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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.29  Uberlândia  2022  Epub 08-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v29a2022-24 

DOSSIÊ 2: ENSINAR E APRENDER GEOGRAFIA EM TEMPOS DE HIPERCONECTIVIDADE E POLARIZAÇÃO DE IDEIAS

Lendas, complôs e realidades alternativas: as narrativas acerca da realidade contemporânea e os regimes de conhecimento

Leyendas, tramas y realidades alternativas: narrativas sobre la realidad contemporánea y regímenes de conocimiento

1Doutora em História Social. Professora do Departamento de Bens Culturais da Universidade de Bolonha, Itália. E-mail: giuliacrippa69@gmail.com.


RESUMO

O artigo analisa a constituição de novos regimes de verdade, observando uma série de fenômenos que decorrem, em grande parte, de processos ligados à modernização e as mudanças que compõem nossa contemporaneidade. Busca-se entender como os regimes de verdade se estabelecem a partir da hipótese de que se trata de sistemas de crenças que, consolidados no tempo, sofrem processos de mutação constantes. Adota-se como metodologia principal o estudo bibliográfico. Conclui-se que as narrativas são ligadas às formas de interpretar a realidade, permitindo o reconhecimento das identidades; são também um conjunto de procedimentos cognitivos que geram os conhecimentos individuais e compartilhados, tornando tal conhecimento objetivo, real e crível.

PALAVRAS-CHAVE: Regimes de verdade; Conhecimento; Realidade contemporânea

RESUMEN

El artículo analiza la constitución de nuevos regímenes de verdad, observando una serie de fenómenos que resultan, en gran parte, de procesos ligados a la modernización y a los cambios que conforman nuestra contemporaneidad. Busca comprender cómo se establecen los regímenes de verdad a partir de la hipótesis de que se trata de sistemas de creencias que, consolidados en el tiempo, sufren constantes procesos de mutación. La principal metodología adoptada es un estudio bibliográfico. Concluimos que las narrativas están vinculadas a las formas de interpretar la realidad, permitiendo el reconocimiento de las identidades; también son un conjunto de procedimientos cognitivos que generan conocimiento individual y compartido, haciendo que dicho conocimiento sea objetivo, real y creíble.

PALABRAS CLAVE: Regímenes de verdad; Conocimientos; La realidad contemporánea

ABSTRACT

The article seeks to analyze the constitution of new "regimes of truth", observing a series of phenomena that result, in large part, from processes linked to modernization, considering, also, the changes that make up our contemporaneity. We seek to understand how regimes of truth are established, based on the hypothesis that they are systems of beliefs that, consolidated in time, suffer constant mutation processes. Methodology: Bibliographical study. Narratives are linked to the ways of interpreting reality, allowing the recognition of identities; they are a set of cognitive procedures which generate individual and shared knowledge, making such knowledge objective, real and credible.

KEYWORDS: Regimes of truth; Knowledge; Contemporary reality

Introdução

Era uma vez a verdade. A verdade dos fatos, das finalidades, objetiva, demonstrada, comprovada. Era uma época em que havia algumas certezas, dados eram pertinentes, eventos eram reais e uma hipótese podia ser discutida no meio de discordâncias semânticas, de maneira dialeticamente democrática. Às autoridades institucionais eram conferidas a autoridade de declarar o caminho a seguir para acreditar nos fatos. Era uma época em que apelar aos fatos era imperativo e a discussão científica uma obrigação, enquanto a razão das competências era considerada um vínculo necessário ao comportamento cívico e professional. Naquele tempo, os pais encorajavam os filhos a seguirem o caminho dos estudos, conquistar um diploma, se especializar, para seguir uma carreira.

Era um regime de conhecimento assim constituído. Acreditava-se nesses ‘dogmas’.

Os regimes de conhecimento, porém, costumam mudar no tempo, deslocando suas diretrizes. Assim foi quando o mundo antigo passou a aceitar o regime de verdade do mundo cristão. Assim foi quando a secularização deslocou a verdade religiosa, substituindo-a com seu próprio regime de verdade. Do mesmo modo, hoje, nos encontramos em um ambiente social, econômico, cultural e político dominado pela polarização cognitiva, pelos convencimentos pessoais e biográficos e, acima de tudo, por uma dimensão ‘fantástica’ que põe em discussão qualquer pretensão de recorrer aos ‘fatos’.

Atualmente, nos encontramos em um mundo estranho, em que residimos em comunidades imaginárias, que só existem desmaterializadas e online, nas quais até a riqueza, o dinheiro, é ‘cripto’, é imaterial. Enquanto isso, políticos sem competências claras ganham eleições nacionais e internacionais, através da empatia não mais com os cidadãos, mas com públicos que, por sua vez, através de seus conteúdos subjetivos que alimentam o mundo online, desvelam a instituições e empresas seus ‘tecno-sub-consciente’, seus segredos reais ou fictícios. Vivemos, então, em um novo regime que possui suas verdades, que provocam consequências nas regras das relações sociais, nos modelos de credibilidade e de identidades individuais e institucionais e coletivas, cada vez menos fundamentadas em fatos e cada vez mais em emoções.

Podemos observar dois resultados evidentes nessa situação. O primeiro, que o predomínio do fantástico e da ficção permite a coexistência de todo tipo de realidade e fatos “alternativos”: situações, informações, acontecimentos, experiências que, mesmo sem existir, se tornam mais reais que a realidade, através de uma verdadeira aversão à racionalidade como fora instaurada entre o século XVIII até meados do XX. O segundo, que para viver no meio de lendas e crenças em que o conhecimento pessoal é antagônico ao conhecimento institucional, é necessário desenvolver ferramentas que permitam a compreensão das representações sociais nas quais nos encontramos, transformando tal compreensão em narrativas sustentáveis e saudáveis para nossa existência.

Nesse contexto, será, então, possível escolher quais verdades frequentar e quais regimes de verdade construir, sem nos submetermos ao existente através do medo ou da violência? Na “economia da fantasia” e no mundo da pós-verdade, o que se observa é que o tesouro a ser conquistado somos nós e, nesse sentido, torna-se necessário entender como gerenciar esse novo regime de verdade no qual nos encontramos, para nos tornarmos protagonistas - e não sujeitos passivos - de ficções que colocam em risco razão, reputação, instituições.

