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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.29  Uberlândia  2022  Epub 08-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v29a2022-55 

DOSSIÊ 3 - A ESCOLA NOS DIAS ATUAIS: E AGORA?

Reflexões e reticências: enunciações sobre o Ensino Remoto em tempos de pandemia

Reflexiones y reticencias: declaraciones sobre Educación Remota en tiempos de pandemia

Peterson Fernando Kepps da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-6305-1444

Lavínia Schwantes2 
http://orcid.org/0000-0003-3362-7531

Mélany Silva dos Santos3 
http://orcid.org/0000-0002-8642-727X

1Doutor em Educação em Ciências.Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: keppspeterson@gmail.com.

2Doutora em Educação em Ciências. Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: laviniasch@gmail.com.

3Mestre em Educação Matemática.Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: melany_feliz@yahoo.com.br.


RESUMO

O trabalho apresenta uma investigação acerca das enunciações que os estudantes têm dito sobre o ensino remoto no período de pandemia do COVID-19. Para produzir os dados, aplicamos um questionário para alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública situada no Rio Grande do Sul. Identificamos que a maioria acessam as atividades em casa, e se conectam a internet via wi-fi. A maioria não aprova o ensino remoto; poucos consideram tranquilo. Nesse grupo é possível observar que existe uma estrutura social e psicológica os amparando. Os estudantes apontam dificuldades de entendimento para a realização das atividades, mencionando cinco disciplinas. Da análise construímos dois enunciados: 1) o ensino remoto não é aprovado por aqueles estudantes com falta de estrutura física e/ou auxílio de responsáveis; e 2) o ensino remoto é uma alternativa viável no período de pandemia.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino Fundamental; COVID-19; Ensino Remoto; Educação Básica

RESUMEN

El trabajo presenta una investigación sobre los enunciados que los estudiantes han dicho sobre el aprendizaje remoto durante el período pandémico del COVID-19. Para producir los datos, aplicamos un cuestionario a estudiantes de primaria de una escuela pública ubicada en Rio Grande do Sul. Identificamos que la mayoría accede a las actividades en casa, y se conecta a internet vía wi-fi. La mayoría no aprueba el aprendizaje a distancia; pocos lo consideran tranquilo. En este grupo es posible observar que existe una estructura social y psicológica que los sustenta. Los estudiantes señalan dificultades de comprensión para la realización de las actividades, mencionando cinco temas. A partir del análisis, construimos dos afirmaciones: 1) la enseñanza remota no es aprobada por aquellos estudiantes con falta de estructura física y/o asistencia de tutores; y 2) el aprendizaje a distancia es una alternativa viable en el período pandémico.

PALABRAS CLAVE: Enseñanza Fundamental; COVID-19; Enseñanza a Distancia; Educación Básica

ABSTRACT

The work presents an investigation about the enunciations that students have said about remote learning during the COVID-19 pandemic period. To produce the data, we applied a questionnaire to elementary school students from a public school located in Rio Grande do Sul. We identified that most access activities at home, and connect to the internet via wi-fi. Most do not approve of remote learning; few consider it quiet. In this group it is possible to observe that there is a social and psychological structure supporting them. Students point out difficulties in understanding to carry out the activities, mentioning five subjects. From the analysis, we constructed two statements: 1) remote learning is not approved by those students with a lack of physical structure and/or assistance from guardians; and 2) remote learning is a viable alternative in the pandemic period.

KEYWORDS: Elementary School; COVID-19; Remote Teaching; Basic Education

Introdução

Ao final de 2019 e início de 2020, o mundo se deparava com informações cada vez mais crescentes sobre o novo coronavírus. Ao mesmo tempo em que os noticiários ampliavam a cobertura da disseminação de um vírus até então pouco conhecido, víamos, também, o número de casos de pessoas com a doença aumentar. O cenário caótico começava a ser desenhado. Hospitais de campanha sendo preparados, havia desinformação e relativização de um vírus que poderia ser letal para muitos que o contraíssem.

