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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.29  Uberlândia  2022  Epub 08-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v29a2022-23 

DEMANDA CONTÍNUA

A influência dos agentes privados na reforma do Ensino Médio

La influencia de los agentes privados en la reforma de la escuela secundaria

Aldimara Catarina Brito Delabona Boutin1 
http://orcid.org/0000-0002-0564-8290

Simone de Fátima Flach2 
http://orcid.org/0000-0002-9445-0111

1Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG, Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: audiboutin@hotmail.com.

2Doutora em Educação. Docente da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG, Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: sfflach@uepg.br.


RESUMO

Integrante do conjunto de análises de pesquisa mais ampla, a qual se orienta pelo materialismo histórico e dialético, o presente texto tem por objetivo apresentar elementos para o debate sobre a influência dos agentes privados de hegemonia na reforma do ensino médio, materializada na Lei nº 13.415/2017. A partir de pesquisa bibliográfica e documental o texto discute os elementos que sustentam a referida reforma e os possíveis entraves que dificultam o acesso de estudantes secundaristas a uma educação efetivamente pública e de qualidade. As análises demonstram que os interesses presentes na reforma do ensino médio são marcados pela a influência de segmentos privados, os quais visam interferir na educação pública com ideias e modos de pensar que conformam a juventude à uma situação de classe.

PALAVRAS-CHAVE: Reforma do Ensino Médio; Lei 13.415/2017; Ensino Médio; Aparelhos privados de hegemonia

RESUMEN

Como parte del conjunto más amplio de análisis de investigación, que se guía por el materialismo histórico y dialéctico, este texto pretende presentar elementos para el debate sobre la influencia de los agentes privados de hegemonía en la reforma del bachillerato, materializado en la Ley N ° 13.415 / 2017. . A partir de una investigación bibliográfica y documental, el texto discute los elementos que sustentan la referida reforma y los posibles obstáculos que dificultan el acceso de los estudiantes de secundaria a una educación eficazmente pública y de calidad. Los análisis muestran que los intereses presentes en la reforma del bachillerato están marcados por la influencia de los segmentos privados, que buscan interferir en la educación pública con ideas y formas de pensar que conforman a los jóvenes a una situación de clase.

PALABRAS CLAVE: Reforma de la escuela secundaria; Ley 13.415 / 2017; Escuela secundaria; Dispositivos privados de hegemonía

ABSTRACT

Part of a broader set of research analyses, which is guided by historical and dialectical materialism, this text aims to present elements for the debate on the influence of private agents of hegemony in the reform of high school, materialized in the law n. 13.415/2017. Based on bibliographic and documentary research the text discusses the elements that support the referred reform and the possible obstacles that hinder the access of high school students to an effectively public and quality education. The analyses show that the interests observed in the high school reform are marked by the influence of private segments, which aim to interfere in public education with ideas and ways of thinking that conform the youth population to a class situation.

KEYWORDS: High school reform; Law 13.415/2017; High school; Private devices of hegemony

Introdução

A crise capitalista atualmente em curso e com abrangência global, coloca em risco o funcionamento e a hegemonia (política, econômica e ideológica) desse modo de produção. Tendo isso em vista, as classes dominantes reorganizam suas táticas em favor da ofensiva política hegemônica, colocando em funcionamento reformas sociais para garantir o domínio do capital e a ampliação das possibilidades de extração da mais valia.

Os ajustes, as medidas e as políticas, adotados durante os momentos de crises, integram um conjunto de ações paliativas, cujo objetivo é contornar as falhas do capitalismo e contribuir para que este modo de produção continue produzindo riquezas e desigualdades em proporções equiparadas, pois a acumulação privada de capital por uma única classe, é consequência da extração da mais valia no campo do trabalho.

A concepção de Estado em Gramsci (2016) aparece como uma relação orgânica e dialética entre força e consenso, ditadura e hegemonia, economia e política, direção e domínio. Portanto, o Estado é compreendido em uma dimensão ampliada, a qual envolve não apenas a função que lhe é tradicionalmente atribuída, como sociedade política, mas também, como sociedade civil, de modo a haver uma articulação em torno dos mesmos interesses. (GRAMSCI, 2016)

Tomando como referência essa compreensão, Gramsci (2014) destaca o vínculo que se estabelece entre o Estado e os agentes privados de hegemonia, ou seja, instituições da sociedade civil com representação nos segmentos políticos, econômicos, culturais, religiosos, entre outros. Para o autor, em momentos de crises econômicas, o Estado adota ações ou iniciativas que contribuem para a conservação do aparelho produtivo. (GRAMSCI, 2014)

De acordo com Sanfelice (2016) nos momentos de crise os direitos sociais são espoliados e o capital se fortalece. Em tais momentos são exigidos a compreensão e o sacrifício da população e, a partir desse argumento, o Estado pratica “as políticas mais bárbaras, contra o social e, em especial, contra a classe trabalhadora, que ainda arca com os custos” (SANFELICE, 2016, p. 98) das crises.

