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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.30  Uberlândia  2023  Epub 01-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/er-v30a2023-8 

Artigos

Práticas sociais e significação do conceito de medidas

Prácticas sociales y significación del concepto de medidas

Alan Kardec Carvalho Sarmento1 
http://orcid.org/0000-0003-0464-5677

Manoel Oriosvaldo de Moura2 
http://orcid.org/0000-0002-0431-4694

1Doutor em Educação. Universidade Federal do Piuaí - UFPI, Teresina, Piauí. E-mail: alankardec@ufpi.edu.br.

2Doutor em Educação. Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: modmora@usp.br.


RESUMO

Neste artigo discutiremos o processo de significação do conceito de medidas a partir de uma pesquisa realizada objetivando investigar as relações existentes entre o desenvolvimento lógico-histórico e o modo de apropriação do conceito de medida em coletividades agrícolas. Baseado na Teoria Histórico-Cultural/Teoria da Atividade, o trabalho empírico teve como referência: a) investigação das práticas sociais relacionadas às medidas nas lavouras, b) realização de experimentos didáticos com estudantes do Ensino Básico e c) experimento formativo com professores. Concluímos que na objetivação do ensino do conceito de medida, o processo de significação reflete o modo de apropriação do desenvolvimento lógico-histórico dele pelo sujeito e depende do compartilhamento dos significados culturais subjacentes às medidas, adquiridos no contexto das práticas sociais das diferentes coletividades, apontando a necessidade de considerar, na praxe docente, os sistemas simbólicos extras matemáticos que regem tais práticas no ambiente cultural dos alunos.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Matemática; Conceito de Medida; Processo de Significação; Lógico-Histórico; Sistemas Simbólicos Sociais

RESUMEN

Discutiremos ahora de las prácticas sociales y el proceso de significación del concepto de medida, tras un estudio para investigar las relaciones entre el proceso de significación, el desarrollo lógico-histórico y el modo de apropiación del concepto de medida en comunidades campesinas. soportado en la Teoría Histórico-Cultural, el trabajo abarcó: a) investigación de las prácticas sociales con las medidas utilizadas por los campesinos b) realización de experimentos didácticos con estudiantes; c) realización de una formación con profesores. Concluimos que en la objetivación de la enseñanza del concepto de medida, el proceso de significación es el reflejo del modo de apropiación del desarrollo lógico-histórico de la misma por parte del sujeto y de la compartición de los significados culturales de las medidas, adquiridos en sus prácticas sociales, señalando la necesidad de considerar, en la praxis docente, los sistemas simbólicos extras matemáticos que rigen dichas prácticas en el la cultura de los alumnos.

PALABRAS CLAVE: Enseñanza de las matemáticas; Concepto de medida; Proceso de significación; Lógico-Histórico; Sistemas simbólicos sociales

ABSTRACT

In this paper, we will discuss the process of the signification of the concept of measurement based on research conducted to investigate the existing relations between the logical-historical development and the mode of appropriation of the concept of measurement based on the Cultural-Historical Theory/Activity Theory and Teaching Guided Activity. The empirical work was conducted with the collaboration of 21 teachers who teach mathematics in public schools. The analyses were based on the results of the following actions: a) Formative Experiment with theoretical and practical studies; investigation of social practices related to measurements in the fields, b) elaboration, execution, and evaluation of didactic experiments performed with elementary school students. We conclude that in the objectivation of the teaching of the concept of measurement, the process of signification reflects the mode of appropriation of its logical-historical development by the subject and depends on the sharing of cultural meanings underlying the measures acquired in the context of particular social practices of different collectivities, pointing to the need to consider, in the teaching praxis. These different mathematical and symbolic systems govern such practices in the cultural environment of the students.

Keywords: Mathematics teaching; Concept of Measure; Meaning Process; Logical-Historical; Social Symbolic Systems

Introdução

Nesse artigo, refletiremos sobre o processo de significação de conceitos matemáticos, particularmente, o conceito de medida na atividade pedagógica considerando o estudo da história do desenvolvimento desse objeto como caminho, que poderá nos levar ao reconhecimento das práticas sociais dos sistemas simbólicos de grupos tradicionais como parte da consciência coletiva e, a partir daí, possibilitar o surgimento de novas metodologias de ensino, de materiais didáticos e de conteúdos escolares. Ele é parte do resultado de uma pesquisa de doutoramento a partir de uma análise histórico-epistemológica do conceito de medida, segundo a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural/Teoria da Atividade, com o seguinte objetivo: investigar a relação entre o processo de significação, o desenvolvimento lógico-histórico e o modo de apropriação de conceitos matemáticos, com base no conceito de medida, no âmbito do ensino de Matemática.

De modo geral, o método adotado consistiu em reconstituir parte do curso do desenvolvimento lógico-histórico do conceito em questão, através de episódios históricos, até encontrar as características gerais da estrutura da atividade de medir, determinadas pelas condições concretas subsumidas nas práticas culturais dos pequenos lavradores para, a partir dessa estrutura, buscar os nexos conceituais, de modo a evidenciar as ligações do movimento lógico-histórico do conceito de medida com o processo de significação e com as formas de apropriação no ensino de Matemática, permitindo confrontar com as práticas culturais dos ambiente pesquisado. Em suma, a proposta foi estudar o desenvolvimento histórico e lógico do próprio conceito de medida, as diferentes formas de apropriação que caracterizam o processo de significação, a fim de desenvolver processos analíticos que nos ajudem a explicar como esses elementos estão relacionados com o ensino. Assim, neste estudo discutimos questões sobre o ensino de Matemática, considerando uma análise histórico-epistemológica das medidas e da apropriação de seus significados.

O Lógico-Histórico e o processo de significação no contexto da lógica matemática

Tomando por base os postulados de Leontiev (1985), podemos afirmar que a consciência humana é constituída pelos seguintes elementos: o conteúdo sensível da realidade objetiva, a significação social e o sentido pessoal. O primeiro é o mundo natural e social verdadeiro, que se encontra fora do sujeito, mesmo que ainda não se tenha conscientizado dele. Na relação do homem com o objeto, este se apresenta como um reflexo no plano interior do sujeito. Embora seja, de início, apenas uma imagem, mais tarde ele será transformado em objeto significado à medida que passar a ser um instrumento psicológico de controle de ações e pensamentos, que ocorrem em conformidade com representações simbólicas presentes no mundo social. Mas a significação, por si, não completa o processo de conscientização, ainda há o movimento que amplia seu conteúdo psicológico e lhe dá um caráter de individualidade, a saber: o movimento de significado a sentido pessoal. Esse movimento é desencadeado pela atividade intencional, é nela que cada sujeito realiza o movimento de conscientização. O reflexo psíquico da realidade regula e canaliza a atividade do sujeito, tanto externa quanto interna.