Neste artigo, procuramos entender de que maneira se constituem os novos regimes de verdade, através da observação de alguns fenômenos ligados, principalmente, aos processos e as mudanças propiciadas pela contemporaneidade. Tentaremos entender como tais regimes se estabelecem, considerando que se trata de sistemas de crenças que, consolidados no tempo, sofrem processos que os tornam algo novo. As narrativas são lugares onde residimos, reconhecendo nossa identidade e a dos outros, um conjunto de procedimentos cognitivos que geram conhecimentos de indivíduos e comunidades, fechando esse conhecimento em dimensões de objetividade, realidade, credibilidade. Segundo Tarde (2012), tais procedimentos cognitivos nada mais são do que a geração de crenças e mitos pessoais e coletivos que orientam nossa vida, fornecendo sentido, desejo e comportamentos. É sobre essa complexa questão que o presente texto procura discutir.

Autoridade e conhecimento: a construção do regime de verdade Moderno

A ideia de conhecimento nos remete diretamente a função da biblioteca no correr da história. Quando pensamos na biblioteca, é inevitável nos referirmos a um local onde o conhecimento é ordenado, classificado e preservado em materiais de vários tipos, desde livros a periódicos até audiovisuais, tanto em suas versões analógica como digital. É, no entanto, um ambiente onde a hierarquia existe não apenas ao considerar o aspecto da classificação, mas também na relação bibliotecário/usuário. Na biblioteca tradicional, por exemplo, o serviço de referência, a interface entre a própria biblioteca e o usuário, se observa a hierarquia na qual o bibliotecário possui mais conhecimento do que o usuário para satisfazer as necessidades deste último. O catálogo, os índices e todos os outros elementos que fornecem as ferramentas necessárias para chegar às informações buscadas destacam o caráter da ‘busca da verdade’ da qual a própria biblioteca, em teoria, garante.

Em uma biblioteca, teoricamente, encontramos os elementos publicados que representam a qualificação dos vários pontos de vista sobre o conhecimento. Não apenas reconhecemos a autoridade do conhecimento em indivíduos, mas também em livros, instituições e instrumentos. É certo que, para muitas pessoas ‘ingênuas’, qualquer publicação pode ter autoridade, mas existe uma hierarquia, o que significa que a comunidade científica e a instituição social da ciência adquiriram, durante os últimos séculos, um papel por meio de seus produtos que passaram a ser considerados confiáveis, em termos de informação, precisamente porque ‘certificados’ pelos sistemas de produção e controle da própria comunidade. Naturalmente, a questão do que isso inclui ou exclui pode ser controversa, assim como é claro que o que se precisa saber também depende do que os outros esperam saber, a fim de satisfazer as exigências do trabalho ou as obrigações sociais. É uma interação complexa, envolvendo os fatores da vontade, necessidade e expectativas dos outros, que, junto às oportunidades e habilidades de aprendizagem, terão efeitos sobre a forma como pensamos o mundo. As bibliotecas são ‘armazéns’ de produtos do conhecimento, embora isso não signifique que elas contenham a coleção de tudo o que contribui para seu desenvolvimento.

Embora a maioria da produção especializada não atinja um público amplo, existe uma indústria cultural e do conhecimento dedicada à produção de livros didáticos, popularização científica e lazer, destinada a uma ampla gama de leitores e que pode ser encontrada na maioria das bibliotecas públicas. Mesmo nessas, porém, procuramos pistas que garantam a qualidade das informações, pistas que identificamos, por exemplo, nas garantias oferecidas por certas editoras, em publicações apresentadas por organizações profissionais ou institucionais, por agências oficiais ou editoras estatais ou por prêmios recebidos. Tudo isso, teoricamente, garantiria a qualidade da oferta de informação, embora a discussão envolva os processos capazes de transformar notícias e evidências em bases de informação (VASSALLO, 2011). Em suma, a confiabilidade da biblioteca se baseia na ideia de que é possível encontrar fontes, mesmo que discordantes entre si, mas que a instituição considera ter passado por processos reconhecidos de elaboração nos campos em que foram produzidas, e lhes dá uma designação bibliográfica.

Certamente, isso não significa que a biblioteca seja o repositório de verdades absolutas: ela é um lugar onde, com o tempo, a possibilidade de encontrar informações ‘confiáveis’ foi construída, no âmbito de sistemas dotados de bases socialmente compartilhadas para formar opiniões estruturadas e, a partir delas, fazer escolhas que levam ao conhecimento. As garantias são de tipo ideal e nem todas as bibliotecas os refletem em todos os momentos. No entanto, não há dúvida de que, na base de sua existência, coloca-se a ideia da possibilidade de acesso a materiais selecionados e organizados de forma a estimular a transformação de opiniões instáveis em escolhas informativas que geram conhecimento.

As bibliotecas modernas, por meio do desenvolvimento de coleções, permitiram que os usuários se perguntassem, quando confrontados com uma única fonte, sobre a necessidade de obter mais informações sobre determinados assuntos. O papel das bibliotecas parece ter sido o de oferecer diferentes alternativas sobre vários assuntos, permitindo uma maior investigação e busca de alternativas às questões da aquisição de informação.

Encontrar as melhores coleções para as necessidades de informação pode ser um caminho complexo, e a estrutura das bibliotecas requer profissionais responsáveis por essas operações em quem se possa confiar, nas quais se possa reconhecer algum tipo de autoridade e credibilidade: os bibliotecários (GORMAN, 2004). É bom refletir aqui sobre alguns aspectos do papel dos bibliotecários a fim de compreender até que ponto sua autoridade e, portanto, a das próprias bibliotecas é construída.

Além de serem responsáveis pela custódia e recuperação de informações, os bibliotecários foram encarregados de um serviço adicional: uma de suas funções é realizar trabalhos sobre os materiais presentes, de modo a fornecer aos usuários um quadro geral do estado do conhecimento através de atividades que compõem o que chamamos de bibliografia. Uma breve digressão é necessária para compreender as razões pelas quais, com o tempo, a biblioteca tornou-se um lugar onde a informação poderia oferecer garantias para as bases de discussões e não apenas resultado de opiniões individuais. Para entender a questão, consideremos o problema de que os bibliotecários não são necessariamente especialistas nos campos em que organizam os materiais, de modo que não possuem, em certo sentido, a capacidade de exercer um controle de qualidade efetivo sobre eles, além de sua capacidade profissional para coletá-los, descrevê-los e torná-los acessíveis (MELOT, 2004).

