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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub 29-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-57 

Artigos de Demanda Contínua

Reflexões sobre as alterações do perfil dos estudantes de uma licenciatura em matemática por meio das narrativas de professores formadores

Reflexiones sobre las alteraciones del perfil de los estudiantes de una licenciatura en matemática por medio de las narrativas de maestros formadores

Loriége Pessoa Bitencourt1 
http://orcid.org/0000-0002-7643-2091

Bruna Borges da Veiga2 
http://orcid.org/0000-0002-3985-8739

1Doutora em Educação/UFRGS. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, linha de pesquisa: Formação de Professores, Políticas e Práticas Pedagógicas. Professora Efetiva Adjunto IV, Curso de Licenciatura em Matemática/UNEMAT - Campus de Cáceres/MT. E-mail: lori.pessoa@hotmail.com.

2Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, linha de pesquisa: Formação de Professores, Políticas e Práticas Pedagógicas. Licenciada em Matemática/UNEMAT. E-mail: bruna_nmv@hotmail.com.


RESUMO

Neste estudo, discorre-se sobre a formação de professores, tendo-se o objetivo de evidenciar os aspectos que caracterizam as alterações do perfil dos estudantes de uma licenciatura em Matemática, comparando-se esse processo no decorrer de três décadas, utilizando-se a seguinte questão norteadora: De que modo, na visão dos professores formadores da Licenciatura Plena em Matemática, participantes desta pesquisa, o perfil dos estudantes dessa licenciatura foi se alterando? Os dois professores que narraram a história da formação docente revelaram as características recorrentes que permitiram evidenciar as alterações do perfil dos estudantes ao se comparar duas épocas dessa formação. Na discussão dos dados utilizou-se a análise histórica, tendo-se as narrativas como instrumento de investigação da História Oral. Os resultados evidenciaram que os sujeitos percebem uma modificação no perfil dos estudantes devido às mudanças sociais, em especial aos avanços tecnológicos e ao acesso a eles.

PALAVRAS-CHAVE: Trajetória formativa; Perfil do estudante da licenciatura; Formação de professores; Narrativas

RESUMEN

El estudio trata sobre la formación de docente visando conocer los aspectos que caracterizan las alteraciones del perfil de los estudiantes de una licenciatura en Matemática y cómo ocurre ese proceso a lo largo de tres décadas, por medio de la siguiente pregunta orientadora: Desde el punto de vista de los profesores formadores de la Licenciatura en Matemática, ¿de qué modo el perfil de los estudiantes se ha alterado en ese período? Al narrar su propia historia, los dos profesores revelaron las características recurrentes de las alteraciones del perfil de los estudiantes al comparar las dos épocas. La discusión de los datos utilizó el análisis histórico de las narrativas como instrumento de investigación de la Historia Oral. Los resultados evidenciaron que los sujetos perciben una modificación en el perfil de los estudiantes debido a los cambios sociales, especialmente a los avances tecnológicos y al acceso a estos.

Palabras-clave: Trayectoria formativa; Perfil del estudiante de la licenciatura; Formación de profesores; Narrativas

ABSTRACT

This study is about teachers’ training with the objective of highlight those aspects that outline the profile changes of the students who attend a Mathematics degree by comparing this process over three decades with the following guiding question: In the view of the Mathematics degree training teachers, how did the students’ profile change within this time? Upon telling their own teacher’s training history, two professors revealed the recurrent traits that allowed disclosing the changes in the students’ profile when comparing two periods of such training. The discussion of the data applied the historical analysis while the narratives were used as research instrument of Oral History. Findings evidence that the subjects perceive a modification in the students’ profile due to social changes and especially to technological breakthroughs and access to them.

Keywords: Educational trajectory; Profile of degree student; Teachers’ training; Narratives

Introdução

A reflexão quanto à formação de professores de Matemática é fundamental para o fortalecimento da Educação Matemática, enquanto área de estudos, investigações e práticas em consolidação no cenário educacional brasileiro. Sob essa perspectiva, busca-se evidenciar, nas narrativas de professores formadores, aspectos que caracterizam as alterações do perfil dos estudantes de uma Licenciatura em Matemática, no decorrer de três décadas.

Os sujeitos participantes da pesquisa foram dois professores formadores, egressos do curso de Licenciatura Curta em Ciências, da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. Ambos acompanharam a transição da Licenciatura Curta em Ciências para a plena, em Matemática, no início dos anos 1990. Após a conclusão da licenciatura curta, realizaram cursos de complementação em Matemática ou Física. Em 2017, ano em que esta pesquisa foi realizada, atuavam no curso de Licenciatura Plena em Matemática da mesma Universidade. Desse modo, esses dois professores formadores acompanharam a formação de professores de Matemática nessa Universidade por um longo tempo, sendo possível identificar, em suas narrativas, entre outras coisas, as mudanças ocorridas no perfil dos licenciandos, em diferentes épocas dessa graduação.

Levou-se em consideração o que narraram os sujeitos participantes, contrastando o perfil do passado com o do presente, a partir de experiências por eles vividas, pois,

[...] nessa perspectiva, experiências são histórias que as pessoas vivem. As pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias. As histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos outros, incluindo os jovens e os recém-pesquisadores em suas comunidades. (CLANDININ; CONNELLY, 2015, p. 27).

As narrativas dos professores formadores, as histórias por eles contadas são, neste artigo, complementadas pelos resultados da investigações de Krahe e Bitencourt (2015) e pelas reflexões de Gatti et al. (2019).