Mas, aquilo que se manifesta no mundo objetal ao sujeito como motivos, objetivos e condições de sua atividade, deve ser de um modo ou de outro percebido, representado, compreendido, retido na mente e reproduzido por sua memória; isso se refere aos processos da atividade humana e ao próprio ser humano, ao seu estado, propriedades e características (LEONTIEV, 1985, p. 10, Tradução nossa).

Disso, conclui-se que a atividade condiciona a formação da consciência, suas conexões psicológicas e seu processo de humanização. Dessa forma, as conexões da atividade do plano interior com o exterior refletem as condições materiais em que a atividade se realiza e como ela é regulada. A atividade prática realizada no mundo concreto é primária e a atividade mental é secundária, inicialmente juntas, só depois elas se separam, mas, desde o início, “[...] todas as atividades materiais externas do homem já contêm em seu interior componentes psíquicos por meio dos quais aquele se regula” (RUBISTEIN, 1979, p. 340). Isso implica que os processos psicológicos internos não surgem apenas quando o mundo objetal é refletido na mente humana, mas também quando uma atividade se transforma na outra.

O processo de significação se desenvolve a partir da atividade externa com os objetos sensíveis e nas relações interpsíquicas. Primeiramente o sujeito apreende as significações presentes diretamente nos objetos e domina as operações lógicas propriamente ditas, porém em sua aparente apresentação, nos seus aspectos mais sensíveis, mais exteriorizados e de uma forma que ainda não pode ser comunicada. Posteriormente, no movimento da atividade mental interna, as operações lógicas feitas sobre os objetos, adquirem significações e tornam-se conceitos abstratos. (LEONTIEV, 1978).

Contudo, a atividade interior, a qual se dá no plano da consciência, que eleva o objeto ou fenômeno ao modo conscientizado, é determinada pela forma como se deu a apropriação do desenvolvimento lógico-histórico dos conceitos e é exteriorizada impregnada pelos sentidos processados no lugar mais íntimo do sujeito: o seu microcosmo. É justamente esse movimento que torna cada sujeito único. Na consciência, inicialmente, as significações e os sentidos aparecem fundidos e nessa condição, mas não são coincidentes, todavia, essa não coincidência se tornará explícita posteriormente. (LEONTIEV, 1978)

A significação é portanto um processo que se desencadeia em cada indivíduo a partir de sua chegada no ambiente social e segue progressivamente em ascensão na dependência qualitativa das formas de interações estabelecidas entre os indivíduos. Ela relaciona-se com o desenvolvimento lógico e histórico dos objetos e fenômenos da seguinte forma: por meio da lógica, a mente é capaz de apreender aquilo que os sensores naturais não conseguem captar. Pode conhecer as propriedades, as leis, as relações do geral com o singular, os nexos entre os fenômenos, a natureza e a sociedade.

Enquanto o processo lógico desencadeia o desenvolvimento do objeto, produzindo transformações nele, a nova formação retorna refletindo novas necessidades e exercendo novas tensões ao lógico, o constituindo como histórico. A lógica do desenvolvimento do pensamento tem como lei fundamental a ascensão do simples ao complexo, do inferior ao superior e essa dinâmica do pensamento reflete as leis que determinam o desenvolvimento dos fenômenos do mundo objetivo. “A lógica nos dá a conhecer a forma do desenvolvimento em seu aspecto puro, que assim, literalmente não se reproduz em nenhum processo histórico, no entanto, a forma lógica do desenvolvimento reflete qualquer processo histórico, porque ele é imprescindível para sua compreensão” (KOPNIN, 1978, 186).

A lógica conduz as abstrações. O ponto de partida para o movimento lógico é o surgimento dos fenômenos reais na mente e a atividade prática do homem no mundo. Mas nem a observação, nem a prática são relações lógicas. “O empírico é sensorial por seu conteúdo e racional pela sua forma; o conteúdo sensorial se expressa por meios lógicos” (KOPNIN, p. 148). Dessa forma, o lógico é o processo racional pelo qual se adquire e desenvolve o conhecimento, tornando-o histórico e constituindo-se parte da consciência, a qual se realiza no conhecimento do objeto e o ato de conhecer se concretiza na apropriação dos significados sociais e na produção de sentidos. Isto é, o sujeito conhece algo quando é capaz de lhe atribuir sentido, quando este é um signo interiorizado e passa a regular o pensamento e a atividade dele.

Pelo exposto, podemos afirmar que entre o movimento lógico-histórico do conceito, o processo de significação e a formação da consciência existe uma relação de interdependência. Tal argumento está ancorado no seguinte: a) os significados são culturais, pertencem à consciência coletiva, disponíveis aos indivíduos no contexto cultural onde se desenvolvem, pois “a atividade prática do homem sempre inclui, em seu interior, componentes psíquicos que refletem as condições nas quais ela é realizada e a regulam (RUBINSTEIN, 1979, p. 334); b) os significados convergem para as práticas sociais, das quais originam-se, entre outras coisas, as ideias matemáticas, retornando ao mundo social em forma de novos conhecimentos; c) os significados sociais, na consciência individual, se revelam e se transformam pelos sentidos que o sujeito vai atribuir ao objeto, resultantes das formas de apropriação do movimento lógico-histórico dos conceitos (KOPNIN, 1978); e (d) existem elementos que se conservam no processo evolutivo do objeto: o geral, os quais se relacionam com o particular que são as diferenciações, originado uma nova formação.

Assim, a história dos conceitos, em situação de ensino escolar, auxilia na compreensão da interdependência entre o desenvolvimento lógico-histórico, as formas de apropriação e o processo de significação. Portanto, a análise do movimento lógico-histórico-epistemológico de conceitos subsidia o processo de elaboração e transformação dos conhecimentos orgânicos em didáticos, podendo conferir-lhe autenticidade, legitimidade e materialidade, e reestabelecer seus vínculos com a cultura geral.

