INTRODUÇÃO
Diversos autores debatem a respeito do potencial de obras literárias para serem exploradas no ensino de ciências da natureza ou no que concerne à relação entre literatura e conhecimento científico e tecnológico. Internacionalmente se pode considerar a edição especial do periódico Science & Education, em 2014, acerca de literatura e ciência como um exemplo do vigor da temática. Entre os trabalhos desta edição se sinaliza o de Guerra e Braga (2014) que examinou o livro O Nome da Rosa, do escritor Umberto Eco. Os autores apontam a potencialidade da obra para tratar de discussões sobre o nascimento da ciência moderna. Em outro trabalho, Gelfert (2014) chama a atenção para o fato de o conhecido escritor Edgar Allan Poe ter uma produção intelectual e contribuições que transcendem a literatura. Assim, o autor sinaliza a obra Eureka, publicada um ano antes da morte do escritor, e que se situava no campo da “filosofia natural”. Outro exemplo de publicação na edição temática foi aquela de Slaughter (2014) que aborda a literatura de ficção científica associada à radiação e à radioatividade no início do século passado. Ao analisar obras de ficção científica o autor destaca a forte presença da dimensão tecnológica, o que talvez possa estar vinculado à natureza dos assuntos que as permeiam: radiação e radioatividade.
No cenário brasileiro o levantamento feito por Ribeiro (2016) em teses, dissertações e periódicos é indicativo também da pujança deste tema de pesquisa, uma vez que se identificou um crescimento quantitativo da produção ao longo dos anos. A autora ressalta que a literatura tem sido utilizada no ensino de ciências da natureza como uma maneira de aproximar as áreas científica e humanística. A oposição entre estas áreas é historicamente permeada por preconceitos, pois características como fantasia, criatividade e imaginação foram legadas ao estudo das línguas e das artes, como se as ciências da natureza não contemplassem esses aspectos (SILVA, 1998). Galvão (2006) enfatiza que apesar de a literatura e a ciência se expressarem por linguagens específicas, com as suas particularidades e métodos, quando ambas interatuam, a leitura torna-se mais enriquecedora.
Sobre a literatura, Candido (1988) diz que cada sociedade tem a sua criação literária, podendo os valores que tal sociedade exalta e deprecia estarem contidos nas obras. Considerando que vivemos em uma sociedade tecnológica e que as atividades científicas e tecnológicas são envoltas por uma atmosfera constituída de mitos e crenças que desfavorecem a inteligibilidade de seus processos, a abordagem de obras literárias no contexto educacional pode contribuir à reflexão sobre esses valores vinculados aos processos científicos e tecnológicos.
No levantamento supracitado de Ribeiro (2016) foram predominantes trabalhos que buscaram utilizar a literatura como modo de ensinar os conteúdos conceituais das diferentes áreas das ciências da natureza. Depreende-se do cenário destacado por Ribeiro (2016) que estudos acerca de obras literárias de Monteiro Lobato no ensino de ciências da natureza são crescentes. Na qualidade de exemplo de pesquisas recentes que se inserem neste cenário, podemos apontar aquelas desenvolvidas por Groto e Martins (2015) e Silveira e Zanetic (2016). A exploração da literatura associada às interações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), foi caracterizada pela autora como mais incipiente. Em sintonia com a perspectiva CTS destacam-se, por exemplo, os trabalhos de: Piassi e Pietrocola (2007) que estudaram o gênero ficção científica para abordar questões sociocientíficas; Linsingen (2007) que sugere o potencial de mangás na abordagem de interações CTS; e Souza e Vianna (2014) que utilizaram histórias em quadrinho no ensino de física.
Zanetic (2006), apoiado em interlocutores teóricos, defende a leitura em escolas da educação básica de obras de expressivos nomes da literatura universal como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Tolstoi e Dostoiévski. Para o autor essa leitura favoreceria o contato com grandes questões humanas contemporâneas. Nesta direção acreditamos que José Lins do Rego compõe a lista dos grandes nomes da literatura universal e que sua obra tem muito a contribuir para o ensino de ciências e com questões contemporâneas que englobam a tecnologia e suas implicações. Assim acreditamos que as experiências vividas por José Lins do Rego, transpostas em sua narrativa ficcional, podem contribuir para a educação científica e tecnológica.
Com base no exposto pretendemos responder a seguinte questão de pesquisa: Qual a potencialidade da obra literária Usina, de José Lins do Rego, para a abordagem das interações CTS no ensino de ciências da natureza? Constituiu-se como um objetivo analisar na referida obra possíveis mitos vinculados às interações CTS e suas contradições. Na obra de ficção Usina, aparecem as dimensões econômicas, políticas, sociais, emocionais e psicológicas que a implantação de um novo modelo de produção de açúcar, nesse caso a substituição dos engenhos pelas usinas, ocasionou na região. Ressalta-se que o livro não é constituído por muitos diálogos, de forma que o autor expõe o pensamento das personagens, revelando os conflitos emocionais, psicológicos e de classe. Cumpre registrar que a obra aqui estudada não foi examinada em qualquer dos trabalhos citados no levantamento de Ribeiro (2016), o que em parte também justifica a sua escolha. Identificar a potencialidade de obras literárias que possam ser articuladas ao ensino de ciências da natureza tem a sua importância também no fato de que todo o professor, independentemente da componente curricular em que atua, constituir-se em um professor de leitura (SILVA, 1998) e, portanto, pode fomentar entre os estudantes a leitura de diferentes gêneros textuais. Soma-se a isto a premente necessidade de qualificar a leitura no contexto brasileiro, como indicam diferentes relatórios (BRASIL, 2012; OCDE, 2010; BRASIL, 2007). Na sequência apresentaremos uma discussão que orientou a análise do livro.
MITOS E CRENÇAS RELACIONADOS À CIÊNCIA E À TECNOLOGIA
Auler (2002) enfatiza que os mitos relacionados à ciência e à tecnologia são compreensões que endossam o modelo tradicional linear de progresso. Este modelo, proposto por Garcia et al. (1996), pode ser resumido da seguinte forma: mais ciência gera mais tecnologia, que produz mais riqueza e, consequentemente, mais bem-estar social. De acordo com Auler (2002), esses mitos sustentam os pilares da suposta neutralidade da ciência e da tecnologia. Os mitos são: modelo tecnocrático, perspectiva salvacionista da ciência e da tecnologia e determinismo tecnológico.