Gatti et al. (2019) citam Silva et al. (1991), que realizaram uma pesquisa a partir da análise de diversos trabalhos voltados, principalmente, à reflexão e discussão de como o professor vinha sendo formado, no período de 1950 a 1986. Esses autores constataram “uma grande imprecisão sobre qual o perfil desejável a esse profissional” (p. 24), e que,

[...] diferentes obras, ao longo do tempo, fazem críticas aos currículos dos cursos apontados como enciclopédicos, elitistas e idealistas. Consideram ainda, que as diferentes reformas acabaram por aligeirá-los cada vez mais tornando-os, na sua maioria, currículos de formação geral diluída e formação específica cada vez mais superficial (SILVA et al., 1991, p. 135 apudGATTI et al., 2019, p. 24-25)

Dessa forma, Gatti et al. (2019) evidenciam, em seu texto, que a história da formação de professores, no Brasil vinha sofrendo progressiva descaracterização ao longo dos tempos, e o perfil dos egressos das licenciaturas mostrava-se cada vez mais indefinido.

A presente pesquisa tem por base a realizada em nossa graduação, concluída em 2017, cujo objetivo foi entender, no cenário da formação de professores em um curso de Licenciatura em Matemática da UNEMAT, Campus Universitário “Jane Vanini”, de Cáceres - MT, a trajetória formativa dessa licenciatura e as alterações do perfil do estudante a partir das narrativas de dois professores formadores.

Essa busca se justifica porque acreditamos que o autoconhecimento, por parte dos professores formadores, sobre a trajetória formativa, e a valorização da história vivida a partir das narrativas possibilitam a identificação de características recorrentes ― positivas ou negativas ― do perfil dos estudantes dessa licenciatura. Portanto, isso poderá contribuir para (re)pensar a formação das futuras gerações de professores.

Assim, temos como questão problema: De que modo, na visão dos professores formadores da Licenciatura Plena em Matemática, participantes desta pesquisa, o perfil dos estudantes dessa licenciatura foi se alterando?

Fundamentação teórica

No intuito de compreender alguns aspectos relacionados à formação de professores e as concepções dos professores formadores de uma licenciatura e suas influências na formação de outros professores de Matemática de determinada época, consideramos que

[...] o reconhecimento de si próprio no processo de formação [tanto professores formadores como estudantes], as opções que os estudantes fazem no seu percurso escolar se tornam importantes para a identificação da pessoa com a própria formação profissional na qual optou por ingressar. (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 250).

Concordamos com essas autoras à medida que entendemos importante a identificação e a caracterização dos sujeitos em processo de formação e os a serem formados, a fim de se constituir um currículo que seja significativo para a formação de professores. Consideramos, inclusive, as prioridades desses futuros professores, pois, “[...] tão importante quanto estudar e discutir a formação de professores a partir dos currículos das licenciaturas, é compreender quem são os sujeitos dessa formação, no caso, os estudantes que a cursam [...]”. (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 250).

Desse modo, a formação dos sujeitos, tanto dos professores formadores quanto dos estudantes da licenciatura, se constrói através da reflexão sobre a prática, mediada pelas experiências de cada sujeito. A formação, segundo Marcelo Garcia (1999, p. 19), “pode também ser entendida como um processo de desenvolvimento e de estruturação da pessoa que se realiza com duplo efeito de uma maturação interna e de possibilidades de aprendizagem, de experiências dos sujeitos”. Assim, os estudantes, ao ingressarem nos cursos de formação inicial, podem ter uma formação mais significativa quando assumem o compromisso do seu próprio desenvolvimento profissional, conscientes de que, por exemplo, nos cursos de licenciatura assumirão a identidade de “ser professor”.

Dessa forma, o “ser professor” é evidenciado nos aspectos formativos do lócus da pesquisa, Licenciatura em Matemática da UNEMAT/Cáceres, por meio do Projeto Político-Pedagógico (PPP), o qual mantém como proposição explícita a formação do professor desta área curricular. No entanto, Krahe e Bitencourt (2015, p. 252 - 253) destacam que, “apesar do discurso escrito, a maioria dos estudantes desse curso não quer ser professor e diz não estar ali para se formar como tal e sim, ser diplomado como graduado e, de modo algum, se disponibiliza a ser docente”.

Portanto, conhecer quem são os estudantes que optam pelo curso de Licenciatura em Matemática torna-se importante. Importante, inclusive, para que possamos (re)pensar e (re)significar o currículo dessa formação, de modo a identificar algumas características que compõem o perfil desses sujeitos - pessoais, profissionais e sociais -, reunindo as qualidades e desafios enfrentados no contexto social. Isso poderá contribuir para que tenhamos um panorama dos caminhos possíveis de serem trilhados nessa formação.

Assim, conhecer de perto esses futuros professores “parece-nos não só relevante, mas fundamental para que se possa delinear estratégias efetivas de formação” (CARVALHO, 2018, p. 8). A aproximação possível com a realidade do licenciando, adentrando no cotidiano do trabalho dos professores, é, “sem dúvida, imprescindível para que se possa pensar, com eles, as melhores formas de atuação na busca de uma educação de qualidade para todos” (CARVALHO, 2018, p. 8).