Materiais e método: o caminho da pesquisa

Epistemologicamente, este estudo caracteriza-se por: a) adotar como princípio para a investigação dos fenômenos psicológicos a relação do homem com a realidade cultural e natural; b) compreender que o desenvolvimento humano ocorre de forma processual, no contexto das relações de todos os fenômenos da vida e c) reconhecer a atividade como princípio explicativo para o processo de construção da consciência humana, considerando atividade/consciência uma unidade dialética.

Este artigo resulta das seguintes ações: a) estudo teórico; b) experimento formativo (EF) para professores de Matemática e c) experimentos didáticos (ED) com estudantes do Ensino Básico. Atuaram como colaboradores, 21 professores do Ensino Básico regular que ensinam Matemática nas escolas públicas do Município de Lagoa Alegre, Piauí, Brasil (lócus da pesquisa).

O Experimento Formativo consistiu em: (a) estudo acerca da Atividade Orientadora de Ensino - AOE (MOURA, 1993. 2010, 2016); desenvolvimento do pensamento teórico (DAVIDOV, 1987); teoria da atividade (LEONTIEV, 1983) e história da medidas (KULLA,1980; DIAS, 1998; EVES 2004; et al) e (b) estudo sobre as medidas antropomórficas utilizadas tradicionalmente nas lavouras localizadas no Município de Lagoa Alegre. O Experimento Didático se concretizou observando as seguintes etapas: a) fase de planejamento das ações docentes - elaboração do plano de ensino, definindo de forma explícita os conteúdos, as ações dos professores e dos alunos, observando os pressupostos teóricos da AOE e demais fundamentos teóricos anteriormente estudados; b) fase de execução do plano de ensino - os professores realizaram o ED nas escolas públicas, nas quais atuavam normalmente e c) fase de apresentação, avaliação e discussão dos resultados do ED, pelos pares, nos encontros com os colaboradores.

O método de análise dos dados como meio de apreensão da realidade

Apoiados em Vigotski (1989) adotamos como princípios fundamentais de análise: (1) análise do processo em contraposição a uma análise do objeto em si; (2) uma análise buscando revelar as relações dinâmicas ou causais, reais, sem se prender à enumeração das características externas do objeto ou fenômeno, ou seja, uma análise explicativa e não descritiva; (3) análise do desenvolvimento do objeto, procurando reconstruir os pontos de mudanças qualitativas e retornar à origem de uma determinada estrutura. Esse tipo de análise presume considerar as relações do fenômeno com a totalidade, observando o processo que não se detêm na enumeração das características do fenômeno, mas busca apreender o objeto por meio da explicitação de sua Lei Geral.

O processo de análise foi organizado em três níveis: isolados (CARAÇA, 2010), episódios e cenas (MOURA, 1992). A definição de cada isolado manifesta o resultado inicial de uma análise preliminar da totalidade. Mas, é impossível conhecer a totalidade em sua íntegra, por isso, o isolado é uma forma de particionar estrutura complexa de um objeto, abstraindo-o de modo a controlar o processo de apropriação dele. Os episódios, segundo Moura (1992) são manifestações do fenômeno investigado no interior dos isolados. São abstrações que podem evidenciar as transformações do objeto, são ações, operações e compartilhamento de significados que levam à objetivação de uma atividade no interior de cada isolado. Os episódios, enquanto partes dos isolados, são dependentes, mas, enquanto inteiro, mantém independência entre si e por isso não podem ser sobrepostos. As cenas são expressões e realizações que evidenciam a dinâmica de uma significação na trama do episódio; las estão interligadas e refletem a análise propriamente dita.

A definição de cada isolado é o resultado de uma análise preliminar, pois, cada um é parte de uma estrutura complexa de relações e não pode ser confundido com isolamento absoluto ou com o encapsulamento de partes do conteúdo. Antes, é uma abstração para controlar o processo de apropriação do fenômeno. O fato do isolado ser parte de um sistema de relações que constitui a totalidade não significa que seja idêntico a ela. O desdobramento da totalidade em isolados, episódios e cenas mostrou a necessidade de organizar os dados objetivos, capturados em um quadro com todos de níveis (Quadro 1). Contudo, neste artigo apresentaremos a análise relativas às cenas 7 e 11, que revelaram indícios acerca do processo de significação das medidas na atividade pedagógica.

Portanto, o processo de análise que se inicia como a decomposição da totalidade, completa-se com a reconstituição dessas partes, gerando uma nova síntese que se abre para novas possibilidades.

Quadro 1 Distribuição dos episódios e das cenas, segundo os isolados de análise 

Isolados Episódios Cenas
ISO.1 Aprendizagens docentes no experimento formativo EP. 1 - O furo é exatamente não conhecer a prática Cena 1 - A experiência que eu gostei
Cena 2 - Eu sempre faço assim.
Cena 3 - Professor! Por que o senhor não pega o metro e resolve logo esse problema?
EP. 2 - O conceito de AOE e o pensamento teórico Cena 4 - A mediação do pesquisador
Cena 5 - O corisco não cai duas vezes no mesmo lugar
Cena 6 - A atividade de ensino e a AOE
EP. 3 - O particular e o geral: as medidas locais Cena 7 - Cubando a terra
Cena 8 - Medindo grãos: o prato, a quarta
ISO. 2 A organização do ensino nos experimentos didáticos EP. 4 - A elaboração do experimento didático Cena 9 - As tarefas de ensino: planificação das ações e operações
Cena 10 - Reflexão sobre o processo de planificação das ações: o que mudou?
EP. 5 - Professores em atividade de ensino no experimento didático Cena 11 - O experimento didático 01
Cena 12 - O experimento didático 02
Cena 13 - O experimento didático 03

Fonte: Elaboração do autor.

O Processo de significação das medidas na atividade pedagógica

Como antecipamos, diante da impossibilidade de, em um só artigo, apresentar todo a pesquisa, selecionamos a cena 7 (Quadro 1) para apresentar algumas evidências encontradas nesse estudo sobre a significação das medidas na atividade pedagógica. No episódio 03 buscamos avaliar os conhecimentos dos professores, sujeitos da pesquisa, acerca das medidas tradicionais praticadas pelos lavradores. São aprendizagens de conteúdos tradicionais, adquiridos por estes docentes fora do espaço escolar que dão indícios do processo de apropriação dos significados das medidas tradicionais pelos professores.

Inspirados em Vigotski (2000), procuramos realizar a análise dividindo as falas dos sujeitos em partes denominadas como Unidades de Pensamento Discursivo (UPD). Em função dessas unidades, concretizamos a análise que mostra os aspectos semânticos dos textos e das frases extraídos dos relatos dos docentes colaboradores.

