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Ensino em Re-Vista

On-line version ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.28  Uberlândia  2021  Epub June 29, 2023

https://doi.org/10.14393/er-v28a2021-58 

Artigos de Demanda Contínua

Três olhares sobre a análise de narrativas na pesquisa em educação matemática

Tres miradas sobre el análisis narrativo en la investigación en educación matemática

Carla Regina Mariano da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-3591-0242

Kátia Guerchi Gonzales2 
http://orcid.org/0000-0003-2827-2545

Maria Eliza Furquim Pereira Nakamura3 
http://orcid.org/0000-0002-2137-2765

1Doutora em Educação Matemática. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil. E-mail: carla.silva@ufms.br.

2Doutora em Educação para a Ciência. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Nova Andradina, MS e Universidade Anhanguera-Uniderp, Campo Grande, MS, Brasil. E-mail: profkatiaguerchi@gmail.com.

3Doutora em Educação Matemática. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ibitinga, Ibitinga, SP, Brasil. E-mail: mariaeliza@faibi.com.br.


RESUMO

Este texto discute narrativas em diferentes movimentos investigativos na História da Educação Matemática. Para essa reflexão, apresenta-se a experiência a partir de uma metodologia comum a três trabalhos. Assim, a História Oral (HO) é o aporte teórico-metodológico que coloca em movimento e faz refletir do seu potencial. Desta forma, tratamos - mais especificamente para esse texto - do modo como procedemos com as análises, explicitando para o leitor, como o caminhar da pesquisa e o amadurecimento científico do pesquisador fomentaram discussões e permitiram a constituição dos trabalhos analíticos. Os três diferentes olhares analíticos aqui apresentados enfatizam a potência da subjetividade na pesquisa, já que as escolhas teóricas estão intrinsecamente ligadas a trajetória da pesquisa e do pesquisador.

PALAVRAS-CHAVE: Formação de Professores de Matemática; Metodologia de Pesquisa; Análise; Amadurecimento científico

RESUMEN

En este texto presentamos discusiones metodológicas sobre el trabajo con narrativas en diferentes movimientos de investigación en la Historia de la Educación Matemática. Para esta reflexión, presentamos la experiencia utilizando una metodología común a tres trabajos. Así, la Historia Oral (HO) es la contribución teórico-metodológica que nos pone en movimiento y nos hace reflexionar sobre su potencial. De esta manera, tratamos, más específicamente para este texto, la forma en que procedemos con los análisis, explicando al lector, cómo el progreso de la investigación y la madurez científica del investigador fomentaron las discusiones y permitieron la constitución de los trabajos analíticos. Las tres perspectivas analíticas diferentes presentadas aquí enfatizan el poder de la subjetividad en la investigación, ya que las elecciones teóricas están intrínsecamente vinculadas al investigación y el investigador mismo.

PALABRAS CLAVE: Formación de profesores de matemática; Metodología de investigación; Analizar; Madurez científica

ABSTRACT

In this text, we present methodological discussions about working with narratives in different investigative movements in mathematics education history. For this reflection, we present the experience using a methodology common to three works. Oral history (HO) is the theoretical and methodological contribution that sets us in motion and makes us reflect on its potential. In this way, we treat - more specifically for this text - the way we proceed with the analyses, explaining to the reader how the research progresses and the scientific maturity of the researcher fostered discussions and allowed the constitution of the analytical works. The three different analytical perspectives presented here emphasise the power of subjectivity in research, since the theoretical choices are intrinsically linked to the research and to the researcher himself.

KEYWORDS: Formation of mathematics teachers; Research methodology; Analyse; Scientific maturity

É a pele que fica, uma coisa vira outra, como a lagarta vira borboleta. A casca fica. Metamorfoseou-se. Cai a casca. É assim, essa história.

Betty Mindlin

Introdução

De acordo com Goldenberg (2003, p.45), “a simples escolha de um objeto já significa um julgamento de valor na medida em que ele é privilegiado como mais significativo entre tantos outros sujeitos à pesquisa”. A autora alerta ainda que, para obter uma boa resposta, é necessário que se faça uma boa pergunta, sendo primordial a elaboração de um problema específico que possa ser investigado por processos científicos. Para isso, salienta ser fundamental tornar o objeto de estudo explícito e concreto por meio da imersão sistemática no assunto, em um processo gradual que permeia todo o desenvolvimento da pesquisa.

Não temos a intenção de que os percursos aqui descritos sejam tomados por outros pesquisadores como “o” caminho a seguir, mas sim, como exemplos dos vários possíveis caminhos que se podem percorrer. Além disso, temos o propósito, assim como pontua Garnica (2001), não de compartilhar a ideia de uma “regulamentação” mas, sim, ressaltar a necessidade de uma “regulação”, e isso, para qualquer pesquisa qualitativa. Dessa forma, partimos da premissa de que: “A pesquisa é um meio fluido, vibrante, vivo e, portanto, impossível de prender-se por parâmetros fixos, similares à legislação, às normas, às ações formalmente pré-fixadas” (GARNICA, 2001, p. 42). Regular, então, é elaborar argumentos que fundamentem os modos de agir para que a pesquisa aconteça. O que nos faz desenvolver nossas ações e que nos conduz a compreensões é a nossa própria vivência no mundo, uma vez que possibilita aflorar inquietações e insatisfações sobre o nosso cotidiano. Como esse próprio ciclo é ilimitado e constante, também devem ser nossas ações - não já determinadas, pré-fixadas, ou restritas -, assim terão flexibilidade para proporcionar outras visões e aspectos, e, segundo Garnica (2001), diversas interpretações.

