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Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

versão impressa ISSN 1415-2150versão On-line ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.22  Belo Horizonte  2020  Epub 22-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/1983-21172020210139 

Artigos

DIFERENÇAS NO DESENVOLVIMENTO SEXUAL: UM ESTUDO DE DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA EM UM HOSPITAL

DIFERENCIAS EN EL DESARROLLO SEXUAL: UN ESTUDIO DE DIVULGACIÓN DE LA CIENCIA EN UN HOSPITAL

DIFFERENCES IN SEXUAL DEVELOPMENT: A STUDY TO DISCLOSE SCIENCE IN A HOSPITAL

ANA FUKUII  *
http://orcid.org/0000-0001-8101-7880

BERENICE BILHARINHO DE MENDONÇAI   **
http://orcid.org/0000-0003-1762-1084

IUniversidade de São Paulo, Faculdade de Medicina. Departamento de Endocrinologia, São Paulo, SP - Brasil.


RESUMO:

Embora o aprendizado de ciências costume estar relacionado ao ambiente escolar, existem outras instituições que proporcionam acesso ao conhecimento científico, como os hospitais. Com base nesse pressuposto, realizou-se um estudo no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo para levantar as possibilidades da divulgação científica sobre um tema pouco conhecido, as diferenças no desenvolvimento sexual (DDS). Com o objetivo de descrever a apropriação do conhecimento pelos pacientes, foram utilizadas as categorias epistemológicas de Bachelard. Os resultados preliminares obtidos a partir de entrevistas semiestruturadas com pacientes indicados pelo corpo clínico mostram que o modelo epistemológico adotado contribui de duas maneiras para a pesquisa: ao auxiliar na elaboração de texto e figuras em folhetos, guias para pais e livros de divulgação da ciência; e ao descrever o processo de aprendizagem que ocorre no hospital como etapas distintas de aquisição do conhecimento científico.

Palavras-chave: Divulgação científica; Epistemologia da ciência; Diferenças do desenvolvimento sexual.

RESUMEN:

Aunque el aprendizaje de ciencias suele relacionarse con el ambiente escolar, hay otras instituciones que proporcionan acceso al conocimiento científico, como los hospitales. Basados en ese presupuesto, se realizó un estudio en el Hospital das Clínicas de la Faculdade de Medicina de São Paulo para levantar las posibilidades de la divulgación científica acerca de un tema poco conocido: las diferencias en el desarrollo sexual (DDS). Con el objetivo de describir la apropiación del conocimiento por los pacientes, se utilizaron las categorías epistemológicas de Bachelard. Los resultados preliminares obtenidos a partir de entrevistas semiestructuradas con pacientes indicados por el cuerpo médico indican que el modelo epistemológico adoptado contribuye de dos maneras a la investigación: al ayudar en la elaboración de texto y figuras en folletos, guías para padres y libros de divulgación de la ciencia; y al describir el proceso de aprendizaje que ocurre en el hospital como etapas distintas de adquisición del conocimiento científico.

Palabras clave: Divulgación científica; Epistemología de la ciencia; Diferencias del desarrollo sexual.

ABSTRACT:

Although science learning is usually related to the school environment, other institutions, such as hospitals, promote access to scientific knowledge. Based on this assumption, an study was carried out at the Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo to raise the possibilities of scientific divulgation about a little-known subject, the differences of sex development (DSD). Aiming to describe the appropriation of knowledge by patients, the Bachelard’s epistemological categories were applied. The preliminary results obtained from semi-structured interviews with patients indicated by the clinical staff show that the epistemological model adopted contributes to the research in two ways: when assisting in the formulation of text and pictures for folders, guides for parents and science divulgation books; and when describing the learning process that happens in the hospital as distinct steps of scientific knowledge acquisition.

Keywords: Scientific divulgation; Epistemology of science; Differences of sex development.

INTRODUÇÃO

Já existe uma série de pesquisas consolidadas na área de ensino de ciências que descrevem e explicam os conceitos espontâneos trazidos pelos alunos para a sala de aula a partir de suas observações do mundo que os cerca. Os estudos com essa abordagem iniciaram focando conceitos físicos, como a descrição dos movimento (VILLANI; PACCA; HOSOUME, 1985), luz e visão (GIRCOREANO; PACCA, 2001). A partir dos anos 2000, diferentes pesquisas investigaram as concepções espontâneas, abordando, por exemplo, o entendimento das fases da lua (IACHEL; LANGHI; SCALVI, 2008), as ideias das crianças sobre o sistema reprodutor (MENINO; CORREIA, 2001) e até mesmo o próprio conceito de ciência entre os alunos de licenciatura em Ciências da Natureza (FONSECA; DUSO, 2019).

