INTRODUÇÃO
Museus e centros de ciência são lugares em que a cultura é recontextualizada, os conhecimentos científicos são compartilhados e os saberes são refletidos e socializados, sendo amplamente reconhecidos pelo seu potencial educacional e como espaços de educação não formal (GOMES; CAZELLI, 2016). Esses espaços científico-culturais, em sua interface direta com o público, são considerados instituições com objetivos variados dentro das temáticas de educação, lazer, informação e inclusão social. Nesse sentido, as exposições podem ser consideradas como elementos fundamentais da relação entre museus e sociedade (CHELINI; LOPES, 2008), uma vez que, a partir delas, os públicos podem vivenciar as experiências propostas pela instituição e há oportunidades para trocas culturais.
Para Wagensberg (2000), a exposição deve ser estimulante aos visitantes e isso pode ocorrer por meio da interatividade, conceito que o autor define a partir da categorização em três níveis, que podem ou não ocorrer de forma simultânea: hands on (manual), minds on (mental) e hearts on (cultural). A interatividade manual acontece quando o visitante manipula modelos ou objetos que lhe permitem entender o funcionamento de processos e fenômenos científicos, visando, especialmente, a compreensão do método científico a vivência da experimentação científica. A interatividade mental está presente no estímulo à reflexão a partir de perguntas e desafios, na proposta de diálogo entre diferentes perspectivas que desafiem o visitante do ponto de vista cognitivo e no estímulo a uma postura crítica. Já a interatividade cultural está presente quando a exposição leva em conta a dimensão cultural e afetiva, as identidades locais nas quais o ambiente se insere e as condições socioculturais que circundam o museu.
Cury (2005) destaca que, a partir das diferentes interações, o público se apropria do modelo proposto pelo museu, reelabora e recria as mensagens na forma de um novo discurso. Assim, nos museus e centros de ciências, as pessoas têm a oportunidade de se informar e se engajar com temas de ciência e tecnologia e, para isso, mobilizam, além de seus conhecimentos prévios de diversas áreas, referências culturais e históricos e experiências do cotidiano, construindo a sua própria narrativa e discurso sobre a exposição.
Nesse sentido, alguns autores dedicam-se a estudar a aprendizagem em museus de ciência, por considerar esses espaços como locais em que há aprendizagem por livre escolha (free-choice learning, em inglês), isto é, “a aprendizagem que se dá quando os indivíduos têm escolha e controle sobre o que, onde, quando e como eles aprendem” (FALK; STORKSDIECK, 2005, p.118, tradução nossa). Dessa forma, a aprendizagem ocorre a partir da vontade e do interesse do público e depende, também, de condições socioculturais, da cultura institucional, das interações sociais, dentre outros fatores (FALK; DIERKING, 2000; MARANDINO, 2007; BELL et al., 2009; ROWE; O’BRIEN, 2015). Outros estudos indicam também que exposições e aparatos que encorajam a interação social, baseados no conhecimento e na experiência prévia dos visitantes e que respondam aos interesses e motivações desse público, têm maior potencial de possibilitar uma experiência significativa e reformulação conceitual (HEIN, 1998; STOCKLMAYER; GILBERT, 2002; FALK; ADELMAN, 2003; FALK; STORKSDIECK, 2005).
Para Rowe e O’Brien (2015), nas últimas três décadas, houve um crescimento dos estudos de público em museus, o que permitiu novos entendimentos sobre a experiência museal dos visitantes, bem como informações importantes sobre suas expectativas, preferências e interesses. Rowe e O’Brien (2015) discutem, ainda, que as pesquisas em aprendizagem por livre escolha tiveram mudanças significativas nesse período, passando de um paradigma construtivista - baseado em noções de aprendizagem como atividade individualista de construção sobre conhecimentos prévios e motivada pela experiência em eventos pontuais - para um paradigma sociocultural - que compreende a aprendizagem como uma atividade distribuída e contextualizada, envolvendo agentes múltiplos, internalizando ferramentas culturais e cognitivas como parte da participação em atividades socialmente significativas.
Na perspectiva sociocultural, Falk e Dierking (2000) defendem o Modelo Contextual de Aprendizagem baseado na ideia de aprendizado por livre escolha, que propõe que:
Toda aprendizagem é situada em uma série de contextos. Em outras palavras, aprendizagem não é somente uma experiência abstrata que pode ser isolada em um tubo de ensaio ou em um laboratório, mas sim, uma experiência orgânica, integrada, que acontece no mundo real. Nós [os autores] argumentamos que a aprendizagem é um produto de milhões de anos de evolução, uma adaptação que permite o diálogo contínuo entre o indivíduo e o mundo físico e sociocultural em que vive (FALK; DIERKING, 2000, p. 10).