Diante do conjunto de usuários não-especialistas, que podem ficar satisfeitos com o uso de uma biblioteca na qual os materiais são organizados e disponibilizados de forma coerente, a interferência do bibliotecário é reconhecida, mas sem o problema da atribuição de qualidade às fontes. Se estes usuários estão procurando informações para ocupar seu tempo livre, para fins recreativos, parece que a biblioteca pode ser substituída com segurança pelo acesso à rede, alegando que sua função está esgotada quando este tipo de informação se encontra, de forma multiplicada e diversificada, no mundo digital.

A questão, no entanto, nos parece um pouco mais complexa. Dissemos que um bibliotecário não pode avaliar completamente o conteúdo dos materiais que ele manipula. Logicamente, portanto, ele não poderia oferecer aos usuários a distinção entre informações corretas ou incorretas. O bibliotecário, entretanto, opera no âmbito de um sistema muito mais amplo, que atribui um valor cognitivo a um conjunto de fontes, que podem ser produzidas por críticos e compiladores de listas de referência, compostas de dicionários, enciclopédias, manuais, periódico. O que foi estabelecido ao longo do tempo é o princípio de que aquilo que os bibliotecários reconhecem como obras de referência padrão assume um valor de autoridade pelo conhecimento e pode ser considerado confiável para as necessidades de informação (WILSON, 1983).

Do mesmo modo, pode-se dizer que, embora a biblioteca não seja um lugar de verdade absoluta, nela trabalham profissionais que, dentro de um sistema mais amplo de produção de conhecimento, estabeleceram metodologias que permitem a seleção e o fornecimento de informações consideradas confiáveis porque o são por causa dos processos estabelecidos nas diversas áreas que as produziram. Pode parecer irrelevante reiterar esses aspectos que caracterizam a constituição das bibliotecas na modernidade, mas os consideramos bastante atuais em um momento em que estão passando por uma fase de descrédito, pois estão em uma falsa competição com as múltiplas e, aparentemente, muito mais amplas ofertas da rede global.

Nessa rede global aparentemente ‘rica’, parece-nos, existir uma armadilha bastante perigosa: a questão da seleção e confiabilidade das fontes está em aberto e ainda sem soluções satisfatórias. Pensemos, de fato, como funciona a lógica da Ciência da Informação quando ela se dedica aos problemas da comunicação do ponto de vista da eficiência, mas indiferente à qualidade das mensagens, lidando, portanto, com a perspectiva mais puramente informativa e não-informativa. A grande preocupação dos sistemas informatizados de informação tem se concentrado na velocidade e confiabilidade dos sinais, mas não na seleção e qualidade do que esses sinais transportam. O importante neste campo tem sido desenvolver sistemas nos quais o que foi transmitido corresponde ao que foi recebido (ou seja, a base da informação é a teoria matemática de Shannon (1948), mas qualquer informação transmitida, nesta lógica, tem o mesmo valor de informação, independentemente de seu emissor. A preocupação dominante, nessa perspectiva, é que a informação recebida é a informação necessária, e não que ela corresponda ao resultado produzido dentro de certos campos do conhecimento.

Da mesma forma, o aspecto da competência informativa do usuário, que pode ou não ter a capacidade de buscar as informações apropriadas, não é considerado, nessa perspectiva informacional. Para resolver este tipo de problema, é preciso recorrer a especialistas com as habilidades dos bibliotecários, bibliógrafos e catalogadores. Os bibliotecários não precisam avaliar diretamente a qualidade dos documentos em uma biblioteca, mas podem oferecer caminhos de informação com base em materiais selecionados na autoridade que é atribuída aos campos em que esses materiais são produzidos (MELOT, 2004). Portanto, as bibliotecas fornecem fontes de informação aceitáveis porque se baseiam em sua produção em campos socialmente reconhecidos. As bibliotecas, por sua vez, desenvolveram seus próprios padrões de referência comunitários e metodologias profissionais que as tornaram confiáveis na organização e disponibilização de materiais. Os bibliotecários, nesse sentido, representam uma classe profissional cujas habilidades residem em encontrar fontes produzidas de maneira que lhes permitam reconhecer a autoridade profissional em relação ao conhecimento.

A biblioteca, até o advento da web, foi um lugar estruturado com base nas necessidades de conhecimento que refletem ideias claramente positivistas da ciência e do conhecimento que são propostas, idealmente, como certificadas pela própria ordem que a biblioteca possui e que ela reflete em suas ferramentas de organização e pesquisa. Independentemente do fato de a biblioteca poder ser 'universalista' e não especializada, a divisão que ela propõe está ligada a divisões disciplinares que identificam, ainda hoje, aquela tripartição baconiana da mente que divide seus produtos entre razão, memória e imaginação.

Com o advento da rede mundial de internet, no entanto, essa relação hierárquica tende a se dissolver, já que o que é validado e classificado pela instituição da biblioteca, à qual Latour (2004) atribui um papel fundamental na rede de produção de conhecimento, é equiparado a informação efêmera que, através dos mecanismos de busca, se encontra tendo o mesmo peso que a informação 'certificada'. Toda informação adquire, assim, valor, dentro de um contexto de pesquisa individual no qual os filtros disponíveis muitas vezes não são familiares aos usuários. A distinção entre verdadeiro e falso perde suas fronteiras, representadas, na história, pela própria biblioteca e suas divisões internas (RADFORD, 1998). Nos espaços da rede global, o princípio da autoridade e a divisão dos campos do conhecimento transcendem as fronteiras dos campos disciplinares e o conhecimento torna-se, para usar a metáfora de Bauman (2002), 'líquido'.

Um exemplo interessante a esse respeito é a Wikipédia, a grande "enciclopédia" online compilada por voluntários, cujo uso é muitas vezes considerado polêmico, mas que, objetivamente, representa hoje uma das mais rápidas e eficazes fontes de consulta para usuários online em busca de respostas e informações diárias.