Com esse pensamento, é que nós, por meio da História Oral - que permite elaborar versões a partir de experiências narradas, atreladas a movimentos analíticos sistematizados, que viabiliza atribuir sentidos para as narrativas e interpretá-las -, refletimos e apresentamos os momentos de análises dentro de três trabalhos, evidenciando algumas possibilidades.

História Oral e Narrativas

A instabilidade de não ter passos e caminhos predeterminados gera uma insegurança difícil de controlar quando estamos em um processo investigativo. No entanto, a liberdade de caminhos instaura um processo criador no desenvolvimento da pesquisa que tem, como resultado, um pesquisador que se deixa contaminar pelo objeto investigado, numa comunicação fluida entre aquele que interroga e aquilo que é interrogado.

Somos pesquisadoras imersas num contexto específico entrecortado por espaço e tempo. Lançamos nosso olhar ao passado, para uma época e lugar em que não estivemos, mas que construímos a todo o momento. Interrogamos os vestígios, as memórias, os rastros, os silêncios de experiências e como elas foram possíveis; quais mecanismos permitiram sua permanência, o que motivou ou forçou alterações num determinado cenário.

Não fazemos história de sujeitos e objetos já dados, preexistentes: como pesquisadoras nós os produzimos, os fazemos existir. Os objetos e os sujeitos não estão meramente disponíveis no mundo, cabendo ao pesquisador se aproximar deles tanto quanto possível. Nós os produzimos à medida que os interrogamos, e essas criações são fundamentalmente históricas. Ao historiografar, produzimos novas imagens, novos mundos, narrativas que podem nos permitir pensar um futuro diferente. Queremos mostrar, a partir deste passado, que inventamos, o quão diferentes já fomos e o quão diferentes podemos ser (ALBUQUERQUE Jr., 2007, p. 139).

Trata-se de olhar para um movimento, um tempo, uma prática em suas diversas formas de se manifestar e de se presentificar. Ao assumir os procedimentos da História Oral, questionamos métodos que são uma mera enunciação de passos e regras a serem seguidos. Prezamos por uma metodologia em exercício, que expõe e se expõe a críticas, considerando que não há procedimentos prontos, fechados e definitivos: a metodologia se define e ganha contornos ao caminhar. Ao caminhar, traça-se o caminho.

A metodologia de pesquisa é sempre um exercício, um fazer em trajetória e não uma mera e simples aplicação linearizada que nos permite passar por etapas em procedimentos mecanicamente implementados. Os referenciais que amparam a opção pelos procedimentos, que amparam o acesso inicial ao campo que a pesquisa pretende explorar e amparam as análises, não se apartam: completam-se e potencializam-se. (MARTINS-SALANDIM, 2012, p. 51)

Nas pesquisas que se utilizam da metodologia de História Oral são produzidas tanto fontes orais quanto fontes escritas, tendo em conta suas naturezas distintas, sem atribuir graus de valoração ou classificação entre elas. Opta-se por não hierarquizá-las. O pesquisador cuida para que não haja julgamentos de valor; serve-se de variadas fontes desde que elas propiciem gerar compreensões, interpretações, criações acerca do objeto de estudo.

Trabalhos com narrativas vêm sendo desenvolvidos há alguns anos pelo Grupo História Oral e Educação Matemática (GHOEM), utilizando-se a História Oral como metodologia de pesquisa. Em geral, o pesquisador vai em busca de personagens e documentos que proporcionam a produção de histórias sobre um tema escolhido. Essas histórias, produzidas em momentos de entrevista, são tomadas como narrativas, elaboradas a partir da oralidade, e passadas posteriormente para o papel, sendo, então, reelaboradas para torná-las mais próximas de um texto escrito. Os documentos, por sua vez, tomados como fontes, também podem ser entendidos como narrativas, já que contam àquele que os interpreta uma história.

Tomamos o conhecimento, a história, assim como as narrativas, não como espelhos e imagens fiéis deste mundo, mas chaves que nos abrem portas para possíveis mundos. Temos mobilizado as narrativas em nossas pesquisas, entendendo-as tanto como formas de expressão quanto como método de exploração para a produção de significados. Tencionamos, com as narrativas, explorar diversos olhares sobre situações históricas e, a partir delas, ampliar os significados sobre elas (CURY; SOUZA; SILVA, 2014). Garnica (2015b, p.183) afirma que a narrativa é “discurso, forma originária vinculada à possibilidade de ser, e sua manifestação é um emaranhado de sensações e enunciados nos quais personagens circulam em meio a cenários perpassados por alguma temporalidade”.

Sendo assim, as narrativas produzidas em momentos de entrevista, por alguns entendidas como versões de uma história e, por outros, como histórias elaboradas durante a investigação por diversos atores, compõem o corpo dos trabalhos aqui discutidos e possibilitam àquele que lê uma elaboração diferente daquela fixada pelo pesquisador durante a análise. Em meio a diferentes visões do que seria uma narrativa, um consenso nos parece ser o de que não há hierarquizações entre as fontes e, assim, na produção de uma pesquisa tudo aquilo que nos ajude a contar uma história é chamado em voga na investigação.

