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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.29  Uberlândia  2022  Epub 08-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v29a2022-18 

DEMANDA CONTÍNUA

Transposição didática do conceito de número irracional nas obras portuguesas de 1909 a 1963

Transposición didáctica del concepto de número irracional en obras portuguesas de 1909 a 1963

1Doutora em Educação. Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo, Brasil. E-mail: marisa.dias@unesp.br.


RESUMO

O objetivo é apresentar o conceito de número irracional em onze obras didáticas portuguesas compreendendo o período de 1909 a 1963. Sob os princípios teóricos da transposição didática, com enfoque no saber a ensinar e da metodologia exploratória do tipo bibliográfica, os principais resultados voltados à publicidade desse saber são caracterizados por definições de número irracional como classes contíguas, em obras na década de 1910; como relação entre grandezas incomensuráveis, nas obras da década de 1930 e início da década de 1940 e como dízima infinita não periódica, nas obras das décadas de 1950 e 1960, em definitiva substituição a abordagem de classes contíguas. A sequência das explanações didáticas do conceito nas obras, em geral, parte de um caso particular de raiz quadrada de um número que não é quadrado perfeito, seguindo para uma definição, como generalização, e poucos exemplos. Exemplos de números transcendentes aparecem após 1954.

PALAVRAS-CHAVE: Número Irracional; Transposição Didática; Livro Didático

RESUMEN

El objetivo es presentar el concepto de número irracional en once obras didácticas portuguesas que abarcan el período de 1909 a 1963. Bajo los principios teóricos de la transposición didáctica, con un enfoque en el conocimiento a enseñar, y la metodología exploratoria bibliográfica, los principales resultados se caracterizan por definiciones de número irracional como clases contiguas, en obras de la década de 1910, como una relación entre magnitudes inconmensurables, en obras de la década de 1930 y principios de 1940 y como un diezmo infinito no periódico, en obras de las décadas de 1950 y 1960, en reemplazo definitivo del enfoque de clase contigua. La secuencia de explicaciones didácticas del concepto en las obras, en general, parte de un caso particular, la raíz cuadrada de un número que no es un cuadrado perfecto procedendo a una definición, como la generalización, y pocos ejemplos. A partir de 1954 aparecen ejemplos de irracionales trascendentes.

PALABRAS CLAVE: Número Irracional; Tranposición Didáctica; Libro de texto

ABSTRACT

The aim of this paper is to present the concept of irrational number in eleven Portuguese textbooks, spanning the period from 1909 to 1963. Under the theory of didactic transposition, with a focus on teachable knowledge, and as a bibliographic research, the main results provide definitions of irrational number as contiguous classes in textbooks in the 1910s; as a relation between incommensurable magnitudes in textbooks of the 1930s and early 1940s and as non-periodic infinite decimal fractions in textbooks of the 1950s and 1960s, as a definitive replacement of the notion of contiguous classes. In general, the didactic explanations following the concept presented in the textbooks start from a particular case of a square root of a number that is not a perfect square, along with a definition, by means of generalization, and a few examples. Examples of transcendental numbers appear after 1954.

KEYWORDS: Irrational Number; Didactic Transposition; Textbook

Introdução

O interesse em estudar as abordagens de números irracionais em obras didáticas surgiu com a tese de Dias (2007) cujas obras portuguesas e brasileiras analisadas referem-se ao número real. Dois acontecimentos motivaram a pesquisa, o primeiro foi perceber que o número real, como tal, aparece somente a partir do ano 1963 considerando o conjunto de obras portuguesas analisadas. O segundo trata das concepções de números irracionais apresentadas nas pesquisas de Dias (2002, 2007) e da abordagem de número irracional nos livros didáticos atuais destinados à Educação Básica.

Os livros didáticos, sob análise dos mecanismos de produção e distribuição (APPLE, 2002), podem ser considerados como um recurso que indica possíveis conhecimentos apropriados na educação escolar, por professores e alunos. Dias (2002, 2007) traz elementos que corroboram essa possibilidade no que se refere à matemática a ensinar, com enfoque nos conceitos de números irracionais e reais.

Pesquisadores têm utilizado os livros didáticos também chamados manuais didáticos como fonte de informação privilegiada na Educação Matemática. Os diferentes pontos de vista têm se completado, fornecendo ao meio acadêmico material diferenciado e promissor para aprofundamentos teóricos referentes ao ensino de matemática. Astudillo (2005) concorda que por meio dos livros didáticos pode-se conhecer “o desenvolvimento de um determinado conteúdo, os aspectos conceituais, atividades, problemas, exercícios, a sequência; e por fim a metodologia que caracteriza uma época dentro da historia do ensino” (p. 34).

Neste texto, a análise do livro didático direciona-se a transposição didática (CHEVALLARD, 1991) stricto sensu, ou seja, exploração de aspectos inerentes a determinado conceito. Dentre as transposições dos saberes, o estudo expõe a concepção do autor de livro didático, que é um dos agentes que compõe a noosfera na transposição do saber científico para o saber a ensinar. Chevallard (1991) denomina noosfera, como a esfera que se pensa, ou seja, um conjunto de pessoas que pensam a transposição. No segmento citado dessa transposição, a noosfera pode ser composta por professores, representantes do sistema de ensino, representantes da sociedade, agentes de órgãos públicos, pesquisadores em educação e autores de materiais didáticos.

