação pode ser pela sua concordância ou mesmo pela discordância dos elementos que aqui são oferecidos com relação à interdisciplinaridade e à alfabetização científica. O importante será a reflexão da realidade diante das argumentações.

A sociedade moderna clamou por uma base sólida que sustentasse seus anseios e perspectivas de futuro de forma ordenada e normatizada, mas estes não deram conta, com o passar dos anos, de responder a esse clamor, ficando tudo tão velho rapidamente, fazendo eclodir uma crise ambivalente. Se de fato havia um alicerce que amparava essa estrutura, o tempo a corroeu. Agora, tudo parece tão passageiro e volátil, que Bauman (2011) chama de tempo de uma modernidade líquida, “somos tão modernos como nunca, ‘modernizando’ de modo obsessivo tudo aquilo que tocamos. Um dilema, portanto: o mesmo, embora diferente, a descontinuidade na continuidade” (BAUMAN, 2011, p. 83). Essa postura de transitoriedade das coisas tem impactado de maneira significativa as relações sociais, a cultura, a arte, a política, a economia e tudo em que o ser humano está envolvido.

A escola, como parte desse contexto, vive um paradigma. Pensada e organizada para ordenar o sistema, como foi projetada no passado, não tem cumprido seu papel diante das características dessa nova realidade social, considerada pós-moderna, tornando-se nada atraente e nada sedutora (JOBIM; SOUZA; CAMPOS, 2002). A escola, vivendo sua obsolescência, ainda resiste às mudanças e se constitui um arcabouço pensando no futuro, mas guiado pelo passado, como diz Contreras (2012) se valendo do conceito de Schön (1883), um ensino de racionalidade técnica, de concepção positivista que se alimenta do tradicionalismo, cuja materialização se pode ver delineada no currículo escolar, mais temporal que social e de compartimentação em disciplinas, com fronteiras bem definidas.

Apesar dessa clara tensão, o mundo não vai parar de girar a fim de que a escola possa se preparar para as mudanças; ele continua e continuará proporcionando transformações numa velocidade sem precedentes. Weil et al. (1993) falam que, depois da tese de Kuhn, vivem-se uma revolução científica e mudanças de paradigmas, embora ainda sejam poucos os esclarecimentos do que se trata isso, é urgente a necessidade da apropriação intelectual para construção de uma compreensão holística, como uma nova consciência para a nova era. Essa apropriação intelectual está no bojo conceitual que Fourez (2016) atribui à alfabetização científica.

Portanto, a alfabetização científica, no sentido conceitual trazido por Sasseron e Carvalho (2011), surge como caminho para propiciar aos sujeitos a leitura de mundo como um todo, e não por seus pedaços, mas cabe arguir: como trabalhá-la num contexto escolar ainda arraigado em uma estrutura tradicional, com um currículo engessado e um ensino compartimentado em disciplinas que não se conversam? Como falar em interdisciplinaridade nesse contexto?

Encontrar a resposta para esses dois questionamentos (e tantos outros de cunho semelhante), apontando solução para algo que há séculos se discute, não é tarefa fácil. Por essa razão, não se tem aqui essa pretensão, por dois entendimentos: primeiro, considerando a racionalidade dos fenômenos que se demonstraram não ser estáticos e por não ser sinônimo de eventos concretos, trouxe para o currículo mais problemas que soluções; segundo, como tudo se movimenta, as próprias respostas, como produto do pensamento, também se movem e se transformam a cada instante, então nenhuma resposta será acabada. Assim, pretende-se delinear este ensaio a partir do questionamento: É possível alfabetizar cientificamente um cidadão ou cidadã sem a perspectiva interdisciplinar? Se sim, ou se não, é o que se pretende discutir nessa importante temática para o contexto social contemporâneo, e nessa vertente fará pensar, também, qual é o papel da escola nesses tempos de negacionismo da ciência.