Alguns significados das medidas locais apropriados pelos docentes colaboradores

O desenvolvimento da matéria pressupõe um movimento progressivo causado pelas mudanças sucessivas dos fenômenos em diferentes estágios de evolução. Em um determinado estágio, existem características que se conservam na nova formação (o geral). Elas são os elos com a formação anterior. Mas o geral não é suficiente para explicar um estágio superior, que apresenta aspectos, características e propriedades novas. Porém, por estar nos diferentes estágios do desenvolvimento histórico da matéria, o geral atua como condicionante das mudanças, mas é o particular que distingue uma formação de outra. Assim, o estudo de certo estágio de desenvolvimento compreende o reestabelecimento dos momentos que culminaram no surgimento de um novo estágio. A correlação do particular e do geral, “representa uma correlação do todo e da parte, em que o particular é o todo e o geral é a parte (CHEPTULIN, 1982, p. 196).”

Trazendo esse pressuposto para o estudo das medidas, destacamos que elas se formaram em diferentes estágios e de forma orgânica. Nesse sentido, o estudo de certo estágio de desenvolvimento desse conceito exige investigar as diferenças e singularidades em relação aos estágios anteriores, observando-o no contexto lógico e histórico. Levando essa compreensão para o processo de ensino escolar do conceito de medida, por sua natureza, importa estudar a transformação dele de conteúdo orgânico a didático.

É nessa perspectiva que, no âmbito do segundo isolado: “Aprendizagens docentes no Experimento Formativo”, cuja finalidade foi produzir dados para avaliar as aprendizagens dos professores de Matemática, transcorreu o terceiro episódio intitulado “O particular e o geral: as medidas locais”. No episódio em destaque, os professores descreveram detalhadamente o processo de medição e “cubação” da terra, apresentaram particularidades das tradições e do modo de vida dos lavradores. A totalidade dos dados levantados nesse isolado/episódio não comportam neste artigo, contudo, procuramos nessa seção explicar em que se assemelham e se diferem as formas de medidas adotadas pelos lavradores, procurando colocar em evidência as características que as distinguem das medidas oficiais e confrontar essas informações com o ensino desse conceito nas escolas, conforme veremos a seguir:

Cena 7 - Cubando a terra: a braça e a linha de roça

Neste ponto específico, nosso objetivo é analisar os conhecimentos dos professores sobre as medidas tradicionais utilizadas em Lagoa Alegre pelos lavradores com o intuito de explicar o processo de significação dessas medidas.

A partir das Unidades de Pensamento Discursivo (UPD)3, representadas pelos códigos numéricos e expostas no Quadro 2, podemos elencar o conteúdo dessa cena da seguinte forma:

  • da 1301 a 1304: definição da linha de roça, da braça e de sua utilização;

  • da 1305 a 1308 e de 1317 a 1319: relação entre o proprietário da terra e o rendeiro;

  • da 1309 a 1313: cálculo da "área" da roça (cubagem) e técnica de medição;

  • da 1314 a 1316: o medidor de terra como ocupação profissional.

Para os professores, a definição da braça é a mesma indicada pelos lavradores, isto é, trata-se da distância do dedo grande do pé (halux) ao dedo médio da mão de uma pessoa adulta em posição bípede e com o braço erguido. A investigação histórica mostrou que o modelo de braça encontrada em Lagoa Alegre e a toesa francesa se coincidem, mas essa coincidência não é garantia que modelo brasileiro tenha surgido a partir da toesa ou tenham a mesma origem, embora isso possa ser considerado factível.

A toesa é a antecessora do metro francês, que aos poucos foi se espalhando pela Europa e consequentemente, pelas regiões colonizadas por europeus. No Brasil, com a intensificação das viagens ultramarinas, influenciadas pelos interesses comerciais, o metro à francesa adquiriu uma forma abrasileirada, recebeu o nome de vara - talvez para reduzir à rejeição pelos colonos - e passou a equivaler a onze décimos do metro francês. No entanto, é fundamental compreender que na passagem da braça para a vara de medir e desta para o metro, conservam-se os princípios e as propriedades gerais do conceito de medida, ou seja, medir depende de uma comparação, de um estalão e de uma magnitude.

Quadro 2 Episódio 3 - cena 7: cubando a terra 

COD ID UPD
1301 Pesquisador Esta ação tem como finalidade possibilitar apropriações relativas às práticas sociais de medidas locais desenvolvidas pelos lavradores, observando a vida cotidiana das roças.
1302 Anjo A linha de roça, é um quadrado de 25 braças por 25, multiplicando dá 625 braças quadradas
1303 Por exemplo: Se a roça não desse um lance de 25 braças, digamos 20, tinha que dividir 625 por 20 para ver qual seria a medida do outro lado, contanto que desse 625 braças quadradas
1304 A braça podia ser feita com uma vara ou talo de buriti do tamanho de um homem em pé com o braço esticado para cima. Mas tinha aquela que corresponde à distância dos braços abertos, era mais utilizada para medir corda, linha, cordão etc.
1305 Os proprietários [de terra], às vezes não sabiam fazer a roça. Viviam da renda. O morador tinha que pagar tantas quartas de gênero por linha de roça.
1306 As vezes tinha conflito porque tinha diferença nas medidas.
1307 O lavrador media a terra que cercava, mas o patrão recebia pela parte que foi limpa (desmatada) que sempre era maior que a cercada.
1308 Para medir, a terra era marcada, no mato, com um cordão. Uma pessoa media e outra anotava.
1309 Às vezes, quando o patrão não ia, pessoalmente acompanhar a medida, mandava um encarregado que costumava puxar para o lado do patrão, gerando conflito.
1310 Pesquisador Como se faz a “cubagem” da roça?
1311 Derci Para um terreno de 4 lados, soma-se os lados opostos e divide por dois, depois multiplica os resultados da divisão.
1312 O fato de somar os lados opostos e dividir por dois serve para aproximar o cálculo da área pelo retângulo ou quadrado, feito para facilitar a conta
1313 A cubagem era feita por duas pessoas, uma para medir a terra e outro para anotar os dados, no final eram feitos os cálculos.
1314 No passado eram poucas as pessoas que sabiam cubar a terra. Eram pessoas que viviam disso, por isso não ensinavam a outros.
1315 Somente os grandes proprietários de terra tinham uma pessoa responsável pela cubação de roça.
1316 Muitos sabiam avaliar, medir etc., mas cubar eram poucos. A pessoa que sabia cubar a terra tinha um saber especial, era uma raridade.
1317 Certa vez eu fui procurado para cubar uma roça porque o dono estava achando que a terra demarcada era maior que o combinado e o lavrador estava achando pouco
1318 Eu disse: meça o os quatro aceiros - certo que o terreno não tinha exatamente quatro aceiros - tinha uma disputa por conta de uma curva.
1319 Para resolver, você pode aproximar a curva por uma reta, deixando uma parte fora e outra dentro para compensar.