Para falar sobre o saber na transposição didática, reconhece-se o sistema didático na tríade que relaciona professor, aluno e saber. O saber na relação pedagógica professor-aluno, não pode ser o saber científico como pensado e publicado pela comunidade científica. O saber científico para tornar-se um saber a ser ensinado passa por transformações que levam em consideração elementos próprios do contexto de sua disseminação com vias à apropriação. Já o saber ensinado ocorre substancialmente pelo professor ao transpor o saber a ensinar na objetivação de suas aulas, planos de ensino ou outros materiais que o caracterizam.

Este texto não pretende esgotar todos os aspectos de uma análise, e sim iniciar uma reflexão sobre a transposição didática dos números irracionais no ensino da matemática por meio dos chamados manuais portugueses publicados no período de 1909 a 1963. São obras destinadas ao sistema de ensino nos liceus em Portugal. Para tanto, escolheu-se como referência o que Chevallard (1991) nomeou por textualização do saber no processo de didatização do saber que compreende: dessincretização do saber, como processo em que o saber produzido é dividido em campos de domínios distintos; despersonalização do saber, que separa o saber do seu autor, ou grupo de autores; programabilidade de aquisição do saber, que decorre do fato da dimensão do saber não ser abordada de uma única vez no sistema de ensino e um controle social das aprendizagens, que regula o que deve ser ensinado. Ademais, a transmissibilidade do saber compreende o processo de publicidade indicando o que se pretende ensinar sobre esse saber. Este trabalho trata mais especificamente deste último elemento, embora na objetivação das obras completas seja possível uma análise mais aprofundada de todos os outros processos.

Com o objetivo exposto, a metodologia caracteriza-se pelos princípios da pesquisa exploratória do tipo bibliográfica (LIMA; MIOTO, 2007, FIORENTINI; LORENZATO, 2012). Dentre os procedimentos destaca-se a escolha de evidenciar as variações das definições dos números irracionais e categorizá-las pela abordagem, buscando separar cronologicamente na ocorrência de algum elemento novo. Desse modo, a organização para apresentação neste artigo foi por meio dos próprios resultados da caracterização das definições.

As 11 obras analisadas são portuguesas do acervo particular de José Manoel Leonardo de Matos, professor doutor da Universidade Nova de Lisboa. Segundo ele, os livros se não foram os mais utilizados, certamente foram os principais manuais das escolas portuguesas. As obras são do início do século XX, compreendendo um período entre 1909 a 1963. A aprovação pelo Ministério da Educação Nacional (Portugal) consta em todas as obras.

Número irracional como classes contíguas - publicações de 1909, 1910 e 1914.

As três obras analisadas são de Eduardo Ismael dos Santos Andrea, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e do Liceu Pedro Nunes. As obras de 1909 e 1914 têm o mesmo título: Complementos de álgebra: Apêndice aos Elementos de Álgebra da 3ª classe, Ensino secundário oficial 4ª e 5ª classes. No capítulo XI intitulado Números irracionais, composto por quatro páginas, encontra-se a definição de números irracionais por classes.

O autor inicia o capítulo pela definição, na expressão da língua da época, de número racional:

[...] dado um numero racional a, qualquer numero racional pertence necessariamente a uma das seguintes classes:

1ª Á dos numeros menores que a

2ª Á dos numeros maiores que a

3ª Á formada pelo numero a

Alem d’isso, qualquer numero da primeira classe é menor que qualquer numero da segunda; na primeira classe não existe nenhum numero maior que todos os outros d’essa classe; na segunda classe não existe numero que seja menor que todos os outros da classe […]. (ANDREA, 1909, p.11 grifo do autor).

Após a composição das três classes começa a enunciação das propriedades de ordem, como se pode observar na citação. Na sequência, há descrição também da propriedade relacionada à densidade dos números racionais. A definição de número irracional não parte da generalidade como fez com o racional, mas com um número específico - a raiz quadrada de 72 -, do seguinte modo:

[…] é impossível obter um numero cujo quadrado seja igual a 72, de onde concluiremos que qualquer numero racional pertence necessariamente a uma das seguintes classes:

1ª Á classe dos numeros cujo quadrado é inferior a 72.

2ª Á classe dos numeros cujo quadrado é superior a 72. (ANDREA, 1909, p.12 grifo do autor).

Assim como descreveu as propriedades das classes disjuntas que definem um número racional, o autor também as enuncia para as duas classes formadas que definem a raiz quadrada de 72 e ressalta que neste caso não se tem a terceira classe. A utilização da nomenclatura número irracional vem ao final: “Neste último caso diremos, por definição, que as duas classes consideradas determinam um numero irracional”. (ANDREA, 1909, p.13 grifo do autor). Na sequência usa a simbologia da raiz quadrada de 72, 72 , e enuncia brevemente as definições de igualdade, desigualdade, adição subtração, multiplicação e divisão, sem menção da estrutura de classes.

Antes de definir número irracional, o autor diz que para abreviar chamará as classes juntamente com as propriedades de classes contiguas (ANDREA, 1909, p. 13).