Os resultados dessas pesquisas têm um ponto em comum: o entendimento de que os alunos, em qualquer idade, chegam à escola com suas interpretações e visões de mundo construídas a partir de suas vivências socioculturais. Muitas vezes, esse repertório é chamado de senso comum e é moldado por explicações que se organizam de acordo com a situação, sem nenhum rigor ou metodologia. Fazer com que os estudantes deixem de lado esse conhecimento inicial e passem a usar conceitos científicos para explicar os fenômenos naturais costuma ser um dos grandes desafios do ensino de ciências. Nesse sentido, a pesquisa na área passou do plano descritivo para o plano explicativo ao se apropriar de conceitos e saberes da psicologia, da didática e da epistemologia das ciências, fazendo com que a interação entre especialistas dessas áreas possibilitasse o surgimento de modelos explicativos sobre as dificuldades, resistências e ações que levavam a um aprendizado científico efetivo.

Uma síntese dessa abordagem é trazida por Pozo e Crespo (2009) quando descrevem um percurso investigativo interdisciplinar sobre as dificuldades e os desafios do ensino de ciências, com reflexões teóricas e práticas acerca do ensino em sala de aula. Os autores exploram duas abordagens complementares, a psicologia e a didática, para construir uma reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem baseado na ideia de construção do conhecimento, e não de uma simples aquisição de dados. A investigação efetuada pelos autores inicia com a exploração dos conteúdos e segue com a resolução de problemas pelo viés científico. Os conceitos espontâneos também são um tema debatido, contribuindo como uma forma de pensar em um modelo explicativo e de realizar intervenções transformadoras.

Outra maneira de analisar a construção do conhecimento científico fundamenta-se na ideia de modelos mentais, que exploram as analogias como uma transferência de conceitos científicos entre situações semelhantes. Essa abordagem tem sido aplicada para analisar, entre muitas possibilidades descritas na literatura, as concepções sobre luz (MOREIRA, 1996), os conceitos de magnetismo entre professores, engenheiros e eletricistas (BORGES, 1997) e a apresentação do campo elétrico em livros didáticos (MEGGIOLARO; SANTOS, 2020).

Essas formas de estudar os problemas de aprendizagem dos alunos transformaram o ensino em sala de aula. Em primeiro lugar, houve o entendimento de que aprender ciência é um processo cognitivo elaborado que vai além de um mero acúmulo de informações - o estudante precisa, também, de mudança de olhar em relação ao mundo que o cerca. Com isso, as estratégias educacionais foram organizadas para estimular o confronto de modelos explicativos e permitir que o aluno consiga acessar o conhecimento científico.

A essas abordagens teóricas acrescenta-se a dimensão epistemológica, que traz uma reflexão sobre como o pensamento científico se organiza, qual é a sua estrutura e quais são os seus pontos de apoio. Esse recorte fica mais claro no trabalho de Amaral e Mortimer (2011), em que o conceito de calor é desdobrado em um perfil conceitual embasado em cinco categorias - realista, animista, substancialista, empírica e racionalista. Cada uma dessas categorias traz noções ontológicas de calor, sem a preocupação com sua validade científica, mas com a forma como se torna um elemento real a partir de algumas de suas características vividas das mais diversas maneiras pelas pessoas. Por exemplo, a ideia de calor como uma substância animista vem da associação do calor com a energia vital dos seres vivos; a noção de calor como substância, por sua vez, advém das labaredas do fogo, que parecem ter uma existência própria.

Os fundamentos dessa epistemologia estão baseados no trabalho de Bachelard (1996), que parte da noção de obstáculo epistemológico para descrever as dificuldades no aprendizado de ciências. Esse conceito foi bastante explorado em pesquisas sobre o ensino de ciências (CAMILLONI, 1997), de matemática (IGLIORI, 1999) e de temas como as concepções de átomo (GOMES; OLIVEIRA, 2007). Além disso, foi empregado para explicar analogias e metáforas usadas no ensino de ciências (ANDRADE; ZYLBERSZTAJN; FERRARI, 2000).

É nessa linha teórica que este trabalho se enquadra: uma abordagem epistemológica do conhecimento científico. No entanto, o local de investigação é bastante diferente. Em vez da sala de aula ou de espaços didáticos como museus e feiras de ciências, adentramos outro ambiente ocupado pela ciência em seu dia a dia: o hospital. Exames de raios X, medicamentos, ultrassons, testes sanguíneos e intervenções cirúrgicas constituem atividades que, embora façam amplo uso da ciência, ainda são pouco exploradas como uma possibilidade de aprendizado científico por parte dos pacientes.

Talvez, estar doente e aprender ciências pareçam eventos dissonantes em um primeiro momento. Entretanto, há enfermidades que são crônicas, exigindo que o paciente conviva com um tratamento durante grande parte da sua vida. Nessas situações, não é incomum que um grupo de pessoas siga o tratamento indicado e outro grupo o abandone. “O que faz com que isso aconteça?” - é uma pergunta recorrente entre médicos e enfermeiros. Alguns fatores que influenciam esse processo já foram mapeados em estudos acadêmicos. No trabalho de Bakirtzief (1996), analisam-se as questões em torno do tratamento da hanseníase; em um artigo de revisão bibliográfica (REINERS et al., 2008), consta uma lista de causas diversas que levam ao abandono do tratamento. Nessas duas investigações, destaca-se que o acesso à informação adequada é um fator relevante para a continuidade do tratamento, bem como as campanhas educativas, voltadas para o público leigo como uma forma de retenção de pacientes. As pesquisas também apontam alguns fatores emocionais envolvidos, tais como a desconfiança do tratamento, a dificuldade de comunicação e a abordagem brusca por parte da equipe médica.