A tecnocracia é um modelo que exclui a população em geral das tomadas de decisões, concedendo o poder de decisão aos especialistas. Esse poder é justificado pela neutralidade que se atribui ao processo científico e tecnológico e assim quem pode tomar a melhor decisão ou solucionar um problema ligado à ciência e à tecnologia é um expert no assunto (AULER, 2007).
Para Roszak (1970) a tecnocracia atua por meio da necessidade de mais eficiência, segurança, grande estrutura de mão de obra e recursos, etc. Além dos processos científicos e tecnológicos, nesse modelo outras atividades humanas, como a política e economia estão acima da inteligibilidade do cidadão comum, requisitando a atenção de experts. Desse modo, não é incomum nos depararmos com especialistas que se dizem aptos a resolverem, de forma autoritária, aspectos de natureza íntima e pessoal.
Ao percorrermos as estantes de uma livraria, por exemplo, encontraremos livros dedicados a “instruírem” como fazer amigos, como manter nossos relacionamentos, como amar ou como viver. De tal maneira, muitas vezes somos levados a pensar que obrigatoriamente experts irão resolver sozinhos todos os nossos problemas, até os de âmbitos pessoais. Ora, se os experts irão resolver nossas dificuldades de natureza íntima, também podem tomar decisões sobre o desenvolvimento científico e tecnológico.
Ainda, segundo o autor, a tecnocracia utiliza de alguns princípios para nos convencer: as necessidades vitais do ser humano são de natureza técnica; a análise formal de nossas necessidades tem de alcançar noventa e nove por cento de perfeição; e os experts são os únicos que podem cuidar das nossas necessidades (ROSZAK, 1970).
Na sociedade tecnológica atual se pode presenciar um grande exercício do modelo tecnocrático. De tal maneira que nos deparamos com a compreensão que muitos têm de que só podemos opinar sobre tecnologia se entendermos de seu funcionamento. Assim, as responsabilidades são outorgadas aos especialistas. Por isso, também se faz tão necessário promover na educação básica e superior reflexões a respeito dos impactos sociais causados pela ciência e tecnologia, com o intuito de promover o espírito de tomada de decisão e, ao mesmo tempo, a segurança do papel que o indivíduo deve exercer no meio social, para que se torne sujeito de sua história e não se reduza a objeto de ações tecnocráticas. Necessitamos aprofundar a compreensão acerca da ciência e da tecnologia e não deixá-las apenas ao crivo daqueles que se denominam ou são denominados como os responsáveis pelo planeta (BAZZO, 2015).
A visão salvacionista da ciência e da tecnologia é bastante difundida em nossa sociedade. Nessa perspectiva acredita-se que a ciência e a tecnologia vão resolver os problemas, de modo a conduzir os cidadãos ao bem-estar social. Ou seja, elas nos guiam ao progresso e resolvem todos os problemas da humanidade, tornando a vida mais prática e fácil. Porém, essa ideia, entre outros aspectos, torna secundárias as relações sociais em que a ciência e a tecnologia são concebidas (AULER, 2002).
Pacey (1990) enfatiza que esperar apenas das soluções técnicas, sem considerar os aspectos culturais e sociais, é o mesmo que se movimentar em terreno ilusório. Por isso, não é raro propostas puramente técnicas fracassarem por não solucionarem nem metade do problema para o qual foram elaboradas, podendo inclusive piorar a situação.
Parte de nossa população tem o hábito de considerar a ciência e a tecnologia como libertadoras em si mesmas, embutidas com uma visão redentora e salvacionista. Esse comportamento se agrava pelo bombardeamento de informação pelas mídias sociais comprometidas com o poder hegemônico (BAZZO, 2015).
Porém, vale ressaltar que nem todos atribuem às atividades científicas e tecnológicas uma visão positiva, como mostra um estudo, realizado por Solbes e Vilches (2004) em que estudantes explicitam menos otimismo em relação à ciência e à tecnologia, principalmente quando se trata de problemas ambientais. Como Angotti e Auth (2001) destacam, a equação entre a exploração dos bens naturais, os avanços científicos e tecnológicos e o benefício de todos não foi resolvida, pois poucos foram favorecidos por meio do discurso da neutralidade da ciência e da tecnologia e a suposta necessidade do progresso para beneficiar a maioria, sendo que esta maioria continuou marginalizada e vivendo na miséria material e cognitiva.
Devemos então ter uma compreensão mais aprofundada sobre os processos internos e externos das atividades científicas e tecnológicas e das profissões técnicas, entendendo-as como processos sociais. Existe a necessidade de analisar o caráter ambiental e socialmente destrutivo de muitas atividades intrínsecas a esses processos. Faz-se necessário ainda reconhecer os danos causados pela ciência e pela tecnologia pela própria sobrevivência de ambas e não apenas com a intenção de minimizar esses danos como efeitos secundários ou consequências não previstas (BAZZO, 2015).
Já o mito do determinismo tecnológico está relacionado à crença de que a tecnologia é independente de fatores sociais e culturais. Entende-se que a tecnologia tem o seu curso próprio, como se ela fosse autônoma. Essa compreensão dissemina a ideia de que o desenvolvimento tecnológico influencia o meio social, mas o meio social não influencia o desenvolvimento tecnológico, defendendo a tese da relação unidirecional entre a tecnologia e a sociedade. Desse modo, o determinismo tecnológico está fortemente ligado ao modelo linear do desenvolvimento tecnológico. Esse modelo é uma sucessão de fases associadas em um único sentido: conhecimento científico, aplicação em um problema prático, inovação tecnológica, difusão e uso (AIBAR, 1996).
Nesse sentido, Feenberg (2010) argumenta que o determinismo faz com que o fim da história pareça inevitável, projetando no passado a lógica técnica abstrata de um objeto acabado da atualidade, dando a impressão de que esta lógica é a causa do desenvolvimento do passado. Tal pensamento confunde a compreensão de passado e sufoca a idealização de um futuro diferente. Contudo, o desenvolvimento tecnológico se ramifica em diferentes direções, podendo alcançar níveis elevados no decorrer de mais de um caminho diferente, não sendo o desenvolvimento tecnológico determinante para a sociedade, mas sobre determinado por fatores técnicos e sociais (FEENBERG, 2010).