Em se tratando da realidade brasileira, temos vivenciado um contexto de crises com repercussão nos aspectos políticos, econômicos e sociais e na tentativa de contorná-las o Governo Federal coloca em prática ações de ajuste fiscal como: congelamento de salários, reformas educacionais, terceirizações em massa, redução de vagas em universidades públicas, cortes em programas sociais, entre outras. (ORSO, 2017)

Após o Golpe de 2016, essas medidas políticas/econômicas vieram como uma avalanche destruindo os direitos e as pequenas conquistas adquiridas pela classe trabalhadora nos últimos anos. Autores como Saviani (2017); Lombardi (2017); Caetano e Comerlatto (2018) apontam que a área da educação é estratégica para o desenvolvimento de ações reformistas nos momentos de recessões econômicas. Para esses últimos, “a proposta da educação da classe capitalista fomenta o discurso da eficiência e eficácia através do desmantelamento do que foi produzido pela escola anteriormente”. (CAETANO; COMERLATTO, 2018, p. 21)

A PEC nº 241, posterior PEC nº 55, ou então “PEC do fim do mundo”, como também ficou conhecida, desconstrói os argumentos, utilizados na propaganda do Governo Federal, de que a Reforma do Ensino Médio representa melhoria, expansão e modernização desta etapa de ensino. Ao contrário, tais indicação governamentais não podem se concretizar sem investimentos de ordem estrutural nas instituições de ensino brasileiras e nas condições de trabalho dos profissionais da educação.

A reformulação do Ensino Médio foi lançada como Medida Provisória no dia 22 de setembro de 2016, em caráter de urgência, sem diálogo ou debate aprofundado com a sociedade civil, movimentos estudantis, alunos, professores e entidades ligadas à educação. Para Motta e Frigotto (2017), essa urgência, reveste-se de um caráter essencialmente interessado, no qual a formação dos jovens está atrelada ao economicismo, cujo objetivo é o desenvolvimento da força de trabalho para atender às imposições do mercado. Os autores interpretam essa situação como uma “relação orgânica” que se estabelece “entre educação, crescimento econômico e desenvolvimento social”. (MOTTA; FRIGOTTO, 2017, p. 364)

A produção de mão de obra técnica e qualificada para o mercado de trabalho, e o cerceamento da possibilidade de uma formação geral e crítica, fundamentada em conhecimentos científicos que permitam a elevação do pensamento e que oportunize aos jovens o acesso ao ensino superior, são aspectos que orientam a reforma do Ensino Médio.

A partir do referencial teórico metodológico do Materialismo Histórico e Dialético, o presente artigo tem por objetivo fornecer elementos para o debate sobre a influência dos agentes privados de hegemonia na materialização da Lei 13.415/2017.

As reflexões foram sistematizadas de modo a fornecer elementos para contemplar o objetivo proposto. Para tanto, debatemos os elementos que sustentam a reforma do Ensino Médio - Lei nº 13.415/2017 e os limites que dificultam ou entravam o acesso dos secundaristas a uma educação efetivamente pública e de qualidade. Posteriormente buscamos desvelar os interesses presentes na reforma do Ensino Médio e a influência dos segmentos privados na aprovação da Lei 13.415/2017.

As considerações finais indicam que houve hegemonia dos segmentos privados de hegemonia na reforma do Ensino Médio, principalmente do empresariado e de organizações não governamentais. Esses, além de benefícios financeiros foram contemplados com a possibilidade de interferir na educação pública com ideias e modos de pensar, de modo a formar em médio e longo prazo uma juventude adaptada e conformada com sua situação de classe.

Elementos estruturantes da reforma do Ensino Médio - Lei nº 13.415/2017

A reforma do Ensino Médio brasileiro, lançada via medida provisória no dia 22 de setembro de 2016 ocorreu em uma conjuntura de crise de hegemonia, materializada em um golpe de Estado que tramitou nas brechas da democracia burguesa.

Essa crise, que teve seu pico com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, repercutiu em todos os setores sociais e serviu como justificativa para que o sucessor na Presidência da República, Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro - MDB), colocasse em prática um conjunto de reformas que tinham, dentre outros objetivos, limitar o acesso do conjunto da população trabalhadora a direitos sociais básicos, como a educação e a saúde.

No bojo das reformas implementadas, duas propostas se mostraram centrais: Proposta de Emenda Constitucional - PEC nº 241, a qual tramitou no Senado Federal como PEC nº 55 e que, após aprovada, congelou os gastos do governo em áreas sociais e a MP nº 746/2016, convertida na Lei nº 13.415/2017, que dispunha sobre a reorganização da oferta do Ensino Médio no país.

A proposta de reforma do Ensino Médio foi recebida com críticas e teve baixo índice de aceitação junto aos alunos, profissionais do ensino, pesquisadores da área da educação, entre outros. Além do movimento de ocupações de 1.197 instituições públicas de ensino em oposição à reforma, Caetano e Comerlatto (2018) lembram que na consulta pública, realizada pelo Senado Federal com 78.115 pessoas, um total de 73. 564 se posicionaram contra a reforma.