Então, de maneira pragmática, é possível afirmar que aprender ciências no ambiente hospitalar possibilita uma maior aderência aos cuidados oferecidos. Ademais, lidar com o conhecimento científico de forma construtiva relaciona-se a alguns dos princípios balizadores do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, equidade, integralidade e participação ativa de todos os protagonistas, sejam eles pacientes, corpo clínico, familiares ou representantes da sociedade civil.

Na compreensão de Araújo e Cardoso (2007), a concretização dos princípios elencados ocorre ao considerar o processo comunicativo na saúde como uma rede em que a informação não é privilégio, mas um direito do cidadão. Tal concretização também acontece ao perceber os pacientes como interlocutores em vez de meros destinatários, com espaços de escuta e troca de saberes, respeitando as particularidades de cada pessoa, assim como seu contexto social e cultural.

Partindo dessas premissas, surgiu esta pesquisa, que integra um pós-doutorado em divulgação da ciência, realizado como objetivo de propor a produção de uma série de materiais didáticos e redigir um livro de divulgação científica sobre as diferenças no desenvolvimento sexual (DDS). Os pacientes com DDS são acompanhados por uma equipe multidisciplinar desde o diagnóstico, que pode acontecer no nascimento, na primeira infância ou mesmo na puberdade, até a fase adulta. Ao longo do tratamento, estão envolvidos enfermeiros, biólogos, médicos de diferentes especialidades, assistentes sociais e psicólogos.

Ainda que o tempo de cuidado e o acompanhamento se estendam por anos, há pouco material em língua portuguesa voltado para os pacientes e seus familiares. No Brasil, existe um livreto disponível on-line, intitulado “Dignidade da criança em situação de intersexo: orientações para a família” (CANGUÇU-CAMPINHO; LIMA, 2014), que narra a história de uma criança que nasce em um estado intersexual. A pesquisa realizada em âmbito de pós-doutorado, citada anteriormente, segue uma direção similar, isto é, pretende dialogar com pacientes e familiares, mas propõe uma abordagem distinta, a partir dos conceitos científicos, para descrever e explicar as DDS de maneira acessível, utilizando, para isso, os recursos da divulgação científica. Com isso, espera-se aprimorar as interações entre os envolvidos e também tornar o assunto um pouco mais conhecido fora do meio acadêmico.

Uma das etapas do trabalho de campo requeridas pelo pós-doutorado foi a realização de entrevistas com pacientes do ambulatório de endocrinologia do Hospital das Clínicas da FMUSP. Os resultados iniciais acabaram por exigir um modelo teórico/epistemológico para serem interpretados, pois dialogam com as teorias a respeito das concepções espontâneas escolares acerca de ciências. É sobre este modelo e seus desdobramentos que discorre este artigo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

“Os distúrbios/diferenças1 do desenvolvimento sexual (DDS) são condições congênitas em que o desenvolvimento do sexo cromossômico, gonadal ou anatômico é atípico” (MENDONÇA; COSTA; DOMENICE, 2017, p. 102). As DDS resultam de alterações que ocorrem durante a gestação entre a 8ª e a 13ª semana, período do desenvolvimento dos genitais. Nesses casos, surge uma dúvida quanto ao sexo da criança já logo após o nascimento, ao ser examinada pelo neonatologista. Não existe uma causa única para essa síndrome, sendo necessários diversos exames para chegar a uma conclusão sobre o sexo da criança e identificar os fatores que levaram a tal condição. As causas mais comuns costumam ser a hiperplasia adrenal congênita e a insensibilidade parcial ou total aos androgênios. Ressalta-se, ainda, que uma parcela dos pacientes descobre a presença de DDS durante a infância ou a adolescência, momento em que o corpo passa a apresentar indícios físicos pertencentes ao sexo oposto, como, por exemplo, o aparecimento de mamas nos meninos ou aumento do clitóris e o excesso de pelos nas meninas.

Hughes et al. (2006) afirmam que uma em cada 4.500 crianças nascidas no mundo apresenta algum tipo de DDS. No Brasil, seguindo esse índice, calcula-se que nasçam de 500 a 1.000 crianças com DDS todo ano. No entanto, como apontam Santos e Araújo (2008 p. 207), “ainda persiste a invisibilidade das pessoas que vivenciam tal situação”.

Justamente por esse motivo, a divulgação da ciência configura-se como um conjunto de práticas que podem auxiliar a modificar tal realidade, fazendo com que o tema DDS comece a ser reconhecido pelo público e com que se criem condições reais e favoráveis ao diálogo entre os envolvidos - corpo clínico, paciente e familiares -, uma vez que os cuidados requeridos pelo tratamento perduram por vários anos. Além disso, a divulgação científica pode contribuir para que o assunto DDS passe a ter alguma visibilidade fora dos muros do hospital, disponibilizando informações adequadas ao público leigo.