Observa-se que as definições de números racional e irracional por meio de classes têm o mesmo princípio dos cortes elaborado por Julius Wilhelm Richard Dedekind (1831-1916) em 1872. Dedekind escreve no prefácio da sua obra Essays on the theory of numbers (1963) que

[...] sentia necessidade de uma definição de continuidade numérica, porque ao lecionar esse assunto sempre tinha que recorrer à geometria. Não que esse recurso didaticamente não fosse bom, salienta, ao contrário. O problema era a insatisfação do ponto de vista formal, científico. (DIAS, 2007, p. 194)

Com o objetivo de buscar a continuidade numérica, Dedekind elabora uma forma de equivalência entre os números e a reta. É a partir dessa ideia que define números racionais e irracionais por corte.

É possível que o autor do manual didático tenha se inspirado nas ideias de Dedekind para colocar a seguinte nota de rodapé no título do capítulo:

Neste capítulo damos breves indicações sobre a definição e calculo dos numeros irracionais, estudo que é incontestavelmente dos mais delicados para os principiantes. Embora o programa não exija explicitamente essas noções, ellas são evidentemente indispensáveis para a comprehensão nitida dos capitulos subsequentes. (ANDREA, 1909, p.11)

Nota-se a explicitação da relevância do conceito dos números irracionais nessa obra para os capítulos subsequentes que são: Calculo dos Radicaes, Equação do 2º grau a uma incógnita, Theoria dos Limites, Progressões e Theoria dos logarithmos deduzida das progressões.

No livro Arithmetica Pratica e Geometria, de 1910, capítulo XIV - Raiz Quadrada, Andrea utiliza o mesmo exemplo de irracional, o número 72 , indicando o método de cálculo da raiz quadrada por aproximações sucessivas e a formação das classes do seguinte modo:

Vemos pois que tomando sucessivamente

8 , 8,4 , 8,48 , 8,485 ..…

para valor de 72 , obtemos numeros cujos quadrados são todos inferiores a 72, mas esses quadrados diferem cada vez menos do numero 72 (ANDREA, 1910, p. 104).

Ao elevar ao quadrado os números da sequência citada, o autor constrói a ideia de uma classe de números racionais cujos quadrados são inferiores a 72, cada vez mais próximos a esse número, porém nunca igual a ele. Do mesmo modo apresenta a sequência “9 , 8,5 , 8,49 , 8,486.....” (ANDREA, 1910, p. 104) como uma classe de números sucessivamente decrescente cujos quadrados são superiores a 72. Assim, define o número irracional: “O signal 72 representa a existencia d’estas duas classes e chama-se numero irracional. Não é inteiro nem fraccionario” (ANDREA, 1910, p. 104).

Após essa exposição há exercícios que solicitam a extração de raízes quadradas de números inteiros, fracionários e decimais.

Como prevê o título da obra, o livro destina-se à prática da Aritmética ao abordar números, operações, divisibilidade, potenciação, etc. e ao final da obra, sem numeração de capítulo, há noções práticas de geometria. Não há um capítulo destinado ao número irracional, este é introduzido no capítulo sobre raiz quadrada.

Nota-se que o capítulo XVI - Números complexos não aborda os números imaginários, como se poderia esperar, uma vez que na época já eram conhecidos, mas sim aos sistemas métricos não decimais, como ocorre com as grandezas tempo e ângulo. É curioso que o número pode ser complexo ou incomplexo. O número é complexo ao ser apresentado na forma: 3 dias 8 horas 45 minutos e incomplexo na composição de uma única unidade, por exemplo, 56 horas.

O número irracional proveniente das grandezas incomensuráveis - publicações de 1936 e 1940

Nos livros de Ribeiro 2 ([1936]3) e Tavares 4 (1940), os números irracionais aparecem relacionados às grandezas incomensuráveis. O Compêndio de Álgebra e Trigonometria: para os anos 4º, 5º e 6º dos Liceus, de Ribeiro ([1936]), possui os catorze primeiros capítulos dedicados à Álgebra e os oito restantes à Trigonometria. O capítulo V intitula-se Números irracionais cujo início versa sobre a relação dos números inteiros e fracionários com grandezas: “Os números inteiros, como se sabe, apareceram pela necessidade de contar os objectos de uma colecção, ou, o que é o mesmo, de medir as grandezas descontínuas” (RIBEIRO, [1936], p. 64).

A abordagem dos números fracionários, como nova espécie de números para medir grandezas contínuas, é realizada por meio de segmentos comensuráveis e conceito de medida. A partir do seguinte parágrafo o autor introduz o conceito de grandezas incomensuráveis:

Demonstra-se, porém em geometria que, se quisermos medir a diagonal de um quadrado, servindo-nos do seu lado como unidade, não é possível achar uma parte alíquota do lado que caiba um número exacto de vezes na diagonal. Quere isto dizer que a medida da diagonal de um quadrado quando se toma o lado para unidade, não pode ser um número inteiro nem fraccionário, embora na prática, por aquilo que acima dissemos, se consiga sempre um fraccionário que exprima uma medida suficientemente aproximada do lado (RIBEIRO, [1936], p. 65).