Segundo Gatti et al. (2019), é relevante ter clareza em relação ao perfil profissional que se deseja para as licenciaturas, pois entre outros aspectos é a experiência do estudante e sua significação do percurso formativo que compõem o arcabouço de suas ações docentes. Nesse sentido, a literatura especializada evidencia os conhecimentos importantes para a docência, além dos fundamentos da educação, os quais incluem:

[...] conhecimento do aluno e de seus contextos; compreensão da relação da linguagem com a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo e social; conhecimento da disciplina a ser trabalhada na docência e de seus respectivos conhecimentos pedagógicos (conhecimento pedagógico dos conteúdos), tratados sempre de maneira integrada aos saberes adquiridos nas práticas educativas; e, conhecimentos sobre avaliação de alunos e avaliação educacional. (GATTI et al., 2019, p. 75-76).

Esses conhecimentos pressupõem uma prática docente ativa que busque, na relação aluno e professor, formas significativas de construção dos saberes. Portanto, compreendemos que a proposta das práticas como componentes curriculares na formação de docentes, constantes nas últimas legislações, segundo Gatti et al. (2019), só terá efetividade se elas forem, de fato,

[...] integradas ao currículo e às disciplinas, não constituindo algo à parte; institucionalizadas no sistema educacional como um todo, ou seja, nas instituições de ensino superior e nas escolas; e, sustentadas por um sistema de apoio que envolva formadores atuando no ensino superior e nas escolas (bolsas de estudos, incentivos materiais, montagem de laboratórios de ensino, fontes de informação sobre recursos pedagógicos e inovações etc.) (GATTI et al., 2019, p. 75-76).

Há que se considerar que as instituições de ensino ainda carecem de uma infraestrutura e materiais de qualidade. No entanto, conforme evidenciado por Gatti et al. (2019), para obtermos uma formação docente, que atenda as últimas legislações e corresponda a um currículo que contemple a prática, são necessárias bolsas de estudos, incentivos materiais, montagem de laboratórios de ensino e, principalmente, reconhecimento por parte do professor formador da proposta curricular do curso de graduação e, portanto, do perfil do estudante que está a se formar.

Considerando essas perspectivas, conhecer o perfil dos estudantes das licenciaturas e o perfil profissional do egresso que os PPPs apresentam, permite ao professor formador criar novas possibilidades formativas no processo de ensino aprendizagem, a partir das condições reais dessa formação. Assim, o grande sentido da formação está na necessidade de o professor formador compreender que é “preciso incorporar a perspectiva de que ensinar requer algo mais que a apropriação e aplicação de procedimentos pedagógicos, com a tomada de consciência do papel social do docente em suas implicações para o desenvolvimento e a vida dos alunos” (GATTI et al., 2019, p. 75-76), e isso é tão significativo que possibilita a transformação da realidade.

Outros fatores mais recentemente destacados, que intervêm nessa dinâmica, são o perfil e a formação dos professores universitários, pois, segundo Gatti et al. (2019, p. 95),

[...] muitos deles não tiveram formação pedagógica e sua seleção e carreira se baseiam, sobretudo, em trabalhos científico-acadêmicos nas áreas de conhecimento a que se dedicam (Física, Matemática, Sociologia, etc.). A maioria não teve formação pedagógica e poucos estudam e pesquisam questões relativas ao ensino e às didáticas nessas áreas. [...].

Por fim, consideramos que a dinâmica formativa dos cursos de formação inicial para a docência, em nível superior, está imersa em uma rede de determinações que sustentam e norteiam as possibilidades formativas. Portanto, os professores formadores têm papel fundamental, mas não são únicos, nos processos de desenvolvimento profissional desses estudantes, afetando positiva ou negativamente a carreira profissional dos futuros professores da Educação Básica.

Aspectos metodológicos: narrativas como meio/instrumento de investigação em História Oral

Na presente pesquisa valemo-nos de uma análise histórica, utilizando as narrativas como instrumento de investigação da História Oral, a qual está estritamente ligada à memória dos sujeitos atores/autores que irão rememorar, contar/recontar e narrar suas experiências vividas em um espaço e período de tempo.

A História Oral, como metodologia de investigação, possui proximidade com o presente, pois depende da memória “viva”. Para Garnica (2010), a História Oral é definida como uma metodologia de pesquisa que implica:

a) Dialogar com fontes de várias naturezas (escritas, pictóricas, fílmicas etc.), ressaltadas as fontes orais; b) Abraçar uma proposta de configuração coletiva no que diz respeito aos atores sociais envolvidos na pesquisa; c) Engendrar um registro cuidadoso e eticamente comprometido; d) Dominar a elaboração de narrativas; e) Exercitar a pluralidade de perspectivas (interpretações) (GARNICA, 2010, p. 33).

Para o autor supracitado, a Hitória Oral, como uma opção metodológica, possibilita o diálogo com diferentes fontes, de modo a subsidiar múltiplas interpretações das memórias narradas pelos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Freitas (2006, p. 19) aponta que a História Oral “pode ser dividida em três gêneros distintos: tradição oral, história de vida, história temática”. Assim, nesta pesquisa fizemos uso da História Oral Temática, pois, segundo o mesmo autor, nesta, “a entrevista tem caráter temático e é realizada com um grupo de pessoas, sobre um assunto específico” (FREITAS, 2006, p. 21). Ou seja, a entrevista - que tem característica de depoimento - necessariamente não abrange a totalidade da existência do informante, considerando-se que, na constituição do enredo, são necessárias várias perspectivas históricas.

