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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-36 

Artigos de Demanda Contínua

Representações sociais de alunos com distorção idade-série sobre o Ensino Médio noturno

Representaciones sociales de estudiantes com distorsión de edad-grado sobre la escuela secundaria nocturna

Antonio Serafim Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-2608-7357

Tainá Silva Candido Toscan2 
http://orcid.org/0000-0002-8441-9233

1Doutorado em Educação. Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, SC, Brasil. E-mail: asp@unesc.net.

2Mestre em Educação. Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, SC, Brasil. E-mail: tainacandido1@hotmaill.com.


RESUMO

Este trabalho relata o estudo realizado em uma escola pública estadual do sul catarinense, com o objetivo de compreender as representações sociais do Ensino Médio noturno de alunos em condição de distorção idade-série. Os procedimentos utilizados para coleta de dados foram a entrevista semiestruturada e o grupo focal. Os dados obtidos nos levaram a inferir que a situação econômica vulnerável dos alunos, associada às questões que envolvem o currículo escolar, contribui para a produção do quadro de distorção idade-série. Evidenciamos, nas falas dos estudantes, a representação da escola como via de mobilidade social, centrada na lógica de mercado.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino Médio noturno; Representações sociais; Distorção idade-série; Trabalho

RESUMEN

Este artículo informa sobre un estudio realizado en una escuela pública estatal en el sur de Santa Catarina, con el objetivo de comprender las representaciones sociales de la escuela secundaria nocturna para estudiantes en condiciones de distorsión de edad. Los procedimientos utilizados para la recopilación de datos fueron la entrevista semiestructurada y el grupo focal. Los datos obtenidos nos llevaron a inferir que la situación económica vulnerable de los estudiantes, asociada con problemas relacionados con el currículo escolar, contribuye a la producción de la imagen de distorsión por grado de edad. En las declaraciones de los estudiantes, destacamos la representación de la escuela como una forma de movilidad social, centrada en la lógica del mercado.

PALABRAS CLAVE: Escuela secundaria nocturna; Representaciones sociales; Distorsión de grado de edad; Trabajo

ABSTRACT

This paper reports the study conducted in a state public school in southern Santa Catarina, with the objective of understanding the social representations of evening high school students in conditions of age-grade distortion. The procedures used for data collection were semi-structured interviews and the focus group. The obtained data led to the conclusion that the vulnerable economic situation of the students, associated with the school curriculum issues, triggers the age-grade distortion framework. In the students' statements was evidenced the representation of the school as a means of social mobility, focused on the logic of the market.

KEYWORDS: Evening High School; Social representations; Age-grade distortion; Job

Introdução

A preocupação com questões envolvendo a distorção idade-série é histórica e atual. Em notícia de julho de 2018, o site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) divulga, com base no Censo Escolar (principal instrumento de coleta de informações da Educação Básica no Brasil), que a rede pública tem maior número de alunos com idade acima da esperada para a série a que lhe corresponde.

Os dados fornecidos pelo Censo de 2018 (INEP, 2019) comprovam que, além da considerável queda nas taxas de matrículas na Educação Básica, especialmente no Ensino Médio da rede pública, as taxas de distorção idade-série continuam preocupantes, como demonstra a tabela:

Tabela 1: Taxa de distorção idade-série, segundo sexo - 2018 

Sexo ETAPA DE ENSINO E REDE
Ensino Fundamental Ensino Médio
Total Pública Privada Total Pública Privada
Total 17,2% 19,7% 4,9% 28,2% 31,1% 7,4%
Masculino 20,7% 23,6% 6,1% 32,2% 35,4% 9,2%
Feminino 13,4% 15,5% 3,7% 24,5% 27,1% 5,7%

Fonte: INEP (2019).

Comumente, os determinantes da distorção idade-série são: entrada tardia na escola, evasão e/ou repetência. De acordo com as informações fornecidas no site do INEP, o indicador da taxa de distorção idade-série leva em consideração o percentual de alunos que têm dois ou mais anos de idade acima do recomendado para cada série. Evidente está, nos dados da tabela acima, que a percentagem de alunos em situação de distorção idade-série é eminente na etapa do Ensino Médio. Este fato, de certo modo, pode ser atribuído às situações de insucesso escolar, em muitos casos, vividas desde o Ensino Fundamental, agravado pelo ingresso precoce dos jovens no mercado de trabalho, por necessidade econômica ou mesmo pelo desejo pessoal de independência, que passa a se intensificar no período da adolescência. A dificuldade de conciliar trabalho e estudo pode não se constituir fator determinante para todos os alunos integrantes do quadro distorção idade-série, mas sua contribuição não pode ser subestimada ou desconsiderada.

É importante, nesse caso, considerar também que tal situação pode desencadear-se pela distância contextual da proposta pedagógica da escola em relação aos alunos, ou ainda pelo caráter opcional do Ensino Médio, que passa a ser obrigatório a partir da Emenda Constitucional n. 59/2009 (BRASIL, 2009), ainda em implantação, apesar do limite de 2016 indicado para sua efetivação/universalização, conforme o Plano Nacional de Educação 2014-2024, que em sua meta 3 assim se propõe: “elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento)” (BRASIL, 2015).

Estes dados iniciais, dentre outros, nos motivaram a empreender o estudo, que buscou compreender as representações sociais dos próprios alunos do Ensino Médio em situação de distorção idade-série.

Por representações sociais entendemos, com Moscovici (2015), o processo de construção da realidade, ao mesmo tempo em que são produtos desta. São, portanto, a forma de pensar e interpretar o mundo. Conforme o autor, quando estudamos as representações sociais, estudamos o ser humano enquanto questiona e busca responder seus questionamentos. Em outras palavras, criamos as representações com a finalidade de tornar familiar o não familiar, de tornar comum e real o incomum.