As narrativas produzidas em momentos de entrevistas são um modo de articular experiências na forma de um relato, feito em direção a alguém, em uma ordem sequencial de eventos, por escrito ou oralmente (BRUNER, 1991). A produção de narrativas em uma pesquisa histórica, de maneira geral, ocorre processualmente na medida em que significados são produzidos juntos com as fontes a que temos acesso. A cada nova leitura, uma outra narrativa é elaborada. Esses modos de entender as narrativas determinam um modo de ler o mundo, um modo de entender como as pessoas dão sentido à suas vidas: contando e recontando suas histórias.

Chamamos a atenção para o fato de que o momento da experiência é fugaz e, como tal, não pode, em hipótese alguma, ser recuperado. Mesmo a narrativa produzida no mesmo instante do acontecimento não tem essa capacidade. Ela é também uma interpretação do que está ocorrendo, carregada de sentimentos, teorizações e concepções acerca do mundo. Descrever o que se sente é muito diferente de sentir e, portanto, a classificação de fontes com base em quem narra, ou seja, dizer que existem narrativas produzidas por aqueles que vivenciaram e por aquele que ouviu, nos parece desnecessária: ambas são elaborações narrativas carregadas de subjetividade. Sempre existirá uma distância entre o vivo e o narrado. A produção de uma narrativa nada mais é que uma elaboração, intencional, do vivido. O acontecimento em si é o que chamamos de fato, e esse muda a partir da perspectiva de quem narra. O “conhecimento narrativo, em paralelo a outras ciências sociais, pressupõe que a linguagem não se limita a representar a realidade, mas constrói os modos pelos quais os humanos dão sentido a suas vidas e ao mundo” (BOLÍVAR; DOMINGOS; FERNANDÉZ, 2001, p. 07, tradução nossa). Estruturas narrativas constituem, portanto, o marco pelo qual os seres humanos dão sentido ao seu mundo. A narrativa tem, segundo esses autores, duas grandes funções: fornecer tanto formas de interpretação quanto orientações para a ação. As narrativas se relacionam às circunstâncias. “Disso não decorre que as coisas inexistem, mas que as coisas só têm sentido quando costuradas por uma narrativa. Assim, a narrativa é um discurso constituinte e não mera forma de comunicação de realidades preexistentes” (GARNICA, 2015 p. 182).

É, portanto, desse modo que vemos a vinculação entre história, narrativas e história oral. Mas como estudar as nuances do discurso do outro, como elaborar compreensões com aquilo que nos escapa? Uma primeira decisão a ser tomada quando se trabalha com narrativas é respeitar o modo como elas serão analisadas, ou ainda, as análises possíveis com base nos dados narrativos. Esse texto tem, portanto, como objetivo discutir narrativas a partir de três exercícios analíticos.

Análise

Para nós, assim como para Garnica (2014, p.52-53), as pesquisas desenvolvidas na perspectiva discutida no item anterior têm as narrativas como

[...] matérias-primas por excelência de todo o processo hermenêutico […] veículos para expressão de subjetividades, recursos para a manifestação de memórias (passadas e presentes) e vetores para compreender a experiência vivida.

E por esse motivo, a análise dessas narrativas é produzida a cada momento e a cada (re)elaboração, a cada leitura ela é explicitada e, em geral, ao final do trabalho de pesquisa elas tomam a forma de um texto. Por esse mesmo prisma, a partir da experiência vivenciada sobre determinado tema, podemos dizer que:

As narrativas, então, oferecem em si a possibilidade de uma análise, se concebermos análise como um processo de produção de significados a partir de uma retro-alimentação que se iniciaria quando o ouvinte/leitor/apreciador de um texto se apropria deste texto, de algum modo, tecendo significados que são seus, mesmo que produzidos de forma compartilhada, e constrói uma trama narrativa própria que serão ouvidas/lidas/vistas por um terceiro que retorna ao início do processo. (CURY, 2011, p. 160)

A análise ocorre a todo momento, desde quando se inicia a pesquisa, questionando, procurando fontes, encontrando colaboradores. Mas há momentos em que os movimentos analíticos ficam mais evidentes, seja na narrativa materializada por meio da textualização, seja na constituição de interpretações por meio de um texto sobre toda a investigação. Visto desse modo, os momentos de análise têm por finalidade articular compreensões sobre o que se busca entender.

Três pesquisas e três movimentos de análise

O propósito deste tópico é discutir e refletir acerca de possibilidades de análise de narrativas construídas no solo teórico da História Oral. Como motivação, apresentaremos três trabalhos que tiveram como intuito principal contribuir para um projeto maior para compreender o movimento de formação e atuação de professores que ensinam/ensinaram Matemática no Brasil.

Em um dos movimentos de pesquisa abordados neste artigo, buscou-se estudar os Ginásios Vocacionais: uma experiência educacional pública paulista considerada diferenciada. Nesta pesquisa foram produzidas nove textualizações, baseadas em entrevistas com personagens que vivenciaram essa experiência ou estiveram, de algum modo, ligados a esse período singular da educação paulista em determinado contexto e momento histórico, político, social, econômico - a década de 1960.

Nakamura (2017) apresenta uma narrativa histórica acerca do surgimento, da implantação e da extinção de seis unidades escolares fechadas abruptamente após apenas nove anos de existência. A autora analisa aspectos estruturais e pedagógicos com um olhar voltado para o ensino e a aprendizagem da matemática nos Vocacionais, bem como prováveis influências, nesse movimento, do contexto ditatorial vigente no País à época.