O objetivo principal aqui apresentado é refletir acerca dos conceitos principais da alfabetização científica e da interdisciplinaridade, se elas se entrelaçam e, sobretudo, se a alfabetização científica pode ser institucionalizada, no sentido de promover conhecimento no sujeito, independentemente da interdisciplinaridade, uma vez que ambas estão ligadas à ciência. Falando-se em educação científica, consideramos importante o esclarecimento de Chassot (CACHAPUZ et al., 2004) a esse respeito. Para o autor, ela deve “[...] dar prioridade à formação de cidadãos cientificamente cultos, capazes de participar ativamente e responsavelmente em sociedades que se querem abertas e democráticas”. Nesse sentido, ao se falar de alfabetização científica e interdisciplinaridade, não se estaria tratando da mesma coisa?

No entanto, qual a relevância dessa discussão? A dissociação do que a escola prega e o cotidiano dos estudantes, por si só, já é fundamental, “[...] as práticas escolares e as rápidas modificações espaciais e temporais que estão acontecendo no mundo atual” podem trazer a sensação “daquilo que se costuma denominar crise da escola.” (VEIGA-NETO, 2007, p. 102). Como falar em alfabetização científica se a escola vive dissociada da realidade? Como falar de interdisciplinaridade nesse contexto de crise da escola?

Não se pode ignorar que algo está errado; fechar os olhos a esse debate é ignorar os objetivos da interdisciplinaridade e da própria alfabetização científica. Virar as costas a tudo isso é persistir no analfabetismo científico, e o que se pretende aqui é justamente sublinhar a importância desse debate, mas deixando bem claro: o cerne desse assunto é buscar elementos que ajudem a refletir sobre a alfabetização científica e a interdisciplinaridade, abrindo portas para novos diálogos.

Cara ou coroa: o lado da alfabetização científica

Inicialmente, é bom lembrar que aqui se está tratando do ensino da ciência escolar, responsável por conduzir os estudantes ao processo de alfabetização científica, na tentativa de alcançar a formação de estudantes capazes de atuar consciente e criticamente na sociedade (SASSERON; CARVALHO, 2011). Fourez (2003) chama a atenção para a necessária distinção entre a alfabetização científica e as proezas científicas. Para o autor, no que diz respeito à inserção e ao desenvolvimento de cidadãos críticos para a sociedade, a responsável por esse processo é a alfabetização científica e técnica. Há, contudo, no ensino de Ciências, e que não se pode confundir com a alfabetização científica, a formação de especialistas, a qual o autor relaciona à proeza científica, encarregado pelo desenvolvimento da capacidade para resolver problemas complexos a partir de uma disciplina, como explicado por ele:

Os cursos de ciências que visam à formação de cientistas se ramificam em física, química, biologia. Os que visam a formação cidadã (e talvez a da maioria dos jovens) falam de ambiente, de poluição, de tecnologia, de medicina, de conquista espacial, da história do universo e dos seres vivos etc. São duas orientações diferentes (FOUREZ, 2003, p. 113).

É interessante, neste momento de discussão terminológica, observar Sasseron e Carvalho (2011), que sustentam que há uma variação de terminologias na didática das ciências usada igualmente para designar o conceito de uma formação consciente e crítica na sociedade, chamada por elas de formação cidadã. Elas argumentam ainda que alguns autores, por exemplo, Santos e Mortimer (2001), utilizam a expressão letramento científico; outros adotam o termo enculturação científica, a exemplo de Carvalho e Tinoco (2006); outros preferem o termo alfabetização científica, como Auler e Delizoicov (2001) e Chassot (2000). No entanto, a preocupação semântica reside na mesma ideia relacionada ao ensino das ciências, ou seja, “motivos que guiam o planejamento desse ensino para construção de benefícios práticos para as pessoas, a sociedade e o meio ambiente” (SASSERON; CARVALHO, 2011, p. 60). Contudo, as autoras alegam dificuldade de interpretação conceitual dessas terminologias advindas de outras línguas e que seja coerente com a língua portuguesa. Assim, preferem utilizar a expressão alfabetização científica, na alusão ao conceito de alfabetização definida por Freire (2011) como um processo que vai além da técnica e do jogo de palavras, é o despertar para uma consciência crítica da cultura e leitura do mundo, é abrir novos horizontes. Nessa linha, as autoras asseveram:

A alfabetização é mais que um simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de escrever e de ler. É o domínio dessas técnicas em termos conscientes. [...] Implica numa autoformação de que possa consultar uma postura interferente do homem sobre o seu contexto (SASSERON; CARVALHO, 2011, p. 61).