Segundo Guareschi (1996), as representações sociais amenizam o excessivo valor atribuído ao conhecimento científico pela acolhida do conhecimento do senso comum, ao explicar a relação entre o individual e o social, por sua preocupação em salientar a indissolubilidade entre o interno e o externo, a consciência e a realidade.

Desse modo, a pesquisa3 realizada centrou-se na seguinte questão-problema: quais as representações sociais do Ensino Médio noturno de alunos em condição de distorção idade-série? Em vista disso, buscamos compreender as representações sociais do Ensino Médio noturno de alunos em condição de distorção idade-série (objetivo geral).

Inicialmente, fez-se um levantamento das escolas públicas estaduais do Município de Criciúma/SC, que oferecem Ensino Médio. De posse da listagem, recorremos ao site do INEP para obter a relação das escolas com seus respectivos indicadores de rendimento do IDEB dos últimos anos, optando pelas instituições com menor IDEB, pela hipótese destas apresentarem maior número de alunos com distorção idade-série. Dentre as doze escolas, duas delas apresentaram números abaixo da média em relação às demais. Decidimos, então, visitar tais escolas, que nos disponibilizaram a relação dos alunos do Ensino Médio, contendo informações relativas à situação de distorção idade-série. Após a análise dos resultados obtidos, resolvemos realizar a pesquisa somente na escola, que apresentou maior número de alunos de Ensino Médio com distorção idade-série no período noturno.

Como procedimento metodológico, utilizamos a entrevista semiestruturada e o grupo focal, tendo em vista os objetivos da pesquisa em questão. No que se refere ao objeto de estudo, para definir os alunos do Ensino Médio participantes, efetuamos levantamento diretamente na documentação disponibilizada pela escola selecionada, identificando quais deles se encontravam em situação de distorção idade-série, tomando como base suas datas de nascimento.

Por fim, importa dizer que, após levantamento empírico das representações sociais sobre o Ensino Médio noturno dos estudantes com distorção idade-série, um dos pontos que se destacou foi a estreita relação do ensino noturno com o trabalho. Assim, além do destaque às políticas educacionais concernentes à permanência, repetência, evasão e distorção idade-série no nível de ensino em apreço; a descrição/análise das representações sociais dos alunos participantes da pesquisa, reservamos espaço neste trabalho para o tema da educação e trabalho no contexto do Ensino Médio.

O aluno do Ensino Médio noturno

Geralmente, os jovens do ensino noturno vêm marcados por experiências de fracasso durante sua trajetória escolar. Em seu estudo, Souza (2016) evidencia que, a grande maioria desses estudantes retorna após um percurso de interrupções intermitentes e/ou de abandono. As experiências malsucedidas geradoras deste processo, acabam por influenciar na forma como veem a escola.

Conforme Krawczyk (2011), no primeiro ano do Ensino Médio os jovens sentem-se orgulhosos por vencerem a barreira de escolaridade de seus pais ao conseguirem superar os desafios e chegar a este nível de ensino. No entanto, perder o entusiasmo pelos estudos é comum entre os jovens, principalmente no segundo ano, em que se inicia o desencanto ocasionado, geralmente, pelas dificuldades no processo de ensino. No terceiro ano, novos desafios surgem e os alunos acabam se confrontando com o frustrante fato de que ingressar na faculdade não é uma possibilidade real de conseguir o emprego tão desejado.

Muitos desses jovens vivenciam e/ou vivenciaram situações de fracasso e um dos fatores atribuídos à situação do estudante desse turno está relacionado a sua condição socioeconômica, visto que, muitas vezes, provêm de um contexto social em que a escola não faz parte de seu capital cultural, isto é, de sua experiência familiar (KRAWCZYK, 2011). Por não receberem motivação suficiente, tanto na família, como na escola, acabam desistindo de estudar. Em pesquisa relacionada ao tema, Forquin (1995) já evidenciava que a origem social influencia nas questões envolvendo a continuidade dos estudos. Para o autor, são os estudantes das classes populares que de forma intensiva mais vivenciam a experiência do chamado fracasso escolar.

Nessa mesma direção, Pereira (2014), em estudo realizado numa escola pública gaúcha, identificou que grande parte dos alunos que compõem os números relacionados ao abandono, especificamente no turno da noite, é proveniente de famílias pobres. Segundo o autor, os jovens, em condição de distorção idade-série, após tentativa frustrada de retorno à escola, abandonam mais de uma vez o ensino, continuando a “engrossar o contingente de mão de obra não qualificada, quando não dos desempregados” (PEREIRA, 2014, p. 235).

Esses jovens, ao retornar, muitas vezes tardiamente, optam pelo ensino noturno, tendo em vista terem ingressado ou pretenderem ingressar no mercado de trabalho (SOLER, 2004). De acordo com Souza (2016), quando o aluno faz o movimento de retorno aos estudos acaba se deparando com um contexto que não o motiva a permanecer na escola. Um dos fatores dessa desmotivação está demonstrado na pesquisa realizada por Caporalini (1991), na década de 1990, ao comprovar que os sistemas de ensino comumente reproduzem a proposta pedagógica da escola diurna, elaborada para crianças, não levando em consideração que o público noturno é composto por jovens e/ou adultos.