Gostaríamos de relembrar aqui um conto de Borges (2003), Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Nessa história, que pertence ao gênero fantasia, encontramos o autor em uma conversa com seu amigo Bioy Casares, ouvindo falar de Uqbar, um lugar desconhecido ao qual Bioy se refere. Borges pergunta onde ele tinha lido sobre isso, e Bioy responde ter encontrado a referência a Uqbar na The Anglo American Cyclopaedia. Como Borges tem uma cópia da enciclopédia em casa, ele a consulta, mas não consegue encontrar a entrada. Borges pensa que Bioy atribuiu uma de suas próprias invenções a outras fontes, mas, por modéstia, não quer tirar crédito por ela, e só podemos compartilhar com Borges nossas dúvidas sobre a existência da Uqbar. Bioy volta para casa e, em sua edição da enciclopédia, encontra a entrada Uqbar, que mais tarde ele mostra para Borges. É uma história de fantasia, cuja natureza literária está além de qualquer dúvida. Uqbar existe apenas na fantasia, e a enciclopédia citada é também um produto da fantasia, modelado na Enciclopédia Britânica, muito mais real, que em uma biblioteca seria catalogada na classe de obras de referência.

Um século depois, quando estamos procurando informações genéricas, muitas vezes nos encontramos usando a Wikipédia: como nos diz Lucia Sardo (2016, p. 435),

A Wikipédia tornou-se a solução para improvisar necessidades de informação [...], para a necessidade de informação rápida sobre algo, para ter uma ideia sobre um tópico desconhecido ou quase desconhecido, para encontrar mais informação sem necessariamente ter que passar por outras formas de pesquisa. Um ponto de partida sólido e confiável. Isto é o nós gostaríamos que fosse.

O storytelling: narrativa e interesses

Perante à maré de informação, tentamos manter o controle sobre o mundo contando histórias: tentamos manter sua coerência através de narrações, simplificações intrínsecas, pois nenhuma história singular consegue dar conta de tudo que acontece: o mundo é demasiadamente complexo para ser contido em contos. Porém, ao invés de aceitar esse dado, tornamos nossas histórias mais complexas, labirínticas e sem conclusão fechada. Dessa forma, a paranoia, em uma época de excesso de informação, produz um efeito feedback: a falta de entendimento de um mundo tão complexo traz a necessidade de quantidades cada vez maiores de informação que, por sua vez, confundem nossa compreensão, revelando complexidades inesperadas, das quais teremos que dar conta com teorias sobre o mundo ainda mais complexas: um número maior de informações não produz, necessariamente, maior inelegibilidade. Pelo contrário, pode ter o efeito de criar um caos maior.

Uma das formas atuais de realizar isso é o chamado Storytelling. Não se trata, simplesmente, da tradução inglesa que define o ato de contar histórias. O uso deste termo define uma metodologia e uma disciplina que, através de princípios retóricos narrativos, gera narrativas capazes de influenciar diferentes públicos que podem se identificar com eles. A narração de histórias é hoje amplamente utilizada por empresas, política e economia para promover efetivamente valores, ideias, iniciativas, produtos e consumo, através de uma abordagem disciplinar que se concentra na dinâmica da influência social que, por sua vez, é aplicada às necessidades das empresas, do consumo e das instituições.

São histórias cujo objetivo é nos convencer de ideias e modos de consumo, relacionadas com a esfera da comunicação propagandística. O uso do termo inglês se deve ao fato de que suas características não residem simplesmente em contar uma história, mas em desenhá-la para serem mais eficazes. O uso de técnicas específicas de narração é visto, nos negócios, como produtor de vantagens estratégicas na competição de mercado, não apenas em termos de comunicação, mas - isto é o que nos interessa - também em termos de cultura. Neste sentido, as narrativas construídas através do storytelling permitem às empresas alcançar posições dominantes no universo de símbolos e discursos capazes de estimular os impulsos consumistas.

A narrativa é, assim, utilizada para dar sentido às ações cotidianas, de modo que a comunicação envolve aspectos emocionais, com o objetivo de criar identidades coletivas e individuais que permitam que as pessoas se reconheçam na vida e no trabalho. As narrativas construídas pelo storytelling, graças ao uso da retórica que busca a dimensão emocional, prestam-se à constituição de memórias coletivas e individuais capazes de garantir a continuidade de conhecimentos escolhidos e a orientação do comportamento, como no caso da opinião pública. Por meio delas há o desenvolvimento de uma cultura de valores e atitudes que se refletem no cotidiano, através de narrativas capazes de comunicar atividades e ideias de forma eficaz e de facilitar a exposição dos problemas para encontrar soluções. Essencialmente, o storytelling comunica ‘visões’ de consumidores e/ou políticas.

Narrativas dessa natureza são diligentes na criação de personagens capazes de cativar o público, usando histórias que são agradáveis de ouvir, que podem gerar espaços imaginativos. Nesse sentido, o storytelling é mais eficaz quando transposto da tecnologia da informação para plataformas multi/trans-mídia.

O ato de contar uma história através do storytelling adquiriu, portanto, novas nuanças e significados, em particular a narração transmídia, que se tornou a arte de narrar em plataformas digitais, com base no pressuposto de sua interatividade e compartilhamento (CODELUPPI, 2012). Em um contexto cultural de convergência midiática, que nos encontramos, a arte de contar histórias, tendo como suporte diferentes mídias, pode ser considerada como a principal estratégia de entretenimento adotada por grandes conglomerados.

A expansão da narrativa em diferentes plataformas é um estímulo para a criação de sinergias entre produtos, graças à integração horizontal de áreas de entretenimento e à busca do desenvolvimento de franquias de conteúdo (marcas). Neste contexto, o storytelling transmídia difere dos modelos narrativos tradicionais por ser capaz de criar universos narrativos expandidos e por causa de seu alto grau de complexidade narrativa.

Henry Jenkins (2007) criou o termo transmedia storytelling, uma ferramenta criada para o desenvolvimento e reconfiguração do entretenimento em multiplataformas, que se torna onipresente na sociedade em rede e estimula o compartilhamento de informações, a partir de um modelo de cultura participativa, ou seja, capaz de dar visibilidade ao diálogo entre produtores e consumidores/fãs.