Concorda-se que a alfabetização transcende a capacidade de saber ler e escrever e deve levar o sujeito a organizar o pensamento de forma lógica e consciente (SASSERON; CARVALHO, 2011), de modo a contribuir com a construção da sociedade na qual está inserido. Entretanto, complementa-se ao que Cachapuz et al. (2004) aduzem, no sentido de que a alfabetização científica acontece desde cedo, a partir da curiosidade natural dos estudantes em conhecer o novo, nos acontecimentos da ciência e da tecnologia, explorando seus saberes do dia a dia.

Portanto, pode-se inferir que a alfabetização científica é capaz de humanizar a ciência e contextualizar seu ensino, despertando o interesse dos aprendentes, porém isso requer professores preparados em competência científica e didaticamente, o que é determinante para a transposição didática e para cativar os estudantes. É muito importante trazer aqui a visão desses autores acerca do currículo, para os quais os responsáveis por sua elaboração na Educação Básica não levam em conta:

[...] que o eventual entusiasmo dos alunos por estudos de Ciência não decorre nem naturalmente nem inevitavelmente, como que por contágio, dos sucessos científicos/tecnológicos. O caráter acadêmico e não experimental que marca em grau variável os currículos de Ciências e o seu ensino (nos ensinos básico e secundário) é, porventura, o maior responsável pelo desinteresse dos jovens alunos por estudos de Ciências. A Ciência que se legitima nos currículos está desligada do mundo a que, necessariamente, diz respeito (CACHAPUZ et al., 2004, p. 364).

Complementando Cachapuz et al. (2004), esclarece Fourez (2003, p. 45) que “o objetivo da Alfabetização Científica e Tecnológica não é uma série de conhecimentos particulares, mas um conjunto global que nos permite reconhecermo-nos no universo”. Portanto, é preciso adquirir a capacidade e desenvolver o senso crítico perante os acontecimentos do cotidiano. Para o autor, há uma contradição entre o ensino e os objetivos da alfabetização científica, e a escola continua fortemente voltada para o individual, sem levar em consideração que ele faz parte de um contexto social. A sala de aula seria o oportuno local para desencadear associações do indivíduo e esse seu próprio contexto social. Na sala de aula, apesar de ela ter uma identidade própria, é que se constrói uma cultura coletiva. Diz o autor:

[...] o sujeito da alfabetização científica não é mais o indivíduo isolado, mas o grupo. Da mesma forma, uma coletividade local pode ser “alfabetizada” em relação à construção de uma indústria poluidora, ou em relação a uma política frente às drogas. Isto significa que foi instaurada nesta comunidade uma cultura (formada de saber, saber-fazer e saber ser), permitindo uma discussão pertinente da situação. Nestas condições, um debate democrático torna-se possível (FOUREZ, 2003, p. 114).

Ainda explorando a ideia do autor, tem-se que a alfabetização científica, por si só, não dará conta de atender a seus próprios objetivos sem se desprender da cultura reducionista, cartesiano-newtoniana e mecanicista, responsável pela compartimentação da própria ciência. A insistência nessa fragmentação disciplinar em nada contribuirá para a percepção global do contexto, e os estudantes continuarão a olhar o universo de sua janela particular, com o conhecimento bem delineado.

Envolvidos por uma cultura materialista, que isola o sujeito do objeto, cada um em seu círculo individual compreenderá o universo como se funcionasse em frações sem correlação, e cada qual individualmente faz sua parte sem noção do todo, bem exemplificado por Weil et al. (1993), como se o pensamento só coubesse aos filósofos; o cálculo aos matemáticos; a martelada aos marceneiros; o pão ao padeiro; o sentimento ao poeta; o delírio aos místicos; a comprovação aos cientistas; e o ensino aos professores. Essa situação, segundo os autores, é uma das mais perversas consequências da fragmentação epistemológica.