No centro das críticas à reforma do Ensino Médio, destaca-se a flexibilização curricular, expressa na fragmentação do currículo do Ensino Médio em duas partes. Uma dessas partes foi destinada a uma formação comum, definida pelo documento da Base Nacional Comum Curricular - (BNCC), o qual indicou que somente as disciplinas de língua portuguesa e matemática serão de caráter obrigatório nos três primeiros anos do Ensino Médio e, a outra foi composta por cinco itinerários formativos: “I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas; e, V - formação técnica e profissional” (BRASIL, 2017).

Para Silva (2018, p. 43), a flexibilização curricular representa uma “negação do direito a uma formação básica completa e comum a todos”, acentua as desigualdades sociais, visto que seu objetivo maior não é uma formação que priorize a universalização do conjunto de conhecimentos e saberes produzidos historicamente pela humanidade, nem a expansão e a formação do pensamento livre e crítico e o fomento do desenvolvimento das potencialidades humanas, as quais são facilitadas por meio do contato com a diversidade de saberes, conteúdos e experiências. Ao contrário, a flexibilização curricular incorre em uma formação rasa e desmembrada que condiciona os secundaristas a se adequarem à forma de organização produtiva regida pelo capital.

É importante destacar que mesmo antes da proposta de reformulação do Ensino Médio, essa etapa da educação básica, vinha sofrendo com os problemas que assolam a educação brasileira como um todo. O Fundo das NaçõesUnidas Para a Infância -(UNICEF) aborda os desafios para a qualidade no ensino médio, destacando que o acesso e permanência dos jovens no Ensino Médio no Brasil não está desvinculada de questões relacionadas ao “contexto socioeconômico, como o trabalho precoce, a gravidez e a violência familiar” (UNICEF, 2014, p. 06).

Além disso, o UNICEF (2014) pontua sobre a existência de problemas relacionados ao cotidiano escolar, tais como: distanciamento da realidade dos alunos, inexistência de diálogo entre os membros da comunidade escolar (alunos, professores e equipe de gestão), aspectos relacionados à desmotivação e condições de trabalho, e, ainda, a precariedade da infraestrutura dos estabelecimentos. Essas questões evidenciam os problemas históricos dessa etapa da educação básica, os quais não estão afetos apenas à organização curricular, mas às condições de trabalho e de vida de profissionais e estudantes, e, ainda, marcados pela falta de vivências democráticas e pelas carências materiais.

Nosella (2016, p. 19) problematiza a atual configuração do Ensino Médio e debate sobre “falta de definição de seu estatuto pedagógico”, enfatizando que “não se tem clareza sobre” a sua “função educacional específica”. Para o autor, o Ensino Médio, “ora se configura esprimida entre o ensino de 1° grau3 e superior, ora se apresenta como um ensino marginalizado e até dispensado ou dispensável por cursinhos” (NOSELLA, 2016, p. 19) os quais são “direcionados à preparação para o vestibular, ou no caso do ensino profissionalizante, pela prática direta da produção”. (NOSELLA, 2016, p. 19)

Na realidade, o Ensino Médio brasileiro está longe de contemplar os interesses e as necessidades da juventude vinculada à classe trabalhadora. Contudo, “a Lei parece insistir na perspectiva de que o conjunto dos problemas presentes no Ensino Médio público poderá ser resolvido por meio da alteração curricular” (FERRETI, 2018, p. 27) centrada em um núcleo comum e em itinerários formativos.

Um dos argumentos utilizados pelo Governo Federal é que os itinerários formativos dariam aos jovens brasileiros a possibilidade de escolha daquele que melhor contemplasse seus objetivos e projetos futuros. Esse argumento é frágil, pois o art. 4º da n° Lei nº 13. 415/2017 altera o artigo 36 da Lei nº 9394/96, estabelecendo que a organização das áreas do conhecimento “será feita de acordo com critérios estabelecidos em cada sistema de ensino”. (BRASIL, 2017)

A intensão de organizar os currículos tomando por base os itinerários formativos, sob o argumento de flexibilização, centra-se no tecnicismo e possui vínculos estreitos com o mundo produtivo. Araújo (2019) comenta que o itinerário da formação técnica e profissional ou “itinerário dos pobres” (p. 61) demandaria à realização de amplos investimentos em recursos nas escolas públicas e, em oposição a isso, o que está previsto na forma da lei, é o reconhecimento de saberes, experiências e competências adquiridas em outros espaços. Na visão do autor, esse elemento configura “um vale tudo na educação profissional técnica de nível médio, destinada prioritariamente aos jovens de origem trabalhadora”. (ARAÚJO, 2019, p. 61)

A questão da carga horária foi outro elemento bastante criticado na proposta de reformulação do Ensino Médio. A MP nº 746/2016 sugeria um limite de 1200 horas para a carga horária total do núcleo comum do currículo e o texto aprovado na Lei nº 13.415/2017 expressa o máximo de 1800 horas, o que deverá ocorrer em acordo com os critérios definidos pelos sistemas de ensino. Sandri (2017, p. 1347) enfatiza que no teto para o núcleo comum “podem ou não serem contempladas as disciplinas escolares, como geografia, história, biologia, química, física, entre outras” e que na reforma não há referência à carga horária mínima “para a base de conhecimentos gerais, o que nos leva a deduzir que alguns Sistemas de Ensino poderão ofertar um currículo com carga horária inferior às 1800 horas”.