Das histórias narradas nesta pesquisa, Nakamura (2017) abre possibilidades analíticas, ao interpretar e produzir novas histórias elaboradas em parceria com os depoentes durante as entrevistas. Isso decorre, pois Nakamura (2017) procura exercitar uma prática análoga ao dos filósofos, no seu ofício de filosofar, ao aceitar que “a criação de conceitos é necessariamente uma intervenção no mundo, ela é a própria criação de um mundo” (GALLO, 2000, p.52). Nesse processo, busca um reaprender a ver o mundo, ressignificá-lo, reinventá-lo, já que o entende, junto aos seus referenciais, como “eterna criação e eterna mutação” (GARNICA, 2014, p. 44).

Então pergunta-se : qual a forma final “ideal” de apresentar essa história? Como costurar, numa única trama, todas as narrativas que a viabilizaram? Assumimos que a história criada totalizaria “seus componentes ao constituir-se, mas [seria] sempre um todo fragmentado, como um caleidoscópio onde a multiplicidade gera novas totalidades provisórias a cada golpe de mão” (GALLO, 2000, p. 55).

Metaforicamente, trata-se de elaborar uma colcha de retalhos que, quando vista, é uma peça aparentemente completa e estática, mas cujos componentes, se detidamente observados, têm no caótico sua beleza, têm no movimento sua contribuição para aquele conjunto (aparentemente) tão uniforme. Com isso em mente, Nakamura (2017), expõe e materializa essa produção, com a certeza de que iriam escapar muitos elementos, de que uma experiência só pode ser comunicada em fragmentos. A empreitada de criar um todo que, na mente do pesquisador, já existia como ideia idealizada, mas que ainda seria necessário tomar consistência física, exposta em documento, marcada pelas palavras, timbrada em papel.

Nakamura (2017) enuncia o que denomina “Frisa do Tempo”4, problematizando-a. Chama a atenção do leitor, ao considerar a proposta perigosa, por poder evocar uma concepção de história progressiva, contínua, sem lacunas e, concomitantemente, a coloca como poderosa tanto por apontar uma prática usual nos Vocacionais quanto por aclarar conflitos que ela fazia surgir. Tais conflitos se radicam na necessidade de tornar linear algo obviamente caótico, feito de idas e vindas, sem engessar o fluxo que pulsa nas entrelinhas de toda narrativa.

Esses conflitos - sejam os conceituais, relacionados às concepções de historiografia que defende; sejam os técnicos, que abordam a necessidade de dominar a linguagem de modo a permitir que o texto implique criação e problematização - pautaram esse procedimento aparentemente simples, mas cuja execução não foi trivial: valer-se da temporalidade do relógio, da cronologia estática, tirando proveito dela, sem, entretanto, render-se a ela.

Os tempos e as vozes não puderam ser simplesmente hierarquizados. Definitivamente, os tempos dos colaboradores, os tempos das e nas narrativas, os modos de narrar não se apoiam na dimensão Chronos5, no tempo privilegiado pela ciência moderna, regido por uma lógica formal. Os tempos da memória, cujas raízes estão fincadas nas narrativas, são caóticos, compostos por flashes, lacunas, inconsistências, descontinuidades. (NAKAMURA, 2017)

Nakamura aponta ainda novos questionamentos: como tratar dessa ambiguidade teórica? Como inventar uma história, seguindo o cronológico, sem apagar os rastros incertos do tempo da memória, dos modos de dizer? Como reencenar e reencantar “a história, múltipla, heterogênea, contraditória, como os desvãos e largos batentes onde as criaturas se abrigam e se escondem, permanecendo, contudo, no aberto das ruas ...ou quem sabe, para poder ficar nas ruas...”? (BOSI, 1994, p.30).

Algumas premissas já enunciadas neste artigo fundaram essa tentativa de análise: não elegemos as coisas do mundo como preexistentes, elas só existem à medida que a interrogamos, desejando conhecê-las. Na procura por respostas construimos interpretações e compreensões, instauramos realidades. Espaço e tempo são inerentes à experiência, estão imbricados apesar de serem comumente tratados e definidos como entes distintos e separados. É “preciso fundá-los para compreender a vida, ao mesmo tempo em que a vida dá elementos para que espaço e tempo sejam fundados e refundados” (GARNICA, 2015a, p.17).

Ao mediar temporalidades, buscamos por singularidades e convergências entre e nas textualizações e documentos, assumindo ter pés fincados no presente, e olhos e atenção voltados ao passado.

Nessa imersão, diversos elementos foram considerados relevantes, quer pela pesquisadora, quer por outros que já estudaram o tema e o elegeram e o destacaram de algum modo. Especial relevância teve não os discursos que imperam pela insistência com que são repetidos, mas aqueles, cujo sentido possibilitou desnaturalizar narrativas cristalizadas, fabricadas, construídas pela memória coletiva ao longo do tempo.

É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo nossas ideias não são originais: foram inspiradas nas conversas com os outros. Com o correr do tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates. (BOSI, 1994, p. 407)

Ao voltar sua atenção às memórias dos seus entrevistados, às fontes escritas e iconográficas, Nakamura (2017) integra também à sua narrativa, algumas expressões artísticas da década de 1960.

Num movimento intencional por centros e margens, evitando preconceitos, procura constituir um registro histórico plausível sobre os Ginásios Vocacionais e exercitar, ainda, “uma sensibilidade que tem estado ausente em nosso meio de pesquisa” (GARNICA, 2015a, p.12).

Neste terreno, nos registros finais das análises, a autora estrutura o texto em três eixos narrativos: uma história dos Vocacionais desde sua idealização até a sua extinção; algumas questões acerca do ensino e da aprendizagem da Matemática nesses espaços; e aspectos relativos à Ditadura Militar e às suas influências nos Ginásios Vocacionais.