As portas começaram a se fechar: comércio, centros de fisioterapia, academias, bares, restaurantes, festas, escolas e todo e qualquer lugar com circulação de pessoas são alguns exemplos que prediziam as profundas mudanças que teríamos de enfrentar. Dentre todos estes locais, as transformações que aconteceram na escola se tornam objeto de nossa atenção, especialmente, a rede municipal de ensino na qual trabalhamos.

Se traçarmos uma breve linha do tempo neste município, começamos com um decreto lançado pela prefeitura que suspende por 30 dias as aulas na rede municipal, a partir do dia 20 de março de 2020 conforme Municipio (2020). As semanas se passavam e o número de casos da doença seguia aumentando, bem como as projeções apontavam que o Brasil ainda não tinha atingido o pico da doença de acordo com Costa (2020).

Sem data prevista para o retorno das atividades de modo presencial, a Secretaria Municipal de Educação e Desporto (SMED) determinou (a partir do mês de maio) que as escolas mantivessem vínculo com os alunos por meio das redes sociais e de atividades socioemocionais. Estas propostas de trabalho para os estudantes, de acordo com a SMED, tinham de ser “prazerosas, lúdicas, interdisciplinares, resolvidas de forma autônoma pelos alunos e/ou em parceria com a família, sem causar uma sobrecarga de trabalho, especialmente neste momento atípico de isolamento social” (TORRE, 2020, p. 1).

Sem uma plataforma digital própria ou mesmo indicada pela SMED, utilizando as mídias sociais individuais (Facebook e whatsapp) dos professores, sem nenhuma notícia que informasse o subsídio destes com equipamentos como computadores/tablets para a preparação das aulas, a prefeitura do município pesquisado estabelece o ensino remoto - o qual permaneceu até o final do ano letivo de 2020.

Com relação aos alunos, tivemos, enquanto profissionais da educação, de (re)construir estratégias para melhor desenvolver o ensino, e atender, mesmo que de forma extremamente limitada as suas dúvidas, anseios, problemas. Junto a isso, se impunha ainda mais a necessidade de estabelecer o contato e mantê-lo entre nós, professores e estudantes - para que as intempéries deste cenário pandêmico não solapassem nossos vínculos e inviabilizassem o processo de ensino e aprendizagem.

Sabemos que, para os estudantes, esta não seria uma tarefa fácil, exigiria de cada um deles empenho e dedicação aos estudos, de forma mais solitária em suas casas, algo que antes da pandemia não ocorria, pois tinham ajuda dos professores e dos colegas. Foi um período de muita adaptação, acertos e erros, no qual cada um viveu uma realidade diferente. Nós como professores da educação básica pensamos algumas formas de nos aproximar e conhecer as vivências que eles tiveram nesse período.

Autores que discutem a prática docente desde o estágio como Tardiff (2014), Pimenta e Lima (2004) têm reforçado a ideia de que o processo de ensinar e aprender envolve mais do que apenas repassar conteúdos curriculares e conhecimento. Para além disso, o processo envolve uma relação próxima entre professores e estudantes. No contexto pandêmico, estas relações foram modificadas e, assim, passamos a nos questionar: o que dizem e pensam os estudantes acerca do ensino remoto? Isto é, quais enunciados são constituídos acerca desta forma de ensino?

A partir desta indagação inicial, nos propomos neste trabalho a analisar as tramas enunciativas que se constituem acerca do ensino remoto em meio à pandemia de COVID-19.

Caminhos metodológicos

Para alcançar nossos objetivos elaboramos um questionário construído via Formulário Google - um instrumento virtual para a produção de dados que pode ser acessado por computador, celulares e tablets - com 11 questões (de múltipla escolha e dissertativa) que envolvem o ensino remoto neste período pandêmico. As perguntas foram aplicadas a estudantes

Neste trabalho em específico, trataremos apenas de 7 questões, que foram agrupadas por nós em dois blocos, a saber:

QUADRO 1: Perguntas do questionário disponibilizado aos alunos de EF de uma escola pública da rede municipal do RS. 