Nesses casos, informações científicas acessíveis podem contribuir para os cuidados do paciente e para que este se torne cada vez mais autônomo e protagonista das escolhas a serem realizadas. Dessa forma, o intuito não é o paciente aprender ciências, mas conseguir lidar com o universo científico que o cerca, o que envolve outras instâncias para além da relação entre o corpo clínico, o paciente e sua família. São necessários, portanto, debates sobre identidade, gênero e situações cotidianas fora do hospital, como na escola e na convivência com outras crianças.

No Brasil, a divulgação da ciência tem muitos recortes distintos - popularização, vulgarização e alfabetização científica (GERMANO; KULESKA, 2007), estudos em percepção pública da ciência (STILGOE; LOCK; WILSDON, 2014) e cultura científica (VOGT, 2012). No entanto, todos os desdobramentos teóricos e práticos têm o mesmo objetivo final - trazer a ciência e os cientistas para mais perto do público e fazer com que as pessoas se apropriem do conhecimento científico em suas vidas. Nesse sentido, os estudos sobre o tema assumem que a produção científica é uma prática social permeada por questões políticas, culturais e econômicas como qualquer outra esfera da sociedade. Portanto, cabe à divulgação da ciência criar meios de aproximação com o público, deixando de lado, para isso, a linguagem mais rigorosa e árida dos artigos acadêmicos e buscando mostrar o lado humano do fazer científico.

Existem alguns estudos que procuram evidenciar como esse processo acontece nos textos de divulgação científica pelo viés linguístico, seja por intermédio da análise do discurso (CUNHA; GIORDAN, 2009), da referenciação (GIERING, 2012) ou dos gêneros do discurso (GRILLO, 2013). Entretanto, são poucos estudos na área de divulgação da ciência que consideram os aspectos epistemológicos em sua análise. Nessa perspectiva, citam-se dois trabalhos que buscaram essa aproximação em textos da revista Ciência Hoje das Crianças (FUKUI; GIERING, 2016) e Ciência Hoje (FUKUI, 2018).

Diante disso, esta pesquisa tem como hipótese inicial de trabalho essa aproximação. Considera-se que os resultados obtidos nas investigações sobre conceitos espontâneos em sala de aula são balizadores de como as pessoas interagem com o conhecimento científico em situações distintas da sala de aula, como, por exemplo, no consultório médico e no hospital. Em outras palavras, os conceitos espontâneos sempre se fazem presentes quando há ciência envolvida, mesmo que não estejam explicitados.

A esse respeito, Bachelard (1996, p. 17) em sua obra “A formação do espírito científico” defende que há contraposições entre o senso comum e o conhecimento científico, denominadas obstáculos epistemológicos: “[…] no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos”. Esses impedimentos paralisam momentaneamente o aprendiz em vez de fazê-lo incorporar novas ideias e conceitos. Segundo Bachelard (1996), a justificativa para que isso aconteça é o fato de que o conhecimento científico sempre se contrapõe ao senso comum e à observação casual dos fenômenos cotidianos. A seguir, explicita-se como esse fenômeno pode ser compreendido no caso da interação médico-paciente.

No início do tratamento, há a apresentação dos sintomas pelo paciente e a identificação da parte do corpo que o incomoda. Ele traz o que “sente” da doença, ou seja, sua “experiência” em conviver com um problema de saúde. Muitas vezes, o enfermo ainda não sabe o nome do mal que o acomete, cabendo ao médico identificá-lo depois de fazer o levantamento dos sintomas e de buscar as evidências. Com esses dados, o especialista formula hipóteses e elenca uma série de testes a serem realizados para confirmar ou refutar possíveis diagnósticos.

Enquanto o médico observa a doença de um ponto de vista racional, o paciente vivencia a moléstia em toda a sua extensão, associando-a a emoções, dores, desconfortos e medos. Nesse cenário, o profissional da saúde precisa transformar as informações que recebe em dados confiáveis, a fim de que possa conduzir um raciocínio lógico e escolher, entre os recursos existentes, os mais adequados para chegar a uma conclusão. Para isso, ele faz uso dos mais diversos tipos de exames - de sangue, de imagem e de material genético - para confirmar ou refutar sua hipótese inicial.

Os pontos de vista presentes nessa situação divergem: de um lado, há o do paciente, que traz a experiência em si, e, de outro, o do médico, que avalia o quadro clínico baseado em conhecimentos científicos. Como descreve Mukherjee (2019, p. 74), “Ao contrário do que acontece em quase todas as outras ciências, na medicina o sujeito - ou seja, o paciente - não é passivo, mas sim um participante ativo nos experimentos”. Ao mesmo tempo em que o paciente elabora respostas baseadas na sua visão de mundo pessoal, ainda que isso não esteja manifestado explicitamente nas interações com a equipe clínica, o médico organiza as reflexões e informações a partir de um esquema racional e subsidiado pela ciência.