Outro ponto polêmico da reforma do Ensino Médio foi a indicação da possibilidade de atuação de profissionais com “notório saber”, não especificando a que se refere esse termo. Isso abre precedente para que “supostos especialistas, porém não credenciados como professores” (MOTTA; FRIGOTTO, 2017, p. 369) atuem na educação pública. Nesse sentido, Motta e Frigotto (2017, p. 369) nos alertam que esse aspecto em particular pode reduzir as possibilidades de realização de concursos públicos ou mesmo “desobrigar” os Estados a contratarem novos docentes, o que em nossa percepção, pode ampliar as chances de terceirizações desses profissionais.

A partir das considerações apresentadas, é possível inferir que o compromisso maior da reforma do Ensino Médio, é o atendimento dos interesses particulares dos detentores da hegemonia econômica e política. Portanto, o novo Ensino Médio, situa-se na contramão das necessidades dos jovens vinculados à classe trabalhadora, na medida em que condiciona, molda e disciplina as mentes, cerceando as possibilidades da realização da sua hegemonia. Essa lógica contribui para elevar a dualidade estrutural de uma sociedade que já é dividida, fragmentada e desigual.

A proposta de uma “formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (BRASIL, 2017) é um engodo, pois se assim fosse, a reforma do Ensino Médio viria acompanhada de melhorias estruturais nas escolas, de um projeto amplo e sólido de valorização salarial de professores, com a ampliação de vagas, construção de escolas equipadas com quadras esportivas, laboratórios, materiais didáticos pedagógicos, concessão de bolsas de estudos para alunos trabalhadores, entre outras inciativas.

Não há como pensar uma educação efetivamente integral sem oferecer possibilidades de os alunos desenvolverem suas potencialidades, em espaços precários, com escassez de materiais e de profissionais e, principalmente, impondo uma reforma que nem ao menos foi debatida com a sociedade civil.

A formação integral, conforme apresentada no texto da lei, induz à compreensão de que a mesma pressupõe a formação em diferentes aspectos, de modo a possibilitar o desenvolvimento das potencialidades humanas e a ampliação das oportunidades de contato com o conjunto de conhecimentos acumulados pela humanidade. Esses pressupostos são contraditórios, visto que uma formação realmente integral, torna-se utópica diante de uma proposta de educação fundamentada na fragmentação curricular.

Uma formação que se proponha integral requer o desenvolvimento intelectual, social, físico, emocional e cultural, ou seja, é organizada em uma proposta de educação cujo objetivo é o pleno desenvolvimento dos educandos. Para que isso ocorra, as políticas educacionais devem contemplar a qualidade da educação pública, o que demanda investimentos de ordem estrutural nas escolas, na formação e valorização docente. Também é essencial o fomento de iniciativas que permitam aos jovens frequentar escolas sem precisar optar entre estudar ou trabalhar, dar voz aos estudantes, buscando incluí- los efetivamente na escola, compreendendo suas necessidades e interesses e, com isso, ampliando as oportunidades para que superem as desigualdade vivenciadas em seus cotidianos.

Convém aqui esclarecer que a educação integral se distingue da educação em tempo integral, pois ao passo que aquela fornece os subsídios teóricos, práticos e culturais para que os educandos se desenvolvam em sua integralidade, essa apenas amplia o tempo de permanência do aluno na escola. No que se refere à educação integral no novo Ensino Médio, a Lei N° 13.415/2017 estabelece:

Art. 13. Fica instituída, no âmbito do Ministério da Educação, a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.

Parágrafo único. A Política de Fomento de que trata o caput prevê o repasse de recursos do Ministério da Educação para os Estados e para o Distrito Federal pelo prazo de dez anos por escola, contado da data de início da implementação do ensino médio integral na respectiva escola, de acordo com termo de compromisso a ser formalizado entre as partes, que deverá conter, no mínimo: I - identificação e delimitação das ações a serem financiadas; II - metas quantitativas; III - cronograma de execução físico-financeira; IV - previsão de início e fim de execução das ações e da conclusão das etapas ou fases programadas. (BRASIL, 2017)

Cabe-nos problematizar o sentido dessa proposta, uma vez que além das escolas não disporem de condições estruturais e financeiras para a oferta de um Ensino Médio em tempo integral, a Emenda Constitucional - EC 95/2016 limitou o repasse de recursos para áreas sociais, dentre as quais se situa a educação. É necessário apontar que a proposta de educação em tempo integral desconsidera que parcela de jovens que frequentam o Ensino Médio são alunos trabalhadores e, sendo assim, caso a instituição de ensino próxima à residência ou do local de trabalho desses jovens, passe a oferecer somente o Ensino Médio em tempo integral, dificilmente esses se deslocariam para outra região da cidade para concluir os estudos, o que certamente contribuiria para a elevação dos índices de abandono e evasão escolar.

A reforma do Ensino Médio, também não considerou a possibilidade de o jovem mudar de ideia em relação ao itinerário que está cursando. Caso isso venha a ocorrer, o aluno seria obrigado a iniciar novamente outro itinerário, não podendo reaproveitar o tempo que cursou no itinerário anterior. Em meio a tantas contradições, o ponto mais problemático da reforma é a fragmentação curricular, por abreviar as possibilidades do pensamento crítico.