Acesso e execução tarefas 1. Como você tem acesso à internet?
2. Você faz as atividades sozinho ou com ajuda/auxílio de alguém?
Perguntas sobre aprendizado e ensino remoto 3. Você tem dificuldade de entendimento para realizar as atividades solicitadas pelos professores? Se sim, quais?
4. Quais das abordagens abaixo você acredita serem boas opções para um aprendizado efetivo durante o ensino online/remoto? (textos sobre o conteúdo; exercícios de perguntas e respostas; jogos; palavras-cruzadas; sete erros; quiz; raciocínio lógico; outros).
5. Como tem sido para você não ter a rotina da escola, e fazer as atividades de modo online?
6. Você prefere o ensino remoto/online ou aulas presenciais na escola?
7. Você gostaria de retornar para as aulas presenciais ainda sem uma vacina para a COVID-19? Por quê?

Fonte: Autores, 2020.

O questionário foi aplicado para todas as turmas de 6° ao 9° ano do Ensino Fundamental (EF) de uma escola pública de um município do Rio Grande do Sul; e disponibilizado entre os dias 21 de setembro e 01 de dezembro de 2020. Tivemos 88 alunos que responderam ao questionário.

A coordenação pedagógica e a equipe diretiva da escola assinaram um termo de consentimento livre esclarecido, o qual afirma que os dados da escola e pessoais dos alunos ou qualquer outra informação que possa identificá-los não serão divulgados; assim como serão utilizados apenas para fins acadêmicos. Além disso, na descrição do formulário, os estudantes tinham de autorizar o uso dos dados para fins de pesquisa e, também, foram informados que o mesmo tinha por objetivo mapear suas posições e entendimentos sobre o ensino online/remoto.

Como a SMED do município pesquisado não disponibilizou nenhuma plataforma educacional para a realização do ensino remoto, a escola em que investigamos realizou suas aulas por meio de grupos na rede social Facebook ao longo do ano de 2020. E, foi neste ambiente, que divulgamos os questionários. Ademais, dois autores deste trabalho são professores da escola, o que facilitou a divulgação e o contato com a coordenação e equipe diretiva. Por esse motivo, os resultados e as discussões que iremos apresentar foram também compartilhadas com a equipe diretiva e pedagógica da escola.

Como perspectiva teórico-metodológica, tomamos o conceito de discurso como um conjunto de enunciados e a análise do discurso de orientação foucaultiana conforme Foucault (2013) e Foucault (2014). Assim, trataremos as respostas dos estudantes como enunciações, atentaremos para a formação de possíveis enunciados que nos propicia entender a constituição do discurso do ensino remoto na pandemia. Além disso, a guisa de identificação, no decorrer do texto, apresentaremos as enunciações entre aspas, assim como informamos que as mesmas passaram apenas por alterações gramaticais que não comprometem o sentido da frase/expressão.

Foucault (2009) toma enunciação como a coisa escrita ou dita; e o enunciado é aquele construído pelo pesquisador por meio da análise dessas enunciações. Toda esta trama enunciativa compõem os discursos sobre a educação e o ensino remoto em meio à pandemia de COVID-19 no espaço escolar analisado. Neste referencial, os discursos são como práticas que forma os objetos dos quais falam Foucault (2013). Assim, procuraremos entender o discurso dos alunos de EF sobre o ensino remoto durante a pandemia apresentados por meio das enunciações das respostas dos questionários.

Com relação ao modo como estruturamos os resultados deste artigo, em primeiro momento, apresentamos informações gerais respondidas pelos alunos, tais como possibilidade de acesso à internet; e auxílio dos responsáveis para a realização das tarefas. Num segundo momento, apresentaremos os dois enunciados criados a partir das enunciações que expressam as posições dos alunos frente ao ensino remoto. Estes enunciados são como elementos que montam um determinado discurso conforme Foucault (2013) formando uma rede discursiva que representa o que pensam os alunos sobre o ensino remoto no município. A saber, os enunciados que sustentam este discurso são: 1) o ensino remoto não é aprovado por aqueles estudantes com falta de estrutura física e/ou auxílio de responsáveis; e 2) o ensino remoto é uma alternativa viável no período de pandemia.

Resultados e discussões

Em relação à primeira pergunta disposta no Quadro 1 “Como você tem acesso à internet?”, nossa preocupação era o acesso à internet pois questionávamos se os alunos precisavam sair de casa para acessar o material escolar ou não. Assim verificamos que 92% dos estudantes acessavam em casa; 5,7% em outro lugar (não especificado); e 2,3% na casa de parentes ou de amigos.