Após esse enunciado, o autor define grandezas incomensuráveis e na sequência do texto, a constituição da classe dos números racionais formada pelos números inteiros e fracionários. Com isso, para definir o número irracional é utilizada a noção de classes contíguas, porém formulada diferentemente das obras analisadas anteriormente (por Andrea, 1909, 1910 e 1914) as quais se constituem somente a partir do campo numérico.

Ribeiro ([1936]) utiliza o desenho de dois segmentos AB e MN, com MN menor que AB, e supõe que sejam incomensuráveis. Considerando o segmento MN a unidade de medida, as classes são assim formadas: a primeira “pelos números racionais que exprimem a medida de segmentos menores que AB, e outra classe constituída pelos racionais que exprimem a medida de segmentos maiores que AB” (RIBEIRO, [1936], p. 66).

Esta abordagem parte da geometria para justificar a relação entre segmentos incomensuráveis e os números irracionais sem, contudo, abandonar a definição por classes de números fracionários, estes entendidos como medidas de segmentos comensuráveis.

As propriedades das classes contíguas são enunciadas da mesma forma que na obra de Andrea (1909, 1914), ou seja, apontando a garantia que qualquer número (entendido como número racional) está na primeira ou na segunda classe e a inexistência de mínimo e de máximo nas classes define o irracional. É com base na inexistência desse número racional que o autor retoma a relação com a medida: “notemos ainda que não há nenhum número racional ao mesmo tempo maior que todos os números da 1ª classe e menor que todos os da 2ª, pois se existisse, êsse número seria a própria medida de AB” (RIBEIRO, [1936], p. 66, grifo do autor). Após essa argumentação, define o número irracional: “Dizemos que aquelas duas classes definem ou determinam um número de uma espécie nova, chamado irracional, que é a medida do segmento AB” (RIBEIRO, [1936], p. 67).

A sequência do texto apresenta dois segmentos comensuráveis e as classes de racionais para retomar a ideia de que tanto os racionais como os irracionais são definidos pelas classes contíguas. O capítulo termina expondo sobre os números chamados quadrados perfeitos e a discussão da inexistência do quadrado de um número inteiro ou fracionário ser 12, reportando-se a estudos da aritmética racional. Assim, conclui pela formação das classes, que 12 é um número irracional, ou seja, duas classes, uma formada pelos números racionais cujos quadrados são maiores que 12 e, a outra, pelos quadrados menores que 12.

A infinitude das classes é indicada pela impossibilidade de determinar todos os números de cada classe. Porém, para suprir a necessidade de calcular a raiz quadrada de um número - que não é quadrado perfeito - é apresentada a determinação das classes pela diferença entre os números de cada classe na ordem dos décimos, milésimos, etc. Com isso, conclui que “Continuando assim, podíamos obter números de uma ou outra classe cuja diferença fôsse tão pequena quanto quisessemos...” (RIBEIRO, [1936], p. 69).

O Compêndio de Álgebra e Trigonometria para os anos 4º, 5º e 6º dos Liceus, de Tavares (1940) apresenta no índice a divisão pelos anos: 4º, 5º e 6º, diferente da obra de Ribeiro ([1936]) que organiza o índice diretamente em capítulos e os saberes matemáticos. Há dezesseis capítulos destinados à Álgebra, distribuídos nos três anos, e nove capítulos à Trigonometria, esta destinada somente ao 6º ano. O Capítulo V - Noção de número irracional é o antepenúltimo do 4º ano. A primeira frase do capítulo subentende-se que o leitor já saiba o significado de comensurável e incomensurável: “Sabemos da aritmética que as quantidades contínuas se classificam em comensuráveis e incomensuráveis” (TAVARES, 1940, p. 67). Não há discussão da relação das grandezas com o campo numérico, somente as afirmações:

Para representar a medida das quantidades comensuráveis empregam-se os números inteiros e os números fraccionários.

É agora ocasião de tratar da medida das quantidades incomensuráveis.

[...]

Aos números que representam a medida das quantidades incomensuráveis dá-se o nome de números irracionais (TAVARES, 1940, p. 67).

Em menos de meia página o autor introduz os números irracionais e segue com o exemplo da raiz quadrada 2 proveniente de um resultado que se supõe conhecido do leitor: d = 2 l, d diagonal de um quadrado de lado l. Inicialmente 2 não é abordado como número “ 2 exprime um resultado que não é igual a um número inteiro nem a um número fraccionário...” (TAVARES, 1940, p. 68). Em duas frases o autor afirma que a diagonal do quadrado é incomensurável com seu lado e que 2 é um número irracional.

O texto indica que 2 é uma operação matemática contrária à potenciação cuja representação é possível somente por aproximação do seguinte modo: “Não é possível representar todos os algarismos de 2 , mas podemos conhecer quantos quisermos...” (TAVARES, 1940, p. 68). Esse enunciado mostra, utilizando aproximações sucessivas, duas sequências de números, uma “por defeito” e outra “por excesso” (TAVARES, 1940, p. 68) que chama de classes.