Nessa perspectiva de construção do conhecimento coletivo é importante trazer a afirmação de Fourez (2003, p. 115):

Há, portanto, em relação à alfabetização científica e técnica, uma polarização entre duas atitudes educativas: a que promove a formação do indivíduo e reforça o seu poder, e a que visa a fortificar a cultura cidadã das coletividades. Uma não anda sem a outra, mas pode-se perguntar se ocorre com frequência que um ensinamento seja pensado com o objetivo de criar uma cultura de grupo que capacite uma coletividade para deliberar mecanismos sociais e políticas de decisões científicas e técnicas (ou outros tipos de decisões que implicam ciências ou tecnologias).

Considerando esse pressuposto, não é possível pensar a alfabetização científica a partir do isolamento disciplinar, tudo depende de tudo. Ademais, a construção do saber coletivo não se dá na transmissão de um indivíduo para outro, mas da interação de todo um sistema interdependente, formado por uma tríade indissociável: matéria-vida-consciência (WEIL et al., 1993). Para esses mesmos autores, “o divórcio entre a ciência e consciência encontra-se na base da decadência ética e institucional do Ocidente” (WEIL et al., 1993, p. 139).

Nessa perspectiva, Fourez (2003) discorre sobre a valorização da cultura cidadã das coletividades. Moraes (1997) lembra das redes de conhecimento, as quais implicam um sistema aberto, capaz de criar, recriar e transformar o próprio conhecimento, sem hierarquização, e nenhuma ciência é mais importante que outra, muito menos uma disciplina se sobrepõe a outra. Sua criação pressupõe, entre outros atributos, a flexibilidade, a cooperação e a interatividade. Nesse mesmo sentido, quando Fazenda (2011) reflete acerca da interdisciplinaridade, assinala a necessidade da reciprocidade e da mutualidade e que todo conhecimento é hierarquizado na mesma importância. Assim, alfabetização científica e interdisciplinaridade estão intimamente ligadas nesse conceito de rede, pois se alimentam dos mesmos elementos que constituem a construção dos saberes para além das fronteiras que delimitam as disciplinas. A alfabetização científica está para o ensino das ciências, assim como a interdisciplinaridade está para a educação, logo estão imbricadas.

Cara ou coroa: o lado da interdisciplinaridade

Desde as revoluções industriais, o mundo passa por transformações cada vez mais aceleradas, o que não significa para melhor. Para Santomé (1998) a partir da implantação do fordismo e posteriormente do taylorismo, tem-se intensificado a exclusão de trabalhadores e trabalhadoras dos processos decisórios, impedindo a democratização dos processos de produção. Instaura-se uma concepção de valorização dos interesses do capital considerando um discurso de desqualificação da educação. Para os operários, uma rasa educação técnica era suficiente, mas para a minoria, depois da exclusão dos operários, que se tornaram responsáveis por pensar a produção geral, era necessária uma boa escolarização. Isso reforçou o sistema social piramidal e hierarquizado, no qual, no topo, uma minoria controla a base dessa pirâmide formada pela grande maioria da massa trabalhadora, sem possibilidade de opinar sobre as decisões de cima da pirâmide,

[...] estas estratégias destinam-se também a privar a classe trabalhadora de sua capacidade de decisão sobre o próprio processo produtivo de trabalho, sobre o produto, as condições e o ambiente de trabalho. [...] Foi-lhe negada a responsabilidade de intervir em questões tão importantes e humanas como o que deve ser produzido, por que, para que, como, quando etc. (SANTOMÉ, 1998, p. 12).

Santomé (1998) lembra que esse processo histórico ligado à economia teve impacto muito forte nos sistemas educacionais. As escolas passaram a reproduzir todas as distorções do sistema produtivo. Os conteúdos escolares eram trabalhados de forma isolada e sem nexo uns com os outros, dificultando a reflexão e a crítica à realidade. Dessarte, a escola “traía sua autêntica razão de ser: preparar cidadãos e cidadãs para compreender, julgar e intervir em sua comunidade, de forma responsável, justa, solidária e democrática” (SANTOMÉ, 1998, p. 14). Assim, a escola, em virtude dessa cultura que perdurou ao longo dos anos, não consegue dar resposta no mesmo tempo requerido pelo contexto social contemporâneo, mergulhando numa crise, sobre a qual comentamos no início deste texto.