Este dado nos é caro para considerarmos que, nesta pesquisa, não abarcamos os inúmeros estudantes que não tinham acesso à internet e, consequentemente, a esse primeiro movimento de organização escolar no período pandêmico. Estes alunos só conseguiram ter contato posteriormente quando a entrega de material impresso foi liberada pela SMED de de um município do RS. Tal cenário é explicado em função de que o contexto em que a escola em análise se insere é de vulnerabilidade social, atendendo muitos alunos de baixa renda, que não têm acesso à internet, nem a equipamentos como computadores, tablets ou mesmo celulares.

A realidade dos estudantes tem se mostrado solitária no que concerne à realização das atividades propostas pelos professores. A maioria deles (53,4%), em resposta à segunda pergunta “Você faz as atividades sozinho ou com ajuda/auxílio de alguém?”, afirma que tem desenvolvido os trabalhos de forma individual. Sabemos das limitações impostas pelo ensino remoto, as quais incluem a falta de interação entre os estudantes, e também sabemos o quão importante é para o processo de ensino e aprendizagem que se oportunize momentos de partilha, troca, contato e comunicação entre os sujeitos como nos colocam Tardiff (2013) e Larrosa (2003). Em especial, quando se trata de Ensino Fundamental, mesmo na sua segunda etapa, trabalha-se com crianças, com jovens que estão ingressando na adolescência e ainda em forte construção de sua subjetividade e autonomia.

Larrosa (2003) destaca que os discursos nos perpassam, atingem e nos atravessam, e assim, de alguma forma vão nos construindo, nos subjetivando, e nos formando enquanto sujeitos. Neste caso em específico, o foco é os estudantes e como eles estão se constituindo diante de um ensino marcado pela pandemia de coronavírus. Ainda segundo o autor supracitado: “A formação não é outra coisa senão o resultado de um determinado tipo de relação com um determinado tipo de palavra: uma relação constituinte, configuradora, aquela em que a palavra tem o poder de formar ou transformar a sensibilidade e o caráter do leitor” (LARROSA, 2003, p.46). Assim, a formação dos estudantes nos dias de hoje tem sido perpassada por esta forma de ensino e as novas adaptações que estão sendo, por vezes, impostas pela realidade.

Neste sentido, deparamo-nos com a outra parcela deste dado, em que revela que 30,7% dos estudantes recebe auxílio da figura materna para a realização dos trabalhos. Com relação ao auxílio da figura paterna, o número não chega a 1%. Já o restante dos valores é distribuído entre outros sujeitos como, por exemplo, irmãos (4,5%), avós (1,1%) e tios/tias (1,1%). Ao apresentarmos estes números, não buscamos lançar críticas aos familiares e/ou responsáveis dos estudantes. Sabemos das dificuldades que assolam nossa sociedade e muitos dos estudantes de escolas públicas. Deste modo, para ilustrar, podemos atentar para o baixo grau de escolaridade do país - o que pode impossibilitar uma ajuda na realização dos trabalhos - ou mesmo para o tempo que estes têm de se ausentar para estarem no trabalho de acordo com IBGE Educa (2021).

São muitas as variantes que podem cercar tais resultados, por isso, cabem aqui apenas destacar estes números para contextualizar de onde as enunciações postas pelos alunos emergem; apresentar para a comunidade acadêmica tal realidade (embora específica de uma escola); e, também, reafirmarmos a órgãos competentes a necessidade de apoio das mais diversas ordens a estas famílias.

Seguindo as discussões sobre o aprendizado no ensino remoto, entendemos que a ausência de familiares na realização dos trabalhos e a falta de contato com outros colegas são fatores que podem estar imbricados nas dificuldades apresentadas pelos alunos. Afirmamos isso porque 77,9% deles apontam que possuem dificuldade para a realização das atividades propostas. Por certo, o professor tem papel preponderante neste processo, entretanto, não podemos perder de vista que o contexto educacional não se constrói apenas na verticalidade professor-aluno, o processo é muito mais amplo, congrega figuras e contextos outros, como os já mencionados: colegas, estrutura e, também, demais profissionais da escola.