Dessa maneira, os autores enfatizam que a aprendizagem, em ambientes não formais de educação, está situada e depende de contextos pessoais, socioculturais e físicos. Sobre essa linha de argumentação, Bizerra (2009) explica que:
Ao considerar que o processo de aprendizagem emerge durante a interação entre indivíduos (atuando em um contexto social) e os mediadores (incluindo ferramentas, conversações, estruturas de atividade, signos e sistemas simbólicos), a abordagem sociocultural vem ao encontro dos pesquisadores que procuram analisar a aprendizagem como processo estabelecido no meio social (BIZERRA, 2009, p. 45).
Com isso, a concepção de aprendizagem “deixa de ser um processo exclusivamente de construção individual e passa a ser uma construção de significado a partir de mediações estabelecidas” (BIZERRA, 2009, p. 41), entendimento que leva muitos autores a considerarem o processo de aprendizagem em museus diferenciado de outros contextos educacionais, principalmente, por causa dos elementos que constituem. Falk e Storksdieck (2005b, p. 120, tradução nossa) argumentam que:
[...] a aprendizagem funcionalmente difere de acordo com as condições em que ela ocorre. Assim sendo, a aprendizagem em museus é diferente da aprendizagem em qualquer outro ambiente pela virtude da natureza única do contexto do museu.
Como mencionado anteriormente, no cenário internacional, a pesquisa sobre o aprendizado em espaços não formais de ciência tem aumentado, com expansão dos referenciais teóricos e metodologias utilizados (ROWE; BACHMAN, 2012). No entanto, no Brasil e em outros países da América Latina, as iniciativas que buscam compreender o aprendizado em espaços não formais de ciência ainda são menos frequentes. Tais pesquisas são essenciais para compreender como esses espaços podem contribuir para a aprendizagem por livre escolha dos visitantes, em aspectos tais como a compreensão de quais os fatores despertam (ou não) o interesse e a motivação dos públicos e possibilitam (ou não) que façam conexões com a sua vida cotidiana, seu contexto sociocultural e suas experiências prévias. Dessa forma, é possível entender seus possíveis impactos e dar subsídios para aprimorar suas atividades e atendimento dos diversos tipos de público. Este estudo exploratório propõe, por meio de uma abordagem qualitativa, compreender a experiência de visitantes adolescentes em espaços museais de ciência, por meio do seu olhar em uma visita ao museu fora do contexto escolar.
No Brasil, em enquete sobre a percepção pública da ciência e tecnologia de 2015 mostra que 22% dos jovens de 16 e 17 anos afirmaram ter visitado um museu de ciência nos 12 meses anteriores; na faixa etária acima, de 18 a 24, o percentual é ligeiramente inferior (19%) (MOREIRA et al, 2015). Embora os números variem de país a país e de acordo com cada museu, uma regra geral que tem sobressaído em diversos museus da América Latina é que os adolescentes não usufruem dos museus de ciência em seus momentos de lazer, em visitas espontâneas. Este foi o fator motivador que levou pesquisadores e educadores de oitos museus de ciência da América Latina, provenientes de quatro países da região, a unirem esforços para consolidar o projeto de pesquisa que este estudo está inserido.1
Curiosamente, o Museu da Vida, museu em estudo neste artigo, possui características diferentes no que se refere à visitação de adolescentes. De fato, o grupo de visitantes escolares de 13 a 18 anos respondeu por quase metade dos visitantes entre os anos de 2009 e 2013. No entanto, observamos um crescimento das visitas livres nessa faixa etária: eram 8% em 2005, passando para 13% em 2009 e atingindo 30% em 2013. (MANO et al, 2015)
Nossa expectativa é que este estudo forneça subsídios para compreender como se dá a visitação de adolescentes a museus de ciência, destacando, em especial: o que os adolescentes mais fazem nas visitas; sobre o que eles conversam durante a visita; como eles interagem entre si, com os mediadores e com os módulos expositivos do museu; o que lhes chama atenção e desperta interesse/motivação; quais conexões fazem com sua vida cotidiana, com seu contexto sociocultural e com suas experiências prévias. Também almejamos contribuir para o aprimoramento das atividades oferecidas por museus de ciência, de forma a torná-los mais relevantes socialmente para esse público.
METODOLOGIA
Arcabouço teórico
Este estudo, de caráter exploratório e qualitativo, tem como objetivo compreender a experiência museal vivenciada por adolescentes ao visitar uma exposição de ciências com um grupo de amigos, em uma situação não relacionada a uma visita escolar.2
Nossa proposta de análise é uma adaptação do modelo proposto pelo grupo de pesquisa canadense GREM (do francês, Groupe de recherche sur l’éducation et les musées), que reelabora para o contexto dos museus o modelo sistêmico proposto em 1983 por Renald Legendre, conhecido como triângulo pedagógico (ALLARD et al, 1998). Este modelo é útil para analisar a forma como as experiências são organizadas no museu, uma vez que atua nas relações entre três atores fundamentais: os artefatos (módulos expositivos) /atores do museu (mediadores) /visitantes (Figura 1) e tem sido usado em vários estudos (cf. ALLARD et al, 1998; SOTO et al, 2009; SOTO et al, 2013).