Como mencionado, ser paciente implica ter a experiência de viver determinado quadro clínico (e, no caso da diferença dos genitais, viver esse quadro em um corpo que traz indícios do corpo do sexo oposto). Outro dado relevante para entender o confronto que ocorre entre senso comum e ciência se relaciona à percepção usual do que vem a ser um corpo masculino e um corpo feminino, moldada por um modelo instaurado desde a infância pelas mediações culturais.

Nesse sentido, Bachelard (1996, p. 29) afirma que,

Na formação do espírito científico, o primeiro obstáculo é a experiência primeira, a experiência colocada antes e acima da crítica - crítica esta que é - necessariamente, elemento integrante do espírito científico. […] A experiência primeira não constitui de forma alguma uma base segura. Vamos fornecer inúmeras provas da fragilidade dos conhecimentos primeiros, mas desejamos desde já, mostrar nossa nítida oposição a essa filosofia que se apoia no sensualismo mais ou menos declarado.

Esse excerto anuncia o objeto da epistemologia de Bachelard: a formação do espírito científico. No entanto, o autor não define o que vem a ser essa atitude, mencionando apenas que se trata de um caminho repleto de dificuldades, sendo a primeira delas a percepção do mundo por meio dos sentidos e das emoções, e, por isso mesmo, uma percepção imprecisa e desorganizada.

É dessa forma que o paciente se confronta com o médico - com sensações, impressões e dificuldades iniciais, sendo obrigado pelo tratamento a entrar em contato com um recorte distinto da sua doença, mais elaborado. Nesse encontro, ideias iniciais são transformadas, e outras surgem para dar conta das explicações médicas. E é esse encontro que interessa à presente pesquisa, já que o intuito consiste em fazer um levantamento das concepções de senso comum sobre DDS e da forma como os pacientes incorporam os saberes científicos para descrever seu estado clínico.

METODOLOGIA

Para a execução deste estudo, a metodologia consistiu em 12 entrevistas semiestruturadas individuais realizadas com pacientes do ambulatório de Endocrinologia do Desenvolvimento do Hospital das Clínicas de São Paulo. A seleção dos entrevistados ocorreu a partir da indicação da equipe clínica com base no diagnóstico, na avaliação da psicóloga do ambulatório de endocrinologia e na faixa etária dos pacientes - acima de 18 anos de idade.

Durante as entrevistas, a interação iniciou com a apresentação da pesquisadora como uma professora de ciências e do objetivo do estudo, que é a coleta de dados para a produção de um livro de divulgação da ciência sobre DDS e de material didático voltado para pacientes e profissionais de saúde. Após, foram apresentados o termo de consentimento livre e esclarecido e o pedido de autorização para reproduzir enunciados e afirmativas de maneira anônima, como é usual nas pesquisas da área médica. Essa etapa foi crucial, porque permitiu estabelecer um contrato dialógico entre as partes, bastante distinto da relação vertical entre o médico e o paciente, como costuma ser o habitual em ambientes hospitalares.

Em seguida, a conversa passou a abordar a localidade de onde as pessoas vieram e como chegaram ao ambulatório de endocrinologia. Com isso, buscou-se reconstruir uma parte do processo de diagnóstico do indivíduo e seus percalços, uma vez que as DDS podem ser descobertas na puberdade ou mesmo na idade adulta, com todos os problemas e exclusões que isso acarreta.

Na sequência, solicitou-se ao paciente que descrevesse seu caso a partir da seguinte pergunta: “Afinal, o que você tem?”. Essa indagação permitiu ao entrevistado falar sobre seu quadro e também explicar como percebe o tratamento clínico recomendado.

Posteriormente, perguntou-se se o paciente costumava acessar a internet para saber mais a respeito da doença e se alguma vez já sentiu a necessidade de informações impressas ou digitais sobre o tema. Para encerrar, solicitaram-se sugestões de temas, abordagens, enfim, qualquer maneira de melhorar a compreensão acerca das DDS pelas pessoas leigas.

Cada entrevista durou entre 30 e 40 minutos e não contou com o uso de gravador de voz ou qualquer outra forma de registro digital, de modo que apenas anotações manuscritas foram realizadas. Essa escolha objetivou evitar inibições por parte do entrevistado.

Após cada entrevista, as anotações realizadas transformavam-se em uma breve narrativa sobre o paciente, a qual incluía alguns enunciados que sintetizavam sua maneira de pensar e descrever seu tratamento.

RESULTADOS

Foram entrevistados 12 pacientes - 8 mulheres e 4 homens, com idades entre 20 e 60 anos. Dos entrevistados, 11 recebiam tratamento há mais de 10 anos pela equipe e faziam consultas de acompanhamento. As causas das DDS presentes nesse grupo foram: hiperplasia adrenal congênita (6 pessoas), síndrome de Turner (1 pessoa), insensibilidade parcial ou total aos androgênios (4 pessoas) e 1 paciente 46, XX ovariotesticular. A seguir, procede-se a uma análise e comparação de algumas das respostas de dois grupos de pacientes, reunidos conforme a causa de sua condição - hiperplasia adrenal congênita e insensibilidade total ou parcial aos androgênios. Estes pacientes foram escolhidos por serem os casos mais comuns de DDS e, dado o pequeno número de entrevistas, permitir a comparação das respostas.