Embora a formação do pensamento livre e crítico seja fragilizada pela presença da ideologia dominante nos currículos, práticas pedagógicas, políticas educacionais ou nas concepções de mundo que orientam o modo de vida de parcela significativa da sociedade, é possível indicar possibilidades. O pensamento livre e crítico pode se desenvolver no contato com os conteúdos e os conhecimentos de diferentes áreas, especialmente aquelas relacionadas à filosofia, à arte, à sociologia, à história, dentre outras.

A leitura marxiana nos indica que a emancipação social das classes exploradas “poderá ocorrer num processo de autoconscientização da classe proletária (no âmbito das relações sociais de produção, através da absorção da filosofia como instrumento de conhecimento revolucionário)” (LUIZ, 2011, p. 47), o que requer amplo acesso ao saber sistematizado. O projeto de construção de uma nova sociedade demanda a consciência dos mecanismos de dominação da hegemonia burguesa, ou seja, impõe o desvelamento das contradições da sociedade e a correlação de forças que nela se apresentam.

A educação pode fornecer os subsídios teóricos e práticos para que isso ocorra. Nesse processo, é importante conhecer não apenas os aspectos políticos, culturais, econômicos e ideológicos que movimentam a sociedade de classes, mas também a realidade cotiana dos jovens que frequentam escolas de Ensino Médio. Quem são esses jovens? Quais seus desejos e aspirações? Como eles percebem a escola e a sociedade? Como é o seu cotidiano dentro e fora da escola? Quais são as suas demandas para a escola e para a sociedade?

Trata-se de construir um perfil social e cultural do jovem que frequenta o Ensino Médio, buscando compreender não apenas quem é esse jovem, mas também quais são suas perspectivas para a escola e para a sociedade. No que se refere a percepção do jovem em relação à escola, Dayrell e Carrano (2014, p. 102) indicam que para grande parte do dos jovens “a instituição parece se mostrar distante dos seus interesses e necessidades”, o “cotidiano escolar é relatado como sendo enfadonho” e a “escola é percebida como ‘obrigação’ necessária, tendo em vista a necessidade dos diplomas”.

A reforma do Ensino Médio não levou em consideração a análise da realidade dos jovens, pois se assim fosse, junto com a proposta, o governo implementaria políticas de emprego e inserção no mercado de trabalho com objetivo de garantir que os jovens pudessem prover o seu sustento e de suas famílias. Mas, ao contrário, para o governo os jovens estão fora da escola por conta do currículo que não é atraente, ou seja, houve uma simplificação do problema relativo aos altos índices de evasão e abandono escolar e o currículo se tornou o grande vilão pelo caos estabelecido na educação secundarista.

Nesse sentido, os pressupostos norteadores dessa reforma são os mesmos sob os quais se subscrevem os objetivos da educação para a juventude na sociedade capitalista. Afinal, para que o modo de produção sustentado pela exploração do trabalhador assalariado se reproduza, são necessários homens e mulheres subservientes que produzam mercadorias conforme os interesses capitalistas. Nesse sentido, a reforma do Ensino Médio não é isenta ou livre de interesses que mantém viva a hegemonia dominante.

Na próxima seção buscamos desvelar como esses interesses se apresentam na reforma do ensino médio e a que segmentos da sociedade eles atendem.

A influência dos agentes privados de hegemonia na reforma do Ensino Médio

A concepção de Estado em Gramsci (2016) aparece como uma relação orgânica e dialética entre força e consenso, ditadura e hegemonia, economia e política, direção e domínio. Portanto, o Estado é compreendido em uma dimensão ampliada, a qual envolve não apenas a função que lhe é tradicionalmente atribuída, como sociedade política, mas também, como sociedade civil, de modo a haver uma articulação em torno dos mesmos interesses. (GRAMSCI, 2016)

Essa relação pode ser evidenciada nos momentos de recessão e amplas crises econômicas. De acordo com Liguori (2003), ao analisar a Grande Depressão de 1929, Gramsci percebeu um vínculo entre economia e política e avaliou a interferência do Estado junto à iniciativa privada. Para o filósofo sardo, durante as crises econômicas o Estado interfere de modo a “conservar o aparelho produtivo tal como este existe em um determinado momento” e a “reorganizá-lo a fim de desenvolvê-lo paralelamente ao aumento da população e das necessidades coletivas” (GRAMSCI, 2014, p. 277), salvaguardando os ganhos do capital.