Essa evidência vai ao encontro das conclusões de Kuenzer (1997), que também na década de 1990, em estudo com alunos trabalhadores do 2º grau4 de então, apreende, através da perspectiva dos alunos, a inadequação da prática docente aos interesses e necessidades do aluno trabalhador, uma vez que a escola não considera sua concepção de mundo, o saber apropriado produzido no trabalho.

Outro ponto a destacar refere-se ao estudo no período noturno. Além de os jovens terem que driblar o cansaço ocasionado pelo trabalho e o estudo, os professores também, na maioria das vezes, estão no seu terceiro turno de trabalho e, muitas vezes, cansados para propor metodologias alternativas para motivar e garantir o protagonismo dos alunos no processo de ensino-aprendizagem (KRAWCZYK, 2011).

Em suma, a falta de contextualização e especificidade no atendimento aos estudantes do período noturno, face suas necessidades cotidianas, que os diferenciam dos discentes do diurno, somada às lacunas de aprendizagens oriundas de reprovação e/ou abandono da escola, que os colocam na condição de aluno com distorção idade-série, contribuem, como salienta Souza (2016), para agravar a desmotivação pelas aulas.

Educação e trabalho no contexto do Ensino Médio

A pesquisa por nós desenvolvida, nos permitiu elucidar a estreita relação entre escola e trabalho. Sabe-se que, embora faça parte do processo de desenvolvimento dos jovens a busca por independência, experiência/formação no mercado de trabalho, no contexto do Brasil, grande parcela se insere por necessidade financeira. Muitos deles, envoltos em carga horária excessiva de atividade, não conseguem driblar/conciliar a vida concomitante de estudante e trabalhador (CORROCHANO, 2014).

Nesse movimento, Kuenzer (1995) tem demonstrado desde a década de 1990 que a visão da classe trabalhadora sobre a escola, incluindo os alunos, é de local de acesso ao saber social como instrumento de melhor compreensão do mundo e oportunidade de melhores condições de vida. Há, no entanto, que se questionar: quais os sentidos que atribuem ao conhecimento escolar?

Assim sendo, a aproximação entre escola e mercado de trabalho com a parceria, que se instituiu entre Estado e iniciativa privada para atender à indústria em desenvolvimento, promoveu reflexões sobre a formação geral versus formação profissional (KRAWCZYK, 2009). Essa dualidade faz parte do histórico do Ensino Médio, que contempla, ou deveria contemplar, o ensino propedêutico e a capacitação profissional. Esta última ganhando, muitas vezes, maior status que a formação geral. No caso da escola pública, no mínimo preocupante.

A implantação de questões envolvendo o mercado de trabalho no setor educacional ocorreu na tentativa de reorganizá-lo em busca de melhor qualidade baseada no princípio da racionalidade econômica, enfocando a eficiência e eficácia (SANTOS; SILVA, 2013). Nesse contexto, o papel da escola passa a ser o de formar o profissional polivalente, que, em muitos casos, amplia a capacidade do trabalhador para novas tecnologias e funções, sem, necessariamente, haver mudanças significativas nesta capacidade e sem uma compreensão da totalidade (KUENZER, 2000).

Ferreti e Silva (2017) consideram que desde as mudanças e novas exigências relacionadas ao perfil do trabalhador decorrentes do processo de reconfiguração do capitalismo, o setor empresarial passou a se interessar pelas questões educacionais, especificamente no Ensino Médio. Assim sendo, Motta e Frigotto (2017) destacam que a educação, nessa lógica, passa a ser considerada fator importante referente ao crescimento econômico e o investimento no capital humano se torna fundamental no sentido de potencializar sua produtividade.

A discussão sobre o investimento no capital humano fundamentada nas necessidades do mercado revela uma determinada concepção de formação voltada para o desenvolvimento econômico. O conhecimento, neste caso, passa a ser selecionado a partir de sua utilidade para tal necessidade. Portanto, pensados a fim de “potencializar a competitividade nos mercados local e internacional, ou para criar condições de empregabilidade, isto é, desenvolver habilidades e competências que potencializem a inserção do indivíduo no mercado de trabalho.” (MOTTA; FRIGOTTO, 2017, p. 358). Nesse caso, a formação humana é articulada à formação da força de trabalho.

Apesar de o saber oficial ser o saber da classe dominante, influenciado pelas relações sociais de produção, temos a convicção, assim como Kuenzer (1995), de que a escola é vital para a classe trabalhadora, uma vez que é alternativa concreta e possível de acesso ao saber e pode se transformar em território de luta em favor da democratização da vida humana. No entanto, cabe ressaltar que isso só será possível na medida em que o saber que ela ensina seja questionado e ressignificado.

Um ponto de partida primordial seria a escola ouvir o aluno trabalhador em suas necessidades, desejos, anseios e expectativas na elaboração coletiva e vivência do projeto pedagógico. A escola precisa, nesse sentido, aprender a ouvi-lo e refletir sobre a questão da relação escola e trabalho, da problemática que envolve o próprio aluno trabalhador e seu saber.

Kuenzer (2017), no entanto, suspeita que os itinerários formativos, preconizados na reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017), que estabelece as novas diretrizes e bases para este nível sob a justificativa de flexibilização das trajetórias curriculares, contemplem as questões que envolvem o aluno trabalhador. Conforme Ferreti e Silva (2017, p. 398), a discussão que permeia os eixos norteadores da formação na BNCC tende a promover concepções e proposições que a aproximam da perspectiva do desenvolvimento de competências e do individualismo, desconsiderando expressões como “protagonismo”, “aprender a aprender”, “competências cidadãs”, “projeto de vida” e “vocação”.