Estas foram as perguntas norteadoras da entrevista: 1. Como você chegou ao ambulatório de endocrinologia?; 2. Do que você se trata no ambulatório de endocrinologia?; 3. Quem acompanhou você durante o tratamento?; 4. Tem mais alguém na família que se trata aqui?; 5. Você consulta informações na internet? E o que descobriu? Na sequência, são apresentadas as respostas de cada grupo.

Respostas dos indivíduos com hiperplasia adrenal congênita 2

Nesta seção, são transcritos excertos das entrevistas considerados significativos para esta pesquisa com nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes da pesquisa.

Eu era um menino com problema. Eu tinha falta de testículos (Bruno, 29 anos).

No tempo que eu devia ficar moça, eu não fiquei; por isso busquei tratamento médico (Naná, 52 anos).

Eu nasci com dois órgãos reprodutores. Então os médicos consertaram isso. […] Ainda bem que eu fiz o tratamento quando eu era pequeno. Se fosse depois dos 10 anos, eu teria me abalado bastante (João, 30 anos).

Só sei que tomo remédio… Não posso ficar sem ele senão eu morro. Foi o que os médicos falaram. Não consigo entender porque tive isso e de onde vem. […] Minha mãe falou que nasci com dois órgãos. Eu vim para o Instituto… com 9 meses. Não lembro (Ivone, 49 anos).

Eu tenho hiperplasia adrenal congênita. Quero saber de tudo e olho na internet, mas eu esqueço logo o que vi. Acho meio complicado e difícil. Nem sei direito onde estão as suprarrenais; já vi, mas esqueci (Gabriel, 20 anos).

Peraí, deixa eu mostrar. Eu ando com um atestado dobrado na carteira assinado pelos médicos. […] Tá aqui. Hiperplasia adrenal congênita, viu? […] Já pesquisei os sintomas na internet e fiquei lendo em voz alta para minha mãe. Ela não aguentou ouvir e pediu para eu parar, porque não queria mais saber do assunto (Fátima, 21 anos).

Com base nas respostas, percebe-se que somente dois pacientes nomearam a doença; os outros quatro descreveram evidências físicas ou fisiológicas. Nesse grupo, embora todos se tratem há mais de dez anos, ninguém mencionou as glândulas adrenais, que produzem o excesso de hormônios.

Também não há nenhum tipo de explicação sobre o que vem a ser a hiperplasia adrenal congênita. Há somente uma atribuição de evidências físicas, seguida do tratamento médico.

As breves narrativas trazidas pelos entrevistados remetem ao passado e fazem referência às pessoas que contaram a eles sobre os procedimentos médicos a que foram submetidos. Esse dado é relevante porque mostra algo que já passou, que está resolvido, e não um motivo de preocupação ou angústia.

Os depoimentos que trazem informações do presente, por sua vez, relacionam-se com a curiosidade acerca de como o assunto é tratado na internet. É o caso das falas de Gabriel e Fátima - os mais jovens do grupo e que estão familiarizados com o universo digital.

Respostas dos indivíduos com insensibilidade total ou parcial aos androgênios 3

Nesta seção, são transcritos trechos das entrevistas considerados significativos para este estudo.

Eu não tenho doença, eu tenho um problema. Não tenho útero, ovário. Sou pseudo-hermafrodita acentuado para o lado feminino. Não tive uma formação legal dos órgãos genitais (Paula, 45 anos).

Puxo mais para o feminino, por isso tomo hormônio. […] Quando eu tinha uns 15 anos, eu comecei a fazer um monte de perguntas para minha mãe. Ela tinha dúvidas sobre como eu ia reagir, foi contando aos poucos. Então ela me levou no médico que me operou quando eu era bebê, e ele explicou a situação (Helena, 40 anos).

É confuso, eu não sei direito. Eu tive uma má-formação genética. […] Uma deficiência 17-hidroxilase (Maria, 48 anos, grifo nosso).

Eu nasci sem o útero e os ovários. Minha família tem mais gente com isso, como as minhas irmãs. No começo do tratamento, há muito tempo atrás, eu morria de vergonha. Depois passou. Agora estou bem (Célia, 60 anos).

Duas das quatro pacientes entrevistadas trouxeram alguma definição de seu quadro. Paula deixa claro que não aceita o termo “doença” e o substitui por “problema”. Ela também usa a nomenclatura antiga: “pseudo-hermafrodita”…( na verdade ela tem um defeito genético no gene da 17 hidroxilase e alguém deve ter falado disto quando foi pedido para colher o DNA para estudar o gene). Em seguida, ela nomeia seu quadro com termos médicos, “deficiência 17-hidroxilase”, mas não chega a desenvolver as implicações desses termos; para ela, entretanto, essa denominação era importante.