Gramsci (2014) identifica as atividades nas quais o Estado desenvolve ações para o “salvamento das grandes empresas à beira da falência ou em perigo”. (p. 277). Liguori (2003, p. 177) compreende que essa relação reflete interesses nos quais a “esfera política” está a serviço da “esfera econômica”, sendo que aquela organiza ações de modo a manter a hegemonia das classes dominantes em todo o terreno social. Nesse sentido, as organizações privadas buscam manter a hegemonia na sociedade política, pois conforme Gramsci (2016) o “Estado é todo o complexo das atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém o seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados”. (GRAMSCI, 2016, p. 335)

Embora a sociedade civil denote uma esfera produtora de consenso, ela também é o espaço que esse consenso e hegemonia são colocados à prova e onde se estabelecem relações de forças e campos de luta. A educação é uma área que, ao mesmo tempo em que é tida como um mecanismo que auxilia para a produção do consenso necessário para a manutenção da hegemonia no modo de produção capitalista, também sofre revés do Estado nos momentos de crise. Em nome de uma conjuntura de recessão são cortados investimentos em instituições, políticas ou programas para a educação e são justificadas as interferências dos segmentos privados na área.

Por isso, a educação é um campo no qual se revelam disputas entre os segmentos dominantes, os quais vêm tentando impor sua lógica de dominação e poder no ensino, e dos setores com representação nos movimentos sociais, representantes de professores e pesquisadores da área do ensino, entre outros, que ao contrário daqueles, empunham uma bandeira alinhada à defesa de uma educação efetivamente pública e de qualidade. Essa relação de forças estabelecida em torno da educação ficou bastante evidente nos embates em torno da reformulação do Ensino Médio, durante os eventos que antecederam a MP nº 746/2016 e na sua conversão em lei.

Ferreti e Silva (2017) analisaram as audiências públicas realizadas no Congresso Nacional para debater a reforma do Ensino Médio e as orientações a serem incorporadas no projeto de lei. De acordo com os autores, participaram dessas audiências segmentos com representação no campo do empresariado, com destaque para as instituições privadas de ensino, movimentos sociais e demais entidades organizativas representativas de professores e pesquisadores na área da educação. Os autores afirmam que esses sujeitos eram compostos por pessoas ligadas ao governo, instituições de ensino privadas ou empresários da educação, reitores de universidades particulares, representantes de movimentos sociais, associações acadêmicas públicas e político-organizativas, com destaque para o Movimento em Defesa do Ensino Médio - (MDEM), União Nacional dos Estudantes - (UNE), União Brasileira de Estudantes Secundaristas - (UBES), Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação - (ANFOPE), entre outros. (FERRETI; SILVA, 2017)

De acordo com Ferreti e Silva (2017), essas audiências colocaram em evidência uma disputa por hegemonia em torno do Ensino Médio, na qual, mesmo havendo um equilíbrio numérico entre os participantes que apoiavam e se opunham à proposta de reforma apresentada, os segmentos ligados ao capital obtiveram êxito. Dizem esses autores:

Do conjunto de participantes das audiências públicas, observa-se que há um equilíbrio numérico entre os que foram pró e os que foram contra a reforma, se somados órgãos de governo e pessoas ligadas ao setor privado (18) e as ligadas aos movimentos sociais, entidades e setor público (17). Ainda que estivesse presente nas audiências públicas um número expressivo de críticos da MP, suas argumentações não foram ouvidas, conforme atestam o PL de Conversão nº 34/2016 e a Lei nº 13.415/2017. (FERRETI; SILVA, 2017, p. 396)

Os fatos apresentados explicitam que a reforma do Ensino Médio não está desvinculada de interesses que atendem os segmentos dominantes da sociedade e que a mesma foi idealizada para ampliar as possibilidades de dominação e da exploração realizada pelo capital. Para Ferreti e Silva (2017, p. 396), se considerarmos que houve “poucas alterações sofridas pela MP até sua transformação em Lei” e que foram acatadas as sugestões dos participantes ligados ao setor privado, é possível avaliar que prevaleceu um modo de pensar a educação que prioriza a lógica imposta pelo mercado, pois,

Da análise das audiências públicas ficou evidente o cenário da disputa em torno das finalidades, dos conteúdos e dos formatos que deve ter o ensino médio brasileiro. O maior ou menor atrelamento da reforma curricular a questões de ordem pragmática, tais como a adequação a demandas econômicas e de mercado, a melhoria do desempenho dos estudantes nas avaliações em larga escala, ou, ainda, a contenção do acesso à educação superior por meio da profissionalização, entre outras, caracteriza disputas por hegemonia em torno de um projeto formativo e de sociedade, disputas que atravessam o Estado e suas instâncias decisórias no âmbito do legislativo e do executivo, bem como de seus interlocutores. (FERRETI; SILVA, 2017, p. 396)

No caminho trilhado por esses autores, Kuenzer (2017) compreende que o Ensino Médio brasileiro é objeto de disputas de entidades ou segmentos privados, os quais:

[...] têm ampliado o espaço na discussão das políticas públicas, com o apoio e a identidade conceitual dos dirigentes que têm integrado o Ministério da Educação (MEC) nos últimos dez anos, e pelo Conselho de Secretários de Educação, que defendem a flexibilização dos percursos formativos, de modo a permitir que o aluno, assegurada a base nacional comum, opte pelo aprofundamento em uma área acadêmica, ou pela formação técnica e profissional, a partir de sua trajetória e de seu projeto de vida. (KUENZER, 2017, p. 333)