Para entender o que está acontecendo para além do uso do storytelling como forma de entretenimento, é necessário tentar uma reflexão sobre as narrativas a partir dessa perspectiva multimídia comparativa, já que a narrativa usada nas plataformas digitais ultrapassa as fronteiras da fantasia, para tomar conta da vida cotidiana.

Hoje, as narrativas estão, de fato, espalhadas por toda a mídia global, com uma força inigualável. O storytelling é um poderoso canal de acesso à informação, que pode ser transferida de um conjunto de dados para um plano narrativo. É, portanto, uma forma de organização da informação, um método de aproximação das emoções e um meio de construir comunidade.

Uma narrativa desenvolvida como storytelling é uma história que tem um início, um desenvolvimento e uma conclusão, personagens, uma sequência de eventos e uma progressão de coisas em movimento, enquanto a informação é composta de pontos, os dados: a narrativa 'conecta' os dados, e é eficaz quando é composta de uma sequência narrativa na qual a ordem de uma história pode não refletir o desenvolvimento cronológico dos fatos, ou a contingência das relações de causa e efeito. Ela deve destacar detalhes aparentemente insignificantes e ser percebida como não aleatória, com uma trama coerente entre as várias partes e o todo. Uma característica da narrativa é sua coerência, que a torna verossímil, enquanto o centro do ato narrativo é a experiência do contador de histórias, aquele que transforma esta experiência em uma narrativa.

Para identificar os elementos da narração de histórias, podemos adotar como referência Stefano Calabrese (2010), apenas ressaltando que todas as narrativas de storytelling estão organizadas em torno do desejo de um ator de seguir e promover um objetivo, apesar dos obstáculos existentes e graças ao planejamento para remover esses obstáculos. Conforme mostra o autor, já a partir dos três anos de idade somos capazes de elaborar estilos de narração que nos permitem classificar as representações mentais em que nos encontramos e compensar a falta de informação, graças a uma forma específica de memória, chamada semântica, na qual interpretamos os eventos. A capacidade de prever o futuro, como história ou destino, pertence apenas aos seres humanos, na medida em que a capacidade de narrar constitui uma ferramenta cognitiva que consegue fornecer modelos para a compreensão conceitual das situações e cooperar na configuração espaço-temporal das ações cotidianas.

Assim, as práticas narrativas compensam a lacuna entre o conhecimento teórico e as condições empíricas, enquanto conceitos, dados, que em si mesmos são deslocalizados, adquirem seu próprio ambiente e espaço graças à narrativa. Narrar algo, portanto, não significa apenas conectar eventos específicos a um esquema de referência, mas acima de tudo significa inseri-los em uma sequência de processos que permitem, entre outras coisas, prever eventos futuros.

Considerando esses aspectos, parece-nos, que os atos narrativos constituem uma grande parte das atividades cotidianas - como produtores ou consumidores - e que a forma como os indivíduos recorrem à sua imaginação preditiva, estabelecendo seus horizontes de expectativa e tomando decisões (no termo inglês atualmente usado, Problem Solving) depende desses atos. Nosso grau de inovação em contar histórias depende, em grande parte, da forma como nos submetemos todos os dias a combinações mais ou menos estáveis de memórias semânticas e sequenciais, transmitidas pelas tramas de filmes, livros e storyboards publicitários.

Antes de ir mais longe, gostaríamos de pontuar que quando destacamos a cultura convergente como um elemento que elimina as hierarquias do conhecimento e a elaboração de novos caminhos do conhecimento com base no relato de histórias, não estamos endossando uma perspectiva de "populismo cultural" que aceita de forma acrítica manifestações estéticas de origem popular de forma acrítica em sua totalidade: trata-se de tomar nota de fenômenos que cruzam os diversos campos do estudo acadêmico, estabelecendo entre eles uma dialética que possa oferecer uma melhor compreensão de certos fenômenos culturais (FABRIS, 2012).

A ideia de conhecimento, como vimos, é marcada pelo processo de construção da autoridade de grupos e instituições, tornando-se um dos elementos capazes de articular a própria ideia de progresso. O modelo de comunicação observado neste horizonte de cultura positiva não é diferente do delineado nas bibliotecas tradicionais, e pode ser esquematizado em uma sequência linear e unidirecional que vai do emissor, através do meio, até o receptor (HOOPER-GREENHILL, 2000; SOLIMINE & ZANCHINI, 2020). Em tal dispositivo, o receptor só é considerado no momento em que ocorre o "transbordamento" de informações. A seleção e o controle dos significados são tarefa exclusiva do remetente, enquanto o meio é o núcleo da comunicação Nesse sentido, o termo "disseminação" representa bem o ato comunicativo no qual o público é um receptor passivo.

É um modelo que oferece um "imperativo moral": a função do conhecimento e dos lugares a ele deputados é educar, enquanto os processos desenvolvidos para esse fim visam "administrar" a informação a ser assimilada. O princípio da autoridade pertence ao emissor, que parece estar dotado do conhecimento legítimo a ser distribuído ao público que, por sua vez, ainda não é visto pela perspectiva da cultura como um "sistema concreto de significação" (WILLIAMS, 2000), ou seja, com o foco naqueles aspectos da vida social que contribuem para a construção de significados.

As modernas concepções de conhecimento e dos atores que o produzem e permitem o acesso a ele foram, portanto, positivas, e se propuseram a representar ideais de conhecimento enciclopédico e universal, visíveis na própria separação dos espaços, onde os estudiosos se opunham ao público em geral.

Nesse ponto, podemos considerar a mudança trazida pelas tecnologias digitais que, como já assinalamos, tornam possível reunir e organizar os dados de informação fora dos quadros disciplinares tradicionais, e que permitem o desenvolvimento do conhecimento sem fronteiras claras entre o real e o fantástico.