Além desses aspectos, Kuenzer (2017) enfatiza que a perspectiva de aprendizagem flexível, apoiada na crítica ao academicismo, acaba por reduzir a necessidade de domínio da teoria; promovendo certa superficialização do processo educativo, reduzindo o conhecimento às narrativas das atividades cotidianas. Para a autora, a flexibilização tem o sentido de superficialidade e simplificação, uma vez que a carga horária destinada à formação geral reduz-se a 1800 horas no máximo com somente dois componentes curriculares obrigatórios: Língua Portuguesa e Matemática.

Portanto, quanto às questões epistemológicas, consideramos que a reflexão sobre a aprendizagem flexível é de bom alvitre, uma vez que o que está sendo proposto, segundo Kuenzer (2020), se difere dos pressupostos afirmados nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio de 2012 (DCNEM), que, dentre outros, destaca a práxis e totalidade na concepção histórico-materialista. Nas palavras da autora, a práxis é compreendida como “atividade teórica e prática que transforma a natureza e a sociedade; prática, na medida em que a teoria, como guia da ação, orienta a atividade humana; teórica, na medida em que esta ação é consciente” (KUENZER, 2020, p. 63).

Neste raciocínio, a articulação teoria e prática é pressuposto epistemológico em que “trabalho intelectual e atividade prática constituem uma dualidade dialética” (KUENZER, 2020, p. 63). Do contrário, na organização curricular flexível ocorre o que Moraes (2001, p. 3) denomina recuo da teoria, em que, substituída pela experiência imediata, “basta o saber fazer e a teoria é considerada perda de tempo ou especulação metafísica e, quando não, restrita a uma oratória persuasiva e fragmentária, presa à sua própria estrutura discursiva”. Para a autora, uma utopia praticista.

Como Caporalini (1991) menciona, a escola é o único local onde os alunos das classes populares têm acesso ao saber valorizado pela sociedade. Assim, seus conteúdos precisam fazer sentido a eles para que possam produzir significações pertinentes à compreensão e superação da condição social em que vivem. Afinal, “se não é possível conhecer a realidade, também não é possível transformá-la” (KUENZER, 2020, p. 64).

Ainda assim, nem tudo está perdido e é de tal modo negativo. Acreditamos, com Kuenzer (2020), na possibilidade de organizações curriculares alternativas por parte das escolas, no exercício de sua autonomia, conferida pela Resolução n. 03/2018 (CNE/CEB), que atualiza as DCNEM. Dependerá, portanto, das escolas a escolha por formas de organização curricular alternativas, visando, como movimento contra-hegemônico, mormente, a formação integral e emancipatória dos jovens.

Ensino Médio noturno: representações sociais dos alunos participantes da pesquisa

A pesquisa desenvolvida, como se disse anteriormente, buscou compreender as representações sociais do Ensino Médio de alunos com distorção idade-série. Utilizamos, para tanto, como procedimentos metodológicos, a entrevista semiestruturada e a técnica do grupo focal. Considerando que a compreensão das representações sociais de determinado grupo é tarefa complexa, o emprego do grupo focal objetivou validar e aprofundar os dados que emergiram das entrevistas.

De início, importa dizer, que o levantamento feito, na secretaria da escola, a partir das datas de nascimento dos alunos do Ensino Médio noturno, somou 74 alunos considerados na categoria distorção idade-série, segundo os parâmetros apresentados na legislação, a saber: estudantes que têm dois ou mais anos de idade acima do recomendado para cada série (BRASIL, 2018). Entretanto, participaram do estudo somente alunos com maior distorção idade-série, limitado a 21 anos ou mais, totalizando 11.

Vale mencionar que, para as entrevistas estabelecemos um dia da semana conforme nossa disponibilidade, efetivadas em duas semanas consecutivas. Em campo, percebemos que, dos 11 alunos listados, dois haviam se evadido da escola, dois faltaram nas duas semanas e um foi para o período matutino, restando somente seis deles, número que consideramos pequeno para a obtenção de dados significativos para o alcance dos objetivos da pesquisa. Nesse sentido, ampliamos o critério para alunos com 20 anos ou mais, a fim de obter uma amostra mais representativa.

Dessa forma, chegamos a 27 alunos com maior distorção idade-série no Ensino Médio noturno. Contudo, identificamos que, além das cinco desistências constatadas anteriormente, no segundo dia de realização das entrevistas, além das faltas e mudança de turno, houve novas desistências, chegando ao número de quatro mudanças de turno, cinco faltantes e cinco desistentes no total. Desse modo, dos 27 alunos selecionados, participaram das entrevistas somente 13, presentes na escola durante os dois dias.

No tratamento dos dados nos valemos da análise de conteúdo (BARDIN, 2004). Nesse sentido, definimos as categorias com base nos objetivos da pesquisa e do roteiro da entrevista semiestruturada, a saber: fatores da distorção idade-série; razões da continuidade do estudo na visão dos alunos e visão dos alunos relativa à escola. A categoria fatores da distorção idade-série corresponde aos aspectos que influenciam e/ou determinam o processo de distorção idade-série. A categoria razões da continuidade dos estudos na visão dos alunos abrange a justificativa que os levou a retornar à escola. Por fim, a visão dos alunos relativa à escola corresponde ao que a instituição, no desenvolvimento do currículo e do ensino, representa para eles.

A reprovação e a interrupção determinam a distorção idade-série. A reprovação, segundo os alunos, é resultante, pela ordem frequencial, da: desmotivação/desinteresse, trabalho/faltas e trabalho/tempo. A interrupção, influenciada por questões de: trabalho, gravidez, serviço militar obrigatório, obtenção da carteira de motorista e influência familiar.