Buscando fazer frente à interferência realizada por tais segmentos na área da educação, Kuenzer (2017) menciona que entidades da sociedade civil e alguns intelectuais vêm se opondo ao projeto educativo hegemônico e se organizando em lutas que visam ampliar a qualidade da educação pública, os quais:

[...] historicamente têm buscado a construção de um projeto de educação que atenda aos interesses da classe trabalhadora, e que defendam a organização de um currículo que integre de forma orgânica e consistente as dimensões da ciência, da tecnologia, da cultura e do trabalho, como formas de atribuir significado ao conhecimento escolar e, em uma abordagem integrada, produzir maior diálogo entre os componentes curriculares, estejam eles organizados na forma de disciplinas, áreas do conhecimento ou ainda outras formas previstas nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio. (KUENZER, 2017, p. 333)

A materialização de uma reforma para o Ensino Médio, realizada de modo apressado, sem diálogo ampliado, mesmo em face das críticas realizadas por movimentos sociais, em especial dos estudantes que ocuparam as instituições públicas, expressa que não houve respeito aos princípios democráticos, visto que, tanto a MP nº 746/2016, quanto a Lei nº 13.415/2017 incorporaram demandas do setor privado e do Conselho Nacional de Secretários da Educação - (CONSED). (KUENZER, 2017)

A possibilidade da realização de parcerias entre os sistemas públicos de ensino e instituições privadas é um elemento que indica a hegemonia do capital em torno da reforma. Os seguintes fragmentos extraídos da Lei nº 13.415/2017 evidenciam essa possibilidade:

§ 8o A oferta de formação técnica e profissional a que se refere o inciso V do caput, realizada na própria instituição ou em parceria com outras instituições, deverá ser aprovada previamente pelo Conselho Estadual de Educação, homologada pelo Secretário Estadual de Educação e certificada pelos sistemas de ensino.

[...]

§ 11. Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação à distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:

I - demonstração prática; II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar; III - atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas; IV - cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais; V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; VI - cursos realizados por meio de educação à distância ou educação presencial mediada por tecnologias. (BRASIL, 2017)

De acordo com a Lei nº 13.415/2017, a realização de parcerias entre as entidades públicas de ensino e setores do campo privado poderá ocorrer por meio da oferta de cursos técnicos, cursos realizados na modalidade de ensino à distância e, também, na contratação de empresas que desenvolvam plataformas para a oferta dessa modalidade de ensino. As Diretrizes Curriculares do Ensino Médio vieram coroar essas possibilidades ao indicarem que até 20% da carga horária do Ensino Médio diurno e 30% do curso noturno poderá ser realizada no formato à distância, conforme indica a Resolução nº 03 de 21 de novembro de 2018, que atualizou as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio:

As atividades realizadas à distância podem contemplar até 20% (vinte por cento) da carga horária total, podendo incidir, tanto na fomração geral básica quanto, preferencialmente, nos intinerários formativos do currículo, desde que haja suporte tecnológico - digital ou não - e pedagógico apropriado, necessariamente com acompanhamento/coordenação de docente da unidade escolar onde o estudante está matriculado, podendo a critério dos sistemas de ensino expandir para até 30% (trinta por cento) no ensino médio noturno. (BRASIL, 2018, p. 11)

Além da formação aligeirada característica do ensino à distância, esse tipo de organização possibilita que o repasse recursos públicos para segmentos do empresariado e/ou associações que comercializam materiais educacionais como, apostilas, softwares, cursos de formação de docentes e gestores, uma fonte de alta lucratividade. (CAETANO; COMERLATTO, 2018)

O “Guia de implementação do novo Ensino Médio” elaborado pelo MEC e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação - (CONSED) indica a possibilidade de realização de parcerias com agentes privados para a oferta dos itinerários formativos:

É importante que sejam articuladas parcerias com diferentes instituições, de modo a ajudar na oferta de itinerários para os quais ainda não há plena capacidade física, operacional e de recursos humanos. Para isso, deve ser realizado um mapeamento prévio das possibilidades de parcerias, considerando aquelas instituições que já oferecem cursos regulamentados e as que podem oferecer em cada município. Ainda, deve-se considerar a necessidade de reconhecimento dessas parcerias pelos sistemas de ensino. (MEC; CONSED, 2018, n.p.)

As iniciativas que possibilitam a interferência de agentes privados na educação pública contribuem para a redução dos investimentos nas instituições públicas e, consequentemente, para a precarização do ensino e das escolas brasileiras. Desse modo, ao avalizar a realização de parcerias com segmentos privados, o CONSED, enquanto entidade representativa dos secretários de educação, se posiciona ao lado do capital, colocando em relevo os interesses que norteiam a implementação do Novo Ensino Médio. Araújo (2019, p. 55-56) aponta para tais interesses, enfatizando que a reforma do Ensino Médio atende prioritariamente as demandas de empresários ou grupos privados que buscam a flexibilização da “necessidade de contratação de professores licenciados” e da formação de mão de obra para o mercado.