Pacey (1990) ressalta que o avanço tecnológico é concebido por muitos indivíduos como a parte mais importante do progresso. Sendo denominado por alguns como misticismo da máquina. De maneira que cada era é compreendida em conformidade com a tecnologia dominante em dado período, estendendo-se até às origens da história da humanidade. Por exemplo, a idade da Pedra, do Bronze e do Ferro é pensada como progressão técnica lógica que implica na evolução social. Assim, para cada era pensamos nos efeitos da técnica sobre os assuntos humanos, sem considerar o contrário. É possível voltar-se à história de qualquer invento e explorar a forma que o desenvolvimento organizativo promoveu uma nova tecnologia, em vez de mostrar como os desenvolvimentos tecnológicos cresceram um sobre o outro influenciando a mudança social (PACEY, 1990).
A inevitabilidade do progresso tecnológico e a sua importância no desenvolvimento são mitos amplamente difundidos. Isso acontece principalmente porque essa crença serve a um propósito político. Nessa conformidade, é mais fácil aceitar o conselho de experts quando se pensa que o desenvolvimento da tecnologia é um caminho tranquilo de avanço predeterminado pela lógica da ciência e da técnica. Porém, isso diminui a participação pública em decisões políticas a respeito da política tecnológica (PACEY, 1990).
A tomada de “consciência” dos impactos sociais da ciência e da tecnologia e o despertar para participação em processos decisórios que envolvem controvérsias associadas ao interesse e ao papel do cidadão podem favorecer o rompimento com o modelo tecnocrático, que tem como uma das bases o determinismo tecnológico.
CAMINHOS DA ANÁLISE
A obra literária Usina, investigada nessa pesquisa, é o quinto livro a compor o que José Lins do Rego denominou de ciclo da cana-de-açúcar. Nele é contada a história de Ricardo, que volta à sua terra natal depois de muitos anos. Ao se deparar com ela, percebe que está tudo muito diferente. O antigo engenho, onde a sua família morava, que era descendente de escravos, fora substituído pela Usina Bom Jesus. Tudo mudara: a casa grande, a vegetação, a paisagem e as pessoas.
O narrador de Usina se esforça na tarefa de compreender a nova dinâmica social do Engenho Santa Rosa. Os moradores, mestres de ofício e usineiros são personagens centrais de um novo sistema social marcado pelo equilíbrio instável e a fragilidade da afirmação de papéis sociais resultante das particularidades causadas pela crise do mercado de açúcar no começo do século XX (CHAGURI, 2009).
José Lins do Rego nasceu em julho de 1901 em um engenho na cidade de Pilar, na Paraíba. Em 1919 ingressou na Faculdade de Direito do Recife e simultaneamente publica seus escritos em alguns jornais e periódicos. No ano que concluiu a graduação em Direito, em 1923, conhece Gilberto Freyre, sendo este um encontro decisivo para a futura carreira de José Lins do Rego (BARBOSA FILHO, 2005; CASTELLO, 1961).
No ano de 1929 escreve o seu primeiro livro, Menino de Engenho, que foi publicado apenas em 1932. Quando muda para o Rio de Janeiro em 1935, consolida-se como autor da editora José Olympio que lançará os livros que ficaram conhecidos por pertencerem ao ciclo da cana-de-açúcar: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O Moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo Morto (1943) (BARBOSA FILHO, 2005; CHAGURI, 2007).
Nas décadas de 1920 e 1930 os banguês nordestinos tinham sido substituídos pelo sistema das usinas. Para se ter uma ideia, em 1914 existiam 54 usinas em Pernambuco, e em 1932 somavam-se um total de 62 usinas (CARONE, 1976). A ascensão das usinas foi inflamada pela abolição da escravatura, a fundação de novas técnicas de transportes, a modernização nos processos de produção açucareira e as seguidas crises de preço e superprodução. A concentração das usinas promoveu a formação dos grandes latifúndios, no fenômeno de absenteísmo do proprietário, a capitalização da agricultura e o abandono de terras pelos trabalhadores (CARONE, 1976).
A usina conduziu a novas relações e papéis, diversificando o consumo, o sistema de status e ampliou a ligação com a produção internacional. Por exemplo, o cozinhador de açúcar foi substituído pelo químico industrial e o tacho de cobre, por turbinas e decantadores. Muitas usinas eram envoltas por linhas férreas, escolas, hospitais, campos de aviação e hidrelétricas. A industrialização do açúcar e a produção do álcool, que estavam acontecendo no mesmo período da publicação do livro Usina, almejavam mais terras. Desse modo, as indústrias começaram a utilizar mão de obra sertaneja. Essa mudança social parece ter sido palco ao romance de José Lins do Rego (PASSOS, 2010).
O livro Usina foi submetido aos procedimentos da Análise Textual Discursiva (ATD) (MORAES; GALIAZZI, 2011). A ATD é composta por três etapas. A primeira etapa é a unitarização, em que se pretende desconstruir o corpus de análise com a pretensão de identificarmos sentidos em diferentes limites de seus pormenores. Da “desmontagem” dos textos surgem as unidades de análise que são definidas em função dos propósitos da pesquisa. A segunda etapa é a categorização das unidades de análise. As categorias podem ser a priori, emergentes ou mistas. As categorias mistas são quando aparecem os dois tipos de categorias. Foram identificadas três categorias a priori, contidas no referencial teórico a respeito das interações CTS, sendo elas: a visão salvacionista da ciência e da tecnologia, tecnocracia e determinismo tecnológico. Além destas, uma categoria emergiu durante o processo de análise, a saber, a relação entre cultura e tecnologia. No Quadro 1 estão dispostas as categorias e as suas caracterizações. No entanto, como destaca Moraes (2003) as categorias se relacionam por meio dos elementos que as constituem:
Cada conjunto de categorias terá possibilidade de mostrar alguns dos sentidos que o corpus textual permite construir. Não são dadas, mas requerem um esforço construtivo intenso e rigoroso de parte do pesquisador até sua explicitação clara e convincente. Esse esforço não envolve apenas caracterizar as categorias, mas também estabelecer relações entre os elementos que as compõem [...] (MORAES, 2003, p. 200).