Um exemplo pode ser visto pela observação de canais de televisão que ostensivamente oferecem popularização científica e, na realidade, tendem a oferecer ficção sem nenhuma relação, ainda que distante, com o gênero que chamamos documentário. É o caso de produtos de alta circulação como os de canais de TV Discovery Channel e National Geographic, que se apresentam como espaços de popularização científica e entretenimento inteligente, mas em cuja programação se encontram programas dedicados à descoberta de seres fictícios, como as sereias ou os dragões que, pela apresentação homogênea com os documentários propriamente ditos (mesma linguagem, personagem que se apresentam como pesquisadores científicos, formas de narração), a partir de criaturas mitológicas geram "fatos" científicos impossíveis2.

O entretenimento “inteligente” é um campo muito produtivo, em termos de produto que se transferem e realizam em lugares materiais que podem ser visitados. Dois exemplos podem ilustrar como funciona. O primeiro é inspirado na conhecida série de televisão CSI série criminal americana exibida pelo canalColumbia Broadcasting System (CBS), a qual oferece um caminho que permite viver a aventura de um crime, em busca de sua solução. Em um site específico3 se encontram as informações para fazer uma visita real ao local da exposição, mas uma experiência virtual também é possível. O ponto interessante é a referência ao fato de ser um produto que se apresenta como aventura educacional na web: de fato, se trata de um jogo projetado por uma universidade. Nesse sentido, o aspecto "cultural" da atividade é estimulado, mais uma vez quebrando a fronteira entre o real e a fantasia, entre a ciência e o jogo. Cultura, lazer e entretenimento são agora inseparáveis, e o acesso à rede tende a fazer tudo convergir nessa direção, produzindo uma relação em que não há mais separação entre ciência e fantasia.

O caminho dos regimes de verdades passa pelos modos oferecidos pela cultura convergente - que não exclui, mas produz novas materialidades - na lógica do conhecimento, agora inegável, já não visto exclusivamente como responsabilidade da esfera pública, do Estado, da escola que, numa perspectiva Iluminista, o propôs como fundamento do progresso e como meio de educar os cidadãos.

Em alguns aspectos da cultura convergente que a tecnologia digital traz em jogo, destaca-se o desenvolvimento de processos culturais que, através do storytelling, rompem fronteiras e hierarquias tradicionais de conhecimento, como forma de narrativa baseada nos interesses e recursos de planejamento e marketing de empresas capazes de elaborar estratégias de vendas em uma base global.

Dessa forma, apontamos a perda de orientação na apropriação do conhecimento que a rede global produz, especialmente quando se busca informação sem mais filtros, como se fazia em uma biblioteca. Entretanto, não é possível ser defensores de hierarquias pré-existentes, pois essas não são mais capazes de refletir as necessidades atuais da construção do conhecimento. Se as narrativas da modernidade são agora pouco convincentes, porém, notamos com preocupação que o que as substitui na narrativa da cultura e de seus produtos está essencialmente ligado às necessidades do mercado, com as contradições que isso implica quando pensamos na necessidade de permanência da memória e na necessidade de renovação constante dos bens que o próprio mercado exige para existir.

Gostaríamos de ressaltar que estamos mostrando o quanto a cultura convergente é elemento que elimina as hierarquias do conhecimento e a elaboração de novos caminhos do conhecimento com base no relato de histórias. Não estamos endossando uma perspectiva de 'populismo cultural' que aceita de forma acrítica manifestações estéticas de origem popular: é questão de tomar nota sobre os fenômenos que atravessam os vários campos do estudo acadêmico, de modo que, ainda hoje, falamos de cultura em um sentido "alto" em certas áreas disciplinares e de comunicação em outras, sem estabelecer entre elas uma dialética que possa oferecer uma melhor compreensão dos fenômenos culturais. A cultura que produzimos hoje precisa ser pensada e gerenciada de uma nova maneira, considerando-a a partir de uma perspectiva distinta daquela que separa a alta cultura da cultura cotidiana, como ainda é muitas vezes vista a partir da perspectiva das teorias sociais sobre o assunto.

Antes era a Ciência, seu método e a informação

O método científico, marco da modernidade, em princípio permite que qualquer um possa repetir um percurso de conhecimento que vai da pergunta à resposta. A reprodução das experiências leva à confirmação, modificação, aprimoramento, bem como à refutação dos resultados. Uma forma interessante de se pensar a ciência é pela ideia de conhecimento holístico e integral, em seu começo humanista: uma proposta de "inteligência coletiva". É no Novum Organum de Francis Bacon (1999), manifesto da revolução desejada, mas ainda não realizada, do pensamento cientifico moderno, que se encontra o modelo institucional de produção, conservação e disseminação do conhecimento. Vale dizer que esse é o tripé que sustenta o que o ocidente chama de ciência: os lugares de ensino (escolas, universidades), os livros (que pedem uma organização editorial, para sua produção e bibliotecas para sua conservação) e, enfim, aqueles que se dedicam ao ensino ou à pesquisa.

Poderes e saberes que, todavia, se mantiveram na periferia do modelo histórico do pensamento científico, que privilegiou por muito tempo a escolha ideológica de uma ciência benéfica e de resultados, em que a produção dos saberes no ocidente se identifica com certa noção de progresso (BACON, 1999; ROSSI, 2001). Aí temos uma posição fortemente etnocêntrica, criticada desde a Primeira Guerra, e que, depois do fim da Guerra Fria retoma, aos poucos, sua força, aliando-se, quase um neopositivismo, às políticas neoliberais da globalização dos mercados. As empresas do sistema capitalista, por exemplo, possuem um acesso extraordinário às informações que, com a ajuda das tecnologias de armazenamento, podem ser recombinadas e aplicadas a todas as finalidades e em todos os contextos, enquanto mercadoria. Por outro lado, isso determina uma grande pressão sobre o trabalho. A e-economy não pode funcionar sem trabalhadores capacitados, tanto tecnologicamente quanto em termos de conteúdo, nesse fluxo enorme de informações, organizando-as e transformando-as, portanto, em conhecimento específico, apropriado para o objetivo e a finalidade do processo produtivo. A “mão de obra intelectual” que se ocupa da info-esfera deve ser altamente instruída, capacitada para assumir iniciativas (CASTELLS, 2009). As empresas, pequenas ou grandes, dependem da qualidade e da autonomia da mão de obra.