O fator que determina a reprovação mais indicado pelos alunos é a desmotivação/desinteresse. Representativo deste fator é o que afirma o Aluno H (2019): “Acabava faltando o colégio para simplesmente sair por aí e fazer coisa errada. Às vezes eu vinha, às vezes eu faltava. Via os dias que tinha prova e os que não tinha”. Outro aluno também reforça essa posição: “Quando tu vê que já está indo mal mesmo, tu desanima, os amigos também... tudo influenciou” (ALUNO M, 2019).

Segundo os alunos, no grupo focal, essa questão está relacionada também à proposta pedagógica do professor, como podemos evidenciar nas seguintes falas: “A aula é muito ruim, quando o professor passa simplesmente o conteúdo no quadro e não explica bem” ou quando “não leva em consideração que trabalhamos o dia inteiro e estamos cansados e sobrecarregados, quando só temos que copiar matéria”.

Além disso, é importante destacar o que os alunos sugeriram ser uma boa aula: aquela que os professores relacionam os conteúdos com o cotidiano, afinal, “é importante sabermos porque estamos aprendendo aquilo”. Caporalini (1991) e Kuenzer (1997) em seus estudos, identificaram estes elementos ao apontarem que a desmotivação pode ser decorrente da inadequação da proposta da escola aos interesses e necessidades do aluno trabalhador, por desconsiderar sua concepção de mundo, seus saberes apropriados e produzidos no trabalho a partir de suas experiências.

Outro fator destacado pelos alunos que justifica a reprovação está relacionado ao excesso de faltas e falta de tempo, ambos associados ao trabalho. Sobre isso, destacamos as seguintes falas: “Faltava por causa do trabalho” (ALUNO F, 2019) e “reprovei por não ter tempo de estudar, entregar os trabalhos” (ALUNO G, 2019). No grupo focal, os alunos acrescentaram: “A gente chega cansado do trabalho, não temos tempo para estudar”.

Sabe-se que a escola, especialmente no que se refere ao ensino noturno, sofre o impacto do ingresso precoce do aluno no mercado de trabalho por necessidade financeira e, por conseguinte, da problemática que envolve a conciliação estudo e trabalho. No caso específico da escola pesquisada, os alunos provêm de regiões de vulnerabilidade social e envolvidos com o trabalho não qualificado nos setores industrial, mecânico, têxtil, cerâmica, entre outros. Portanto, com dificuldades de driblar/conciliar a vida concomitante de estudante e trabalhador.

Muitas vezes, tal situação é agravada pela postura do professor que, em alguns casos, considera a falta em si, quantitativamente, e não o contexto socioeconômico e cultural que a produz, isto é, “o fato de não vir para a escola porque tem que trabalhar para comer, vestir, estudar é uma realidade negada” (CAPORALINI, 1991, p. 104). Estes elementos confirmam que a distorção idade-série engloba fatores internos (pedagógicos), mas, sobretudo, é influenciada por fatores externos, de ordem estrutural, que, por sua vez, incidem sobre questões internas, tendo em vista que a escola, muitas vezes, reproduz a lógica hegemônica de caráter seletivo, excludente, utilitarista e credencialista (ARROYO, 2000).

A interrupção também é um dos fatores que explica a situação de distorção idade-série dos alunos participantes da pesquisa. Dentre os motivos de interrupção nos estudos, os alunos destacam novamente o trabalho, expresso na fala a seguir: “Eu parei um ano em busca de tentar arranjar um emprego” (ALUNO A, 2019).

Como dito anteriormente, em muitos casos, pelo contexto socioeconômico, os pais, em situação econômica difícil e, muitas vezes, com baixa escolaridade, pressionam os filhos para que contribuam na renda familiar, favorecendo, assim, para a evasão escolar (SOLER, 2004). Desse modo, a importância da escola comumente passa a ser reduzida, face à necessidade da entrada precoce não qualificada e vulnerável dos adolescentes no mercado de trabalho.

Fica evidente que os fatores de ordem conjuntural, que envolve a situação econômica vulnerável dos alunos, associados às questões que permeiam o currículo escolar, contribuem para a produção do quadro da assim chamada distorção idade-série. Além, evidentemente, das questões subjetivas dos próprios alunos, influenciadas pelo contexto em que vivem.

Daí, é preciso retomar a questão, aparentemente batida, de se atribuir unicamente ao aluno a responsabilidade pela situação de sucesso ou fracasso escolar, ou seja, a tendência de desconsiderá-lo como produção objetiva no contexto das contingências sociais. É preciso, pois, desnaturalizar questões como correção de fluxo, distorção idade-série e aceleração da aprendizagem, como inerentes ao contexto educacional, que encobrem o contexto social no qual é produzido (ARROYO, 2000; CHARLOT, 2000).

Chama a atenção o fato de que esses jovens, marcados por experiências negativas durante sua trajetória escolar, optaram pelo retorno à escola, mesmo após, em alguns casos, longo percurso interrompido. Assim, buscamos entender quais as razões pelas quais os alunos resolveram continuar os estudos, indicadas pela ordem: fazer faculdade e conseguir trabalho melhor.

As duas razões destacadas pelos alunos, mais uma vez, estão relacionadas ao mercado de trabalho. Neste sentido, é significativo o que expressam: “Porque eu quero ter uma profissão boa lá na frente” (ALUNO A, 2019) e “querendo ou não, tem que continuar estudando por caso financeiro, ter um trabalho melhor” (ALUNO E, 2019). Como era de se esperar, os alunos refletem a ideia hegemônica da escola como via de mobilidade social, centrada numa lógica de mercado (KRAWCZYK, 2009). Este é, sem dúvida, um dos elementos discursivos motivadores para que retornem aos estudos, mesmo com experiências de insucessos e cansaço/desgaste que a atividade laboral ocasiona.