Em meio a este contexto de dificuldades enfrentadas pelos estudantes, trouxemos à baila a pergunta “Como tem sido para você não ter a rotina da escola, e fazer as atividades de modo online?”. Nas palavras da maioria dos investigados, a rotina fora do espaço físico da escola tem sido “ruim”, “chata”, “difícil”, “horrível” e “complicada”. Os estudantes colocam que não estão conseguindo aprender, que se distraem com frequência e que sentem falta da escola, como podemos ver nesta enunciação: “É muito ruim, pois nossos pais tem que explicar para nós. Sabe, não é a mesma coisa. Sinto muita saudade de todos os professores e de estar presente na escola com vocês ensinando as matérias direitinho”.

Por meio do material empírico, tomando como exemplo a enunciação acima, conseguimos perceber a dificuldade de aprendizagem dos alunos e, mediante a isso, chegamos à elaboração do seguinte enunciado: o ensino remoto não é aprovado por aqueles estudantes com falta de estrutura física e/ou auxílio de responsáveis. Neste sentido, podemos dizer que os estudantes apontam dificuldades de aprendizagem e relatam ausência de organização estrutural e, por isso, não aprovam o ensino remoto. Acreditamos que, para muitos pesquisadores do campo da educação e professores da educação básica como nós, este enunciado seria esperado, diante da realidade vivenciada pelo país e pelas escolas públicas, principalmente aquelas situadas em bairros e comunidades. Assim, é importante atentarmos aqui para o que os alunos apontam como fatores dificultantes para a efetivação deste processo.

Seguindo a análise das enunciações que compõem este enunciado, parte desta dificuldade advém da interação comprometida com o professor. No caso específico do município pesquisado, não tivemos no ano de 2020 uma plataforma digital específica como o Classroom, por exemplo, que foi adotado pelo governo do estado do Rio Grande do Sul como ambiente virtual para os alunos das escolas estaduais realizarem as atividades de acordo com Rio Grande do Sul (2020). Não estamos querendo dizer com isso que apenas uma plataforma digital é suficiente, que seja a solução para o problema do ensino escolar no contexto pandêmico ou mesmo que é suficiente para resolver os problemas de aprendizagem. Podemos considerá-la como um ambiente facilitador desta interação enunciada pelos alunos e contribuir na organização de estudos de alguns.

Percebemos esse desejo de organização nos estudantes ao expressarem que estão se “esforçando muito” para se “encontrar na matéria perdida” ou que não estão se “achando”, pois perderam as “explicações de algumas matérias” em meio às publicações realizadas pelos professores no grupo de Facebook da turma.

Ainda com relação à pergunta direcionada à dificuldade de entendimento para realizar as atividades solicitadas pelos professores, apresentamos os seguintes resultados: 20,6% dos alunos afirmaram não possuir dificuldades, 77,9% apontaram ter algum tipo de dificuldade, e 1,5% não responderam. No que tange às dificuldades, identificamos cinco disciplinas dentre as mais mencionadas por eles, que são:

Fonte: Autores, 2020.

GRÁFICO 1: Disciplinas que os alunos investigados apresentam dificuldades durante o ensino remoto. 

Dentre os estudantes que apontaram suas dificuldades de modo geral, destacamos aqui algumas enunciações: “tenho dificuldade em compreender algumas coisas a serem feitas”; “tenho dificuldade em quase todas as matérias, pois não é a mesma coisa fazer pela internet”; “tenho dificuldades nas atividades online. Prefiro ajuda dos professores”; “algumas atividades eu não consigo entender”. Diante disso, fica evidente as dificuldades dos alunos e, como alguns descrevem, seria melhor desenvolvê-las em sala de aula com a explicação do professor.

Tais anseios apresentados pelos estudantes, por vezes, são encarados solitariamente, ou com ajuda de pesquisas na internet: “de vez em quando tenho dificuldades, mas vou tentando resolver do meu jeito”; “tenho algumas dificuldades, mas depois pesquiso e entendo”. É preciso refletir o quanto esse período está exigindo dos alunos, para que tenham organização nos estudos, para que se esforcem para entender os conteúdos, entretanto, nem sempre esse esforço é suficiente. Alguns recorrem aos recursos da internet, como por exemplo, vídeos, para tentar compreender de uma forma melhor os conteúdos e atividades propostas pelos professores. Ao longo de 2020, os alunos não tiveram aula síncrona, onde poderiam conversar com os professores já que, com a utilização do Facebook pela escola, basicamente o contato se deu através dos comentários das postagens.