Garnica (2010) faz uma reflexão quanto à aproximação da História Oral com a Educação Matemática, pois, diz o autor, um trabalho em Educação Matemática, ou em outra área qualquer, produz irremediavelmente uma fonte histórica. A diferença é que os que usam a História Oral intencionalmente são produtores de fontes, o que faz com que os pesquisadores que trabalham com História Oral não possam furtar-se de uma concepção sobre História.

Entende-se que as narrativas compõem uma maneira diferenciada de se fazer ciência, à medida que se trabalha com a história vivida através do discurso, da narração de acontecimentos que fazem parte não somente da história de uma sociedade, mas também da de um indivíduo, o qual foi personagem de uma época, e as vivências/memórias têm valor para quem as conta. Assim, a significação fica sujeita à interpretação do ouvinte/leitor/espectador e à maneira com a qual se constituem as narrativas. Dessa forma, nesta pesquisa utilizamos a História Oral por se tratar de uma metodologia qualitativa que reconhece:

(a) a transitoriedade de seus resultados; (b) a impossibilidade de uma hipótese a priori [...]; (c) a não neutralidade do pesquisador [...]; (d) que a constituição de suas compreensões dá-se não como resultado, mas numa trajetória em que essas mesmas compreensões e também os meios de obtê-las podem ser (re)configuradas; [...] (GARNICA, 2004, p. 86).

A população de nossa pesquisa se concretizou através de diálogos com professores que ainda lecionam na licenciatura em pauta. Constatamos que alguns deles participaram da construção e reconstrução da história dessa Licenciatura em Matemática de Cáceres; outros foram alunos no período em que o curso era licenciatura curta. Portanto, compomos uma lista inicial de 20 prováveis sujeitos da pesquisa.

Em posse dessa lista iniciamos uma busca na internet para localizar os currículos lattes desses professores. Após, começamos um processo de análise temporal visando compor nossa amostragem da pesquisa.

Ao analisarmos o currículo de cada professor formador reduzimos para quatro os sujeitos, porém, optamos por trabalhar com uma amostragem de dois sujeitos mediante alguns critérios (Quadro 1): o período em que o sujeito se vinculou à instituição, em específico ao curso de Matemática; e também pelo fato de dois dos sujeitos terem sido alunos do curso de Licenciatura Curta em Ciências e, à época, atuarem como professores na mesma Instituição. Optamos por identificar os professores formadores como Prof. 1 e Prof. 2, para garantir o seu anonimato.

Quadro 1: Perfil Formativo dos sujeitos da pesquisa 

PROFESSOR ANO FORMAÇÃO
Prof. 1 1989 - 1993 Graduação em Licenciatura Curta em Ciências e Matemática e Plenificação em Matemática pela UNEMAT.
2002 Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT.
2010 Doutorado na Universidade de São Paulo, USP, na área de Ciências e Matemática.
ATUAÇÃO PROFISSIONAL
1994 - Atual Vínculo: Enquadramento Funcional: Professor Titular, Regime: Dedicação Exclusiva na UNEMAT, no Curso de Licenciatura Plena em Matemática até os dias atuais.
PROFESSOR ANO FORMAÇÃO
Prof. 2 1986 - 1988 Graduação em Licenciatura Curta em Ciências e Matemática. Instituto de Ensino Superior de Cáceres - atual UNEMAT.
1989 - 1991 Graduação em habilitação parcelada em Física/complementação na Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT, Brasil.
1997 - 2000 Mestrado em Educação. Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT, Brasil.
2002 - 2006 Doutorado em Educação Escolar. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Brasil.
ATUAÇÃO PROFISSIONAL
1994 - Atual Vínculo: Enquadramento Funcional: Professor Titular, Regime: Dedicação Exclusiva na UNEMAT, no Curso de Licenciatura Plena em Matemática até os dias atuais.

Fonte: Elaborado pela autora.

Conforme consta no Quadro 1, os professores formadores iniciaram a sua formação acadêmica através da Licenciatura Curta em Ciências e Matemática, ofertada pela UNEMAT na década de 1980, e em seguida realizaram a Plenificação, na qual um optou pela habilitação em ensino de Matemática e o outro em Física. Na década de 1990, ambos os professores formadores realizaram concurso na UNEMAT e passaram a atuar como docentes em “Regime de Dedicação Exclusiva”. Na década de 2000, ambos os professores concluíram a pós-graduação nas suas respectivas especialidades, e em toda a trajetória formativa mantiveram seu vínculo com a UNEMAT.

Descrição e Análise dos Dados

Neste tópico, analisamos as narrativas dos sujeitos, pois, segundo Freire (1996, p. 39), “na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”.

Nessa perspectiva, buscamos compreender, nas narrativas dos professores, o modo com que percebem a formação docente, no decorrer do tempo, em diferentes épocas e propostas curriculares. Assim, os professores, em uma reflexão crítica sobre suas experiências vividas na trajetória formativa e as dos estudantes, narraram os fatos a partir do olhar atual que lançam sobre a educação, o qual evidencia que a compreensão de mundo de ambos os docentes difere diante das leituras teóricas que realizaram. No entanto, convergem na perspectiva de que mudanças são necessárias para melhorar o sistema educacional e, principalmente, a formação docente.

Buscamos evidenciar, nas narrativas dos professores, alguns aspectos do perfil dos estudantes que cursaram a Licenciatura Curta em Ciências, com a intenção de identificar o local de origem dos acadêmicos da época, e os professores formadores disseram que

[...] praticamente, vinham poucas pessoas de fora [Licenciatura Curta], [...] depois na Licenciatura Plena acho que o movimento aumentou bastante, mas a maioria era tudo daqui mesmo [Cáceres] [...] (Excerto da narrativa do Prof. 1).