De certo modo, ao indicar as razões pelas quais retornaram à escola, os alunos participantes da pesquisa já deixaram antever sua visão relativa à escola. No entanto, no aprofundamento desta categoria, pudemos apreender os seguintes sentidos: escola como ambiente de aprendizagem/currículo, como ascensão profissional e como ambiente de aprendizagem/currículo e ascensão profissional.

Como se pode perceber, a visão da escola como ambiente de aprendizagem/currículo aparece com frequência significativa nas respostas, quando os alunos afirmam: “A escola é pra gente aprender” (ALUNO C, 2019) e “é um lugar de aprender, a hora de buscar conhecimento” (ALUNO L, 2019). No entanto, questionamos: qual o sentido que atribuem ao conhecimento e à aprendizagem?

Sabe-se que o currículo, por ser uma construção cultural, configura-se a partir do que determinado contexto assume; das realidades que o condicionam permeadas por relações de poder e conflitos de interesses (MOREIRA; SILVA, 2002). No caso da pesquisa, os alunos reconhecem a escola como ambiente de aprendizagem/formação, que sabemos não ser neutra.

A proposta pedagógica da escola pesquisada apoia-se, segundo seu PPP (2017, p. 10), na teoria histórico-cultural e da atividade, entendendo que “tanto as características humanas específicas quanto a linguagem e a consciência resultam da ação coletiva e histórica do ser humano, determinada pelo trabalho”. O documento reconhece que o conhecimento é produção histórica e coletiva.

No entanto, novamente questionamos: até que ponto a escola se apropriou da perspectiva histórico-cultural? Isso porque o próprio documento prevê a formação do aluno a partir dos quatro pilares do conhecimento de Delors, a saber: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser. Sabe-se que o relatório Delors possui um ideal de homem a ser formado a fim de atender às necessidades do século XXI. Fica a dúvida: necessidades de quem? Além disso, reafirma questões de meritocracia, discutida no decorrer deste estudo, elevando a responsabilização do indivíduo por seus sucessos/fracassos e ocultando questões estruturais, envolvendo relações de poder e exclusão.

Outro ponto importante à destacar é que, teoricamente, o PPP da escola se aproxima, em alguns aspectos, da perspectiva pós-crítica de currículo, ao indicar em sua missão o compromisso de possibilitar ao aluno “o acesso ao conhecimento científico e promover a construção de uma vivência responsável, solidária, ativa, crítica, participativa e criativa, onde cada sujeito tenha consciência de sua história, comprometendo-se na construção de uma sociedade cidadã” (PPP, 2017, p. 4).

Contudo, no grupo focal, os alunos denunciaram aulas centradas em cópia de conteúdos descontextualizados de suas experiências e condição de aluno trabalhador; antagônicas à perspectiva pós-crítica, que pressupõe, dentre outros, o currículo como produção de significados e sentidos, em processo vivo de integração e interação entre o conhecido e o conhecedor, contrariando, portanto, práticas pré-determinadas e pré-ordenadas (DOLL JR., 1997; SILVA, 1999; CORAZZA, 2008).

Da mesma forma, os alunos indicaram, com certa expressão, a escola como ascensão profissional, de forma isolada ou combinada com o sentido de escola como ambiente de aprendizagem/currículo. No que se refere a estes aspectos, é representativa a fala: “A escola pra mim é um bom lugar pra se conseguir um bom emprego, conhecimento é tudo na vida hoje em dia” (ALUNO B, 2019).

Sentido que também é possível identificar no grupo focal, quando os alunos afirmam que a escola é importante “porque sem ela é muito difícil arrumar um emprego”. A instituição escolar, dessa maneira, é compreendida como local de acesso ao saber social em que melhorará suas condições de vida (KUENZER, 1995), o que nos parece óbvio. Entretanto, há que se questionar: um saber social para que se ajustem ao mercado ou para que possam intervir na realidade criticamente?

O fato de alguns alunos optarem pela EJA nos ajuda a esclarecer a indagação acima, uma vez que a modalidade se constitui em alternativa para conseguir a certificação desejada com horários e conteúdos flexíveis às demandas do aluno trabalhador. Como é o caso do aluno, quando menciona que não vai desistir dos estudos: “Mesmo se não terminar aqui (ensino regular), vou fazer um ENCEJA ou um supletivo. O meu foco é terminar o Ensino Médio” (ALUNO H, 2019). Também o caso do Aluno M (2019), que participou das entrevistas, mas no grupo focal já havia migrado para a EJA.

Sabemos que tal situação decorre da demanda esmagadora por ascensão social no cenário capitalista, que promove certa competitividade e hierarquização no mercado de trabalho, fato que explica a busca pela formação aligeirada (muitas vezes precária) e a certificação em detrimento da vivência plena dos processos pedagógicos (KRAWCZYK, 2009), ou seja, a certificação vazia apontada por Kuenzer (2005).

Alguns alunos no grupo focal fizeram críticas ao ENCEJA para justificar sua permanência no Ensino Médio regular, afirmando que esta modalidade de ensino tem se caracterizado como “fábrica de gerar diploma, sem uma formação” e que “quem espera fazer faculdade não faz ENCEJA”. Entretanto, os mesmos alunos que assim se posicionaram, quando questionados sobre o que estão aprendendo, que tipo de formação estão recebendo, falaram, contraditoriamente: “A gente estuda só para poder passar”, frase que foi bem recebida pelos demais participantes.