Duas pacientes, Paula e Célia, descrevem a ausência do útero e do ovário como uma explicação para seu quadro diagnóstico. E somente uma paciente, Helena, faz referência direta aos hormônios que ingere diariamente, embora é provável que todas elas usem esses hormônios.

Dos quatro depoimentos, somente Célia, com 60 anos, constrói toda a narrativa no passado. As outras três usam alguns verbos no presente para contar o que se passa com elas: “eu não tenho”, “tenho um”, “puxo mais para o”, “é confuso, não sei”. Esses indícios linguísticos evidenciam uma situação que está ainda em andamento e, portanto, não se tornou um evento passado.

Análise dos dados

As pesquisas sobre as concepções espontâneas realizadas até o momento abarcaram muitas frentes diferentes, como mencionado na introdução deste artigo. Já foram explorados tópicos diversos de ciências, incluindo física, química e biologia, mas pouco se fez para identificar as motivações existentes por trás dessas concepções. Diante disso, a pergunta que vem à tona é: o que move as explicações e os modelos construídos pelos alunos? Ou seja, por que eles pensam o que pensam sobre cada uma das questões apresentadas nas pesquisas?

Uma das maneiras de compreender esse processo, não só de aprendizado, mas também de interação com o mundo ao redor, consiste na epistemologia bachelardiana. Bachelard (1996, p. 18) afirma que

Saber e fabricar são necessidades que é possível caracterizar em si mesmas, sem colocá-las necessariamente em relação com a vontade de poder. Há no homem uma verdadeira vontade de intelectualidade. Subestima-se a necessidade, quando esta é colocada […] sob dependência absoluta do princípio de utilidade.

Faz parte da natureza humana buscar conhecimento e construir objetos. Nenhuma dessas atividades, segundo o autor, pode ser explicada somente por uma necessidade imediata e urgente, mas por uma maneira ativa de construir e se relacionar com a realidade e as trocas sociais, já que essas são as duas maneiras de elaborar e participar da cultura.

Esse pressuposto é fundamental para entender as condições iniciais que sustentam as pesquisas sobre concepções espontâneas - uma vez colocado um problema ao aluno, ele busca soluções ancoradas em sua vivência de mundo e em seus referenciais culturais. Para qualquer estudante, discutir o que ele imagina sobre um assunto é natural; o esforço consiste em incorporar os saberes científicos.

As pesquisas na área de ensino de ciências evidenciaram maneiras pelas quais os alunos montam explicações e modelos para falar de conceitos e situações com que se confrontam. Durante o tratamento recebido no hospital, com o paciente ocorre algo similar: ele é confrontado com informações sobre seu corpo e com novos conceitos para dar conta de uma doença ou pelo menos de uma situação anômala. A partir do momento em que as pessoas têm contato com informações científicas, sejam resultados de exames, diagnósticos, remédios ou explicações dos médicos, elas elaboram uma reflexão sobre o assunto, construindo algum tipo de explicação quando é possível.

Uma das formas mais naturais de analisar um problema é estabelecer as relações entre causa e efeito, já que todo acontecimento tem uma consequência. No caso dos pacientes com hiperplasia adrenal congênita, essa relação é direta. Os médicos nomeiam essa condição e sabem quais são seus desdobramentos; tanto é que uma das pacientes, Fátima, pôde ler informações na internet e que a resposta de sua mãe foi bastante emocional ao evitar entrar em contato com algo que ela já conhecia.

Essa descrição é importante para entender uma diferença fundamental entre os pacientes com hiperplasia adrenal congênita e os com insensibilidade total ou parcial aos androgênios. Os pacientes com hiperplasia adrenal congênita conseguem estabelecer relações de causa e efeito na sua doença. Em primeiro lugar, eles são capazes de identificar e descrever seu problema e seu tratamento como um evento do passado. Durante a entrevista, os pacientes elencaram causas mais recentes de cuidados médicos que nada tem a ver com a hiperplasia. Surgiram queixas sobre os joelhos, artrose, diabetes, enfim, as doenças mais comuns na população.

Os pacientes com insensibilidade total ou parcial aos androgênios, por outro lado, tratam de sua situação ainda no presente. A pergunta “do que você se trata?” é quase sempre respondida com uma esquiva, como foi o caso da paciente Maria: “É confuso, eu não sei direito”. Outro aspecto que se destaca é a resposta dada pela paciente Paula, em que ela nega o atributo de doença, preferindo descrever seu quadro como um problema: “Eu não tenho doença, eu tenho um problema”.

Todos os pacientes entrevistados pertencentes ao grupo dos que apresentam insensibilidade total ou parcial aos androgênios sentem falta de um termo específico para descrever sua condição. Os termos usuais - “hermafroditas” (já em desuso), “má-formação” e “intersexuais” - soam inadequados e estão de acordo com o que Bachelard (1996) chama de obstáculo verbal.