Os trabalhadores intelectuais, “mão de obra” altamente especializada, devem ser capazes de reprogramar-se, em suas capacidades e conhecimentos, e de pensar conforme objetivos em rápida mutação, frequentemente no âmbito de um ambiente de empresas em evolução. Tal capacidade de programação ou autoprogramação requer um determinado tipo de instrução, e o patrimônio de conhecimento e informação acumulado deve ser constantemente ampliado e modificado (CASTELLS, 2009; BERRAREI, 2005). Isso tem consequências extraordinárias nas demandas ao sistema de instrução, tanto durante os anos de formação quanto durante os processos de manutenção e atualização.

Aprender como aprender se torna uma necessidade, assim como adquirir a capacidade de transformar a informação obtida no processo de aprendizagem em conhecimento específico, são duas necessidades que investem todos os âmbitos do conhecimento. Em um sistema em que o conhecimento se tornou hiperfragmentado pelo excesso de especialização, é preciso estabelecer em que medida aprender para a manutenção de um sistema ligado a lógica da informação enquanto mercadoria e capital, rendendo-se a uma racionalidade puramente tecnológica (MARCUSE, 1999). É um quadro que desenha os trabalhadores como “executores” de ordens, eficientes e atualizados, mas, ainda assim, meros executores das políticas neoliberais.

Por outro lado, a busca de um caminho científico crítico reacende o debate sobre as instituições ligadas à informação, desenvolvidas na base do projeto de Bacon; o responsável do “centro de cálculo” de uma rede de academias, de pesquisadores e docentes, que já era o bibliotecário (LATOUR, 2000), reclama para si um papel de influência não somente na discussão sobre como organizar o conhecimento, mas também sobre por que classificar, para quem e para que, buscando transferir seu foco de um saber-fazer para um saber-dizer (CERTEAU, 1996).

Pesquisar a teoria significa considerar alguns “a priori” que permitem justificar o enaltecimento do objetivo como lugar privilegiado, em detrimento de outros lugares possíveis: é o chamado método científico, um meio reto, deliberadamente escolhido para obter um resultado desejado. O método destaca determinados objetos, para tratá-los em condições de “laboratório”. Desde o século XVII, a ideia de método transforma radicalmente a relação entre o saber e o fazer. Nas palavras de Michel de Certeau, “impõe-se o esquema de um discurso que organiza uma maneira de pensar em maneira de fazer, em gestão racional de uma produção e em operação regulada sobre campos apropriados” (CERTEAU, 1996, p. 136). No caso do campo da informação como estrutura capaz de regular o regime de verdade da Modernidade, o cerne da discussão não se reduz ao dualismo teoria/prática, ou seja: a uma oposição entre a “especulação” epistemológica e as “aplicações” concretas, mas visa duas operações diferentes, uma de natureza discursiva e outra não discursiva. Desaparece a fronteira hierárquica da especulação e da aplicação, para estabelecer o discurso daquelas práticas ainda não articuladas pelo discurso.

Observamos o que acontece na passagem do mundo medieval para a Modernidade, através dos enunciados destinados a se desenvolver na constituição do regime de verdade científico: o movimento de criação do enunciado científico se esboça, em suas bases, por volta dos séculos XVI e XVII: pensadores como Galileu, Newton, Bacon, propõem novas formas de conhecimento do mundo, que identificam no empirismo seu núcleo central, para realizar o qual é necessária uma separação entre erudição, magia e experiência.

A palavra não é mais uma dádiva dos deuses e, quando escrita, sagrada. A palavra se divulga em seu suporte impresso, permitindo, com a redução dos custos de materiais e produção, um acesso maior aos livros e um aumento impressionante no número e tipologias de assuntos. As necessidades enunciativas da ciência implicaram em uma disciplinarização de novos campos do conhecimento (EISENSTEIN, 1998; BURKE, 2003).

A organização da informação gerada nesse processo torna-se, ela própria, território essencial de experimentação das novas ideias, levando a uma reorganização dentro dos centros de informação, ou seja: as bibliotecas de materiais impressos, os gabinetes e museus e as academias e centros de pesquisa, chegando a uma ordem do universo que estabelece os processos de validação do conhecimento antes expostos.

Por longo tempo a história das ideias e da ciência concentrou-se sobre os debates em volta do conflito entre teologia e ciência, provocando, como consequência, o silêncio sobre a rede de bibliotecas, que concentra e organiza os resultados das pesquisas. Fechou-se uma caixa preta na qual a classificação do mundo natural, no século XVII, tornou-se natural também nos espaços das bibliotecas a partir do século XVIII, quando o objeto da discussão filosófica, da própria disputa, torna-se o novo princípio organizador a partir do qual o homem ocidental constrói sua apreensão do mundo: a razão científica (FOUCAULT, 1988). Trata-se, portanto de uma substituição da causa pelo efeito, uma lógica dedutiva que preside a legitimidade do conhecimento. A reorganização das bibliotecas e a constituição de catálogos, repertórios e inventários, corresponde a uma maneira de introduzir, na linguagem, uma ordem do mesmo tipo daquela estabelecida para o mundo vivente, para obedecer aos critérios da legitimidade instaurada nesse novo regime dos saberes.

O fechamento dessa caixa preta colocou o campo da informação na esfera dos fazeres, externa ao plano especulativo-discursivo da ciência. Não se trata, todavia, de um campo qualquer, separado da ciência enquanto outro campo, pois, ao mesmo tempo em que se destaca como ciência em si, é o campo organizador daquilo que todos os campos do conhecimento produziram e produzem.

Essa visão do conhecimento, que segue um método compartilhado pelas comunidades científicas, ainda sobrevive em muitos recantos da academia, apesar do ritmo e das exigências neoliberais. Aliás, é o que está em disputa nas reformas universitárias por todos os cantos do mundo. Esse espírito baconiano na abordagem ao conhecimento pode ser encontrado também na obra de desenvolvimento coletivo dos criadores de software livre (SENNETT, 2009) e, em geral, temos esse espírito na medida em que aceitamos publicar nossos trabalhos como Criative Commons nas revistas Open Source. Uma certa ideia de conhecimento, uma certa ideia de ciência, um dado regime de verdade.