Apesar disso, manifestaram que aprendem melhor nas aulas em que os professores buscaram alternativa metodológica diferente do convencional, afirmando que uma boa aula é aquela em que o professor relaciona os conteúdos com seu cotidiano; que organiza uma dinâmica diferente, “por ser melhor de aprender”. Além do mais, destacam que uma boa aula é aquela em que o professor demonstra interesse pela aprendizagem dos alunos, atende suas necessidades e reconhece suas possibilidades.

Sobre o que seria uma aula ruim, unanimemente, responderam que é quando só há cópia do conteúdo exposto no quadro; o professor não leva em consideração sua condição de trabalhador e o cansaço decorrente. Representativa deste argumento é a fala do aluno, que, na entrevista, ao ser questionado sobre como concilia o trabalho com os estudos respondeu: “Não dá. É muito difícil. Dá cansaço. A gente só está ali presente mesmo de corpo, porque para estudar é difícil. Eu pelo menos não consigo” (ALUNO J, 2019).

Pelo exposto, parece-nos pertinente repensar a estrutura formal da escola, incluindo seus horários, conteúdos e metodologias, que geralmente não levam em conta a extensão da jornada de trabalho do aluno, suas necessidades, experiências de vida, seu saber (KUENZER, 1995). Afinal, é importante se ter presente que o currículo, como zona de produtividade (SILVA, 1999), é um veículo para criar e recriar a nós mesmos e a nossa cultura (DOLL Jr., 1997), isto é, produzimos significados e procuramos obter, nos grupos, com outros indivíduos, os efeitos de sentido (SILVA, 1999). É nesse processo de significação que nos apropriamos da cultura histórica, mas também nos construímos como sujeitos, constituímos nossa identidade e posição.

Há que se ter em mente que o conhecimento, banalizado pelo que podemos evidenciar, está intrinsecamente ligado ao poder. Para que haja a verdadeira conscientização e possível mudança, é imprescindível compreender, como alude Giroux (1988), as pré-condições necessárias para lutar por essa mudança. Ou, como nos lembra Caporalini (1991, p. 36): “é necessário que o aluno se reconheça precisamente nas ideias e nas atitudes que o professor lhe ajudou a atingir”. O conhecimento, nesse sentido, torna-se instrumento de luta em defesa de seus interesses.

Tendo em vista a explícita relação da educação com o mercado de trabalho, antes oculta, agora desejável (ARROYO, 2000), defendemos a urgente necessidade de conscientização dos alunos trabalhadores sobre a lógica hegemônica, que determina o processo educativo. Sabe-se que essa associação é insuficiente e desfavorece a formação do jovem em um sentido crítico transformador (KRAWCZYK, 2009, p. 15).

Pelos dados obtidos, confirmamos que o conhecimento, reconhecido como elemento formativo fundamental (KRAWCZYK, 2009), não circula de forma significativa no espaço da escola pesquisada, no dizer dos alunos. Isso porque estes admitem não ter se apropriado de conhecimento suficiente, uma vez que, de maneira unânime, afirmaram não se considerar capazes de competir a uma vaga na universidade pública ou mesmo privada (principalmente nos cursos mais procurados), considerando-se as poucas chances de aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Como bem coloca Krawczyk (2009), quando esses adolescentes ingressantes do Ensino Médio aprenderem os conteúdos curriculares relacionando-os criticamente com o mundo em que vivem, haverá um real processo de democratização do ensino e não a simples massificação progressiva deste. Esta é uma questão que merece aprofundamento e reflexões, uma vez que, apesar de os dados quantitativos evidenciarem maior acesso ao Ensino Médio, aumentando o número de jovens de baixa renda com maior escolarização que seus pais, ainda há desafios a serem vencidos quanto à permanência destes na escola, ao que ensinar, às dificuldades para encontrar sentido na vida escolar e para pensar no mundo do trabalho a partir da escola (KRAWCZYK, 2009), não o contrário.

Por fim, importa dizer que as representações sociais dos alunos participantes da pesquisa sobre o Ensino Médio, e, portanto, sobre o currículo, circulam e transitam no contexto escolar e da sociedade em que a demanda esmagadora por ascensão social ganha lugar em detrimento da busca por uma formação emancipatória e cidadã. Felizmente, como diz Moscovici (2005), elas podem ser reelaboradas. Nisso nós acreditamos!

Considerações finais

A teoria das representações sociais foi importante nesse processo, porque, por serem híbridas, são criadas/compartilhadas pelas pessoas a partir de suas experiências e vivências. Assim, passam a existir por si só, constituindo-se em uma realidade social, com sua origem, muitas vezes, esquecida, ignorada. Ora, sabe-se que a representação social que se tem sobre os indivíduos que possuem trajetória escolar marcada por repetências e interrupções é a do aluno fracassado; representações criadas enquanto sociedade e que as pessoas passaram a utilizar com frequência, caracterizando-os e classificando-os.

Além disso, as representações são rodeadas por fenômenos ideológicos, portanto, não são neutras, estão relacionadas à concepção de ser humano e de sociedade de cada um. Por essa razão, enfatizamos, mais uma vez, que o próprio termo utilizado para caracterizar os alunos que se encontram em idade acima do esperado para cada etapa do ensino precisa ser questionado, principalmente se em seu significado está presente o sentido de exclusão. Sabe-se que as representações podem ser meios de reproduzir formas assimétricas de relações, em que algumas realidades são colocadas como inferiores ou superiores, dependendo do interesse que permeia cada representação.