O segundo trabalho aqui discutido é a tese de Silva (2015) que, a partir de um tema, um objetivo e um modo de ver o mundo, traçou os possíveis caminhos para estudar a história dos cursos de licenciatura em Matemática no Sul do Mato Grosso Uno. Desde a década de 1960, já havia indícios de cursos de graduação para formar professores no território que, hoje se conhece como Mato Grosso do Sul. A opção da autora foi, então, entender os movimentos de criação dos primeiros cursos do estado.

O processo investigativo está longe de ser algo linear, e assim se desenvolveu o trabalho de Silva (2015). Os dados eram, em sua maioria, narrativas e, logo na primeira entrevista, alguns modos de narrar se fizeram presentes e pareciam ditar o tom com que a entrevista era conduzida e poderia ser analisada. A cada entrevista, uma leitura foi produzida, e vários aspectos chamavam a atenção da autora, ressaltando a unicidade e a singularidade de cada entrevista. Essas características levavam cada vez para mais longe a possibilidade de se engendrar uma análise paradigmática para com o conjunto de dados disponíveis. Escrever uma análise paradigmática seria criar categorias (ainda que emergentes) e buscar trechos que ilustrassem cada uma delas, o que para a autora não parecia coerente com o compromisso estabelecido ali entre entrevistado e entrevistador.

A aposta na análise narrativa teve seu fundamento nos afetos produzidos durante as entrevistas, na relação construída entre a pesquisadora e seus pares, e no fato de a autora se sentir parte daquela história a ponto de intencionar a elaboração de mais uma narrativa, dentre as nove já produzidas. Essa, potente, contou a história não só da Formação de Professores em Mato Grosso do Sul, nas cercanias da década de 1970, como também de todo o processo de pesquisa.

Como em um primeiro exercício analítico explícito, Silva (2015) produziu uma autoentrevista construída com o mesmo roteiro utilizado com os demais entrevistados. Nesse modo de entender o contar, a análise narrativa construída por Silva (2015) tinha mais semelhança com as entrevistas realizadas, do que com a vivência e a experiência dos personagens daquela história. Pinto (2015) já nos disse que o viver e o contar são muito diferentes epistemologicamente. O viver é fugaz, o contar é elaboração. Ainda que todas as entrevistas fossem elaborações, as incertezas das bases em que a autoentrevista se acentava fizeram com que um outro movimento de análise fosse produzido.

Com base nessa autoentrevista, a autora produziu um outro movimento de análise chamado por ela de antropofágico. A análise narrativa não estava ali só para contar a história da formação de professores daquele estado do centro-oeste brasileiro, mas para relatar também toda a trajetória da pesquisa. A narrativa analítica teria, portanto, um estatuto epistemológico diferente das demais. Era uma produção que tinha intenções e direções outras. Além disso, Silva (2015) discute na tese que a construção da análise narrativa teve muitos aspectos que diziam respeito à vida da narradora, como estudante de uma licenciatura noturna, como professora de Licenciaturas em Matemática em Mato Grosso do Sul. Como aquela que saiu de sua cidade natal com o objetivo de lecionar no Ensino Superior tal qual a maioria dos seus entrevistados. Isso, no entanto, não poderia ser diferente, pois narrar é narrar-se. Somos fruto do que vivemos e nos alimentamos dessas histórias para elaborar outras histórias.

A análise narrativa de narrativas produzida foi elaborada em um movimento que pode ser entendido como um devorar do outro. Um movimento no qual histórias são assimiladas e passam a fazer parte daquele que narra. A partir do momento em que a autora se pôs a contar a história, ela assumiu para si toda a responsabilidade sobre o dito. Ao se ouvir a análise narrativa, não se escuta mais a voz do entrevistado e, sim, a fala de uma mulher, uma professora, formada em um curso com características muito próximas daqueles ali descritos. A análise narrativa como um movimento antropofágico exige que se leiam as fontes exaustivamente até que se esteja embreado da “coisa toda”, até que os entrevistados façam parte do investigador. Nesse ponto, as memórias se misturam de modo que quem falou ou como falou não fica claro. As histórias ali contadas são novamente elaboradas e deixam de ser a história de um grupo de professores, e passam a ser a história daquele que conta, quando então, embebido dos dados, o pesquisador fixa, no papel, a narrativa construída.

A produção da análise narrativa de narrativa é um “devorar” de fontes a ponto de sentirmos que aquilo nos pertence, e que aquela história poderia ter sido vivida por nós. É uma antropofagia das entrevistas, dos textos lidos, das histórias contadas. Diferente das demais, a narrativa construída no processo de análise foi produzida em um processo solitário, no qual a narradora buscou rememorar aquilo que contaria a história pretendida. Esse movimento antropofágico, no qual se produziu a análise narrativa de narrativas, consiste numa mistura de fatos percebidos não apenas no decorrer da pesquisa, mas durante toda a vida do narrador. A realidade é produzida por aquele que a interpreta a partir de aspectos construídos culturalmente. Ouvimos e dizemos o que percebemos, com base nas nossas experiências, e o resultado disso é uma narrativa impregnada de aspectos do narrador, mesmo que ele - ou suas circunstâncias - não tenha relação direta com o tema narrado.