Segundo este modelo, considera-se que a relação entre os temas e os visitantes são relações de apropriação que podem ocorrer em diferentes dimensões. As interações entre os artefatos/temas e os mediadores/atores do museu seriam relações de transposição, que ocorrem, por exemplo, na concepção das experiências e durante a visita, por meio da mediação oferecida pelos mediadores que abordam os conteúdos propostos. Relações entre visitantes e mediadores configuram também relações de apoio, isto é, o suporte da equipe de mediação no processo da visita por meio de aspectos não relacionados diretamente com os conteúdos, mas, sim, com a localização, horários, trajetos percorridos ou outros aspectos operativos do museu que também fazem parte da experiência museal.
Essa interpretação da dimensão educativa dos museus proposta pelo grupo GREM (ALLARD et al, 1998) pode auxiliar a estabelecer categorias de análise das experiências de visita a partir do que se pode caracterizar como as relações que ocorrem entre o museu e seus visitantes. Dessa forma, é possível observar por meio das conversas e interações ocorridas durante uma visita quais são as características das relações de transposição, apropriação e suporte em função dos diálogos, gestos e expressões dos jovens, seja em relação direta com os objetos e conteúdos do museu (apropriação), no diálogo com os mediadores, o qual pode se dar em torno do próprio conteúdo (transposição) ou a aspectos operativos da visita (suporte).
Dessa forma, o modelo do GREM é utilizado neste estudo como uma ferramenta de análise por meio da qual se caracteriza a experiência museal. Isto ocorre em diálogo com as perspectivas socioculturais antes mencionadas, que compreendem o aprendizado como um processo de construção de sentido mediado pela cultura, o que implica reconhecer que a experiência de visita analisada deve ser interpretada em relação com o contexto social em que ocorre e como parte de um processo dinâmico que não inicia nem termina no museu, mas, sim, como uma trajetória em que experiências prévias atuam sobre o processo de produção de sentido sobre os conteúdos do museu - e estas, por sua vez - vão ter continuidade em experiências futuras em outros espaços e momentos.
CARACTERIZAÇÃO DAS VISITAS E DOS SUJEITOS DA PESQUISA
Neste artigo, apresentamos a análise da visita de cinco grupos de adolescentes ao Museu da Vida, museu interativo da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.3 Os grupos foram formados previamente por meio de voluntários que aceitaram ao convite de uma profissional contratada pelas pesquisadoras para participarem de uma visita ao museu - que cumprissem os requisitos de serem estudantes de escolas públicas do Rio de Janeiro, na faixa etária entre 14 e 17 anos, e reunidos em grupos de três a quatro estudantes por visita. A exposição analisada neste estudo foi escolhida pelos próprios adolescentes do primeiro grupo visitante: quando chegaram ao Museu da Vida, foi-lhes apresentado o museu e seus distintos espaços de visitação. Os jovens optaram pela exposição “Passado e Presente - ciência, saúde e vida pública”, no emblemático Castelo Mourisco da Fiocruz, construído no início do século 20. A exposição apresenta objetos, fotos, charges e documentos históricos que mostram o contexto de construção do Castelo marcado por diversos episódios, como a Revolta da Vacina, e personagens simbólicos como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e a coleção de insetos do entomólogo Ângelo Moreira da Costa Lima. A visita durou, em média, aproximadamente 40 minutos.
Um visitante de cada um dos grupos foi convidado a colocar uma câmera GoPro na cabeça - que possui design compacto, sistema avançado de estabilização de imagem, fácil portabilidade e leveza -, que o acompanhou durante a visita, com registro por meio de áudio e vídeo sob a perspectiva do visitante. Os visitantes preencheram um questionário ao final da visita com seus dados de perfil, interesses e atitudes com relação à ciência e à tecnologia.
Em um total de cinco grupos de adolescentes, 16 sujeitos participaram da pesquisa, sendo 10 do sexo feminino e seis do sexo masculino, de idade entre 14 e 17 anos. Todos os jovens pertenciam a escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro e percorreram o museu como uma visita de lazer. Os visitantes residiam na cidade do Rio de Janeiro, nos bairros Botafogo, Engenho Novo, Glória, Higienópolis, Humaitá, Jacaré, Jacarepaguá, Rocinha e Sepetiba.