Além da dificuldade na aprendizagem e a ausência das explicações presenciais do professor, a maioria dos alunos destacaram, como já vimos, não aprovar o ensino remoto. Enunciações como as seguintes expressam isso: “bem chato, prefiro 100% aula normal no colégio”; “muito chato, não estou entendendo quase nada. Prefiro aulas presenciais”; “horrível, eu não gosto da aula online”.

Com relação à porcentagem nesta pergunta sobre a preferência dos estudantes quanto ao ensino presencial ou remoto, as respostas nos mostraram que a maioria dos alunos (77,3%) preferem as aulas presenciais, sendo que apenas 15,9% afirmaram preferir ensino remoto. Muito embora nesta pergunta os alunos não tenham expressado o motivo específico de desaprovarem o ensino remoto, podemos coadunar tal posição com as enunciações dos questionamentos anteriores. Como vimos, os estudantes apresentam dificuldades para realizar as atividades propostas pelos professores e, um número expressivo, acaba ainda por desenvolvê-las sem nenhum auxílio de familiares. Estes fatores (além de outros mais que fogem do escopo desta pesquisa), nos parecem imbricados com a reprovação do ensino remoto.

Os transtornos do ensino remoto se revelam para além de acesso à internet e dificuldade de aprendizagem, as enunciações mostram que parte dos estudantes apresenta problemas para visualizar as atividades no celular devido ao formato e incompatibilidade dos arquivos, por exemplo. A “falta de motivação”, “distração fácil em casa” e a “saudade dos colegas e professores” são outros fatores recorrentes. Neste sentido, reforçamos o entendimento de que a escola é um ambiente produtivo para a interação entre os sujeitos. Os alunos mencionam a falta que sentem dos colegas e dos professores não no sentido de aprendizagem dos conteúdos, mas com a prerrogativa do encontro, do diálogo, da troca de experiências e da socialização que esta relação pode propiciar. Essa não é uma discussão nova no contexto da educação escolarizada. Dayrell (1996), na década de 1990 já afirmava que os estudantes são sujeitos sócio-culturais e muitos entendiam as aulas nas escolas como um meio de convívio com colegas.

A necessidade do ensino remoto

Seguindo as discussões, por outro lado, mesmo que em menor proporção (25%), parte das enunciações vão em direção a uma facilidade propiciada pelo ensino remoto. A partir das enunciações identificamos três grupos: o primeiro, adjetiva esta forma de ensino como “normal”, “tranquila”, “boa” e como “algo diferente”. Preferem a escola, mas estão de acordo com esse modo de ensino. Um segundo grupo, responde que está gostando desse período, mas ressaltaram que “até que ficou mais fácil no meu caso porque tenho internet”; “acredito estar lidando bem, mas há de se levar em consideração que estou tendo terapia online”; ou ainda “por um lado fico feliz, pois tenho ajuda da minha mãe em casa para fazer as atividades”.

Sobre este apoio e ajuda dos familiares citado, destacamos as seguintes enunciações: “nas matérias que eu tenho dúvida estudo mais, peço ajuda a minha, tia e consigo realizar as atividades e aprender”; “algumas atividades eu sei fazer e minha mãe me ajuda bastante”. Porém não são todos que possuem essa estrutura e responsáveis disponíveis para ajudar na educação dos estudantes, como indicamos a partir dos dados anteriores desta pesquisa já discutidos. Ademais, entendemos que a atuação do professor é de suma importância para desenvolver o processo de ensino e aprendizagem; por isso, não se pode projetar nos responsáveis, pais, mães, tios e/ou avós o trabalho docente que, neste período, foi drasticamente comprometido.

Por fim, o último conjunto de enunciações dos alunos se mostra estar de acordo com o modelo de ensino remoto em função da segurança quanto ao COVID-19, como observado nos exemplos: “no momento eu e meus avós preferimos, achamos mais seguro” e “meio estranho, mas no momento é o certo”.