Sem enunciar as propriedades das classes contíguas neste momento, nem identificá-las como tal, o autor desenvolve as relações entre as classes e seus elementos estritamente com o exemplo dado, em relação à ordem e à diferença entre dois números de classes distintas. Assim, utiliza o recurso visual que serve para afirmar que 2 separa as duas classes, do seguinte modo: “0… 1 1,4 1,42 1,414… 2 1,415 1,42 1,5 2” (TAVARES, 1940, p. 69)

Logo após, outra representação que aparece é do 2 na reta aritmética, acompanhada dos dizeres

Representando os números racionais sôbre uma recta completa-se a correspondência entre os pontos da recta e os números, fazendo corresponder os números irracionais aos pontos da recta cuja distância à origem seja incomensurável com a distância tomada para unidade. (TAVARES, 1940, p. 69-70).

Embora não haja menção sobre número real, observa-se o conceito de completude que produz a equivalência elaborada por Dedekind entre os pontos da reta e os números reais, ao introduzir o número irracional.

Terminada a exploração da irracionalidade de 2 , a generalização é apresentada por meio da definição de classes contíguas, com todos os enunciados que as caracterizam. Ao final, conclui que as classes contíguas definem qualquer número racional e qualquer número irracional. O capítulo é finalizado com exemplos de classes que definem 2/3 e 7 e uma observação sobre suas representações decimais infinitas com e sem periodicidade, respectivamente.

Das obras anteriormente analisadas, a de Tavares é a primeira a introduzir uma representação do número irracional na reta. A obra não apresenta os números reais, os capítulos subsequentes para o 4º ano tratam de Radicais e Potências.

Abordagem da Raiz quadrada - publicações de 1945, 1950 e 1952

Apresenta-se aqui as obras de Tavares (1945), Ribeiro (1950) e Ribeiro (1952) com o propósito de explicitar brevemente o tratamento da Raiz quadrada. Nota-se que as obras anteriores mencionam as raízes quadradas como conhecidas pelo leitor. Desse modo, uma breve explanação das obras destinadas aos anos escolares anteriores buscou observar e localizar esse conteúdo matemático.

O Compêndio de Aritmética e Álgebra para os 1º, 2º e 3º anos dos Liceus, de Tavares, publicado em 1945, apresenta antes do índice dois parágrafos com o título de Programa e separados pelos subtítulos 1º ano e 2º ano, não há nada para o 3º ano. Cada parágrafo contém uma lista de conteúdos e nenhum deles trata de número irracional. A apresentação do índice da obra segue a mesma forma que esse autor faz na obra apresentada anteriormente, dividida por anos. O Capítulo XVI - Raiz quadrada se refere ao 2o. ano.

Em nenhum momento do capítulo há classificação das raízes quadradas de quadrados não perfeitos como irracionais, o texto destina-se a ensinar o método de extração de raízes quadradas de números inteiros e fracionários, conhecido no Brasil na década de 1980 pelo método da chave.

Assim, inicia a definição de raiz quadrada apresentando a nomenclatura de radical, radicando e raiz quadrada, seguindo a enunciação de que se trata da “operação inversa da elevação ao quadrado”. (TAVARES, 1945, p. 204). Os exemplos que seguem são primeiramente de raízes de números quadrados perfeitos e depois há uma discussão de 23 como um número entre 4 e 5, em que 4 é uma aproximação por falta de uma unidade. Para números maiores que 100 é apresentada uma técnica (método da chave) de extração de raízes de números inteiros e decimais. Os exercícios são diretamente destinados à extração de raízes.

No Compêndio de Matemática, para o 1º ano dos liceus, de 1950 e também no de 1952, de Ribeiro, o número irracional não é mencionado. No capítulo VIII Raiz quadrada - na obra de 1950, capítulo VII na obra de 1952 - há um estudo inicial de raiz quadrada no qual é realizada uma relação do número com área de quadrado que será exposto na sequência.

A partir de três quadrados desenhados em malha quadriculada solicita-se ao estudante a relação de área com o lado de cada quadrado com várias frases para completar, que correspondem aos quadrados de lados 2 cm, 3 cm e 4 cm. Em seguida, solicita-se ao estudante que encontre a medida do lado dos quadrados de áreas 25 cm2 e 36cm2, a fim de que ele perceba a regularidade. Existe nos enunciados dos exercícios que seguem, uma solicitação para que o estudante utilize a tábua de quadrados apresentada no final da obra.

A próxima abordagem é com auxílio do quadriculado milimétrico e da tábua para discutir a medida do lado do quadrado de área 676 mm2. Durante a exposição é introduzida a nomenclatura raiz quadrada, sem uso da simbologia. Assim, o autor define quadrado perfeito e raiz quadrada de números explorando raízes quadradas aproximadas por inteiros antes de iniciar a técnica de extração da raiz quadrada. Esta, por sua vez é apresentada de modo análogo como em Tavares (1945).

Número irracional como dízima - publicações de 1954, 1956 e 1963

O Compêndio de Álgebra, para 3º, 4º e 5º ano do Liceu, de Calado 5, 1954, inicia-se pelo Programa (lista de conteúdos). Os capítulos encontram-se separados para cada ano, o Capítulo XVII - Noção de número irracional é o antepenúltimo do bloco de capítulos para o 4º ano, precedido pelo Capítulo XVI - Generalização da noção de potência e anterior aos capítulos XVIII - Radicais e potências de expoente fraccionário e XIX - Sucessões numéricas.