Fonte: Elaboração do autor.

Em termos gerais, medir com a vara ou com a braça refletem a mesma operação, a diferença entre uma da outra reside, em parte, nas necessidades às quais se adéquam e nos interesses que são tutelados, a passagem de uma à outra exigiu mudanças sociais em decorrência, principalmente da luta pela preservação dos interesses econômicos de grupos sociais hegemônicos e pelo domínio de um sistema métrico oficial, em detrimentos das causas dos mais pobres (DIAS, 1998).

No caso da braça, ela pode ser espelhada em uma vara retirada de um buritizal, por exemplo, que possa servir de suporte para esse padrão. Segundo os lavradores, as maneiras de medir uma roça, por estes meios, variam bastante conforme a região. Em algumas regiões do Piauí a medida adotada para as roças é a Tarefa ou Linha de Roça, como ocorre em Lagoa Alegre e vizinhança. O cálculo dessas medidas é comumente, conhecida por cubagem; cubar um terreno significa encontrar a sua “área”, independentemente das condições topológicas do dele, considerando-se apenas as medidas de seu contorno, aceiros ou lances.

O modelo matemático aplicado para “cubar” um terreno relaciona as medidas de seus quatro lados ou lances. Se o terreno não for um quadrilátero, faz-se uma adaptação geométrica, trançando novos lances, decompondo-o em quadriláteros, tornando possível a aplicação da fórmula, que é definida pelo produto da média aritmética dos lados opostos do quadrilátero qualquer. Ou seja, k= [(a+c) /2] *[(b+d) /2], onde a, b, c e d são as medidas dos lados consecutivos do terreno. Sobre a origem dessa fórmula em Lagoa Alegre, não foi possível obter informações precisas. Porém, lembramos que uma fórmula idêntica foi encontrada no papiro de Rhind4 (EVES, 2004). Provavelmente, tenha chegado até ao Brasil e possivelmente à Lagoa Alegre, durante o período colonial. Todavia não podemos descartar a hipótese de uma coincidência, se considerarmos que as tensões exercidas pelas necessidades comuns em condições idênticas, podem gerar soluções semelhantes.

Com base nos relatos dos professores o sistema pré métrico de Lagoa Alegre engloba medidas de grandes distâncias (légua) e pequenas (o palmo, o pé e a braça), áreas (linha de roça, quadrinho) e volumes (prato, quarta e carga). É obvio que, pela sua natureza, as medidas antropomórficas não apresentam um nível de elevada precisão, mas, por bastante tempo, isso não representava um problema, pois havia formas de compensação compreensivas (KULLA, 1980). A exatidão só se tornou uma real necessidade quando a terra passou a ser avaliada pelo critério valor de uso, ainda nas sociedades pré-capitalistas. Os conflitos entre proprietários e rendeiros, como o exposto aqui, (Quadro 2, UPD 1307), não manifestam a falta de precisão dessas medidas, mas o modo de produção estabelecido entre o dono da terra e dono da força de trabalho. Logo, a motivação para as disputas estavam ligadas às formas de ganhos que ambos queriam auferir, os quais dependiam parcialmente das medidas encontradas.

A partir dos relatos dos professores pudemos inferir também que saber cubar um terreno, era um privilégio, em parte porque, no campo, os lavradores geralmente não eram alfabetizados, o que dificultava o aprender a manipular a fórmula, em parte porque era uma forma de obter renda; o “medidor de terrenos” era uma ocupação remunerada, havendo, portanto a preservação de interesses econômicos. A descrição do professor Derci (UPD 1312) ilustra essa situação, da qual inferimos que se tratava, de uma agrimensura artesanal, (UPD 1315).

A cena 07 nos permite inferir que: (a) os conhecimentos dos professores sobre as medidas tradicionais estão em sintonia com a mesma base histórica dos lavradores; (b) existe um contexto social no qual a dinâmica do cotidiano coletivo e o pensamento intersubjetivo estão sob as mesmas tensões do mesmo sistema simbólico, regentes das práticas sociais no ambiente cultural, dos quais professores e alunos são partícipes. Isso representa uma relação entre os conteúdos sociais orgânicos e os conteúdos escolares transformados didaticamente na atividade pedagógica, que tomam parte no processo de significação do conceito de medida.

Disso resulta que a medida como conteúdo orgânico, visto a partir do seu desenvolvimento lógico-histórico, pode transformar-se em conceito didaticamente organizado. Para tanto, deve tomar como referência a análise lógico-histórico-epistemológica de sua significação que compreende, na cultura, a relação de interdependência entre o geral e o particular e entre o coletivo e o individual e entre os conteúdos matemáticos e os extras matemáticos presentes nos sistemas simbólicos subsumidos em cada campo cultural.

Professores em atividade de ensino: o experimento didático 01

Nesta subseção discorreremos acerca do Experimento Didático 01, o qual tivemos a oportunidade de acompanhar. Particularmente, esse experimento tinham como finalidade: (a) encontrar evidências de que a história das medidas influenciou no processo de organização do ensino; (b) verificar se existiam, ou não, indicadores de tomada de consciência, por parte dos professores, da necessidade de relacionar as medidas utilizadas pelos lavradores locais e o sistema métrico decimal no ensino de Matemático; (c) observar se o experimento didático evidenciaria os nexos relacionais entre o movimento lógico-histórico do conceito de medida e seu processo de significação na atividade pedagógica e (d) observar como os estudantes reagiriam diante da proposta de ensino dentro do ED, atentando para o potencial cognitivo das medidas antropomórficas no ensino do conceito de medida.

O experimento 01 foi realizado na turma do 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Alfredo da Silva Costa, localizada na zona urbana do município de Lagoa Alegre. Este experimento didático A execução se desdobrou em dois momentos. Primeiramente o professor Derci discutiu a proposta geral da atividade com os alunos. Dessa discussão resultaram as seguintes operações: formação de grupos de estudos; realização de entrevistas aos lavradores com o intuito de conhecer melhor o trabalho deles, incluindo a questão das medidas tradicionais; transcrição e análise das entrevistas e apresentação de relatório na classe.