Parte destas enunciações nos levaram a produzir, então, o segundo enunciado desta pesquisa: o ensino remoto é uma alternativa viável no período de pandemia. Pela esteira de Foucault (2014), consideramos este enunciado como efeito de dispersão no discurso sobre o ensino remoto, visto que todas as enunciações anteriores trazem consigo (por diferentes motivos) a reprovação desta forma de ensino. Em meio a este cenário, é importante observarmos que nas enunciações que colocam facilidade em vivenciar o ensino remoto, nos deparamos com sujeitos que têm a ajuda dos pais, possuem acesso satisfatório à internet ou estão tendo terapia de modo online. Entretanto, estes alunos representam, considerando o total de respondentes, um número diminuto (25%), bem como expressam posições distintas de grande parte da rede enunciativa que constitui o discurso sobre o ensino remoto.

Acreditamos que estes dados podem expressar aquilo que, de algum modo, já poderíamos imaginar. Isto é, as mazelas que a educação pública brasileira enfrenta estão na recente história do país, não há novidades. E é importante também lembrar que aqui estamos tratando não de números e porcentagens ou de um fragmento da história, mas de vidas, alunos, sujeitos. As enunciações expressam a posição destes estudantes, escancaram suas necessidades (e as facilidades de alguns poucos) e nos colocam enquanto professores e pesquisadores numa posição atenta e crítica diante de todo este contexto.

Pode-se reiterar que esta não é uma realidade de grande parte dos investigados e nos abre espaço para lembrar que a pandemia de COVID-19 tem mostrado a fragilidade humana e a situação caótica em que nos encontramos. Temos medo do que está acontecendo, receio e muitas incertezas, e sabemos que o ensino e as práticas escolares não serão mais as mesmas depois desta pandemia. Mas diante de todo este cenário, entendemos, assim como Saraiva, Traversini e Lockman (2020, p. 2) que “educar (não) é preciso”. Apesar do estranhamento inicial que essa expressão das autoras possa causar, entendemos a mesma tanto no sentido de que “é preciso” educar e necessitamos enfrentar esse desafio e seguir educando; quanto no sentido de que “não é preciso”, pois é necessário seguir às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), permanecendo em quarentena e adaptando os materiais escolares. Nos deparamos, então, enquanto professores, com a necessidade de ter ferramentas que propiciem aos alunos apoio material (acesso à internet), social (auxílio dos responsáveis) e psicológico para seguirem os estudos como apontam Koeppe, Ferreira e Calabro (2020).

Ainda neste sentido, questionamos se os estudantes gostariam de retornar para as aulas presenciais ainda sem uma vacina para a COVID-19, e nos deparamos com discursos que têm como elementos basilares cuidados com a saúde, segurança e vacina. A grande maioria dos estudantes, 85,9%, não quer retornar sem uma vacina, 12,8% acham que sim devem voltar, e 1,3% não responderam se queriam ou não voltar. E as enunciações que exemplificam essa postura trazem palavras como: “Porque tenho muito medo de ficar com COVID-19 e ainda acabar passando aos outros”; “Escolas fechadas, vidas preservadas. Não quero adoecer e nem que meus professores adoeçam também”; “Pois nem todos iriam tomar as mesmas medidas e acho que online é melhor pois evitamos de pegar doença”; e “O estudo é muito importante pra mim só que a minha vida importa mais”.

Outras respostas dos estudantes também sustentam o enunciado o ensino remoto é uma alternativa viável no período de pandemia, pois articulam, na mesma enunciação, a preservação da vida ao modo como os aprendizados e aulas vem ocorrendo no ensino remoto. Alguns exemplos foram: “Presencial na escola só quando acabar a pandemia e estiver tudo bem”; “Presencial, mas só quando tiver tomado a vacina”; “No período em que estamos vivendo, prefiro online, mas é mais fácil de entender a matéria presencialmente”; “Aulas presenciais, mas apenas depois desse covid, não tenho o menor interesse de voltar nessa quarentena”; “Na pandemia prefiro online porque eu sei que é mais seguro. Quando acabar a pandemia eu prefiro presencial” e “Prefiro estar na escola estudando do que as aulas online, entretanto enquanto há perigo de contaminação pelo coronavírus não quero arriscar”.