Ao pontuar sobre a interferência do empresariado na educação Peroni (2011) questiona as implicações dessas ações na educação pública:

Questionamos o que significa o sistema público abrir mão das suas prerrogativas de ofertar a educação pública de qualidade e comprar um produto pronto, o que se dá desde o currículo escolar, já que as aulas vêm prontas e os professores não podem modificá-las, até a gestão escolar ser monitorada por um agente externo, e transformar os sujeitos responsáveis pela educação em burocratas que preenchem muitos papéis, o que inclusive contraria a LDB/96 no que se refere à gestão democrática da educação. (PERONI, 2011, p. 37)

A relação entre sociedade civil e sociedade política, nesse caso, contempla os aspectos econômicos e ideológicos. No caso da reforma do Ensino Médio, Caetano e Comerlatto (2018) compreendem que o que estaria em jogo é, tanto o cerceamento do pensamento crítico e o abreviamento da formação do jovem, como também, a transferência dos recursos públicos para a inciativa privada. De acordo com os autores, para implementar a reforma o MEC realizou um “empréstimo de 250 milhões de dólares junto ao BIRD - Banco Interamericanos de Desenvolvimento”. (CAETANO; COMERLATTO, 2018). Desse total, “221 milhões de dólares irão para o Programa para Resultados (PforR)” (CAETANO; COMERLATTO, 2018) e 21 milhões de dólares serão destinados para segmentos que ofertam consultorias na área da educação. Tendo em vista os fatos apresentados, os autores alertam que esse investimento poderá ser destinado para as instituições privadas e não para as instituições públicas de ensino. (CAETANO; COMERLATTO, 2018)

Os autores acima mencionados também destacam que a produção do documento da BNCC, que define o núcleo comum do currículo do Ensino Médio, também foi permeada por interesses em favor do empresariado (CAETANO; COMERLATTO, 2018). O Movimento pela Base Nacional Comum - (MBNC), a quem coube a coordenação do processo de construção da BNCC, recebeu apoio financeiro de instituições ligadas diretamente ao capital, como as fundações Lemann, Itaú, Cesgranrio, Roberto Marinho e Institutos como o Ayrton Senna, Unibanco e Todos pela Educação. (CAETANO; COMERLATTO, 2018)

Os fatos e ações que permearam a reforma do Ensino Médio demonstram que a educação secundarista é permeada por disputas, nas quais se desenvolvem relações de forças que pretendem se tornar hegemônicas, de forma a dar o contorno para a educação brasileira. Nessa relação, a hegemonia está nas mãos dos detentores do capital, os quais, além de obterem lucros com as parcerias realizadas com entidades públicas, também interferem nos modos de pensar e agir da juventude brasileira. Isso ocorre, porque os materiais, conteúdos, métodos de ensino produzidos, cursos e as palestras ministradas por essas entidades tendem a reproduzir a ordem burguesa e manter intacta a base de dominação que move o capital - o trabalho assalariado.

Assim, na luta pelo controle da hegemonia que se realiza na educação, a reforma do Ensino Médio contemplou os interesses dos representantes dos setores privados. Nesse caso, a “direção intelectual e moral” se realizou em um sistema de alianças entre os grupos vinculados ao capital, de modo que o particular adquiriu um caráter global, coordenando a totalidade das relações sociais.

Considerações finais

O Ensino Médio brasileiro é objeto de disputas de segmentos privados com representação na economia, na política e na cultura. Esses aparelhos privados de hegemonia são, em momentos de crises ou de recessão econômica, beneficiados por políticas educacionais que atendem a seus interesses. Tais políticas educacionais garantem a sua lucratividade nas parcerias realizadas com as entidades públicas, por meio da venda de materiais, conteúdos, métodos de ensino produzidos, cursos e as palestras, entre outras parcerias comerciais ou econômicas.

Essas iniciativas, além de ampliarem as possibilidades de lucratividades dos segmentos privados, tendem a reproduzir a ordem burguesa em pensamentos e modos de pensar consensuais que contribuem para a manutenção da base de dominação que move o capital - o trabalho assalariado e a extração da mais valia, denotando ampla influência dos segmentos privados, não apenas na esfera economia, mas também na orientação do pensamento e na ação dos grupos ou classes que ocupam posição subalternizada na sociedade civil.

Na reforma do Ensino Médio houve uma disputa por hegemonia. De um lado, os movimentos sociais, em especial o movimento estudantil, segmentos ligados a professores e pesquisadores da educação, se opuseram à reforma proposta, empunhando a bandeira de um ensino e uma educação que contemplasse os interesses dos segmentos explorados socialmente. Em lado oposto, grupos ou segmentos ligados ao capital apoiaram a reforma em pauta, tomando como referência a argumentação de que a mesma vinha ao encontro da democratização e qualidade da educação.

Na luta pelo controle da hegemonia que se realiza na educação, a reforma do Ensino Médio contemplou os interesses dos representantes dos setores privados. Assim, a “direção intelectual e moral” foi materializada por meio de um sistema de alianças entre os grupos vinculados ao capital, aqui compreendidos como aparelhos privados de hegemonia, de modo que os interesses particulares adquirissem caráter global, coordenando a totalidade das relações sociais.

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3Em referência ao Ensino Fundamental, anos inciais e finais.

Recebido: 01 de Março de 2021; Aceito: 01 de Fevereiro de 2022

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