Isso sugere que as categorias na perspectiva da ATD não precisam ser interpretadas como estruturas estanques. Cabe lembrar que a categorização na ATD não atende ao princípio de exclusão mútua. A terceira etapa é a de comunicação, na qual se construiu um novo texto que expressa a compreensão dos pesquisadores sobre os sentidos captados nos textos originais. A etapa de comunicação consistiu na elaboração de produções textuais com ênfase interpretativa em cada uma das categorias supracitadas. A seguir apresenta-se a análise.
AS RELAÇÕES CTS NA OBRA LITERÁRIA USINA
Visão salvacionista e sua contradição
No decorrer do livro Usina a visão salvacionista da ciência e da tecnologia é recorrente - o que não significa afirmar que esta é a visão do autor. Porém, as consequências negativas acarretadas por elas que contradizem a sua suposta redenção, também estão presentes na obra. Em um dos trechos podemos identificar a associação entre desenvolvimento tecnológico e progresso:
Os jornais da Paraíba deram notícias, falando no progresso que entrava para a várzea do Paraíba, no gênio empreendedor do dr. José de Melo, na riqueza que seria para o estado um empreendimento daquele gênero (REGO, 2010, p. 89-91, grifos nosso).
Silveira e Bazzo (2009) enfatizam que é comum a tecnologia ser vista como o principal fator do progresso e do desenvolvimento. Vinculada a esta compreensão está a ideia de que para o sistema econômico, a tecnologia é um bem social, e junto com a ciência, é um meio de agregação de valores aos mais diversos produtos, sendo a base para a competitividade e para o desenvolvimento social e econômico de determinada região.
O termo progresso não é neutro, tem fins específicos definidos pelas possibilidades de melhorar a condição humana. A sociedade industrial desenvolvida se aproxima do momento em que o progresso contínuo exige a subversão radical da direção e organização do progresso dominante. Essa fase é atingida quando a produção material se torna automatizada até um ponto em que todas as necessidades vitais possam ser atendidas e o tempo de trabalho seja reduzido a um tempo marginal. O progresso técnico então extrapolaria ao âmbito da necessidade, servindo de instrumento de dominação e exploração (MARCUSE, 1973).
A visão da eficiência atribuída à tecnologia também aparece no texto, como nos mostra o próximo excerto:
[...] Estivera em Cuba, correra as Antilhas e sabia que lucro havia numa aparelhagem uniforme, de bom fabricante. Os seus amigos da América haviam investido no Brasil uma fortuna em aparelhos para usina de açúcar, os mais aperfeiçoados. A Bom Jesus, com as máquinas que ele vendera, podia figurar ao lado das usinas mais eficientes do norte (REGO, 2010, p. 167- 168, grifos nosso).
Os valores incorporados à tecnologia são socialmente específicos. Ou seja, a tecnologia molda muitos estilos de vida, cada qual reflete escolhas de objetivos e extensões diferentes da mediação tecnológica. Como uma moldura, que limita o que contém dentro dela, a eficiência molda todas as possibilidades da tecnologia, mas não determina os valores percebidos dentro dessa moldura. Se a tecnologia for considerada apenas do ponto de vista da eficiência, questões relacionadas à qualidade de vida, por exemplo, viram meras externalidades (FEENBERG, 2010). Em outras palavras, nessa perspectiva, a acepção de eficiência está vinculada a fatores sociais, de tal sorte que a eficiência pode estar ligada mais ao valor do lucro - como parece ser o caso do trecho supracitado.
No excerto a seguir, podemos perceber uma compreensão acerca do desenvolvimento de uma região em função de determinada tecnologia:
[...] Esta história de usina estragara o mercado. Ninguém plantava mais roçado, era só cana [...].
O cozinhador dava razão aos usineiros. Com o preço do açúcar, não se podia perder um palmo de terra com feijão. O que dava dinheiro era a flor-de-cuba.
- Dá dinheiro, é verdade - dizia o comerciante -, mas para a burra dos grandes. O que lucra o povo com isto? [...] O senhor veja a desgraça do povo por aí. Muita gente vive na farinha seca, que feijão está ficando comida de rico (REGO, 2010, p. 81-82, grifos nosso).
Percebemos na narrativa uma visão de que o crescimento das usinas e das plantações de cana-de-açúcar acarretou implicações negativas à população. Para Feenberg (2010) a sociedade é organizada ao redor da tecnologia, e a sua fonte de poder é o tecnológico. Observa-se isso nos designes de equipamentos tecnológicos que restringem a escala dos interesses e das preocupações, que são representados geralmente pelo funcionamento normal da tecnologia e das instituições dela dependentes. No entanto, isso pode gerar sofrimento aos seres humanos e vários outros danos ambientais. A execução do poder técnico faz com que surjam resistências novas, intrínsecas ao sistema técnico unidirecional. Os excluídos por esse design podem sofrer consequências indesejáveis causadas pelas tecnologias e protestarem contra ela (FEENBERG, 2010).
No trecho a seguir podemos identificar um entendimento concernente às consequências causadas pela suposta neutralidade atribuída à tecnologia:
[...] Em banguê podia ser, mas usina não podia aguentar morador com regalias. [...] Usina pedia as terras livres para cana. Do contrário teria que estragar o seu trabalho se fosse amolecer o coração. [...] Tinha que ser duro com o povo .[...]. Só mesmo de coração assim, insensível ao choro do povo. [...] Todo o direito era da usina (REGO, 2010, p.214-218, grifos nosso).
O trecho permite discutir o fato de que a usina não se relaciona com o seu contexto, com as pessoas ao seu redor e não é responsável pelas consequências que pode causar. A suposta neutralidade da tecnologia muitas vezes se manifesta por meio da indiferença de meios específicos para uma gama de objetivos, dos quais se é escravo. Se admitimos que a tecnologia é indiferente em relação aos fins humanos de modo geral, certamente ela será neutralizada. A neutralidade concede um valor à tecnologia, o da eficiência, porém é apenas um valor formal (FEENBERG, 2010).