Outra situação ainda reflexo desse processo histórico foi o reforço dos procedimentos técnicos e da especialização científica, fruto da fragmentação da unidade do conhecimento de ciências (WEIL et al., 1993). Essa mesma situação justifica a dificuldade de desenvolver estudantes alfabetizados cientificamente, confirmado pelo seu desinteresse pelo ensino de ciências, sobretudo pela abordagem mnemônica empregada nessas aulas, “fazendo com que os alunos não percebam as contribuições que determinado conteúdo propicia em seu cotidiano diante das necessidades de solucionar problemas na comunidade em que vivem” (SANTOS et al., 2013, p. 15395).

Segundo esses autores, as aulas de ciências, no formato que se apresentam, pouco despertam o interesse dos estudantes para aquisição do conhecimento científico. Na mesma linha, os autores relacionam mais uma condição não promissora para o ensino de ciências: a formação dos professores. No tocante à formação inicial, dizem ser deficitária, e a formação continuada não é estimulada entre eles, fatores que contribuem para tal fracasso. O reflexo na sala de aula são conteúdos superficiais que não conduzem os estudantes a uma associação com seu cotidiano (SANTOS et al., 2013).

Realizar alfabetização científica sem pensar na interdisciplinaridade incorre-se no mesmo erro de querer definir os limites espaciais e intransponíveis do ensino nas disciplinas como Física, Biologia ou Química, fechadas em si, cuja postura deontológica do professor o leva a crer que sua matéria é um baú fechado, sem necessidade de fazer correlação entre todas as outras e com o contexto histórico, social, econômico e até mesmo espiritual dos estudantes.

Diante dessa situação e da incapacidade de a escola revertê-la, os professores, preocupados com o fracasso do sistema educacional, quase sempre, por esforços próprios, recorrem a inúmeros recursos pedagógicos com intuito de dinamizar suas aulas. Entre eles, buscam na interdisciplinaridade um caminho para dar resposta a suas angústias e corrigir a anomalia educacional. No entanto, interpretam-na de maneira errônea e sem compreensão de sua natureza. Isso ocorre pelo fato de ela ser de entendimento complexo em razão de seus conceitos polissêmicos e dimensões voltadas para o profissional, o científico e o escolar, portanto são naturais a incompreensão e sua aplicação (FAZENDA, 2011).

Um dos grandes problemas da interdisciplinaridade escolar é o modismo para corrigir os males causados pela dissociação do saber (FAZENDA, 2011). Em seu nome promove-se a panaceia pedagógica, com práticas intuitivas, sem observar adequadamente seus fundamentos. Embora a afirmação de Fazenda (2012, p. 13) de que é impossível a construção de uma única teoria, “[...] é necessário a busca ou o desvelamento do percurso teórico pessoal de cada pesquisador que se aventou a tratar as questões desse tema”. Não se pode observar a interdisciplinaridade pela ótica da disciplinaridade. A disciplinaridade refere-se a especificidades do conhecimento, enquanto a interdisciplinaridade diz respeito à integração dessas especificidades. Vale lembrar que dessa interação disciplinar, a interdisciplinaridade, surgiram novos campos do conhecimento, como a bioquímica, a neurofisiologia, a física quântica, entre outras (D’AMBROSIO, 2016).

Sobre a interdisciplinaridade escolar, ou pedagógica, ou curricular, ou didática, Fazenda (2008) alerta sobre a necessidade de um profundo conhecimento dos conceitos de escola, currículo ou didática. Compreender o percurso histórico desses aspectos “requer profunda pesquisa nas potencialidades e talentos dos saberes requeridos ou a requerer de quem as estiver praticando ou pesquisando” (FAZENDA, 2008, p. 21).

Não obstante a interdisciplinaridade nasça da perspectiva piagetiana da cooperação entre as disciplinas, nesse sentido Lenoir (2008) não apenas concorda, mas também amplia a discussão, asseverando que a razão da existência da própria interdisciplinaridade reside na necessidade interacionista entre as disciplinas em uma ação recíproca. Fazenda (2011) comunga da mesma afirmação, mas alerta que essa interação ultrapassa o pensamento raso no âmbito de uma integração de conteúdo e métodos, e deve se projetar basicamente no nível de integração dos conhecimentos parciais e específicos para uma visão de conhecimento mais global. Seu entendimento por interação “é condição de efetivação da interdisciplinaridade. Pressupõe uma integração de conhecimentos visando novos questionamentos, novas buscas, enfim, a transformação da própria realidade” (FAZENDA, 2011, p. 12).