O aspecto relacionado à localidade da residência dos estudantes que aparece nas narrativas revela que, à época da Licenciatura Curta em Ciências, a maioria dos estudantes residia em Cáceres-MT. Já no momento atual, a maioria dos estudantes reside em municípios vizinhos da região (KRAHE; BITENCOURT, 2015).

É importante destacar que, quando os professores formadores se referem à Licenciatura Curta em Ciências, estão se reportando ao final dos anos 1980, época em que a UNEMAT não tinha o status de Universidade e era denominada Fundação Centro de Ensino Superior de Cáceres (FCESC), vinculada à Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Mato Grosso (ZATTAR, 2008).

O professor formador 1 narra que as turmas da licenciatura curta eram numerosas, e, por volta de 1989, as turmas

[...] tinham bastante alunos, lembro que a gente tinha uns 40 alunos, saíam alguns, mas [...] quando formei tinha bastante alunos. (Excerto da Narrativa do Prof. 1)

Interpetramos que, provavelmente, esses estudantes procuravam o curso como uma alternativa de formação em curto período de tempo para poder atuar na profissão, conforme o excerto abaixo:

Eu lembro que bastante alunos se formaram, [...] mas é que também o curso era Licenciatura Curta, era dois anos e meio, e isso ajudava, [pois] a pessoa já via que terminava logo e [...] já tinha a possibilidade de trabalhar, era mais fácil e hoje as pessoas não têm muita paciência para esperar um tempo, quatro anos para se formar (Excerto da Narrativa do Prof. 1).

Ao se referir à licenciatura curta, o Prof. 1 afirma que havia pouca desistência e evasão dos estudantes, justificadas pelo pouco tempo de integralização curricular da formação da época, que habilitava não somente para Matemática, mas também para Física, Química e Biologia. Porém, relacionando essa narrativa com outras dos dois professores formadores temos que:

[Em 1987 comecei a dar aula na Educação Básica] mesmo não tendo formação nenhuma, dava aula lá no ensino fundamental, [...] de quinta a oitava série [...] (Excerto da Narrativa do Prof. 2).

[Atuei na Educação Básica por volta de 1989] [...] minha mulher [...] ministrava aula no Estado [concursada] quando ela ia para os cursos [Complementação] eu que ministrava aula no lugar dela, [...] eu sempre gostei de matemática, sempre gostei de ministrar aula, não sei se eu teria outro emprego. (Excerto da Narrativa do Prof. 1)

Inferimos que os estudantes ingressavam nessa licenciatura curta sabendo o que queriam enquanto profissão, e alguns já davam aula na Educação Básica. Quando os professores formadores se referem ao tempo da licenciatura plena, quatro anos, há outro aspecto a se considerar na atualidade: o perfil do estudante da licenciatura em Matemática. Esse perfil é composto por trabalhadores do comércio, em sua maioria, e também da polícia militar ou civil, e poucos estão em contato com o trabalho docente nas escolas, o que influencia a escolha profissional após a formação. Além disso, esses estudantes podem optar por exercer a profissão de professor ou ter o diploma de um curso de graduação para atuar em outras áreas (KRAHE; BITENCOURT, 2015).

Em sua narrativa, o Prof. 2 fala sobre o espírito de coletividade, de união, de equipe, de aprendizagens colaborativas por parte dos estudantes da Licenciatura Curta em Ciências, e afirma que essa postura fazia toda a diferença na formação (IMBERNÓN, 2002):

[...] os alunos [Licenciatura Curta] todo mundo trabalhava, mas toda e qualquer atividade colocada pelos professores todo mundo corria atrás para resolver e todo mundo ajudava todo mundo, não tinha concorrência entre os alunos, eu acho que a carência era tão grande, que a gente se dava a mão para nos ajudar, para pegar o outro e levar junto com a gente. (Excerto da Narrativa do Prof.2)

Sobre outro aspecto das alterações do perfil do estudante, o Prof. 2 fez uma reflexão sobre as mudanças que ocorreram na sociedade e os seus reflexos na sala de aula universitária e nas práticas pedagógicas usadas pelos professores formadores. E questiona:

[...] mas isso mudou [aula expositiva, quadro negro e giz]? Eu acho que é essa a pergunta, ou seja, [...] eu estou falando de 30 anos atrás, isso mudou? Essa talvez seja uma grande pergunta que a gente tem que colocar. (Excerto da Narrativa do Prof. 2)

Em relação às práticas pedagógicas dos professores formadores, Bitencourt (2014) destaca a importância de repensá-las, de tempos em tempos, pois,

[...] quando, de forma colaborativa, os sujeitos se encontram e discutem os conhecimentos necessários ao exercício profissional do professor da Educação Básica, podem refletir no exercício profissional do professor formador da licenciatura [...] e, portanto, na Pedagogia Universitária dos professores que formam outros professores para Educação Básica. Assim, será possível articular o que se faz com o que se precisa, o que se desenvolve curricularmente para formar um profissional professor para Educação Básica com o que realmente a escola necessita, colocando em prática a responsabilidade social e política da Universidade, por meio das ações de seus professores formadores. (BITENCOURT, 2014, p. 107)