O excerto seguinte possibilita a discussão sobre como a inserção de uma nova tecnologia em um determinado meio social, pode mudar a relação de trabalho e as suas consequências negativas:
[...] Mas quem podia ter roçado, plantar a sua fava, o seu feijão? A usina tomara todos os dias da semana para os seus eitos. Antigamente davam-lhes três dias, que eram deles. O engenho se contentava com o resto. Podiam então ficar em casa de papo para o ar e os mais espertos cuidavam do seu roçado. Teriam com que comer a ceará, o seu milho, a sua fava (REGO, 2010, p. 185-186, grifos nosso).
Pacey (1990) nos lembra que antes da introdução dos sistemas de fábricas, os trabalhadores manuais tinham a liberdade para decidir a duração da jornada e do ritmo do trabalho. Com a criação do ambiente agrícola, que possibilitou o desenvolvimento da alta agricultura, os trabalhadores autônomos se tornaram empregados de fabricantes ou agricultores. Desse modo tiveram que acatar com os horários de trabalho impostos. Além disso, a mudança na organização do trabalho também ocasionou a divisão do trabalho. Os trabalhos mais complexos se dividiram em várias operações mais simples, executadas de forma separada por diferentes trabalhadores. Máquinas e ferramentas foram introduzidas para facilitar as operações, diminuindo o custo do trabalho (PACEY, 1990).
Em suma, ao longo da categoria foi possível discutir visões otimistas e pessimistas relacionadas, sobretudo, ao desenvolvimento tecnológico. A exploração dos trechos pode colaborar para o desvelamento de mitos e crenças associados à ciência e à tecnologia.
Determinismo Tecnológico
No livro Usina aparecem trechos que estão em sintonia com a compreensão do caminho único do desenvolvimento tecnológico. Como podemos identificar a seguir:
A família queria uma usina, alcançar o progresso, igualar-se com outras, que haviam subido de condição, com as turbinas e vácuos.
[...] Em menos de oito anos o dr. Luís, que chegara lá com dinheiro emprestado, era hoje o homem mais rico, o mais temido de todo o vale. Nunca ninguém, por aquelas paragens, alcançou maior soma de poder, mais força perante os pobres e perante os ricos. A São Félix valia como um estado. O governo temia a sua importância. Os seus protegidos não conheciam delegados, as portas das cadeias não prevaleciam para as ordens do usineiro. Procurassem saber de jurados, de eleitores que não fossem crias da grande fábrica e encontrariam poucos. Os júris, as eleições, os padres, os juízes obedeciam às vontades do usineiro. [...] (REGO, 2010, p. 87-88, grifos nosso).
Existem dois princípios que sustentam o determinismo. Um se relaciona com o fato de que o progresso técnico segue na direção do menos avançado para o mais avançado. O outro está relacionado ao fato de o determinismo tecnológico afirmar que as instituições sociais têm que se adaptar aos imperativos tecnológicos. Dessa maneira esse modelo convence que a tecnologia e as suas estruturas institucionais são universais em objetivos (FEENBERG, 2010).
Ao considerar a relação unidirecional que o determinismo tecnológico advoga, pode-se perceber como é explícito nesse excerto a relação do poder político com a tecnologia. Cupani (2013), baseado na literatura, explica que nas sociedades industriais avançadas, a racionalidade técnica transformou-se em racionalidade política. E essa racionalidade está limitada à eficiência que é definida pelas metas do sistema econômico-político. Winner (2008), por sua vez, diz que as estruturas e os sistemas da cultura material moderna podem ser julgados pela sua eficiência, produtividade e impactos ambientais e pela maneira que podem incorporar formas específicas de poder e autoridade.
Feenberg (2010), baseando-se em Marcuse, relaciona a revelação tecnológica com as consequências das persistências das divisões entre classes e regras mediadas tecnicamente por várias instituições, e não com a história do ser. A tecnologia pode ser, e de fato é, configurada dessa maneira, reproduzindo a regra de poucos para muitos. Essa possibilidade está inscrita na estrutura da ação técnica e estabelece um sentido único de causa e efeito (FEENBERG, 2010).
Marcuse (1973) já argumentava que o poder político se sustenta por meio de seus poderes sobre o processo mecânico e a organização técnica do artefato. O governo das chamadas sociedades desenvolvidas e das em desenvolvimento se manteriam quando mobilizam, organizam e exploram com êxito a produtividade técnica, científica e mecânica à disposição da civilização industrial. A produtividade mobiliza a sociedade e vai além dos interesses individuais e/ou coletivos. O poder físico da máquina supera o do sujeito e de qualquer grupo, transformando a máquina em instrumento político de qualquer sociedade que tenha na sua organização básica o processo mecânico (MARCUSE, 1973).
Na ficção de Rego (2010) podemos identificar a relação de poder e a produção industrial a qual a narrativa se refere. Winner (2008) nos lembra que atualmente esta relação é muito mais intensa. Não é surpreendente que os sistemas técnicos de diversas classes estejam envolvidos nas condições da política moderna. A estrutura da produção industrial, das guerras, das mídias sociais, modificam de maneira fundamental o exercício do poder e a experiência da cidadania. Porém, ir além desse fato óbvio e discutir que as tecnologias possuem em si mesmas propriedades políticas, aparentemente parece equivocado. Segundo o autor, as pessoas têm política e não as coisas. Encontrar virtudes e defeitos nas estruturas de aço ou no plástico, por exemplo, parece um absurdo, um modo de mistificar o artifício humano e evitar as fontes humanas da liberdade e da opressão, da justiça e da injustiça.
Daí o conselho grave que se dá para aqueles que se voltam para a ideia de que os artefatos técnicos têm qualidades políticas: o que importa não é a tecnologia em si mesma, mas o sistema social e econômico no qual está inserida. Esse pensamento, que em diversas variações é a premissa central de uma teoria que pode ser chamada de determinação social da tecnologia. Ele serve como um corretivo necessário para aqueles que indiscriminadamente focam em temas como o computador e seus impactos, porém, não olham por detrás dos aparatos técnicos para ver as condições sociais de seu desenvolvimento, implantação e utilização. Essa questão é como um antídoto para o determinismo tecnológico ingênuo: a ideia de que a tecnologia se desenvolve como um único resultado de uma dinâmica interna e sem nenhuma outra influência molda a sociedade para que ela se ajuste aos seus padrões. Muitos não reconhecem como a tecnologia é moldada por forças sociais e econômicas (WINNER, 2008).