Pelo prisma de Lenoir (2008), a interdisciplinaridade pode ser caracterizada quanto a sua finalidade em: científica, escolar, profissional ou prática, organizadas pelas modalidades: de pesquisa, do ensino e da aplicação. Para o autor, qualquer que seja a intencionalidade de operacionalização, ela poderá ser investigada (pesquisa), professada (ensino) ou praticada (aplicação), mas sempre é importante não confundir o caráter científico e o escolar. Em linhas gerais, um conduz à produção de novas disciplinas a partir de diversos processos e às realizações técnico-científicas; outro leva ao estabelecimento de ligações de complementaridade entre as matérias escolares, e, “no domínio escolar, a interdisciplinaridade escolar pode ser, portanto, objeto de pesquisa, ser ensinada e praticada” (LENOIR, 2008, p. 50).

Duas faces, uma única moeda

Retoma-se a definição de alfabetização científica trazida por Sasseron e Carvalho (2011), como o caminho viável para capacitar e desenvolver o sujeito para uma postura crítica em seu contexto social e sua emancipação cidadã, inclusive para conceituar emancipação cidadã. Elas tomam a concepção de freiriana, estabelecendo na consciência uma autoformação capaz de mudar-se e mudar seu entorno. Chassot (2003, p. 94) amplia ainda mais essa elucidação:

Assim como se exige que os alfabetizados em língua materna sejam cidadãs e cidadãos críticos, em oposição, por exemplo, àqueles que Bertolt Brecht classifica como analfabetos políticos, seria desejável que os alfabetizados cientificamente não apenas tivessem facilitada a leitura do mundo em que vivem, mas entendessem as necessidades de transformá-lo - e, preferencialmente, transformá-lo em algo melhor. Tenho sido recorrente na defesa da exigência de que com a ciência melhorarmos a vida no planeta, e não a tornar mais perigosa, como ocorre, às vezes, com maus usos de algumas tecnologias.

Como mencionado por Morin (2013), Fazenda (2011) e Lenoir (2008), é preciso superar a compartimentação e a fragmentação do saber para pensar “o conjunto de conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem” (CHASSOT, 2000, p. 19). Entretanto, a afirmação do autor destacada ipsis litteris refere-se ao conceito que ele determina para a alfabetização científica, enquanto os outros citados no início deste parágrafo estão fazendo relação com a interdisciplinaridade.

Propositalmente, fez-se essa mescla para chamar a atenção da tênue diferença de significados. A interdisciplinaridade é a pavimentação de um caminho (não confundir com metodologias) que pode promover a educação científica, sem as delimitações disciplinares, e esta, por sua vez, a alfabetização científica. Assim, a alfabetização científica se encarrega de conduzir o sujeito à compreensão do que é ciência e de sua aplicabilidade relacionada ao melhoramento de sua própria vida, como também dos impactos negativos (por exemplo, as más tecnologias empregadas, fruto da ciência) no meio ambiente, aplicando-lhe a percepção de mundo que o ajudará na tomada de decisões (CHASSOT, 2003).

Fourez (1995) conceitua a interdisciplinaridade com um exemplo bem claro, tratando-se do exame dos problemas de saúde. O autor sustenta que a Biologia não dá conta das demandas de saúde existentes, necessitando ampliar o enfoque para a Psicologia, Sociologia, Ecologia etc., ou seja, para estudar problemas da saúde no cotidiano são exigidos múltiplos enfoques, os quais têm uma bifurcação.