Dessa forma, identificar os sujeitos que estão envolvidos nesse processo educativo, e, de forma dialógica, estudantes e professores se reconhecerem no processo de ensino e aprendizagem, tornará significava a formação dos futuros professores. Nessa perspectiva, o Prof. 2 continua a reflexão, dizendo:

se nós olharmos para os alunos eles mudaram, os alunos de lá [Licenciatura Curta] não tinham informação [na época não havia acesso às informações pela internet], mas corriam atrás para fazer. Os alunos daqui [Licenciatura Plena] têm um monte de informação, qualquer coisa que você [professor] falar com algum aluno, ele sabe alguma coisa, ele já ouviu falar, mas se falar: ‘vamos fazer não sei o que’. Ele ‘uhum’ e ninguém vai fazer, vão dar um jeito de enrolar, [...] [no entanto] o professor, ele continua dando a mesma aula expositiva, estou falando lá de 86, ou seja, de 30 anos depois, a aula dada pelo professor que não era num mundo tecnológico, [...], hoje [licenciatura plena] a informação está ai totalmente livre, o que aquele aluno [licenciatura curta] queria fazer, o aluno de hoje [licenciatura plena] não aproveita, ele quer pronto, [...] ele vai pra rede, ele encontra pronto, e, nós professores, insistimos em uma aula dialogada, e isso é um tanto quanto paradoxo, o aluno mudou, não é o mesmo aluno, mas esse implemento tecnológico que teve em nossas vidas, nesses 30 anos, não refletiu em sala de aula, com raríssimas exceções, nós [professores] não alteramos nossas práticas. (Excerto da Narrativa do Prof. 2)

Constatamos, na fala do Prof. 2, uma reflexão sobre as mudanças que ocorreram na sociedade, os avanços tecnológicos, e as mudanças no perfil dos alunos, do ontem - na licenciatura curta - e do hoje - na licenciatura plena. Segundo o Prof. 2, os estudantes da licenciatura plena, na atualidade, estão cercados por informações, porém, destaca que o professor formador e o sistema educacional não acompanharam tais mudanças tecnológicas, ou seja, o professor formador continua dando a mesma aula de 30 anos atrás. Esse fato também foi verificado na pesquisa de Bitencourt (2014), na qual a pesquisadora evidencia que,

[...] além da estruturação do sistema educacional [...], a crise pode ser identificada pelos professores encontrarem [...] alunos com perfis diferentes dos que estavam acostumados e, estes, por sua vez os pressionarem para a mudança. (BITENCOURT, 2014, p. 193).

Desse modo, para obter uma caracterização e uma compreensão mais aprofundadas dos licenciandos do curso de Matemática citamos os resultados da pesquisa de Krahe e Bitencourt (2015), realizada com uma amostra de 39 licenciandos do mesmo curso, em 2014. As autoras, de um universo de 39 estudantes, destacam que 16 (41%)

[...] fizeram a opção pelo curso a partir do desejo/escolha de ser efetivamente Professor de Matemática. Destes, oito optaram por ser professores de Matemática porque foram influenciados por bons professores e ingressaram na Licenciatura por inspiração dos mesmos [...] (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 257).

Desses 16 sujeitos da mesma pesquisa, oito (50%)

[...] optaram por ser professor de Matemática somente pelo fato de terem gostado da disciplina na Educação Básica e pelo desempenho que tiveram nesta (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 260).

Além disso, as autoras destacam que a escolha profissional dos estudantes, por serem, em sua maioria, trabalhadores, atrelava-se à opção por cursos noturnos. No entanto, esses estudantes não evidenciaram se queriam ou não ser professores, restando a hipótese de que a opção pelo curso noturno visava à necessidade de trabalhar no contraturno.

Outros autores também avaliaram que a condição financeira e, em consequência, a necessidade de manter o vínculo empregatício, pode ser um dos critérios de escolha dos cursos noturno, conforme se constata na citação a seguir:

Capital cultural - as famílias dos estudantes em licenciatura têm baixo nível geral de escolarização. Desde o início dos anos 2000, pouco mais de 30% desses estudantes constituíam os primeiros entre os seus familiares que logravam concluir o ensino médio, e algo mais do que 10% conseguiam fazer um curso superior. Muito diferente é o perfil sociocultural de origem dos estudantes dos cursos mais prestigiados pela sociedade nas IES brasileiras. (GATTI et al., 2019, p. 309-310).

Assim, em relação à escolarização da família, como evidencia Gatti et al. (2019), há um baixo nível geral de escolarização, o que pode gerar a hipótese de que esses sujeitos não usufruem de uma renda familiar suficiente para manter os estudos sem precisar trabalhar. Ainda nessa perspectiva,

[...] o licenciando provavelmente queria fazer outro curso, mas as condições socioeconômicas que tinha no momento da escolha não lhe permitiram e nisso, ao encontro das opções, nota-se que nem sempre o curso idealizado inicialmente pelo indivíduo pode ser concretizado, o que indica que as decisões são assumidas, muitas vezes, dentro de um quadro de possibilidades reais, dadas por seu contexto socioeconômico e cultural concreto (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 261).

Por sua vez, Lapo e Bueno (2003) citados por Krahe e Bitencourt (2015), ao analisarem um grupo de professores, mostram o abandono da carreira docente, pois nenhum deles queria realmente ser professor e concluem: “Ser professor era a escolha possível no começo da vida profissional. Tornar-se professor aparece como a alternativa possível e exequível do sonhar-se médico(a), advogado(a), veterinário(a), etc.” (LAPO; BUENO, 2003, p. 76 apud KHARE; BITENCOURT, 2015, p. 261). Esse fato torna-se perceptível a partir desses dados, pois, muitos sujeitos escolhem o curso não por se identificar com ele, mas por ser uma opção possível.