No trecho a seguir percebe-se que a personagem se concentra em uma compreensão que pode remeter à ideia de eficiência associada ao lucro privado como parâmetro para o desenvolvimento bem-sucedido:
[...] Aparelhagem para usina só mesmo de ótima qualidade. Uma fábrica, que os americanos haviam montado em Alagoas, não dera conta. O dr. Luís esperava ver a Bom Jesus funcionando. E se o rendimento fosse aquele de que falavam, não havia dúvida de que precisava também mudar a São Félix. Por enquanto só queria ver nos outros, estudar com a experiência dos outros. A sua fábrica não dava o que devia dar. Sabia que andava precisando de uma reforma. Pensava nisso há muito tempo. Mas via os lucros serem tão grandes, ganhar tanto que não se lembrava de reformar os seus aparelhos (REGO, 2010, p. 211-212, grifos nosso).
Para Feenberg (2010) no determinismo tecnológico a escolha entre técnicas bem-sucedidas e fracassadas é baseada na eficiência. Uma discussão que podemos suscitar por meio desse excerto, visto que existe o conflito demonstrado pela personagem sobre se deve ou não reformar seu modo de produção, e prefere ver se as usinas concorrentes realmente funcionaram como prometiam os engenheiros e suas aparelhagens. Contudo, segundo Feenberg, apenas a eficiência não é o suficiente ou decisiva para esclarecer o sucesso ou o fracasso de uma tecnologia, pois existem várias configurações possíveis de recursos que podem possibilitar que uma tecnologia opere de maneira eficiente ao executar sua função. Além do mais, os interesses dos mais variados sujeitos que participam do projeto e do design de uma tecnologia se refletem em níveis diferenciados de função e preferência. As escolhas sociais também influenciam na definição e solução do problema (FEENBERG, 2010).
Enfim, a categoria suscita discussões sobre discursos fatalistas associados ao determinismo tecnológico. Em outras palavras, através do estudo de Usina podemos problematizar os discursos que endossam o mito do determinismo tecnológico.
Tecnocracia
A tecnocracia em nome do progresso técnico e do ethos científico elucida todas as categorias políticas tradicionais. Consolida o seu poder seguindo os ditames da eficiência industrial, de sua racionalidade e necessidade (ROSZAK, 1970). Podemos perceber nos excertos reunidos nessa categoria entendimentos de que por meio de uma eficiência industrial se pode aumentar a produtividade e o lucro:
[...] Trabalhara lá muitos anos, mas agora haviam botado um estrangeiro para químico. E o galego era uma peste de malcriado. Fosse ele para os infernos. E no primeiro chamado que tivera, aceitara:
-Veja o senhor. Levei a vida dando ponto em açúcar, conheço o meu ofício. Lá isso eu conheço. Pode ser que outro tenha mais ideia da coisa, mas nunca queimei um quilo de açúcar, nunca dei prejuízo. Quando a cana não ajudava, não havia jeito porque ninguém tem parte com o diabo para mudar caldo. Pois veja o senhor: o galego chegou, começou a contar lorota, a mexer em frasco, e tudo o que os mestres faziam, sem barulho, sem visagem nenhuma, ele fazia tomando nota em livro, fazendo manobras. E dando gritos, falando numa língua misturada. Qual!... No primeiro chamado deixei Catunda (REGO, 2010, p. 80-81, grifos nosso).
Nesse trecho percebemos que quanto mais as usinas aumentavam, os trabalhadores comuns eram substituídos por profissionais especializados, nesse caso o cozinhador foi substituído pelo químico. Para Roszak (1970) a ciência e a tecnologia são vistas como bens sociais. Elas parecem diretamente relacionadas com o progresso tecnológico, que por sua vez promete segurança e abundância. Quando a sociedade se encontra aprisionada a uma estrutura industrial gigantesca, pode desenvolver por esta uma admiração ou até mesmo idolatria, mesmo sem compreendê-la. Desse modo, necessariamente deve-se deixar o seu funcionamento nas mãos de especialistas, pois no modelo tecnocrático, somente essas pessoas são capazes de mantê-lo. Como o autor reforça, é um equívoco acreditar que a tecnocracia não pode encontrar meios para interagir com a classe trabalhadora sem comprometer a continuidade dos processos sociais de grande escala.
No trecho a seguir é expressa uma situação que exemplifica que os conhecimentos do expert podem ser insuficientes no enfrentamento de um problema:
E o químico chegou, pedindo laboratórios, auxiliares. E o cristal da Bom Jesus continuava uma lástima. Então o técnico se queixou da cana. Um químico não podia fazer milagre. A matéria prima lhe parecia a pior e daquilo só podia tirar o possível. Mas a cana da São Félix não diferia da cana da Bom Jesus.
[...] A Bom Jesus estava com todos os recursos possíveis, com tudo de novo, com água doce ali em cima, um químico de quatro contos de réis e era, apesar disto, o fracasso que o usineiro verificava (REGO, 2010, p. 237-238, grifos nosso).
Por meio desse trecho se pode questionar a obrigatória superioridade do expert. Tanto o engenheiro, o químico, quanto os demais cidadãos devem saber as implicações que tem o desenvolvimento científico e tecnológico nas mudanças geradas na maneira de viver. Dessa forma é necessário desmistificar a supremacia científica e tecnológica dos especialistas, que por terem tido acesso a certo tipo de educação, precisam decidir o destino de todos os cidadãos que, como ele, compõem a sociedade. Os demais cidadãos também devem ter o direito de saber se é preciso desenvolver e adotar todas as tecnologias modernas, e não apenas adaptar-se a elas. Tecnologias que geralmente são dominadas por outros países e que têm um contexto totalmente diferente (BAZZO, 2010).
Atualmente são empregadas tecnologias específicas com limitações decorrentes do estado de nosso conhecimento, e também das estruturas de poder que indicam o conhecimento e suas aplicações. Essa tecnologia favorece extremidades específicas e obstrui outras. A maior consequência desse enfoque é trabalhar com os limites éticos dos códigos técnicos elaborados sobre a regra da autonomia operacional.1 Esse processo liberou os tecnocratas para tomarem decisões técnicas sem considerarem as necessidades dos trabalhadores e das comunidades, e gerou valores novos, que foram demandas éticas forçadas a procurar um discurso. O fundamental para a democratização da tecnologia é procurar novas maneiras de privilegiar esses valores excluídos e realizá-los em arranjos técnicos novos (FEENBERG, 2010).