Para o professor, os resultados trazidos pelos alunos, criaram a oportunidade para aprofundamento dos conhecimentos deles sobre as medidas tradicionais; destacar os aspectos abordados na pesquisa considerados de maior relevância e favorecer aprendizagens de conteúdos originados na própria cultura, fazendo conexão dos conteúdos orgânicos com os conteúdos científicos, transformados didaticamente (UPD 2501, 2502 e 2503. Quadro 03). No segundo momento, o professor apresentou a SDA, que foi elaborado no contexto do Experimento Formativo (Curso de formação) pelos grupos de professores, O ED constituiu-se com base na TH-C/TA a parti de uma AOE, o que implica na construção de uma Situação Desencadeadora da Aprendizagem (SDA), a qual evidenciava a necessidade de encontrar uma solução para determinado problema, envolvendo o conceito de medida. O grupo teria que estabelecer estratégias, além de expor à turma as possíveis soluções para a SDA. Desse modo, coube ao professor conversar com os alunos, estimulando-os e apresentando-lhes novos questionamentos, sugerindo e ajudando na compreensão do problema (UPD 2506, 2509 e 2512. Quadro 03.

Quadro 3 Resumo das reflexões sobre o Experimento Didático 01 

COD UPD
2501 Eu notei que, com relação às medidas do campo, eles [os alunos] não sabiam quase nada, acho que eles não costumam conversar [sobre isso] ou não vão para as roças com os pais.
2502 Por isso, juntamente como ele, preparamos um questionário para uma entrevista com os lavradores, naturalmente eles foram procurar os pais, ou os vizinhos para que descobrissem o que é uma braça, uma quarta, uma linha de roça, mas a tarefa eu mantive em sigilo, não falei para eles o que exatamente nós iríamos fazer na aula de quarta-feira, o PDA eu só coloquei nessa aula.
2503 Esse momento da entrevista com lavradores foi uma preparação para que os alunos compreendessem o que são as medidas da roça, dessa forma eles não entraram no problema sem informação, os alunos chegaram sabendo alguma coisa através das entrevistas que eles fizeram.
2506 [Em aula], os desafios eram: a) desenhar um retângulo para 12 linhas na figura. [...]. b) elaborar um plano para construir uma cerca em volta do terreno com cinco fios de arame, indicando a quantidade de arame necessário em metros. c) analisar a razoabilidade dos resultados.
2509 O grupo 3 - Nesse grupo houve uma divisão de tarefa e eles conseguiram apresentar quatro possibilidades. Isso quer dizer que quando se divide as responsabilidades a tendência do trabalho é andar mais rápido.
2510 O grupo 4 ficou na mesma situação do grupo 1. Chegaram à conclusão que as 12 linhas são 7500 braças quadradas, e que o terreno tinha 103 linhas aproximadamente, mas que eles não conseguiram mentalizar como seria esse retângulo para formar as 12 linhas.
2512 Os grupos que conseguiram encontrar a solução, [seus membros] trabalharam mais sincronizados e apresentaram raciocínio mais rápido. Eu acho que os dois grupos que reclamaram do tempo ou porque não compreenderam a situação ou só foram compreender mais tarde, ou então porque não tiveram conhecimento prévio

Fonte: Elaboração do autor (2019).

Nossa análise mostra que a tarefa desenvolvida nesse ED realçou o vínculo histórico e cultural entre os processos de medidas utilizados tradicionalmente pelos lavradores e o sistema métrico decimal, evidenciando a necessidade do conceito em questão, possibilitando compreender a Matemática como um construto histórico e humano. Além disso, os alunos foram desafiados a desenvolverem, coletivamente, estratégias para resolver uma situação problema que evidenciou a necessidade do conceito de medida; a realizarem múltiplas interações dentro e fora da escola; a se apropriarem de significados de sua própria cultura. Especificamente, a forma de organização de ensino adotada permitiu aos alunos: (a) compreenderem os fundamentos gerais do conceito de medida através dos processos tradicionais de medidas, relacionando-as com as medidas oficiais; (b) compreenderem as motivações e interesses que levaram a troca das medidas antropomórficas pelas medidas artificiais, (c) compreenderem o processo de elaboração que deu origem ao Sistema Métrico Decimal; (d) desenvolverem atitudes e procedimentos que favorecem o trabalho coletivo; (e) tomarem consciência de que a Matemática é histórica e, como tal, estar sob tenções externas exercidas no campo das lutas sociais, pela prevalência de interesses de um grupo sobre outro e (f) colocou os alunos em atividade de estudo, pois evidenciou a necessidade do conceito de medida e os mobilizou para executarem um conjunto de operações, dentro e fora da escola, imbuídos do mesmo motivo, executaram tarefas distintas, com o mesmo objetivo.

Sobre possíveis mudanças na forma de organizar o ensino e afetações em relação ao professor, os dados indicaram que: (a) houve conscientização acerca da necessidade de considerar, no ensino, a forma como a cultura e a realidade social dos alunos interferem na aprendizagem; (b) houve reconhecimento da AOE como um modo de organização do ensino que possibilita confrontar a própria realidade cultural do aluno, notadamente os de natureza empírica, com os conhecimentos matemáticos científicos ou teóricos; (c) houve reconhecimento de que o ensino do conceito de medida, a partir da relação historicamente situada entre os conhecimentos tradicionais dos lavradores e os conhecimentos científicos, favorece a aprendizagem e (d) houve fortalecimento do sentimento de pertencimento do professor ao contexto social dos próprios alunos, à mesma realidade cultural, à qual tenciona suas concepções docentes, atitudes e pensamentos, englobando conhecimentos relevantes, com os quais a atividade docente nem sempre dialoga e, algumas vezes, rechaça. Nesse ponto, é possível inferir que a Lei Geral que rege o desenvolvimento conceitual favorece o ensino baseado na história do conceito, potencializando o processo de significação dele pelos estudantes, como explicaremos no ponto seguinte.

O processo de significação, o lógico-histórico e as práticas sociais na objetivação do conceito de medida

Com base nesse estudo, podemos, em síntese, defender que, no ensino escolar, o processo de significação do conceito de medida depende do modo como se dá a apropriação do desenvolvimento lógico-histórico dele pelos alunos, englobando os significados culturais, elaborados historicamente. Isso aponta para um modo de ensino que se oponha à ruptura do par dialético lógico-histórico dos elementos estruturais dos fenômenos. Pois ao negar a historicidade deles, nega também a historicidade do próprio homem, fator preponderante para o entendimento do papel das ações partilhadas em atividades coletivas, essenciais para o desenvolvimento da humanidade.