A visita ocorreu tal como seria em uma visita espontânea ao museu, ou seja, foi dado o mesmo tratamento que um grupo de adolescentes teria se chegasse em uma visita livre ao museu. Com isto, o Grupo 1 realizou a visita simultaneamente a um grupo maior de crianças na faixa de oito anos, acompanhado por um mediador. O Grupo 2 realizou a visita isoladamente na companhia de três mediadores. O Grupo 3 realizou a visita acompanhado por um grupo maior de visitantes, que incluía famílias, e por um mediador. O Grupo 4 realizou a visita isoladamente na companhia de um mediador. O Grupo 5 realizou a visita junto a um grupo maior e na companhia de dois mediadores.
CATEGORIAS DE ANÁLISE
A análise do material audiovisual foi realizada no software Dedoose 8.0.23, que permite a codificação de vídeos. Para a codificação dos vídeos, foi utilizado um protocolo de análise de conteúdo desenvolvido pela rede de pesquisadores envolvidos no projeto, tendo como ponto de partida o modelo GREM anteriormente mencionado, e que associou a construção de códigos top-bottom, também chamado de “axial coding” (a partir do tripé de análise concebido neste estudo, a saber, as relações visitantes/visitantes, visitantes/módulo expositivo, visitantes/mediadores), o que permite caracterizar as relações de apropriação, transposição e suporte, e bottom-top (“in vivo coding”, criando códigos a partir da própria análise do material). As categorias de análise foram discutidas e revistas durante o processo de codificação, validadas por seis pesquisadoras-codificadoras.
O protocolo de análise está dividido em cinco dimensões: Conversações, Interação com o módulo expositivo, Fotos, Mudança e Emoção. A primeira dimensão comporta um número maior de subcategorias uma vez que a maior parte da interação nas visitas é marcada/registrada por conversas entre os visitantes e/ou os visitantes e mediadores do museu, sendo, portanto, o principal eixo de análise do estudo. A dimensão “Conversações” foi identificada a partir de como as conversas dos visitantes ocorrem e de suas temáticas, como explica o quadro 1.
A segunda dimensão, “Interação com o módulo expositivo”, possibilita a caracterização das interações dos visitantes com os aparatos, como demonstra o quadro 2.
A terceira dimensão, “Fotos”, emergiu como categoria de análise após identificarmos o uso intensivo dos celulares durante a visita como forma de registro e demonstração de interesse por meio dos visitantes, cujas subcategorias estão demonstradas no quadro 3.
As dimensões “Mudança” e “Emoção” são propostas de categorização desafiadoras. “Mudança” diz respeito a quando o visitante manifesta verbalmente que está descobrindo algo que não sabia, entrando em contato com uma opinião diferente. Já a dimensão “Emoção” é demarcada quando o visitante expressa verbalmente algum sentimento durante a visita, demonstradas no quadro 4.
RESULTADOS
Conversas e interações durante a visita
Neste artigo, optamos por fazer uma análise qualitativa dos resultados. No entanto, para situar o leitor em termos de frequência de presença de códigos, a seguir apresentamos alguns números. No total, foram 707 aplicações de códigos, sendo que mais de um código pode ser aplicado a um mesmo trecho de vídeo. A interação dos visitantes entre si, com os mediadores e com os aparatos expositivos aconteceu intensamente ao longo de toda a visita à exposição do Castelo Mourisco. Os códigos de análise mais presentes durante os trechos dos vídeos analisados foram “interação visitante-visitante” (presente 125 vezes), “interação visitante-mediador” (88) e “interação visitante-módulo expositivo” (70).
Conversas que traziam percepções sobre determinado tema científico também foram constantes ao longo da visita (62 vezes), momentos em que os visitantes discutiram temas como questões ambientais, aquecimento global, arquitetura do castelo, curiosidades sobre os insetos, vacinação e aspectos específicos relacionados aos objetos históricos apresentados pela exposição. Tais conversas estavam relacionadas à temática da exposição, mas, como veremos a seguir, foram também além das propostas expositivas, como é o caso das conversas sobre questões ambientais.
Conversas que traziam percepções sobre cientistas, sejam relacionadas à vida pessoal e aparência ou à atuação profissional, estiveram presentes em cerca de 30 trechos. Conversas que traziam associações com experiências e vivências anteriores dos visitantes também estiveram presentes em mais de 30 trechos. Associações com experiências e vivências anteriores aconteceram com mais frequência durante as conversas dos visitantes entre si do que em diálogo com os mediadores ou durante a interação com objetos. Conversas sobre perspectivas profissionais futuras dos visitantes aconteceram em apenas um dos grupos e em diálogo com os mediadores do museu.
Como os visitantes interagem com os objetos?