Em síntese, essa categoria possibilita refletir sobre a tomada de decisão referente às questões tecnológicas e os impactos quando da participação unicamente de especialistas.
A relação entre cultura e tecnologia
Antes de qualquer discussão concernente à vinculação entre cultura e tecnologia, é preciso registrar que a ciência e a tecnologia em si só se constituem como culturas. A respeito da associação entre cultura e tecnologia se pode considerar que: a) a inserção de uma nova tecnologia em um meio social pode transformar a cultura e as pessoas que o compõem; b) a tecnologia pode afetar tradições e religiões, ou pode criar um meio no qual estas não sejam bem-vindas; c) os artefatos tecnológicos podem mudar o cenário, costumes e hábitos do local onde se insere; e d) a mudança que a tecnologia ocasiona às vezes pode implicar em conflitos e rejeição. Esses aspectos são abordados por Cupani (2013) ao discutir a relação entre cultura e tecnologia. O autor reforça ainda que a ciência e a tecnologia tornaram-se inerentes às sociedades industriais e, dessa maneira, vão se incorporando, não sem conflito, às sociedades subordinadas a elas.
No seguinte excerto há a identificação de uma situação que remete à relação entre a cultura de um grupo social e a tecnologia:
[...] Ricardo foi se chegando. E com pouco viu a usina, nua, amarelada, de chaminé comprida, com um fumaceiro saindo pelas telhas de zinco. Trens de cana espichavam-se pela antiga bagaceira. E ali, onde fora a sua casa de purgar, estendia-se uma esteira, rolando, levando comida para as moendas. O moleque ficou um tempão olhando para tudo. Um povo, que ele não conhecia, conduzia burros, descarregando carroças de cana. Lá por dentro devia ser um formigueiro. O moleque porém queria era ver a sua gente. E foi saindo para a casa-grande e não viu a rua. Tinham plantado eucalipto por defronte da casa-grande. Olhou para a cozinha e viu as grades de ferro. Teria se enganado, teria saltado noutro lugar? Não conhecia ninguém, não via ninguém conhecido, quis entrar e teve medo [...] (REGO, 2010, p. 135-136, grifos nosso).
O trecho expõe a mudança regional associada à dada tecnologia. Santos (2006) enfatiza que com as obras realizadas pelos seres humanos, como casas, plantações, usinas, estradas, fábricas, cidades, a configuração territorial se tornou cada vez mais resultado de uma produção histórica tendendo a uma negação da natureza natural, sendo substituída pela natureza humanizada. Isso pode ser reforçado com o trecho seguinte:
[...] A velha casa, onde o velho José Paulino vivera os seus oitenta e tantos anos, se reformara também. Ali na cozinha, nas portas largas por onde entravam e saíam os moradores e as negras, tinham posto grades de ferro. A sala de visitas se enfeitara de poltronas, como as que se viam nas casas da cidade. Os quartos de dormir se forraram. O grande casarão tomava assim outras cores, outro jeito, outras maneiras de receber os que chegavam. Aquele ar bonacheirão, aquelas portas abertas, a cozinha sempre cheia de gente, tudo que era tão natural e tão seu, se fora. A casa-grande da usina não podia continuar a ser uma casa-grande de engenho (REGO, 2010, p. 89-90, grifos nosso).
Para Cupani (2013) o desenvolvimento tecnológico acaba dissolvendo as formas sociais tradicionais e o seu estilo de vida. Em diferentes culturas os objetos são associados a significados e a mensagens específicas, transformando-os em símbolos culturais. No objeto técnico também existe um conteúdo simbólico vinculado que está relacionado diretamente ao contexto de uso. Desse modo, um produto tecnológico além de utilitário é simbólico (BAZZO; PEREIRA; BAZZO, 2016).
Nesse trecho identificamos dois produtos simbólicos: a casa grande, que é um dos símbolos dos engenhos, com suas características marcantes da época evocadas na ficção de Rego (2010) e a transformação desse cenário simbólico pela inserção de uma produção tecnológica que contém outra conotação simbólica. A transposição da usina, nesse cenário, muda-o radicalmente, porque o significado da casa-grande e seu entorno não condizem com o significado de modernização que traz a usina. De modo que este trecho exposto exprime a associação entre cultura e tecnologia.
Outro aspecto discutido na categoria é a intervenção do ser humano sobre o meio ambiente, com o intuito de resolver demandas técnicas:
Vinham trazendo o riacho do Vertente para a usina. Gente de picareta, pedreiros cavavam e construíam o leito para a água correr para a Bom Jesus.
O feito do dr. Juca sairia nos jornais. Desviava-se o curso de um regato, era uma grande obra de engenharia. O Vertente, que se perdia à toa, cantando manso pelas matas escuras, dando de beber com a sua água doce ao povo do Pilar, vinha agora, à força de instrumentos, para a serventia da Bom Jesus.
[...] O riacho tinha um dono, seria mandado como um boi de carro. Com as máquinas reluzentes de novas, com um riacho de mais de trinta polegadas d’água ali dentro de casa, a Bom Jesus estaria preparada para tudo (REGO, 2010, p. 210, grifos nosso).
Para Santos (2006) a história da relação entre sociedade e natureza é a da substituição do meio natural pelo artificial. Quando tudo era natural, o ser humano escolhia o que era fundamental à sua sobrevivência. O meio era usado sem grandes mudanças. Técnica e trabalho se harmonizavam com a natureza. Porém chega um momento da história que os objetos constituintes do meio, além de serem culturais, eram técnicos. O ser humano começa a enfrentar a natureza com instrumentos que já não representam o prolongamento de seu corpo, mas de território. Com o uso de novos materiais e transgredindo a distância, o ser humano começa a elaborar um tempo novo no trabalho, no lar e no intercâmbio (SANTOS, 2006). Assim, a tecnologia é vista como um meio de controlar e dominar a natureza.
Segundo Marcuse (1973) a sociedade industrial é organizada para a dominação cada vez maior da natureza, com o intuito de utilizar de modo supostamente mais eficaz os recursos que ela pode oferecer. A racionalidade técnica, sendo um grande veículo de dominação, expõe o seu caráter político, criando um universo verdadeiramente totalitário no qual, sociedade e natureza, corpo e mente, são mobilizados para a defesa desse universo.