O que aqui chamamos de movimento antropofágico são modos de “inventar compreensões, podendo elas serem as mais variadas e até mesmo contraditórias” (FERNANDES, 2014, p. 127). Para Silva (2015), a maior dificuldade encontrada no exercício praticado na tese foi realizar uma análise que tivesse realmente característica de um trabalho analítico. Somos seres descritivos, utilizamos essa nossa característica para transmitir informações a outros. Mas não a fazemos de qualquer modo. Essa elaboração sempre é feita com uma intenção e frente a alguém. A análise de uma pesquisa, no entanto, deve ir além da descrição, deve ser intencional, buscando aspectos que escapem a um olhar desavisado. Vários autores advogam pelo educar o olhar (BUJES, 2007; GOLDENBERG, 2003), e parte dessa tarefa está no modo como o pesquisador se coloca no texto, ao observar o “como” as coisas acontecem. Em nenhum dos casos é possível a mera observação da produção dos dados, uma vez que as próprias escolhas de quais aspectos devem ser priorizados em um resumo retiram o autor da função de espectador. No entanto, no movimento de análise é possível discutir aspectos considerados significativos e que podem ser vistos, pelo investigador, como decorrência de alguma ação ou acontecimento relatado pelo entrevistado. É possível ainda explicitar o “como” cada um narra. Assim, no exercício realizado em Silva (2015), cabe observar nas narrativas o uso de conjugações verbais ora em primeira, ora em terceira pessoa, entendidos como um movimento de enfatizar o sentimento de pertença ou não à ação narrada; mudanças de perspectiva diante de distintas situações (quando a história se referia às dificuldades dos alunos ela era trazida de um modo; quando se referia a dificuldades do próprio narrador ela era trazida de outro modo, principalmente quando essas dificuldades estavam relacionadas à Matemática). Responder a questão “O que se pode produzir com isso?”, dirigida a si mesmo, pode ser um caminho para a análise. Nesse processo de pensar em como se narra, podemos notar, por exemplo, no próprio texto analítico muitas repetições de temas e a retomada de falas anteriores, o que parece ter como função e intenção a necessidade de enfatizar uma determinada ideia e se fazer entender.

O terceiro exemplo de movimento analítico, dentro do grupo, é o trabalho de Gonzales (2017) que teve como questão principal compreender movimentos e o desenvolvimento das Licenciaturas Parceladas no Mato Grosso do Sul. Nesse trabalho, a autora reflete sobre as aproximações entre as metodologias trabalhadas no grupo, a História Oral (HO) e a Hermenêutica de Profundidade (HP). Observa ela, assim, que apesar de tais metodologias dialogarem, nos exercícios anteriores a esta pesquisa as metodologias eram trabalhadas e aplicadas separadamente. Há, então, uma primeira tentativa em combinar essas duas perspectivas, e a pesquisa sobre as Licenciaturas Parceladas foi desenvolvida segundo essa interpretação.

Seguindo as disposições da História Oral, a pesquisa sobre as Licenciaturas Parceladas teve como ponto de partida 14 entrevistas6 com administradores, coordenadores, professores, idealizadores e ex-alunos dessa modalidade de formação nos estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul.

Em seu texto, Gonzales (2017) discorre que uma perspectiva teórico-metodológica que se volta à interpretação de formas simbólicas é a Hermenêutica de Profundidade. Formas simbólicas são elaborações humanas intencionais, presentes em determinados espaços e tempos e que, suas produções e propagações, criam e permitem funcionar relações assimétricas de poder. Assim, a autora menciona, que é objetivo da HP, proposta por John Thompson, sociólogo inglês, compreender as ideologias que envolvem as formas simbólicas e que, de acordo com Bicudo (1993), a hermenêutica envolve a compreensão do significado das coisas produzidas pelo homem ou, ainda, da obra humana (esculturas, poesias, textos literários e/ou científicos, entre outras coisas); cujos significados estão profundamente consolidados na existência. Por conta disso, devemos estar “atentos ao encontro histórico que apela para a experiência pessoal, para as forças sociais e da tradição, presentes no dizer público” (BICUDO,1993, p.64). A autora reforça que os símbolos que manifestam a linguagem estão carregados de intencionalidade e que, ao buscar desvelar tais intenções, por meio de uma hermenêutica, compreendem-se alguns dos possíveis significados.

Ao defender as ideias de Bicudo (1993), Gonzales (2017) cita que o trabalho de interpretar ocorre sempre dentro do círculo existencial/hermenêutico. Gonzales (2017) entende que a interpretação é construída na experiência vivida pelo sujeito que interpreta a sua própria experiência e que o sujeito se conhece de maneira indireta, por meio de suas ações que são contextualizadas social e historicamente, e são mantidas e propagadas pela tradição. Enfatiza que, ao mesmo tempo em que a hermenêutica permite que o sujeito, que é intérprete, compreenda o mundo em que ele está inserido, ele também passa a se compreender como parte daquele mundo que ele compreende e, compreendendo, cria.

É perfeitamente plausível a hipótese de que, se a Hermenêutica é uma forma de interpretar a linguagem e a História Oral é utilizada em pesquisas qualitativas, isso implica que a Hermenêutica pode ser utilizada para analisar depoimentos. É nesse sentido que surge a possibilidade de trabalhar HP e HO juntas. As narrativas, criadas por meio da HO, são entendidas nesse contexto como formas simbólicas, assim como as legislações, as obras de arte, os livros etc. Em assim sendo, as textualizações podem ser interpretadas/analisadas, segundo os princípios da HP.