A partir desse conceito estabelecido por Fourez (1995) e Lenoir (2008), explicam-se as duas atitudes da interdisciplinaridade: uma tem perspectiva de pesquisa de uma síntese conceitual (acadêmica), cujo objetivo é a construção de um conceito no horizonte da unidade do saber, de unir todo o saber científico, guiado pela preocupação de ordem filosófica e epistemológica; a segunda, por sua vez, diz respeito à perspectiva instrumental, ou seja, resolver problemas do cotidiano baseado nas práticas individuais, valendo-se dos saberes funcionais, capaz de responder aos problemas sociais ansiados pela sociedade contemporânea. Considera-se relevante o recorte da própria explicação de Fourez (1995, p. 136-137) sobre a diferença das duas perspectivas:

[...] a primeira, ao pretender relacionar diferentes disciplinas em um processo suspostamente neutro, “mascara” todas as questões “políticas” próprias à interdisciplinaridade: a que disciplinas se atribuirá maior importância? Quais serão os especialistas mais consultados? De que modo a decisão concreta será tomada? E assim por diante. Pelo contrário, na segunda perspectiva, a interdisciplinaridade é vista como uma prática essencialmente “política”, ou seja, com uma negociação entre diferentes pontos de vista, para enfim decidir sobre a representação considerada como adequada tendo em vista a ação. Torna-se evidente, então, que não se pode mais utilizar critérios externos e puramente “racionais” para “mesclar” as diversas disciplinas que irão interagir. É preciso aceitar confrontos de diferentes pontos de vista e tomar uma decisão que, em última instância, não decorrerá de conhecimentos, mas de um risco assumido, de uma escolha finalmente ética e política.

Como mencionado, a alfabetização científica só é possível, se há ensino de Ciências que contemple a complexidade do conhecimento como um todo, saindo do estreitamento disciplinar para a prática, como disse Fourez (1995), multifacetada. Assim, manifestando preocupação, o autor publicou um artigo intitulado Un modèle pour un travail interdisciplinaire, pela revista ASTER, n. 17, em 1998, cujo trabalho foi traduzido por Paulo Ricardo da Silva Rosa, em 2016. Na apresentação da tradução, aborda a metodologia contemplando a interdisciplinaridade para a educação básica, com o pretexto de que a aproximação das disciplinas, por si só, não é capaz de trazer à tona a realidade complexa. Para tanto, é apresentada a construção de uma ilha de racionalidade interdisciplinar (FOUREZ et al., 2016).

Como se pode entender, a alfabetização científica e a interdisciplinaridade são faces da mesma moeda, cada uma com sua conceituação e objetivos próprios. Contudo, levando em consideração a fragmentação e a compartimentação dos saberes, a alfabetização científica sem a interdisciplinaridade pouco ou nada conseguiria contemplar de seus objetivos. Na vertente humanista, de conduzir os estudantes a uma compreensão holística do mundo, tanto no aspecto técnico quanto científico, construindo uma postura autônoma em seu contexto social contemporâneo. Na vertente social, democratizando o debate tecno científico a partir da aquisição, por parte dos estudantes, de conhecimentos suficientemente críticos. Por fim, da vertente ligada à economia e à política, participando de forma consciente da produção de riquezas e do potencial tecnológico e econômico (FOUREZ, 2003).

Conclusão

Cabeça cheia, mente vazia. Essa é uma frase do jargão popular, a qual não está atribuída a nenhuma autoria e que retrata bem nossas escolas. Ainda se comportando como nos tempos passados e ignorando a modernidade atual, tem currículo fragmentado e centrado no conteúdo. Há muitas disciplinas, cada qual com seus próprios objetivos, sem fazer relação com outras, descompassadas e organizadas, segundo um padrão linear, cujo principal objetivo é atender à demanda do currículo vigente, passando os conteúdos que nele está determinado. Dessarte, os estudantes assimilam informações, utilizando como parâmetro apenas a balança do tempo para dar conta de tudo na equivalente série, ano, bimestre, ciclo. Como diz Santomé (1998, p. 103), “isso ocasiona o fim originário da educação como conhecimento, compreensão de mundo e capacidade para viver ativamente no mesmo”.

O fato é que o currículo das escolas responde a uma ordem econômica organizada para cumprir o discurso de grupos empresariais queixosos do sistema educacional que não prepara as pessoas para atender à necessidade do mercado (SANTOMÉ, 1998). Esse axioma é utilizado para manter a escola e o currículo paralisados, focando preparar homens e mulheres mais produtivos para o sistema econômico, sem permitir escolhas. Portanto, as disciplinas e as áreas dos saberes isoladas cumprem um papel importante, cada uma seguindo um caminho vocacionado por suas aptidões, solicitadas pelo mercado e aprendendo de forma inconsciente.