O autor inicia o capítulo XVII pela representação decimal dos números fracionários, com o exemplo da fração 35 que “representa o quociente exacto da divisão de 3 por 5” (CALADO, 1954, p. 320). É interessante notar que a expressão quociente exacto pode criar a concepção de que 3 seja divisível por 5, ou, em outras palavras, de que 5 divide 3. Em Dias (2007) observou-se a presença dessa concepção em relação ao conceito de divisibilidade, assim como os seus reflexos na concepção de número irracional. A concepção de que um número irracional é aquele que tem representação decimal infinita, incluindo as dízimas periódicas, foi observada nas respostas dos sujeitos da pesquisa de Dias (2002), como também outras referências bibliográficas nacionais e internacionais mencionadas na pesquisa.

A representação decimal de números fracionários é nomeada pelo autor de dízima, assim dividir 3 por 5 significa “converter a fraccção em dízima” (CALADO, 1954, p. 320, grifo do autor). Com isso, conclui que toda fração é convertível em dízima, ou limitada ou ilimitada, neste último caso, periódica.

A escrita do número em dízima periódica é iniciada pelo autor pela impossibilidade de escrever todos os algarismos, por isso, pode-se “todavia escrever tantos quantos quisermos...” (CALADO, 1954, p. 320). Observa-se que a grafia da representação decimal infinita de um número tem proporcionado discussões que apontam problemas didáticos capazes de gerar concepções incoerentes com o conhecimento científico em relação ao número irracional (DIAS, 2002, 2007).

O item seguinte do capítulo refere-se à Noção aritmética de número irracional que aborda as dízimas não periódicas com referência a obra de “Felix Klein - Matemática Elementar desde un punto de vista superior ,vol. I, p. 38, Madri, 1927”. (CALADO, 1954, p. 321, nota de rodapé). A partir da possibilidade de se “fabricar” números por meio de dízimas não periódicas, como o número “5, 1010010001...”6, exemplificado pelo autor, o final do texto desse item contém a mensagem que se trata de uma nova espécie de número.

O item subsequente inicia-se com a definição de número irracional: “chama-se número irracional todo o número decimal ilimitado e não periódico” (CALADO, 1954, p. 322, grifo do autor), que, por não ser periódico, não pode representar um número fracionário. O exemplo (único) de número irracional explorado pelo autor, após a definição, é 2 , não propriamente como uma representação do próprio número irracional, mas do número irracional produzido pela extração da raiz quadrada, ou seja, “... calcular o número cujo quadrado é 2, ou seja calcular 2 ” (CALADO, 1954, p. 322). Percebe-se a ideia de uma dízima infinita não periódica no processo de cálculo de extração da raiz demonstrada pela expressão: “...logo reconheceremos que a operação não tem fim” (CALADO, 1954, p. 322). Finaliza o item expondo que “Na prática utilizam-se as raízes aproximadas, ou melhor, valores aproximados dos números irracionais, e, por via de regra, a aproximação até às milésimas é considerada suficiente nas aplicações.” (CALADO, 1954, p. 322, grifo do autor). Em nota de rodapé o autor menciona que π = 3,14159... é irracional justificando que nem todo irracional provém da extração de raízes.

O próximo e último tópico, ainda nesse capítulo, é O número irracional e a medida das grandezas incomensuráveis, o qual é iniciado pelo discurso sobre um segmento de comprimento não identificado e outro da unidade de medida decímetro e a seguir há uma descrição de quando dois segmentos são comensuráveis e quando são incomensuráveis. Após, é mencionado como exemplo a incomensurabilidade da diagonal do quadrado com seu lado e, voltando ao 2 , uma conclusão generalizando e terminando o capítulo com a frase: “... a criação dos números irracionais tornou possível, em todos os casos, a determinação da medida exacta de qualquer grandeza” (CALADO, 1954, p. 324).

Na obra de 1956 do mesmo autor, a mudança está na destinação do assunto na correspondência com o ano do liceu. Na obra de 1954 o ensino dos números irracionais7 é proposto para o final do 4o. ano e na de 1956 o mesmo capítulo é o segundo do bloco de capítulos destinados ao 5º. ano, precedido pelo Capítulo XVII - Generalização da noção de potência.

Esta obra apresenta um capítulo a menos, foi subtraído o capítulo referente aos Logaritmos (capítulo XX que se encontra no bloco de 5º ano na obra de 1954), constituindo-se assim em vinte e dois capítulos. Todos os outros títulos e subtítulos dos capítulos são os mesmos em ambas as obras.

Outra mudança refere-se à ordem em que o capítulo Sucessões numéricas é apresentado. Na obra de 1954 é o capítulo XIX e na obra de 1956 é o capítulo XVI, ambos são os últimos capítulos do bloco de 4º ano, pois houve uma redistribuição da quantidade de capítulos nos blocos. Na obra de 1954 são 9 capítulos no bloco de 3º ano, 10 no de 4º e 4 no de 5º ano. Em 1956 permanecem os 9 capítulos no bloco de 3º ano, mas são 7 capítulos no bloco de 4º ano e 6 no de 5º ano. Essas mudanças merecem análise junto aos programas desse período, o que não é feito aqui, por não ser o objetivo deste trabalho.