Thompson (2011) apresenta-nos três fases principais da HP que ocorrem, segundo o autor, ao mesmo tempo, sendo mutuamente interdependentes e complementares, pois são dimensões analíticas intrínsecas de um movimento interpretativo complexo: a análise sócio-histórica, a análise formal e a interpretação/reinterpretação7. Além disso, ao tomar algo como forma simbólica, cinco aspectos, segundo Thompson (2011), precisam ser observados: aspecto intencional, aspecto convencional, aspecto estrutural, aspecto referencial e aspecto contextual. Na verdade, a explicitação de um determinado tema como forma simbólica não é um exercício simples, de tão somente associar à pretensa forma as características sugeridas por John Thompson. Na verdade, é exatamente o exame hermenêutico que fará com que se constate que a forma simbólica é, efetivamente, uma forma simbólica.

Gonzales (2017) realizou 14 entrevistas e, consequentemente, 14 narrativas foram criadas. Vistas então como formas simbólicas, a autora teria que fazer uma HP de cada uma delas, resgatando, assim, particularidades do aspecto contextual que envolvem singularidades do contexto de produção de cada entrevista e do contexto e particularidade de cada tempo e espaço do qual fazem e fizeram parte os depoentes, bem como, dos temas que eles tratam em seus depoimentos. Foi assim que Gonzales (2017) reinterpretou: a forma simbólica que buscava entender, qual seja,: as Licenciaturas Parceladas em Mato Grosso do Sul. Para compreender essa forma simbólica, a autora recorreu a outras formas simbólicas: as entrevistas, as documentações e as bibliografias pertinentes.

Nesse contexto, dois recortes na história da educação superior desse estado foram realizados e fixados como período de análise: o momento de implantação e o momento de desenvolvimento deste modelo de formação. Ocorre que esses cursos foram constituídos em épocas distintas, um deles na década de 1970 - antes do desmembramento do estado de Mato Grosso -, e o outro na década de 1990 - após o desmembramento do estado de Mato Grosso. A inquietação da autora, então, procurou compreender como se deu a formação de professores de Matemática, em modelos não convencionais, em um estado à beira da divisão e, em outro momento, em um estado “novo”.

As quatorze entrevistas realizadas por Gonzales (2017) aconteceram de meados de 2013 a 2015, e, além das entrevistas, vários entrevistados contribuíram com outros documentos, como fotografias, projetos, livros, históricos escolares e várias anotações desse tempo de formação. Neste viés, a partir das textualizações e demais fontes, Gonzales (2017) buscou identificar elementos das experiências dos seus colaboradores que diziam respeito a algum movimento da HP, seja sobre o contexto sócio-histórico, seja sobre a parte formal das Licenciaturas Parceladas. Na verdade, como explica a autora, essa identificação ocorreu de modo natural nas várias visitações e revisitações a cada uma das textualizações, quando foram utilizadas canetas de cores diferentes, para destacar elementos nas falas dos entrevistados, que permitiam contar sobre o contexto de constituição e de desenvolvimento, bem como da estrutura do curso, da dinâmica, dos alunos, dos professores e dos coordenadores, dos recursos materiais etc. Gonzales (2017) chamou-os de “disparadores” e foram julgados como fundamentais na constituição da trama narrativa, por direcionarem uma discussão, uma compreensão, uma reinterpretação dos vários movimentos que compõem as Licenciaturas Parceladas em Mato Grosso do Sul.

Baseada assim, na própria afirmação de Thompson (2011) de que a HP não se constitui por fases de análises estanques e lineares, Gonzales (2017) explicitou suas escolhas. Optou, então, por iniciar pela análise sócio-histórica, pois, como afirma, a (re)leitura prévia desde a primeira textualização aguçava o desejo de conhecer aspectos do contexto para compreender o que levara à implantação deste modelo de formação naquele estado. Em seguida, sentiu a necessidade de se debruçar sobre os discursos dos seus colaboradores para conhecer, de modo geral, a estrutura interna dos cursos, constituindo assim a análise formal ou discursiva. Contudo, salienta que estes movimentos, embora apresentados separados, foram elaborados ao mesmo tempo nas várias idas e vindas necessárias para que tivesse condições de traçar uma análise sobre as Licenciaturas Parceladas que habilitavam professores para ensinar Matemática no Mato Grosso do Sul. A interpretação e as reinterpretações que, de modo geral, também aconteceram concomitantemente às leituras e às (re)leituras das textualizações e das mais diversas fontes mobilizadas para a compreensão do objeto em estudo, foram apresentadas depois das duas primeiras análises dos dois períodos, em uma tentativa de trazer algumas compreensões e percepções da autora desta pesquisa sobre elementos que sentiu necessidade de reapresentar ou enfatizar.

Depois de todas as considerações que Gonzales (2017) teceu sobre a HP como enfoque teórico-metodológico para auxiliar suas análises, que a HP realiza, como a própria autora observa, sem vantagens específicas ou inéditas, o mesmo papel que outras formas de análises, mais frequentemente mobilizadas e já legitimadas pelo grupo - como a análise narrativa (de narrativas) e análise por convergências e singularidades -, têm desempenhado nas pesquisas do Ghoem. Seria, desse modo, somente mais uma possibilidade dentre tantas existentes, um outro modo de fazer análise quando se trabalha com a HO. Trata-se, porém, de um modo de aliar duas formas de análise: a HP e aquelas já exercitadas pelo grupo. Sob essa óptica, seria um outro modo possível para encaminhar análises, o que torna significativo esse esforço de fundamentar essa possibilidade. A autora inclusive, justifica-se, argumentando que, por ser a HP uma metodologia sistematizada, ela pode colaborar, a partir de depoimentos, com uma análise mais sistematizada.