Sendo assim, enumeramos alguns resultados advindos dessa investigação, a partir da relação dialógica do estudo teórico e da análise dos dados empíricos:

  • a) no processo de significação do conceito de medida, a ontogenia não recapitula a filogenia, ou seja, o sujeito não reproduz a história com todas as suas variações, mas desenvolve um sistema complexo de abstrações, capaz de atribuir sentidos ao fenômeno;

  • b) os conhecimentos empíricos e os científicos, estão sempre em conexão, pois o conhecimento é empírico pela forma e racional pelo conteúdo;

  • c) o estudo do desenvolvimento lógico-histórico de certo conceito configura-se como um requisito indispensável para explicar a origem e o desenvolvimento dos conhecimentos;

  • d) o ensino de Matemática, com base na história do objeto, possibilita a professores e alunos a compreensão do caráter histórico do conceito como resultado da busca por soluções para sucessivas necessidades, inclusive àquelas ligadas a própria existência;

  • e) a análise do desenvolvimento lógico-histórico do conceito de medida pode evidenciar a possibilidade de estruturar diversas ações didáticas a partir da exploração de aspectos extras matemáticos da vida cotidiana, das práticas sociais e dos sistemas simbólicos da cultura dos quais a escola é parte.

Nessa perspectiva, a história entrega a trama do conceito desde a origem e mostra a forma lógica de organização do pensamento matemático, pois “o lógico é o histórico liberto das causalidades que o perturbam. [...]. O lógico reflete não só a história do próprio objeto, como também a história de seu conhecimento” (KOPININ, 1978, p. 184 e 186). Assim, na objetivação do ensino, a relação entre o lógico e o histórico nos remete à relação entre o coletivo e o individual, entre o geral e o particular e entre o universal e o singular (UPDs 2502 e 2503). Dessas relações surgem os nexos conceituais que ligam os conhecimentos matemáticos à realidade social, constituída pelos elementos extras matemáticos (UPD 2506). Pois o processo de ensino que considera o fenômeno ou objeto de estudo desde sua origem e revela as crises que culminaram com a passagem de um estágio a outro, entra em contato com o surgimento das próprias leis, das relações de causalidade e dos nexos que formam o sistema de conceito. (investigação histórica em Matemática)

Particularmente, os conhecimentos sobre as medidas antropomórficas, no ensino de Matemática, podem servir para elaboração de propostas didáticas nas quais os nexos conceituais entre as medidas tradicionais e as medidas oficiais podem ser evidenciados com o claro propósito de promover a aprendizagem de conceitos em seu estágio mais avançado.

Assim, o processo de ensino que se inicia com a apropriação do conteúdo social pelo discente e sua relação com o próprio ato de medir deve se projetar para chegar ao estágio mais avançado de apropriação dos significados. Desse modo, quando o estudante atingir capacidade de transformar o apropriado em instrumentos psicológicos que lhe permita compreender as relações e as vinculações do objeto em sua complexidade, o conteúdo passa a ser conscientizado e servirá para controlar e produzir transformações nos sujeitos, refletidas em termos de ações, comportamentos e produções. Do ponto de vista da escola, somente com a apropriação de conceitos teóricos, que têm o poder de examinar cientificamente os fenômenos naturais e sociais, é possível atingir esse nível de aprendizagem. Somente com o conhecimento empírico, é pouco provável o escrutínio científico dos fenômenos, pois estes têm alcance limitados, decorrente da própria origem que é a percepção sensorial. Segundo Davidov (1988), o conhecimento empírico separa e fixa os objetos em seus aspectos externos, sem vinculações, independentes e isolados, como existindo por si mesmo, que não é derivada ou geradora de outra coisa. Ao contrário, os conhecimentos científicos compreendem a complexidade das relações fenomênicas, suas transformações e seu trânsito no sistema conceitual.

Nessa perspectiva, a objetivação do conceito de medida, se verifica quando:

  • a) o sujeito se torna capaz de desprezar, no plano mental, as demais propriedades do objeto, esvaziando-o de toda matéria concreta, para separar e combinar o terno comparação - a estalão - quantidade, de modo a produzir uma representação simbólica do real;

  • b) o sujeito realiza abstrações como resultado do esforço mental com a finalidade de converter o fazer medida em um saber sobre medida;

  • c) esse saber se transforma em instrumento do pensamento e retorna ao mundo real em forma de signos, capacitando os alunos a realizarem operações com medidas, concretizadas através de abstrações teóricas;

  • d) a medida como técnica, expressa por um modus operandi, dá lugar a um método generalizado expresso pela linguagem matemática, sintetizado no esquema fazer-saber-pensar (Quadro 3, UPDs 2509 - 2512).

É nesse sentido que temos defendido a tese segundo a qual, na objetivação do conceito de medida, no âmbito escolar, o processo de significação, ou seja, de apropriação de significados e atribuições de sentidos, estão ligados a dois aspectos indissociáveis: I) a maneira como se dá a apropriação do desenvolvimento lógico-histórico do conceito de medida pelos alunos e II) o compartilhamento dos significados culturais subjacentes às medidas, adquiridos no contexto das práticas sociais. A objetivação, em seu grau mais alto, depende do entrelaçamento destes dois aspectos.

Assim, o processo de significação tomado como reflexo da maneira pela qual ocorre apropriação do movimento lógico-histórico pelos estudantes (parte I) poderá:

  • a) potencializar a compreensão da Matemática como conteúdo social, historicamente desenvolvido;

  • b) favorecer o pensamento científico, pois a história tem a qualidade de mostrar o aspecto lógico do conceito e a trama vivida pela humanidade a qual a levou à produção do conhecimento;

  • c) oferecer suporte teórico para a elaboração de situações desencadeadoras de aprendizagem, pois, ao evidenciarem as necessidades que tencionaram as diferentes sociedades e culturas, onde ocorreram as transformações no conhecimento, colocam os estudantes diante das situações que criaram a necessidade do conceito e propiciaram seu desenvolvimento;

  • d) possibilitar o reconhecimento das práticas sociais como partes integrantes da produção histórica das significações e que elas são regidas pelos sistemas simbólicos dinâmicos presentes nas diferentes culturas;

  • e) contribuir para desmistificar o conhecimento matemático, favorecendo o reconhecimento da Matemática como construção humana;

  • f) favorecer à epistemologia da Matemática, pois fornece informações sobre o a origem e o desenvolvimento do conhecimento matemático.