Krahe e Bitencourt (2015) enfatizam, a partir dos resultados de sua pesquisa, que, em relação à instituição, os estudantes acabam por escolher a Universidade do Estado de Mato Grosso “por ser a única no interior do estado, mais especificamente na região de Cáceres, e pelo curso de Matemática, por ter encontrado facilidade nesta disciplina na Educação Básica” (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 263).

Em relação aos dados do questionário socioeconômico, preenchido no ato da inscrição do vestibular, evidenciado na pesquisa de Krahe e Bitencourt (2015), os estudantes dos cursos noturnos da UNEMAT - Campus de Cáceres são,

[...] em sua maioria, trabalhadores da indústria ou do comércio, funcionários públicos (federais, estaduais ou municipais), que dependem de seu trabalho para se manter. Entre as opções de cursos noturnos que estes estudantes têm para desenvolver, escolhem a Licenciatura Matemática pelo desempenho nesta disciplina durante os seus estudos da Educação Básica (KRAHE; BITENCOURT, 2015, p. 264).

As análises evidenciam, entre outros aspectos, que a opção pelo curso está relacionada à importância da profissão (quero ser professor), professores que inspiraram, opção alternativa (trampolim), condições financeiras, facilidade de acesso ao local do curso (cursos noturnos), opção que restou (não quero ser professor).

As narrativas dos professores formadores de nossa pesquisa relacionam a Universidade, as condições de permanência e o perfil dos estudantes ao ingressarem na Educação Superior com a Educação Básica e a prática docente. O Prof. 2 discorre sobre o curso de licenciatura plena atual, evidenciando o que, para ele, é um dos grandes problemas na UNEMAT:

Para mim um dos grandes problemas não é ingressar na UNEMAT, é a política de permanência, [...] não é pensar que eu vou ter egresso, é pensar que [...] nunca vão sair daqui. Isso é uma política de permanência. [...] (Excerto da narrativa do Prof. 2).

Nessa fala do Prof 2 é evidenciada a necessidade de se manter o vínculo entre Universidade e Educação Básica para que os egressos do curso possam manter o diálogo com os professores formadores e fortalecer a troca nesses espaços de discussão e construção do conhecimento, possibilitando uma formação continuada. Assim, concordamos com Bitencourt (2014, p. 106) que destaca, em sua pesquisa, a

[...] necessidade de uma maior aproximação entre Universidade e Escola, [...] visto que a Universidade desenvolve a formação inicial de professores para atuar na escola de Educação Básica e, esta escola atual, necessita alimentar a Universidade de discussões contemporâneas para a formação de professores que essa instituição escolar demanda [...].

O Prof. 2 continua sua reflexão, e narra sobre os alunos que hoje chegam à UNEMAT e o que é a escola de Educação Básica, ou seja, os professores que ensinam Matemática nesse nível de Educação têm influenciado o ensino desse aluno:

[...] eu digo que o nosso aluno que chega aqui ele é um aluno medíocre, porque não tem acesso a muitos [...] bens materiais e bens culturais produzidos pela humanidade, consequentemente essa visão dele é uma visão restrita ao espaço que ele vive, ao espaço sertanejo, ao espaço da cidade pequena ao espaço da falta de opções de vida noturna, ao espaço da falta de cultura, de participar de um grupo de dança, de um grupo de música, de um teatro, de um balé, então, é esse o aluno que chega [ingressa na universidade]. E é um aluno da escola que foi esvaziada, a escola em si, foi esvaziada daquilo que deveria ensinar, a ler, a escrever, ensinar matemática, física, química, para que o aluno entrasse no ensino superior com uma bagagem diferente. [...] Pensar ciências, não se pensa sem matemática, não se pensa sem física, não se pensa sem biologia [...] você tem que ter um Ensino Básico muito forte, e esse ensino foi esvaziado de conteúdo (Excerto de narrativa do Prof.2)

E o Prof.2 narra o que ocorre, muitas vezes, no curso de licenciatura plena atual, pois o aluno que nele ingressa se depara com um perfil de professor formador de 30 anos atrás, o qual, em alguns casos, não compreende que “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 52). E, continua o mesmo professor:

[...] então esse aluno que chega aqui é fruto desse esvaziamento, e ai eu chego na sala de aula, e quero ainda na minha concepção de professor que eu devo pegar o livro e enfiar dentro da cabeça do aluno, enfiar por aula expositiva e quero que o aluno de conta de conteúdos que ele ainda não viu, então esse pra mim é um abismo que nós temos, a escola foi esvaziada de conteúdos e [...] esse professor é o professor de trinta anos atrás [...]. (Excerto de narrativa do Prof.2)

Como constatamos na narrativa do Prof. 2, as escolas da atualidade não estão conseguindo se adequar às novas demandas da sociedade e muitos dos alunos que acabam chegando à Universidade são fruto desse esvaziamento curricular. Uma das condições para que haja uma melhoria na Educação Básica seria proporcionar uma formação inicial adequada às demandas educacionais atuais, porém, Tardif e Raymond (2000) evidenciam que os alunos passam pela formação inicial “sem modificar substancialmente suas crenças anteriores sobre o ensino. E, tão logo começam a trabalhar como professores” (p. 217), não ressignificam novas possibilidades de práticas no processo de ensino aprendizagem, e, “no contexto de urgência e de adaptação intensa que vivem quando começam a ensinar” (p. 217), acabam por solucionar seus problemas profissionais reativando sempre as mesmas crenças e maneiras do fazer docente.