Os objetos que geraram maior interesse foram a pistola de vacinação, a máscara mortuária de Carlos Chagas, as medalhas de Carlos Chagas, um coração afetado pela doença de Chagas, as coleções de insetos da Sala Costa Lima e os documentos e cartas, como será mais bem detalhado a seguir. Todos esses objetos estavam expostos dentro de vitrines e não permitiam manipulação. A apreciação e o interesse dos visitantes pelos objetos também aparecem na intensidade com que fotografam os objetos durante a visitação, como será desenvolvido mais adiante, neste artigo.
Pistola de vacinação
Ao entrar na Sala Oswaldo Cruz, um dos primeiros objetos expostos é uma pistola de vacinação, instrumento usado para aplicar vacinas em meados do século 20. O objeto gerou, nos visitantes, reações fortes, como medo e surpresa. Em algumas falas, eles expressam uma mudança de percepção com relação à vacinação, uma vez que não compreendiam o porquê da vacina ter pouca aceitação por parte da população e identificam o objeto como uma possibilidade de repulsa do ato de vacinar, como pode ser visto nas transcrições destacadas no Quadro 5. Visitantes associam ainda o objeto a uma furadeira e à “pistola do mal de Satanás”.
Documentos e cartas
A exposição visitada possui duas salas onde há diversos documentos e cartas, uma referente à história do cientista Carlos Chagas e a outra referente à história do cientista Oswaldo Cruz. Nesses espaços são encontrados documentos como folhetos sobre pesquisas de saúde, trabalhos publicados pelos cientistas, cadernos de aula e de anotações escritos por eles, manuscritos de trabalhos, nomeações, cartões, instruções de vacinação e uso do soro contra peste bubônica, moldes de xilogravura, revistas sobre a vida dos cientistas, desenhos de plantas e insetos estudados por eles, relatórios, teses, provas de cadeira, passaporte e registros de movimentações de pacientes. Além desses documentos existem cartas que foram enviadas a eles ou por eles. Dessas, algumas eram pessoais, como as cartas de Oswaldo Cruz para Miloca, sua esposa, e outras oficiais, como a carta da Sociedade Brasileira de Ciências informando a eleição de Carlos Chagas como membro dessa Instituição em 25 de agosto de 1916. Na sala de Carlos Chagas, há nove cartas e 26 documentos e na sala de Oswaldo Cruz, seis cartas e 30 documentos. Ao observarem os documentos e cartas expostos nas vitrines da exposição, chamou a atenção dos visitantes a caligrafia usada na redação dos textos e a forma como foram escritos, o que levou aos visitantes investigarem junto ao mediador qual foi o instrumento usado na escrita dos textos, como pode ser visto em alguns dos exemplos no Quadro 6. Há ainda uma fala que faz associação com questões da vida pessoal do visitante, quando se refere à caligrafia como semelhante à caligrafia de sua mãe.
Máscara mortuária
A máscara mortuária de Carlos Chagas gerou reações de surpresa e nojo por parte dos visitantes. Os visitantes expuseram, em alguns momentos, dúvidas sobre a forma de confecção do objeto - se era um molde ou se era a própria cabeça do cientista exposta -, assim como se restavam resquícios reais do cientista presos ao objeto. A máscara foi um objeto intensamente fotografado pelos visitantes.
Coração com doença de Chagas
Um coração retirado de um paciente com doença de Chagas foi um dos objetos que mais gerou conversas entre os visitantes, surpresos pelo seu tamanho e consistência. Associaram, ainda, a vivências pessoais e tiveram curiosidade sobre o doador e o processo de conservação do objeto para torná-lo um objeto expositivo.
Microscópio
O microscópio gerou interesse e apreciação por parte dos visitantes, que demonstraram vontade de manipular o objeto. Em um dos grupos, os visitantes fingem tentar abrir a vitrine que circunda o objeto para ter acesso a ele e, em seguida, saem do local rindo.
Medalhas de Carlos Chagas
Visitantes se mostraram interessados na identificação da origem das medalhas concedidas a Carlos Chagas e expressaram admiração pelo cientista pelas conquistas, como pode ser visto na fala “Olha, esse homem era fera! ” E nos demais exemplos descritos no quadro 10.
COMO OS VISITANTES INTERAGEM COM O MEDIADOR E A MEDIAÇÃO?
Diretrizes do mediador sobre comportamento durante a visita
Ao longo da visita, os mediadores deram orientações de comportamento aos visitantes. Algumas orientações foram mais restritivas e limitaram as ações do visitante, enquanto outras autorizaram o visitante a escolher seu próprio percurso ou se sentir mais à vontade para fazer o que desejasse, como no quadro 11.