Vale a pena lembrar que Bacon e o mundo que se moldou com base nas propostas de ciência e conhecimento na Modernidade não separou, até o final do século XVIII, as ciências exatas das ciências humanas (FOUCAULT, 1988). Para os entusiastas do conhecimento que se descortinava aos olhos do Ocidente no começo da Modernidade, não havia distinção/oposição entre humanismo e observação do mundo natural. Talvez seja nessa separação, que se realiza, aos poucos, a mudança no regime de verdade, processo do qual vemos hoje, os resultados.

Considerações finais

O regime de verdade da Modernidade, refletido no foco exclusivo do conhecimento científico, continha não apenas suposições físicas questionáveis, mas um modelo ingênuo daquela parte da sociedade que expressava a cultura hegemônica. Além disso, foi implantado como uma prescrição social, sem qualquer interesse ou negociação sobre sua validade ou aceitabilidade. A imposição completamente irrefletida dessas premissas apenas polarizou a questão em torno da distração realista em relação ao valor verdadeiro das proposições científicas, e polêmica sobre a suposta irracionalidade das classes mais populares e a corrupção de cientistas e instituições reguladoras. Um processo de aprendizagem reflexiva teria reconhecido as condições em que se fundamentam as conclusões científicas, tirado as questões situacionais sociais que elas implicaram e examinando-as com o benefício, entre outros, das diferentes formas de conhecimento detidas por outras pessoas que não os cientistas. Este processo de aprendizagem reflexiva teria significado a negociação entre diferentes epistemologias e formas culturais, entre diferentes discursos; e como tal, teria implicado o desenvolvimento de identidades sociais ou morais dos atores envolvidos (BECK, 1992). O tema da modernização reflexiva corresponde a um processo que se encontra nos conflitos entre regimes de verdade contemporâneos e que aprofunda a crise de legitimação das instituições modernas.

O novo regime de verdade em que nos encontramos implica o abandono em massa dos modos de pensamento científico-instrumentais, a que o modernismo confere um grande poder. A modernização reflexiva enfrenta e tenta acomodar a dificuldade humana - como se observa na tentativa incessante, mas sempre aberta, de renegociar narrativas coerentes. As pessoas estão lutando para reconciliar pontos de vista conflitantes, fomentados em redes sociais diferentes e sobrepostas. Sua ambivalência perante às afirmações científicas como fonte reflete esta situação social com múltiplas narrativas inconsistentes. As teses de referência de Habermas sobre a esfera pública foram publicadas há mais de trinta anos e a teoria crítica tinha que operar naquele apogeu do estado social keynesiano em termos de cumprimento do projeto do Iluminismo, os tempos mudaram. Substitui-se a modernização com a modernização reflexiva. No século XIX, os privilégios de posição e as visões religiosas do mundo estavam sendo desmistificados; hoje o mesmo está acontecendo com a compreensão da ciência e da tecnologia, bem como com os modos de existência no trabalho, no lazer e na sexualidade. O ganho de poder do "progresso" tecnoeconômico, porém, está sendo cada vez mais ofuscado pela proliferação de regimes de verdade. Em uma fase inicial, estes podem ser legitimados como efeitos colaterais latentes (BECK, 1992). À medida que se globalizam, alcançam uma importância central nos debates sociais e políticos. Essa "lógica" de produção e distribuição de verdade é desenvolvida em comparação com a "lógica" de distribuição da riqueza (que até hoje determina o pensamento teórico-social). No centro estão as “verdades” e as consequências da modernização, que se revelam como ameaças irreversíveis à vida das plantas, dos animais e dos seres humanos, do ecúmeno.

Que conhecimento é, hoje, reconhecido como tal? E que conhecimento não é reconhecido? Que conhecimentos fazem parte das agendas oficiais? E quais não? A quem pertence esses conhecimentos? Quem é reconhecido como tendo o conhecimento? E quem não o tem? Quem pode ensinar o conhecimento? Quem pode produzir o conhecimento? Quem pode realizá-lo? E quem não pode?

Os manifestantes contra os lockdown da COVID-19 nos EUA, Alemanha e Brasil, por exemplo, mostraram uma falha básica para entender o que é uma pandemia, como um vírus se espalha, ou quais são os perigos de tal situação na realidade. Aparecendo frequentemente da extrema-direita, eles são tipicamente incoerentes em seu raciocínio e compreensão básica dos problemas. Há muitas forças em ação para garantir que o maior número possível de pessoas seja incapaz de fazer sentido de suas circunstâncias políticas, e seria uma ficção perigosamente elitista e positivista apontar o dedo para eles e dizer que são simplesmente os estúpidos.

É importante considerar o papel da literacy pública, entendida como competência para lidar com narrativas frequentemente falaciosa, enquanto recalcadas nos moldes do storytelling. Falar nas formas necessárias de literacy é, inevitavelmente, injetar uma carga de elitismo. Porém, enquanto certas formas de literacy podem variar de acordo com a proximidade ao poder e prestígio, a presença de outras transcende totalmente essas fronteiras. Não apenas a desinformação pode vir tão facilmente "do topo", mas o problema da literacy pode e deve ser abordado de uma forma que é construída sobre uma ética de solidariedade em vez de elitismo, desejando a maior inclusão para todos. A literacy é uma realização coletiva, social, não algo pelo qual membros individuais do público possam ou devam ser responsabilizados.

A ideia de literacy pode funcionar de forma útil tanto no sentido literal - a capacidade de ler e escrever facilmente - quanto no sentido metafórico mais útil: uma familiaridade com os sistemas e mecanismos analíticos aceitos de como o mundo funciona de uma forma que torna mais difícil acreditar na desinformação que está em desacordo com formas de conhecimento capazes de oferecer garantias em suas fontes e formas de produção. Esse é o desafio e o compromisso que as disciplinas que trabalham com a questão da formação dos cidadãos precisam enfrentar e abraçar.

REFERÊNCIAS

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2Veja em https://it.wikipedia.org/wiki/Sirene_-_Il_mistero_svelato /. O produto da Discovery Channel é definido “documentário” e https://www.youtube.com/watch?v=mFx79kRi9Ag&t=233s, documentário sobre dragões produzido pela National Geographic.

3Veja em http://www.csitheexperience.org.

Recebido: 01 de Setembro de 2021; Aceito: 01 de Fevereiro de 2022

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