Por outro lado, sabemos da existência de enunciações negacionistas sobre a pandemia de COVID-19 que se mostram contrárias ao isolamento social, vacina, uso de máscaras ou ainda, de utilização de tratamentos preventivos não comprovados e indicados pela ciência. Entretanto, os alunos que se colocaram a favor da volta às aulas de modo presencial não demonstraram posições que pudéssemos alinhar a este discurso que nega a ciência. Suas enunciações perpassam outros sentimentos, questões como saudade, dificuldade de aprendizagem e cansaço, como pode ser visto: “Acho que sim… pois seria bem mais fácil de entender as matérias”; “Sim, porque estou com saudade da escola”; “Sim, porque eu já estou cansada de ficar em casa, não é a mesma coisa tu fazer na sala e tu fazer pela internet”; “Sim, tenho dificuldades com atividades online”; “Sim eu sinto falta das amigas e professores”.

Diante das enunciações que acabamos de apresentar, podemos notar que muitos alunos entendem que em razão da pandemia de COVID-19, é preciso que as aulas sejam de caráter remoto/online, tanto para se protegerem de uma possível contaminação, quanto arriscando contaminar outras pessoas. Decerto que muitos ressaltam que não gostam do ensino remoto/online, preferem o presencial, mas entendem que é um motivo de segurança para a saúde.

Se observarmos, a partir do material empírico, nos deparamos com enunciações que compõem um discurso recorrente também em veículos de comunicação: se puder, fique em casa. De modo geral, este discurso circulou e ainda circula nos maiores veículos de comunicação do Brasil, como O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL. Não podemos dizer que foram por meio das mídias supracitadas que discursos em prol do cuidado, segurança e vacina contra a COVID-19 chegaram aos estudantes. Ou mesmo pelos ditos dos professores através das atividades e aulas remotas. Contudo, podemos afirmar que esses discursos estão circulando na teia social e, de algum modo, os interpelaram. Ou seja, ao atentarmos para as enunciações como “Presencial na escola só quando acabar a pandemia e estiver tudo bem”; “Presencial, mas só quando tiver tomado a vacina”; “Na pandemia prefiro online porque eu sei que é mais seguro” nos deparamos com a reverberação desse discurso sobre a COVID-19 nas falas dos estudantes e vemos emergir os enunciados que os constituem.

Conclusão

Diante de tudo já apresentado, o presente estudo trouxe uma análise do modo de acesso das atividades remotas pelos estudantes e o que eles têm dito desse período frente ao COVID-19. É um momento muito delicado, e que precisamos escutar e refletir sobre as posições dos estudantes.

Com base nas respostas dos questionários, foi possível identificar dois enunciados que embasam o discurso sobre o ensino remoto no período pandêmico: 1) o ensino remoto não é aprovado por aqueles estudantes com falta de estrutura física e/ou auxílio de responsáveis; e 2) o ensino remoto é uma alternativa viável no período de pandemia. Percebemos, com isso, que a maioria não aprova o ensino remoto, apontando variadas dificuldades de entendimento para a realização das atividades, apesar de entenderem que o mesmo é fundamental para a preservação da vida. Infelizmente, esse novo ensino não tem englobado a todos, e tem mostrado cada vez mais a fragilidade humana, escolar, estrutural, e a desigualdade social do país.

Com esta pesquisa, não somente apontamos as conclusões sobre o ensino remoto neste município a partir das enunciações dos alunos, mas nos mobilizamos e esperamos que você leitor também, possa pensar para quem o ensino remoto é viável e quais sujeitos podem ter acesso à educação escolarizada durante este período pandêmico. Conseguimos enxergar e responder essas questões no microcosmo que atuamos no município analisado, mas precisamos atentar para estas indagações; e, enquanto professores e pesquisadores, buscar minimizar estas disparidades, chamando atenção para o processo excludente do qual estamos cada vez mais imersos.

Referências

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Recebido: 01 de Agosto de 2021; Aceito: 01 de Janeiro de 2022

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