Identificamos críticas ao mediador quando assinalava alguma ação restritiva ao visitante, como no momento em que pede que os visitantes continuem o trajeto da visita em vez de pararem para fotografar o Castelo, como nos exemplos a seguir:
Conversas sobre a mediação
Em alguns grupos, os visitantes comentaram entre si sobre a forma de atuação dos mediadores, como observadores da mediação. Muitos comentários trazem críticas à ação do mediador ou relatam alguma fala ou atitude que acharam inadequada para seu perfil de visitante. No G1, os adolescentes fizeram a visita acompanhados de um grupo de crianças na faixa de oito anos e, em alguns momentos, relataram desinteresse pelo mediador quando se direcionava às crianças menores, como observado nas falas a seguir:
Em diferentes contextos, o mesmo mediador parece atuar de forma distinta. Enquanto, em alguns grupos, assume a figura de um explicador com maior distanciamento às particularidades dos visitantes, em outros, aproxima-se dos visitantes, sendo mais requisitado para responder dúvidas e demonstrando maior afinidade com o grupo. No G4, por exemplo, em determinado momento, o mediador demonstra explicitamente identidade com o visitante, como pode ser visto na fala abaixo, em que o mediador expressa ter interesse semelhante ao visitante:
Diálogos com o mediador
A relação com o mediador acontece de formas variadas. Há momentos em que os visitantes apenas escutam passivamente uma explicação. Em outros, reagem à fala do mediador. E há momentos que o mediador é acionado a responder às questões trazidas pelos visitantes, como nos exemplos a seguir.
COMO OS VISITANTES INTERAGEM ENTRE SI?
Durante as visitas ao Castelo, os visitantes interagiram entre si a todo o momento. Conversaram sobre temas motivados pela exposição e travaram debates que foram além do conteúdo propriamente dito proposto pela visita. Diversas conversas abordaram questões não relacionadas ao conteúdo da exposição, como os programas que fizeram no fim de semana, relacionamentos pessoais e outros assuntos referentes às suas vidas cotidianas. Em um dos grupos, dois dos três adolescentes eram um casal de namorados e tiveram uma discussão de relacionamento durante a visitação, que durou cerca de dez minutos - tempo no qual acompanharam o mediador pelos espaços do Castelo, mas se mantiveram alheios às temáticas da exposição.
Nos exemplos abaixo, a partir do tema sobre a antiga localização da Baía de Guanabara com relação ao Castelo, visitantes falam sobre mudanças ambientais, aquecimento global etc.
Percepções sobre cientistas
A exposição do Castelo explora diversos aspectos relacionados à atuação profissional de Carlos Chagas e Oswaldo Cruz, com imagens, documentos e objetos de acervo pessoal de familiares dos pesquisadores. Essa abordagem se reflete nas falas dos visitantes. Há falas que destacam curiosidades sobre a aparência, a personalidade e a vida pessoal dos cientistas nas imagens, que retratam um olhar estereotipado sobre a imagem do cientista, como a presença de barba e bigode, a referência ao cientista maluco, inteligente, ao cabelo despenteado e ao uso de óculos e jaleco. Além disso, em alguns momentos, os visitantes identificam que há uma homogeneidade na figura do cientista, com falas como “todo mundo é igual”, “os caras parecem tudo da mesma família” e “todos eles têm o mesmo bigode”. Visitantes fazem referência ainda a aspectos que humanizam o cientista, como o fato de ter figurinhas e a ter tido infância como qualquer outra pessoa.
O mediador também teve um papel no estímulo à conversa sobre este tema, como mostram os dois exemplos no Quadro 18.
ASSOCIAÇÃO COM VIVÊNCIAS E CONHECIMENTOS ANTERIORES
Identificamos diversos momentos em que o visitante mobiliza, usa, questiona seus próprios conhecimentos, crenças, rituais, modos de vida, na experiência museal. Essas referências apareceram durante a visita associadas às temáticas da exposição com relação a vivências pessoais, lugares conhecidos, conhecimentos aprendidos na escola e referências culturais a filmes, séries, livros e personagens.
ESTÍMULO À MUDANÇA DE PERCEPÇÃO
Em conversas sobre vacinação foi onde mais identificamos momentos em que os visitantes declaram uma mudança de percepção sobre determinado assunto. Após tomarem conhecimento de como era realizado o processo de vacinação, visitantes se mostram surpresos e encaram a recepção da população à vacinação de forma distinta de como a viam antes, como pode ser visto nas falas destacadas a seguir. Há ainda momentos em que os visitantes declaram descobrir pela primeira vez um objeto, como a caneta tinteiro, e declaram também discordar de um conhecimento trazido pelo mediador, ao tratar do aterramento da Baía de Guanabara.
DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso estudo, observamos como uma exposição científica pode suscitar motivação, interesse e conexões com a vida cotidiana, particular e experiências prévias, fatores fundamentais para a promoção da aprendizagem por livre escolha em espaços não formais de educação, especialmente os museus de ciências, como defendido por Falk e Storksdieck (2005). Ao retomarmos o modelo proposto pelo grupo de pesquisa GREM do triângulo pedagógico que organiza as experiências que ocorrem em um museu (ALLARD et al, 1998), observamos que os adolescentes, ao longo de toda a visita à exposição do Castelo Mourisco, atuam intensamente nas relações entre três atores fundamentais desse modelo: os artefatos (módulos expositivos), os atores do museu (mediadores) e os visitantes. Esse dado, associado à análise qualitativa de trechos específicos das visitas dos cinco grupos, nos indica que, quando os adolescentes vão a um museu, eles vivenciam diversas situações e experiências que podem tornar esse espaço de aprendizagem não formal interessante, excitante e motivador, e, consequentemente, oferecer uma rica oportunidade de aprendizagem e discussão sobre a ciência e temáticas que a tangenciam.
Ainda pensando na análise da experiência educativa de museu proposta pelo grupo GREM, observamos que na experiência prevalecem as relações de apropriação, ou seja, a interpretação direta dos visitantes sobre o conteúdo proposto pelo museu, sobre as relações de transposição expressas nas explicações e conversas que os mediadores estimulam durante a visita. Por outro lado, as relações de suporte, menos presentes, centram-se na orientação espacial sobre o recorrido no museu e em normas esperadas de comportamento, que geraram percepções negativas por parte dos visitantes sobre o papel dos mediadores.
É preciso destacar a importância que tem a relação entre pares (no caso, outros adolescentes) no processo de apropriação neste grupo de jovens: é por meio das conversas com seus companheiros que são gerados novas relações de conhecimento nas quais emergem reflexões de diversas natureza, em alguns casos associadas a aspectos sociais, históricos e/ou ambientais e, em outros casos, ao conhecimento disciplinar das ciências da saúde, o que reflete a natureza social da experiência de visita ao museu, bem como a transversalidade disciplinar das reflexões que suscita em seus visitantes. Os jovens expressam poder de autonomia em seu processo de aprendizagem, gerando relações com seus conhecimentos prévios, com o contexto familiar, escolar e mediático, bem como novas compreensões associadas aos conteúdos expositivos propostos. Também é necessário destacar como as relações de transposição refletidas nas conversas que ocorrem com os mediadores sobre os conteúdos expositivos contribuem para a contextualização do conhecimento e enfatizam aspectos sócio-históricos e culturais de tais conteúdos, em alguns casos associada a interesses particulares do mediador por determinados aspectos como de gênero ou ambiental e, em outros, centra-se em aprofundar o conteúdo mais explicitamente proposto na exposição.
Ainda sobre o modelo GREM, observamos que a interação dos visitantes entre si e com os aparatos expositivos prevaleceu em relação à interação com os mediadores, sugerindo que os visitantes adolescentes podem preferir realizar a visitação de forma mais livre, sem o acompanhamento/supervisão integral de um adulto ou responsável.
Com relação aos módulos expositivos, é interessante observar que a exposição analisada neste estudo não se insere em uma concepção de interatividade manual, conforme caracterizado por Wagensberg (2000). Ao contrário, é uma exposição de caráter contemplativo, fortemente baseada em objetos e documentos históricos, cartas e fotos, com painéis, mas que foi capaz de atrair a atenção dos jovens, gerar conversações, reflexões e afetividade, elementos que são categorizados pelo autor como parte da interatividade minds-on e hearts-on.
Sobre esse aspecto é importante destacar que os objetos da exposição que mais chamaram a atenção dos visitantes - Pistola de vacinação, documentos e cartas, máscara mortuária, coração com doença de Chagas, Microscópio e Medalhas de Carlos Chagas - foram aqueles que despertaram interesse, motivação, curiosidade e afetividade nos adolescentes e permitiram que, de alguma forma, eles fizessem uma associação com o seu cotidiano e a sua vida particular, com o seu contexto sociocultural e com experiências prévias. Tais elementos são essenciais para a aprendizagem por livre-escolha em ambientes não formais de aprendizagem, como defendido por Falk e Dierking (2000). Nas conversas sobre a pistola de vacinação, por exemplo, há a construção de significados a partir de mediações estabelecidas com os objetos, uma vez que os visitantes conseguem se imaginar sendo vacinados com esse equipamento, se colocam no lugar das pessoas da época e estabelecem diálogos sobre essa experiência, demonstrando reflexão e entendimento a respeito dos motivos que levaram à Revolta da Vacina.
Outro aspecto que sobressai na análise dos vídeos é que os jovens, a partir da abordagem histórica da exposição, fizeram, sistematicamente, associações com questões contemporâneas - algumas vezes, induzidas pelos mediadores, mas, outras vezes, de forma espontânea. Identificamos, ainda, diversos momentos em que o visitante mobiliza, usa, questiona seus próprios conhecimentos, crenças, rituais, modos de vida, na experiência museal. Essas referências apareceram durante a visita associadas às temáticas da exposição com relação a vivências pessoais, lugares conhecidos, conhecimentos aprendidos na escola e referências culturais a filmes, séries, livros e personagens (“Vida de Insetos”; “Harry Potter”; a série “Silent Hill”; “Manual dos Jovens Estressados, mas muito inteligentes! ”, “A menina que roubava livros”, etc.). Por exemplo, os visitantes mencionaram membros da família e memórias afetivas ao observar alguns objetos específicos da exposição, como a avó que faleceu com o coração grande.