Gonzales (2017) destaca que, ao reinterpretar a iniciativa, aceita também o apelo de Bloch (2001, p. 121) de que não devemos nos deixar hipnotizar por nossas próprias escolhas “a ponto de não mais conceber que uma outra, outrora, tenha sido possível”.

Conclusão

São os estudos, que compõem este texto, com abordagens mais teóricas sobre a análise, que nos permitem perceber que as transformações na sociedade, na busca incansável pelo desenvolvimento, tornaram possível, a partir das relações político-sociais, o surgimento de propostas educacionais, que criaram um novo espaço no qual modos de formação floresceram.

As três pesquisas mencionadas neste trabalho foram exaustivamente dedicadas a História da Formação de Professores de Matemática no Brasil, e tomaram como referência, ainda que com pontos de vistas distintos, exercícios analíticos conduzidos por meio de e/ou a partir de narrativas.

Intencionam uma simbiose entre teoria e prática, na qual os aspectos metodológicos enunciados imbricam e se misturam no processo e não num momento próprio, estanque dos demais, no qual se enunciam todos os passos e procedimentos e, logo em seguida são, muitas vezes, esquecidos e descartados. Sob essa óptica, nesses três movimentos de teorização por vezes é possível notar o discurso se modificando, e até mesmo oscilando, uma vez que somos atravessados por distintos discursos e nesses atravessamentos nos constituímos. Uma análise não é uma versão definitiva de um tema, mas sim, um “arrazoado das compreensões que conseguimos costurar nessa trama de escuta atenta ao que a nós foi dito” (GARNICA, 2007, p. 61) aliado aos documentos.

Alguns caminhos analíticos são interpretados como mais seguros, como formas de dizer, vinculados a determinados referenciais teórico-metodológicos de quem os usa. Contudo, aqui, e em nosso grupo, esses caminhos têm outro estatuto: ligam-se às necessidades próprias de cada uma das pesquisas e do sujeito que a produz.

Assim como as análises por nós realizadas, há uma variedade de rotas possíveis a serem seguidas, por isso cabe ao pesquisador não só conhecer as fundamentações teóricas e procedimentos, como também os exercícios de análise realizados por outras pesquisas. É fundamental que o pesquisador se permita conhecer e percorrer outros caminhos analíticos. Todavia, reconhecemos que, na formação de um pesquisador, os primeiros exercícios requerem tutela e continuarão por muito tempo demandando pertencimento, que será regulado pelos pares de suas áreas em suas comunidades acadêmicas. Ele, inicialmente, tem em mãos os instrumentos, que o auxiliarão a construir suas interpretações analíticas, contudo, como em uma oficina em que é significativa a prática exaustiva para que possa se abrir à novas possibilidades, o pesquisador constitui-se ao conhecer, ao se apropriar e se arriscar a cada prática sobre o objeto de pesquisa que elege.

Em suma, visitar e reconhecer outros caminhos aventurados em outros grupos de pesquisas da mesma linha, com outros referenciais teórico-analíticos e a exposição dos trabalhos para pareceristas, importam para ampliar as possibilidades e para auxiliar a encontrar respostas e, principalmente, para incrementar o próprio processo de construção e teorização no interior dos grupos de pesquisa, em nosso caso, o Ghoem.

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4A expressão “Frisa do Tempo” surgiu no depoimento das senhoras Cecília Guaraná e Lygia Tibiriçá. Elas contam como, no Ginásio Vocacional de Americana, usavam essa estratégia didática para estudar História e Geografia: era confeccionado e exposto na parede da sala de aula de Estudos Sociais um painel, uma linha, na qual professores e alunos inseriam as datas e acontecimentos, em ordem cronológica, e à medida que se aprofundavam num determinado tema, acrescentavam detalhes e informações no painel permanentemente exposto. Frisa do Tempo foi um dentre os vários recursos didáticos usados nos Ginásios Vocacionais. É, em resumo, uma maneira de linearizar o tempo, registrando, numa linha contínua, eventos julgados significativos (NAKAMURA, 2017).

5Chronos é o tempo como mais comumente concebido: um tempo linear, uma sucessão de eventos numa linha. Nossas compreensões, com o desenvolvimento desta pesquisa, ocorreram de modo descontínuo, sofreram avanços, revezes, retrocessos, vazios. Mesmo cientes de estarmos num movimento ditado por um tempo kairos - o da memória de nossos depoentes, “aquele da percepção da experiência, da experienciação, do tempo descontínuo, sensual, vertiginoso da memória” - , optamos por obedecer, aqui, a um tempo Chronos, “preestabelecido pela civilização do relógio” (GARNICA, 2015b, p. 182-3).

6As entrevistas foram realizadas com os professores Carlos Henrique Patusco, Masao Uetanabaro, Sérgio Delvízio Freire, Luiz Carlos Pais, José Luiz Magalhães de Freitas, Sidnei Azevedo de Souza, Edmir Ribeiro Terra e Celso Correia de Souza, com o coordenador Antônio Lino Rodrigues de Sá, com a secretária Maria Luiza da Silva Correa e com o ex-aluno Antônio Enes Nonato. Os idealizadores das propostas das Licenciaturas Parceladas Gilberto Luiz Alves e Antônio Carlos do Nascimento Osório, também foram colaboradores desta pesquisa.

7Devido a limitação desse texto alguns conceitos não são aprofundados, para entender mais sobre cada uma dessas fases ou dimensões, sugerimos a leitura de Thompson (2011).

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

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