Outra reflexão suscitada pelo livro diz respeito à relação entre tecnologia e tradições:
[...] O gerente do campo já se queixava ao dr. Juca da impertinência daqueles devotos. Os eitos enfraqueciam. Era preciso acabar com aquela aglomeração de gente inútil, com aquele rebuliço que perturbava a vida agrícola. Aonde se vira os serviços de uma usina, da importância da Bom Jesus, ameaçados com a tolice, porque um negro velho morrera queimado e um oratório se sumira?
[...] Ninguém na usina queria sair para atacar. O dr. Juca ficou embaraçado. Chamou o gerente do campo, combinando umas medidas enérgicas. Mas ninguém tinha coragem para atacar os romeiros. Só força de fora.
A notícia chegara à Paraíba e no outro dia, a pedido do usineiro, cinquenta praças de polícia apareceram na usina, à disposição do dr. Juca.
Falavam que havia no Alto da Areia para mais de mil pessoas, dispostas a morrer. O velho Joca, do Maravalha, achava que deviam ir com jeito, senão morreria muita gente mais. Os trabalhadores de campo estavam todos parados. A usina, de fogo apagado. Prejuízos por cima de prejuízos. Só havia mesmo um jeito, para os dirigentes da fábrica: era atacar com energia. E uns cem homens armados marcharam então para investir contra os pobres devotos das cinzas que o fogo de Deus havia feito.
Da usina se ouviu o pipocar do tiroteio, como girândola de fogo no ar.
Os jornais falaram muitos dias do fato. Alguns fanáticos na usina Bom Jesus se armaram e ameaçaram destruir o grande estabelecimento industrial. Mas a polícia chegara em tempo de evitar a desgraça, dissolvendo os amotinados. O povo havia sido iludido, acreditando no que não devia acreditar. E elogiaram a energia do usineiro (REGO, 2010, p. 233-236, grifos nosso).
Ellul (1964) enfatiza que a técnica não adora e nem respeita nada, pois o seu papel nada mais é que eliminar aquilo que não é essencial e através da racionalidade transformar tudo em um meio. A técnica: a) dessacraliza ao utilizar provas e a utilidade, ao invés da razão e de livros para argumentar que o mistério não existe; b) apossa-se do ser humano e o escraviza; c) nega o mistério a priori. O misterioso é aquilo que ainda não foi tecnificado (ELLUL, 1964).
No nível das atividades específicas, a tecnologia determina os fins, de maneira que ela enfatiza objetivos, cria, aniquila e ignora outros. Na sociedade industrial o trabalho produtivo é uma meta valorizada, mas o culto a Deus e a dedicação à arte não são. Isso nos mostra como a tecnologia não é neutra diante de um determinado panorama cultural (CUPANI, 2013).
Esta categoria possibilitou mergulhar nas implicações culturais, sociais, econômicas que a tecnologia pode ocasionar em determinada sociedade, que tem suas relações singulares e seus ritos e crenças. Ao olharmos para o passado, encontraremos impactos dessa característica em todos os momentos históricos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O livro Usina, apesar de reconhecidamente não ter sido escrito para fins didáticos, apresenta diversas possibilidades para uma abordagem das interações CTS no ensino de ciências da natureza. Identificamos que a obra pode auxiliar na problematização do mito da visão salvacionista da ciência e da tecnologia, permitindo trabalhar as visões extremas sobre o desenvolvimento científico e tecnológico, isto é, as visões otimistas e pessimistas, podendo essas visões serem denominadas de tecnofilia e tecnofobia respectivamente. O debate sobre os mitos do determinismo tecnológico e da tecnocracia pode igualmente ser potencializado com a leitura da obra, assim como aquelas reflexões acerca da relação entre cultura e tecnologia.
Desse modo, podemos dizer que o livro Usina possibilita a abordagem de conteúdos relacionados às interações CTS, valorizando inclusive a dimensão tecnológica, nem sempre privilegiada nas discussões de caráter CTS no ensino de ciências da natureza.
Cumpre registrar que o contexto e as personagens presentes na obra de ficção Usina, somados à sua potencialidade identificada para discutir as interações CTS, podem ser considerados para enriquecer uma abordagem no ensino de ciências da natureza que contemple a aproximação entre literatura, a discussão das interações CTS e as questões étnico-raciais. Em suma, uma das recomendações derivadas da pesquisa é realização de um exame sistematizado do livro Usina no que diz respeito à sua potencialidade para tratar de questões étnico-raciais no ensino de ciências da natureza. No cenário brasileiro, a Lei 10.639 (BRASIL, 2003, p. 1) institui como obrigatório o “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Documentos recentes dirigidos à formação de professores no Brasil também contemplam a necessidade de os cursos de licenciaturas tratarem das diversidades étnico-racial e da cultura afro-brasileira e africana (BRASIL, 2015). E ainda que não tenha se constituído como objeto da nossa análise as relações entre questões étnico-raciais e o ensino de ciências da natureza, localizaram-se indícios de que o livro Usina pode ser um valioso objeto de estudo neste sentido.
Fortalecer a hipótese de trabalho de que o livro Usina possa ser explorado de modo a favorecer o estudo de questões étnico-raciais no ensino de ciências da natureza também é um modo de reforçar o seu potencial para discutir as interações CTS, uma vez que se constitui como uma das características da abordagem destas interações no ensino de ciências da natureza o tratamento de temas que não se encerram em uma única área do conhecimento (NASCIMENTO; LINSINGEN, 2006). Assim, o estudo relativo às questões étnico-raciais pode envolver além de componentes curriculares como história, literatura e educação artística aquelas ligadas à área de ciências da natureza (Biologia, Física e Química). Particularmente, pode-se citar como exemplo a componente curricular Química. Ao longo do livro se menciona vários processos de uma usina de açúcar que se articulam com conteúdos químicos, tais como a redução de impurezas no caldo de cana que envolve coagulação, floculação e precipitação de impurezas.
Enfim, o livro Usina além de possibilitar uma abordagem das interações CTS no ensino de ciências da natureza, pode colaborar para uma aproximação entre as culturas científica e humanística e, por conseguinte, à formação cultural mais ampla de nossos estudantes.