Por esse ângulo, com o intuito de ampliar as discussões sobre o tema, principalmente sob o prisma de quem está “do outro lado da linha”, analisamos as representações sociais dos alunos em situação de distorção idade-série sobre o Ensino Médio noturno. Os jovens deste nível de ensino vêm marcados por experiências de fracasso e estão retornando aos estudos, como identificamos, após um percurso interrompido e/ou abandonado de experiências malsucedidas, oriundos de um contexto social em que a escola não faz parte de seu capital cultural, isto é, de sua experiência familiar e social.

Os dados obtidos (entrevista semiestruturada e grupo focal) levam-nos a crer que a representação dos alunos é a do Ensino Médio como ponte para a Universidade e/ou conseguir emprego melhor. Ambas associadas ao mercado de trabalho. Representações apropriadas, construídas e reelaboradas entre os indivíduos a partir do meio no qual estão inseridos; inclusive são congruentes aos princípios (nem todos) estabelecidos em propostas educacionais, que buscam superar e/ou evitar questões relacionadas à distorção idade-série.

Inquietamo-nos com a supremacia do mercado sobre a escola, que tem levado os dispositivos oficiais, apesar de suas boas intenções (muitas vezes), a serem descaracterizados mediante o oferecimento, sob disfarce, de uma educação precária e aligeirada com foco somente na certificação em detrimento da vivência plena dos processos pedagógicos. Seria a inclusão excludente?

Assim sendo, acreditamos ser necessário aprofundamento e reflexão crítica sobre os interesses circundantes às propostas voltadas para o Ensino Médio, que atingem, especialmente os alunos da rede pública. Fato que se confirma ao identificarmos os que se encontram em condição de distorção idade-série na escola pesquisada, alunos repetentes, evadidos, defasados e considerados “fracassados”, provenientes de famílias pobres, produtos de determinada concepção de escolarização, isto é, de caráter neoliberal.

Como vimos, a escola, nas representações dos alunos pesquisados, é fortemente marcada como meio para se conseguir o tão desejado trabalho melhor. É inegável que a dualidade (formação geral/formação profissional) faz parte do contexto do Ensino Médio, no entanto, consideramos preocupante o fato de a formação profissional ganhar maior status que a formação geral ou o fato de a certificação ganhar maior importância que a vivência plena dos processos pedagógicos - caso dos alunos participantes da pesquisa.

A escola é imprescindível para a classe trabalhadora, posto que é o local de possível acesso ao saber social, entretanto, seu currículo precisa ser questionado e ressignificado, pois a importância da escola é validada na medida em que o conhecimento produzido sirva de instrumento de luta em favor da democratização da vida humana.

Entretanto, suspeitamos que as novas exigências promulgadas na Lei n. 13.415/2017 (BRASIL, 2017), Reforma do Ensino Médio que defende a aprendizagem flexível resultante da interlocução dos alunos às redes e comunidades de práticas, acabe por reduzir a necessidade de domínio da teoria, promovendo certa superficialização do processo educativo e o estímulo da visão utilitarista do conhecimento, intensificando a dualidade ensino propedêutico e profissional. Por isso, questionamos: qual a possibilidade de se pensar o currículo para além da formação para inserção no mercado de trabalho?

Ressaltamos que a relação escola e trabalho não seria de tal modo negativa se a primeira não deixasse de lado suas outras funções sociais relacionadas à promoção de um saber crítico a respeito da sociedade e do próprio trabalho, isto é, no sentido de promover a compreensão, análise e crítica do mundo do trabalho por parte dos alunos. Seria necessário, nesse caso, superar a dualidade existente e pensar o mundo do trabalho a partir da escola, não a escola a partir do mundo do trabalho, unindo teoria e prática, juntamente com a conscientização sobre o saber historicamente construído e as relações de poder imbricadas nesse processo.

Percebemos que a análise do currículo e do papel do professor é fator imprescindível nesse processo, considerando que muitos alunos com distorção idade-série têm grandes chances de nova evasão (o que contribui para agravar sua situação), fato confirmado na pesquisa, quando, posteriormente ao levantamento nos dados da escola, número considerado significativo de alunos em condição de distorção idade-série haviam evadido. Sabemos que parte do desinteresse pelas aulas pode estar associada a propostas pedagógicas e metodológicas que desconsideram o repertório sociocultural dos jovens, no caso do Ensino Médio noturno, trabalhadores.

Temos clareza dos desafios no que tange ao Ensino Médio, envolvendo a permanência dos alunos na escola, o que ensinar e as dificuldades em conciliar escola e mundo do trabalho. A postura do professor não é determinante, mas pode influenciar significativamente na permanência dos alunos, ao considerar, além de seu contexto socioeconômico e cultural, sua condição de aluno trabalhador. Principalmente, se tornar o pedagógico mais político, promovendo, por meio do conhecimento, reflexões críticas, clarificando as disputas e relações de poder intrínsecas ao contexto social.

Em relação ao Ensino Médio, na própria LDB n. 9394/96, é possível identificar a possibilidade de se pensar para além do caráter dual propedêutico e profissionalizante, na indicação das finalidades do Ensino Médio que se referem à preparação básica para o trabalho, mas também para a cidadania, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. No entanto, considerando a ênfase atual na formação do profissional polivalente, há que se questionar: que tipo de cidadão estamos falando? Qual a real função social da escola hoje? Eis aí, quem sabe, proposições para continuarmos pesquisando tal relevante temática.

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3Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado Ensino Médio noturno: representações sociais de alunos em condição de distorção idade-série.

4Corresponde ao Ensino Médio atual.

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Fevereiro de 2021

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