No que se refere às dízimas exploradas na obra, observa-se que não há menção ao trabalho de Stevin, De thiende (O décimo), publicado em 1585 (BOYER, 1993, p. 232). A obra trata sobre a representação da parte decimal como prolongamento do sentido da direita da unidade, conhecida nos dias atuais como décimos, centésimos, milésimos... Esta notação associada às sucessões numéricas permitiu definir números irracionais pela dízima infinita não periódica. O conhecimento dessa relação pode ter inspirado autores ou revisores de manuais a mudarem a ordem do capítulo Sucessões Numéricas.

O prefácio do Compêndio de Álgebra (1º Tomo) de Silva 8 e Paulo9, 1963, destinado ao 6o. ano liceal, indica que há um capítulo destinado a revisão:

Em particular, o capítulo I tem por objectivo principal rever e sistematizar noções adquiridas em anos anteriores; para a maioria dos alunos, bastará então ficar a ter um conhecimento nítido das propriedades operatórias que são válidas nos diversos campos numéricos e da crise que conduz ao alargamento de cada um deles; só no § 3 é introduzida matéria essencialmente nova, a qual convém dedicar atenção especial (SILVA; PAULO, 1963, PREFÁCIO).

Diferentemente das outras obras, ainda no prefácio, há uma explicação da matemática como um processo histórico, contrapondo ao “abstractismo inerente à matemática” (SILVA; PAULO, 1963, PREFÁCIO).

A obra é composta de dez capítulos. O capítulo I intitulado Evolução do conceito de número tem como subdivisões: Números naturais, Números racionais positivos, Números positivos, Números reais, Resumo do capítulo, Exercícios. Observa-se que essa é a única obra analisada que trata de números reais.

A introdução do capítulo destina-se a meia página em que há menção onde aparecem os números no cotidiano e uma referência histórica que se resume em dizer que o conceito de número perpassa milênios, desde o pastor na contagem de ovelhas até a demonstração da irracionalidade de pi.

O §3. Números positivos inicia com a seguinte definição dos números irracionais:

Quando, por exemplo, se procura extrair a raiz quadrada do número 2 pelo processo habitual, não se consegue nunca chegar a resto nulo nem a um período; gera-se então uma dízima infinita não periódica:

1, 41421356237309…(1)

(1) Note-se que, embora infinita e não periódica, esta dízima é bem determinada, visto que conhecemos um processo, que permite calcular os seus algarismos decimais até à ordem que se queira, por maior que seja. (SILVA; PAULO, 1963, p.31, grifo dos autores)

Os autores definem número irracional pela sua representação decimal - infinita não periódica - como Calado (1954, 1956), com a diferença que na obra de 1954 o ensino dos irracionais era destinado aos estudantes do 4º ano, na de 1956 do 5º ano e de 1963 com Silva e Paulo, a definição de números irracionais se encontra na obra destinada ao 6º ano do liceu.

A formalização das operações com os números irracionais, a ordem e a igualdade se fundamentam no que o autor descreve como “PRINCÍPIO DE CONSERVAÇÃO DE PROPRIEDADES FORMAIS” (SILVA; PAULO, 1963, p. 32, grifo dos autores). O uso de maiúsculas na mensagem sugere que essa expressão já é conhecida pelo leitor. Além desse direcionamento, o item termina com uma “convenção” para tratar a comparação entre “o valor duma dízima infinita não periódica” (SILVA; PAULO, 1963, 32) e de uma dízima finita, apresentando também o exemplo: “1 < α < 2; 1,4 < α < 1,5; 1,4142 < α < 1,4143;…” (SILVA; PAULO, 1963, p. 32) em que α é o valor de 2 .

Os itens seguintes tratam da ordem, das operações de adição, subtração, multiplicação e divisão. O capítulo é finalizado com os tópicos: “valores aproximados” e “extração de raiz”. Toda a abordagem dos números irracionais é realizada considerando-se os números positivos; no parágrafo seguinte, § 4 Números reais, é que o autor introduz os números negativos e o zero, generalizando que os números reais são os números positivos, o zero e os números negativos.

Conclusão

Ao expor o conteúdo das obras pode-se observar o processo que um saber científico é submetido para tornar-se um saber ensinável no ambiente escolar, uma textualização do saber. Como foi abordado na introdução deste artigo, a textualização compreende: dessincretização, despersonalização, programabilidade, publicidade e controle social das aprendizagens. Embora a ênfase aqui seja a publicidade do saber números irracionais, na sequência aponta-se comentários e inferências pelo fato da interligação entre esses elementos.

Todas as obras de alguma forma mencionam a concordância com os programas nacionais vigentes, seja no próprio subtítulo da obra, por um carimbo ou uma epígrafe, o que indica uma coerência no interior da noosfera entre autores dos livros didáticos e os agentes do Ministério da Educação no que se refere à programabilidade do saber a ensinar.

Observa-se em geral a nova contextualização em que os números irracionais aparecem nas obras na comparação com sua produção científica. A progressão textual conduz, por um lado, a adequação da aprendizagem à seriação escolar e, por outro, à sequência dos saberes. Um exemplo dessa sequência é o fato das definições de números irracionais serem apresentadas após explanação sobre potenciação. Essa alocação do conceito nas obras também caracteriza uma dessincretização do saber, na medida em que não somente sua essência, tomada aqui pela definição, relaciona-se com outros saberes de modo distinto à produção desse saber, como também com a própria ausência de elementos dessa produção, por exemplo, do campo histórico.