Para superar esse problema da fragmentação disciplinar, na esperança de dar uma resposta aos anseios da sociedade e da carência emocional dos próprios estudantes, muitos dos professores recorrem a recursos didáticos e pedagógicos que lhes ajudem a romper com essa discrepância e buscam na interdisciplinaridade um caminho que consideram viável para minimizar os efeitos danosos da compartimentação disciplinar do currículo. Entretanto, isso tem dado à interdisciplinaridade uma má compreensão do seu verdadeiro sentido, passando a ser entendida como uma mera junção de conteúdo ou métodos, sendo uma visão reducionista relacionada à integração disciplinar.

Fazenda (2011) esclarece que a interdisciplinaridade, antes de tudo, é uma atitude ousada em direção às mudanças de hábitos, porém reconhece que não há tantas pesquisas voltadas à sua implementação, pois os conteúdos são considerados mais importantes. A autora explica ainda que a integração disciplinar é uma etapa da interdisciplinaridade, mas ela é fator de transformação e de mudança social, o que não acontece com a integração disciplinar, cuja preocupação “seria ainda com o conhecer e relacionar conteúdos, métodos, teorias ou outros aspectos do conhecimento”. Nesse sentido, “[...] permanecer apenas nela seria manter as coisas como elas se apresentam, embora de uma forma organizada” (FAZENDA, 2011, p. 83). Logo, a interdisciplinaridade foge desse conceito e seu aspecto integrador vai muito além do disciplinar.

A interdisciplinaridade não está diretamente preocupada com o conteúdo, mas com a efetividade do ensino e as razões da educação, a qual, por sua vez, está ligada ao registro, à produção, à aquisição e à difusão do conhecimento. Sobre os conteúdos escolares e aquisição do conhecimento, no escopo deste ensaio, a preocupação reside na alfabetização científica, pois a crítica à sala de aula é o fato das abordagens de conteúdos parciais, muitas vezes irrelevantes e desconectadas da realidade do contexto dos estudantes, dificultando, portanto, a formação de cidadãos e cidadãs críticos capazes de transformar-se e de interferir em seu contexto social.

Dessarte, para Chassot (2000, p. 19), a alfabetização científica significa “o conjunto de conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem”. Para Fourez (1995, p. 11), “um tipo de saber, de capacidade ou de conhecimento e de saber-ser que, em nosso mundo técnico-científico, seria uma contraparte ao que foi a alfabetização no último século”. Sasseron e Carvalho (2011) buscam definir alfabetização científica, adequando-a ao contexto da literatura brasileira, primeiro esclarecendo o conceito de alfabetização, associando ao mesmo entendimento de Paulo Freire, ou seja, alfabetizar é mais que a simples aquisição do saber ler e escrever, é a capacidade cognitiva de raciocínio lógico das ideias, tornando um sujeito crítico.

O termo tem diferentes definições a depender do autor, mas todas relacionadas ao interesse, à interação e à compreensão das ciências. No que tange à educação escolar, almeja-se alcançar com o ensino de ciências conduzir os estudantes para que sejam alfabetizados cientificamente. Como se nota, a fragmentação disciplinar torna-se um empecilho tanto para a alfabetização científica quanto para a interdisciplinaridade, por não permitir a construção do conhecimento de forma holística, e ambas necessitam do caminho da unidade do saber para desenvolver cidadãos e cidadãs capazes de mudar sua própria realidade e a do meio onde estão inseridos.

A interdisciplinaridade é uma atitude, sobretudo, de rompimento com a velha ideologia que constitui a pedagogia, de modo a permitir que estudantes adquiram autonomia crítica em face do mundo e da alfabetização científica. O conjunto de saberes que orientam o raciocínio lógico, associando-os ao cotidiano dos estudantes para construir o conhecimento necessário que os torne sujeitos ativos dentro da sociedade, poderia, pois, a alfabetização científica cumprir o seu papel de forma isolada da interdisciplinaridade? No nosso entendimento, no caso do ensino de ciências, eles se complementam e, considerando a compartimentação do currículo escolar. Sendo assim, dificilmente a alfabetização científica conseguiria lograr êxitos sem a perspectiva da interdisciplinaridade.

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Recebido: 01 de Abril de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

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