Além disso, a construção de significados também acontece com objetos que despertaram interesse e motivação por serem objetos reais, como o coração e a máscara mortuária. A demonstração de interesse foi manifestada não somente pelas conversas travadas em torno das temáticas trazidas pela exposição, mas também por outras manifestações verbais. Observamos, também, que os visitantes fizeram uso constante do celular como forma de fotografar e registrar os objetos observados ao longo da visita, evidenciando interesse pelos aparatos.
Um aspecto desejável em uma visita a um museu é fomentar interações cognitivas e estimular questionamentos e reflexões sobre as temáticas abordadas pelas exposições, o que tem grande potencial para proporcionar a aprendizagem no contexto de educação não formal. Esse aspecto foi abordado no nosso modelo de análise pelo código “Mudanças”, uma vez que evidências de mudanças na forma de pensar ou agir dos públicos visitantes podem nos indicar um possível aprendizado. Sendo nosso estudo de caráter exploratório, embora tenhamos incluído este aspecto na nossa observação, sabíamos que este componente seria de mais difícil constatação, por causa da metodologia utilizada. Ainda assim, obtivemos evidências interessantes de que a exposição possui elementos que de fato estimulam a reflexão e a mudança de visão dos jovens, como exemplo, temos os trechos que os visitantes discutem o episódio histórico da Revolta da Vacina. Experiências como essa são, também, oportunidades importantes de estimular a reflexão sobre embates entre ciência e sociedade, convidando os visitantes a refletirem sobre o papel da ciência na sociedade e as questões culturais, econômicas, sociais, para citar apenas algumas, que estão associadas a aceitação ou rejeição de novidades científicas e tecnológicas.
Sendo os museus de ciência brasileiros fortemente baseados na mediação humana, nosso estudo contribui para a reflexão sobre o papel do mediador e como melhor preparar este profissional para receber os públicos, por exemplo, utilizando materiais obtidos neste estudo em capacitações de mediadores. O trabalho dos mediadores em museus envolve diversos níveis de diálogo: entre os visitantes e as exposições; entre as pessoas e o saber; entre a arte, a ciência, a história e a sociedade (GOMES; CAZELLI, 2016). Além de obtermos evidências sobre como a mediação está sendo feita na exposição do Castelo, a mediação foi inclusive tema das conversações entre os adolescentes, trazendo à tona o terceiro ator do triângulo pedagógico. Por um lado, ficou claro que o mediador foi, em vários momentos, chave para estimular conversas e interesses entre os adolescentes. Entretanto, por outro lado, também houve momentos em que sua atuação gerou sentimentos menos inspiradores entre os jovens. Embora seja compreensível a necessidade de os mediadores darem orientações de comportamento, em algumas ocasiões tais orientações implicaram também em uma redução na apreciação da experiência museal, por exemplo, quando não se permitiu tirar fotos. A associação de grupos de diferentes faixas etárias foi outro exemplo que reduziu a apreciação da experiência por parte dos jovens. Houve, inclusive, situações em que os visitantes comentaram entre si sobre a forma de atuação dos mediadores, relatando falas ou atitudes que acharam inadequadas para seu perfil de visitante. A relação com o mediador aconteceu de formas variadas. Houve momentos em que os visitantes apenas escutaram passivamente uma explicação. Em outros, reagiram à fala do mediador. E, ainda em outros momentos, levantaram questões para os mediadores e/ou estabeleceram uma conversação animada. Mais do que criticar este importante profissional que atua em museus de ciência, esperamos que nosso estudo ajude a refletir sobre a prática e a formação de mediadores em museus de ciência.
Somado a isso, esse dado também nos demonstra como os adolescentes estão refletindo não somente sobre a exposição e suas temáticas, mas também sobre outros fatores de todo o contexto da visita a um ambiente de aprendizagem não formal. Isso dialoga diretamente com a abordagem sociocultural da aprendizagem que considera que o processo de aprendizagem emerge durante a interação entre indivíduos (atuando em um contexto social) e os mediadores (incluindo ferramentas, conversações, estruturas de atividade, signos e sistemas simbólicos) (BIZERRA, 2009) e com os argumentos de Falk e Dierking (2000) que defendem que toda aprendizagem, que é uma experiência orgânica e integrada, é situada em uma série de contextos do meio sociocultural em que o indivíduo vive.