O processo de despersonalização do saber é completo nas obras citadas, pois apesar da apresentação da definição de números irracionais de modo análogo à noção de cortes, como foi mostrado, não há menção a Dedekind. O mesmo ocorre em relação a definição por dízimas infinitas não periódicas que, embora a abordagem possa ser interpretada como próxima aos chamados intervalos encaixantes, não há menção a Karl Theodor Wilhelm Weierstrass (1815-1897) ou mesmo de Augustin Louis Cauchy (1789-1857), no que se refere a sequências.

Relativamente à programabilidade e ao controle social das aprendizagens, destaca-se um processo semelhante nas obras quanto a sequência didática do conceito de números irracionais: um exemplo particular - atrelado a raiz quadrada de um número inteiro positivo que não é quadrado perfeito -, definição e outros exemplos.

Acrescenta-se aqui dois outros exemplos do processo de programabilidade: a nota de rodapé de Andrea (1909) indicando a redução do saber na explanação ao mesmo tempo em que justifica a presença desse conteúdo não pela própria disseminação, mas pelos conteúdos dos próximos capítulos e os dizeres de Tavares (1940), mencionando que o significado de comensurável e incomensurável já foi abordado em outro momento.

Em síntese sobre a transmissibilidade do saber nota-se que no percurso das publicações as definições de número irracional não são as mesmas. A primeira caracterização, na década de 1910, trata os números irracionais como classes contíguas por meio do campo numérico dos racionais, a qual permanece na segunda caracterização, juntamente com a relação do irracional com a incomensurabilidade, nas obras de 1936 e 1940. A terceira caracterização é a definição de irracional por meio da dízima infinita não periódica, nas obras da década de 1950 e 1960. Embora haja exemplificação da relação do número irracional com grandezas incomensuráveis, a definição por meio das classes é inexistente. Pode-se dizer que nos períodos analisados e nas obras selecionadas, há somente duas definições de irracionais a de classes contíguas e de dízima não periódica.

Com base no exposto, é possível observar elementos da transposição didática objetivados pelos autores nas obras sobre as maneiras de introduzir e tratar o número irracional. Na obra de 1963 nota-se que os números irracionais não mais são os que merecem um capítulo, pois já se subordinam ao dos números reais, mesmo na ausência, de uma abordagem conjuntiva.

Todas as obras partem de uma situação particular para a definição de número irracional. O elemento novo que aparece a partir de 1954 - Calado, 1954 e 1956 e Silva e Paulo, 1963 - é a utilização de número transcendente como exemplo de irracional, porém não com essa nomenclatura. Observa-se que para iniciar as exemplificações de um número irracional geralmente aparecem raízes quadradas, mesmo quando não estão associadas à geometria. Embora nos capítulos destinados a explorar raiz quadrada dentre as obras de Andrea (1910), Tavares (1945), Ribeiro (1950), Ribeiro (1952), o manual de Andrea é o único que explicita as raízes exemplificadas como sendo número irracional.

Das obras analisadas, a partir da obra de Ribeiro, de 1936, há indicativos iniciais do tratamento do número irracional como o número que não pode ser expresso por razão de inteiros, ou seja, como número fracionário na linguagem das obras analisadas. Tais indicativos em Ribeiro ([1936]) aparecem ligados à incomensurabilidade e à referência da aritmética racional, a começar de exemplos de raízes quadradas. Já em Calado (1954) essa impossibilidade é apenas mencionada em um exemplo de número transcendente e, na obra de Silva e Paulo (1963), a relação entre fração e dízima não é mencionada no tópico que trata dos números irracionais, a dízima é definida no tópico precedente, dos números racionais, o qual finaliza com as dízimas infinitas periódicas.

Nota-se ao longo das obras uma mudança no discurso, as que constituíram a primeira caracterização parecem estar mais direcionadas à relação autor-conhecimento, aos poucos, nas obras subsequentes, começa um diálogo com o leitor. Mesmo a quantidade de exemplos vai aumentando ao longo dos anos. Esse e outros elementos merecem ser analisados profundamente considerando, inclusive, outros aspectos da transposição didática.

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2Álvaro Sequeira Ribeiro foi professor do Liceu de Setúbal.

3O ano da obra foi obtido pela catalogação da Biblioteca Nacional de Portugal.

4 Pedro de Campos Tavares foi professor do Liceu de Santarém.

5Professor do Liceu de Pedro Nunes.

6Após a escrita do número o autor explica a lógica de sua construção do seguinte modo: “a seguir a cada 1, vem um grupo de zeros que tem mais um zero do que o grupo imediatamente anterior a esse 1” (CALADO, 1954, p. 321).

7Há falha de impressão no número do capítulo referente aos números irracionais na obra de 1956 que apresenta como XVII quando pela sequência seria XVIII.

8J. Sebastião e Silva professor catedrático da Faculdade de Ciências de Lisboa.

9 J. D. da Silva Paulo professor efetivo do Liceu Nacional de Oeiras (Portugal).

Recebido: 01 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

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