Como defendeu Kopnin (1978, p. 168), o estudo da história do objeto cria os princípios indispensáveis para a compreensão da essência do conceito, isso porque, “enriquecidos da história do objeto, devemos retomar mais uma vez a definição de sua essência, corrigir, completar e desenvolver os conceitos que expressam.”

No âmbito da interação entre a história social das medidas e a elaboração do conhecimento teórico-prático (parte II), uma análise histórico-epistemológica, poderia levar o aluno a tomada de consciência da lógica como foram organizadas as medidas, observando sua lei geral.

Nesse sentido, inferimos que no ensino de Matemática não é preciso anular os significados sociais que o aluno adquiriu na sua cultura, mas buscar uma transformação qualitativa deles, através das relações possíveis entre a antiga e a nova formação no âmbito do desenvolvimento do conceito em direção à sua forma mais avançada. É importante reconhecer que a aprendizagem não está restrita ao ambiente escolar; existem condicionantes sociais presentes na consciência dos alunos e mediados pelas representações simbólicas que são internalizadas por eles enquanto sujeitos cognoscentes.

O saber como um conjunto de processos de reflexão e ação cultural e historicamente constituídos [...] é algo que sempre tem um antecedente, isto é, para pensar algo, sempre há uma possibilidade já constituída para pensá-lo. Isso não quer dizer que continuemos a repeti-lo; isso significa que esse saber tem uma trajetória, uma história, o estudo de suas condições de possibilidades, transformação, de generalização, de refinamento, dá-nos uma ideia da densidade epistemológica do saber, que pode ser muito importante no momento de desenhar atividades didáticas e interpretar o que se passa na sala de aula (RADEFORD, 2015, p. 254).

Para o autor em destaque, há uma necessidade do professor, em sala de aula, conhecer e reconhecer os sistemas simbólicos extras matemáticos. Isso implica, de modo geral, evidenciar os nexos entre o pensamento empírico e o teórico ou científico que mostrarão a ligação da Matemática com as expressões culturais, (a arte, a religião, os costumes e comportamentos) impregnadas nas práticas sociais dentro dos diferentes quadros culturais. De modo prático, para o ensino, implica que tais conhecimentos podem se constituir em material educativo, exigindo uma abordagem didática capaz de transformá-los e integrá-los aos conteúdos curriculares.

Ao considerar os conhecimentos matemáticos próprios de uma determinada cultura, o professor necessita está aberto ao compartilhamento dos significados subjacentes aos conhecimentos que regem as práticas sociais da realidade cultural dos alunos. Necessita também considerar que não se trata de reproduzi-los, mas provocar uma transformação qualitativa no campo do desenvolvimento psicológico. Nesse sentido, o professor de Matemática deve estar atento aos sistemas simbólicos de significação social e, consequentemente, reconhecer os alunos como sujeitos cuja cultura está presente na consciência, influenciando comportamentos e atitudes da vida cotidiana. Compartilhar significados exige estudar o conceito dentro do quadro social dos alunos, visto que os conhecimentos se desenvolvem na cultura.

Desse modo, qualquer esforço de estudar um conceito matemático precisa considerar aspectos da estrutura cultural na qual estes conhecimentos estão colocados (RADFORD, 1997), partindo de uma análise histórico-epistemológica das práticas culturais e dos sistemas simbólicos que as controlam exigem obter conhecimentos sobre a cultura. No que diz respeito ao ensino de Matemática, o principal papel da análise histórico-epistemológica é conhecer antigos significados ou campos semânticos, conceitos e procedimentos matemáticos resultantes das práticas sociais, para, através de um processo de adequação didática, incorporá-los aos currículos escolares vigentes e oferecer subsídios à elaboração de teorias, materiais didáticos, modelos de ensino, etc.

Considerações finais

Finalmente, reafirmamos que os conhecimentos subjacentes às práticas sociais das coletividades particulares se constituem conteúdo escolar quando estão integrados ao fluxo histórico do conceito. Desse modo, o cerne da questão é considerar o movimento lógico-histórico na objetivação do ensino de conhecimentos matemáticos, observando a estrutura cultural em que os estudantes estão inseridos. Ou seja, o professor necessita observar dois aspectos a respeito dos conhecimentos matemáticos: a) a estrutura social que envolve os estudantes como aporte das práticas sociais singulares das coletividades anônimas com seus conhecimentos particularmente valorizados e b) os conhecimentos matemáticos sistematizados cientificamente como um conteúdo histórico e tradicional, universalmente valorizados. Essa realidade cria a necessidade, por parte do professor, de ampliar seus conhecimentos disciplinares e pedagógicos, principalmente no que depender do estudo das culturas não hegemônicas e isso nos coloca diante de uma questão política, impregnada nos processos educativos.

Nesse sentido, o uso pedagógico da história dos conceitos pode influenciar na tomada de consciência de que eles se desenvolvem segundo uma lei geral, mas não dissociados dos interesses classistas, de forma ingênua, neutra e natural, pelo contrário, é no ambiente conflituoso das relações sociais assimétricas e nos meandros da política, que se originam e se desenvolvem os conhecimentos, algumas vezes, a serviço dos interesses de determinados grupos sociais hegemônicos.

Para finalizar, defendemos que educar com a Matemática implica, portanto, na formação de sujeitos integrados à dinâmica social, como um ser histórico que é, criticamente capaz de compreender o movimento desencadeado na luta dos contrários, em busca de sua liberdade. Isso requer compreender que a ligação entre a história do desenvolvimento do objeto e a do desenvolvimento do sujeito, entre a cognição do indivíduo e a apropriação da cultura, entre o ambiente sociocultural e a consciência revelam a natureza do pensamento individual forjado segundo a natureza da relação com pensamento coletivo, que pode, sob certas condições, legitimar as desigualdades sociais.

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3No código de identificação das falas dos sujeitos no contexto da cena (UPD), o primeiro algarismo indica o isolado, o segundo algarismo indica o Episódio e o último indica a ordem da fala na cena.

4Documento egípcio de cerca de 1 650 a.C., onde um escriba de nome Ahmes escreve a solução de vários problemas de aritmética, frações, cálculo de áreas, volumes, geometria e outros.

Recebido: 01 de Abril de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2023

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