Portanto, as mudanças ocorrem na sociedade, e os avanços tecnológicos desencadearam uma alteração no perfil dos estudantes, tanto da Educação Básica quanto da superior, porém, os professores e o sistema educacional não acompanharam essa transição. Isto é, o professor continua dando a mesma aula de 30 anos atrás para estudantes que estão conectados às mídias digitais, cercados por informações. No entanto, estes não têm acesso, no seu dia a dia, a diversos bens culturais e conhecimentos acadêmicos básicos, pois estão restritos ao espaço tempo escolar que não evoluiu como os meios tecnológicos; não evoluiu em questões materiais e estruturais, o que restringe também a ação pedagógica dos professores e, consequentemente, a aquisição de conhecimento por parte dos alunos.

Considerações Finais

Neste artigo, por meio da narrativa de dois professores formadores de uma licenciatura em Matemática, buscamos compreender o modo com que o perfil dos estudantes dessa Licenciatura se alterou com o passar do tempo, e quais fatores vêm colaborando para esse cenário e para a composição do cenário da formação docente contemporânea.

Constatamos, a partir da pesquisa de Krahe e Bitencourt (2015), em correlação com as narrativas dos professores formadores participantes de nossa pesquisa, que alguns fatores para a escolha do curso de Licenciatura em Matemática correspondem à importância da profissão (quero ser professor), professores que inspiraram, opção alternativa (trampolim), condições financeiras, facilidade de acesso ao local do curso (cursos noturnos), opção que restou (não quero ser professor), e que esses aspectos não se alteraram no decorrer do tempo.

Os participantes desta pesquisa, em suas narrativas, mostram que percebem uma alteração no perfil dos estudantes devido às mudanças sociais, em especial aos avanços tecnológicos. No entanto, destacam que nem os professores e nem as instituições de ensino conseguiram evoluir e acompanhar o universo das tecnologias.

Outro fator destacado por um dos sujeitos da pesquisa é quanto ao acesso a muitos bens materiais e culturais produzidos pela humanidade, e, consequentemente, a conhecimentos e informações, o que está relacionado aos dados da pesquisa de Gatti et al. (2019) que evidenciam o baixo nível de escolarização (capital cultural) das famílias dos estudantes em licenciatura. Em sua narrativa, um dos professores formadores destaca que os estudantes vivem em uma pequena cidade do interior do estado de Mato Grosso, com acesso restrito à internet no local de suas residências, o que não lhes possibilita a ampliar sua visão de mundo e perspectivas. Esse fator produz uma disparidade ainda maior quando relacionado à análise temporal, à época da licenciatura curta e licenciatura plena, quando pensamos nos avanços tecnológicos, pelo menos no espaço universitário.

Um comparativo que ressaltamos é o fato de os dois professores que atuavam na Educação Básica mesmo sem ter concluído a licenciatura enfatizarem que já queriam, à época, exercer a profissão de professor. Destacamos também que, na fala dos professores, poucos alunos desistiam na licenciatura curta, se comparados ao número de estudantes que abandonam o curso de Licenciatura Plena em Matemática atualmente.

As narrativas evidenciam fatores que podem diferenciar o perfil dos estudantes da licenciatura curta da plena atual. Um deles é que a maioria dos estudantes da licenciatura curta residiam em Cáceres, e, segundo os professores formadores, essa proximidade com a instituição pode justificar a redução dos motivos que levam à desistência do curso, fazendo com que um número maior de estudantes se reúna para estudar em grupo, como destacaram os professores ao dizer que na licenciatura curta havia uma aprendizagem colaborativa. Em contrapartida, em relação à licenciatura plena, em que a maioria dos estudantes não reside na mesma cidade da instituição de ensino (Cáceres), existe, por parte dos estudantes, uma falta de identificação com o curso e um número maior de desistências. Esses fatores, hipoteticamente, poderiam gerar um distanciamento entre os estudantes, mas para os professores formadores foi caracterizado como falta de compromisso com a formação e desenvolvimento das atividades propostas.

As narrativas dos professores formadores nos permitem evidenciar um ciclo que se repete, quanto às mudanças sociais: o fato de as instituições educacionais terem parado no tempo em relação aos avanços tecnológicos, fazendo com que professores continuem ministrando aulas da mesma forma que a de 30 anos atrás; alunos que chegam à universidade carentes de uma Educação Básica de qualidade e acabam, novamente, encontrando professores que não refletiram sobre suas Pedagogias Universitárias. Isto é, suas ações docentes continuam baseadas nos modelos vigentes há três décadas.

Por fim, compreendendo as possibilidades e dificuldades presentes na instituição pública pesquisada - às vezes reflexo de uma conjuntura maior -, ao analisarmos uma amostra do corpo docente e o perfil dos estudantes que chegam até essa instituição surge o questionamento: de que modo o currículo dessa licenciatura está contribuindo para a formação desses profissionais? Esse currículo considera os aspectos já mencionados nesta pesquisa? O currículo é feito para a formação de quais sujeitos? Esse currículo é pensado (re)significado por quais sujeitos?

Referências

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

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