Quero, neste breve capítulo, ser ainda mais preciso e considerar um caso em que uma única imagem, ou até uma única palavra, constitui toda a explicação. Pretendemos assim caracterizar, como obstáculos ao pensamento científico, hábitos de natureza verbal. Nesse caso, tratar-se-á de uma explicação verbal com referência a um substantivo carregado de adjetivos (BACHELARD, 1996, p. 91).

Bachelard (1996) parte do pressuposto de que as palavras têm mais do que significado, pois a elas são conferidos valores sociais e culturais. Um vocábulo não é neutro, mas carrega consigo uma série de atributos associados, ainda que não estejam explícitos. No caso de pessoas, essa ação costuma ser chamada de rotular, isto é, descrever uma pessoa com uma única palavra e reduzi-la a adjetivos, retirando sua identidade e humanidade. No caso das pacientes com insensibilidade total ou parcial aos androgênios, o peso dos termos médicos tem a ver com uma exposição de seus corpos em relação ao que existe de mais íntimo em cada um de nós: a sexualidade. Ao mesmo tempo, as palavras normalmente usadas - “hermafrodita”, “má-formação” e “intersexo” - possuem uma conotação ruim no uso de senso comum, fora do ambiente hospitalar.

Mas, então, como essas pessoas deveriam ser nomeadas? A resposta de Maria traz uma pista; para ela, a definição mais adequada é a expressão “deficiência 17-hidroxilase”, que descreve um defeito nas enzimas que participam da síntese do cortisol. Trata-se de um termo que é científico e que se afasta de qualquer sentido de senso comum e de qualquer associação a órgãos genitais.

O uso do termo científico pode ser observado pelos pacientes do outro grupo, com hiperplasia adrenal congênita. Dos seis entrevistados, dois nomearam a doença corretamente, e os outros quatro descreveram seus problemas físicos que foram consequência da hiperplasia adrenal congênita. Percebe-se, nesse caso, que os pacientes fizeram uso do termo médico ou da caracterização médica da doença - sem que houvesse hesitação ou receio em lidar com o assunto, o que se mostrou bem diferente no grupo de pacientes com insensibilidade total ou parcial aos androgênios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A epistemologia bachelardiana contribui para a divulgação científica à medida que permite compreender os processos de interação racionais e emocionais das pessoas com o conhecimento científico. Nesse sentido, no caso específico do tema que constitui o foco deste estudo, alguns dados objetivos podem nortear a produção de material didático e de informação para o grande público.

O primeiro deles é sobre o tipo de informação necessária, já que ainda há dúvidas sobre a anatomia do corpo humano, a localização dos órgãos envolvidos e o funcionamento dos hormônios. Esses dados devem sempre ser mencionados. Não se pode assumir o pressuposto de que as pessoas sabem o suficiente sobre seus corpos para prescindirem dessas informações. Além disso, seria interessante esclarecer a fisiologia humana. Afinal, para que servem os hormônios? Por que os pacientes com DDS devem tomar remédios? Por fim, a descrição da doença ou de todo o quadro sintomático deveria trazer as relações de causa e efeito possíveis de serem traçadas para permitir que o paciente (re)construa sua própria versão da história. Ele fará isso de qualquer forma; então, quanto mais informações adequadas e consistentes ele tiver, melhor será o seu modelo. Essas explicações devem contemplar diversos níveis de informação - desde os mais concretos, como o que os exames mensuram e o que eles mostram, até os mais abstratos, como o patamar genético. Essa diversidade de informações tem como objetivo fazer com que o paciente e sua família possam aprender sobre DDS e, principalmente, sobre como falar e debater a esse respeito quando necessário.

Ademais, é preciso continuar a reflexão iniciada pelos diversos grupos de pesquisa acerca dos termos empregados na área médica, já que nem sempre consistem nos mais adequados para serem usados pelos pacientes em ambientes fora do hospital.

Há, ainda, outras instâncias fundamentais. A presença de um material informativo pode servir como ponto de partida para interações mais efetivas, com uma troca de informações em que todos se sintam ouvidos e acolhidos tanto no hospital quanto em outras situações sociais. Telles-Silveira et al . (2009), em sua pesquisa sobre hiperplasia adrenal congênita, mostram que os pacientes se sentem isolados de forma geral ao mesmo tempo em que manifestam um desejo de conversar sobre temas específicos do tratamento, principalmente nos casos das cirurgias de correção genital; no entanto, esses diálogos praticamente não ocorrem. Essa mesma pesquisa aborda também o ponto de vista dos pais, que lidam com a indefinição sexual quando a criança nasce e se sentem angustiados quando precisam responder às perguntas de familiares e amigos sobre o sexo da criança.

A divulgação científica não tem a pretensão de amenizar os conflitos emocionais que ocorrem nesses momentos, mas deseja criar pontes para diálogos que levem a um compartilhamento e suporte emocional, propiciando o acesso a informações adequadas, que funcionem para o paciente como uma forma de apropriação de seu corpo e das decisões a serem tomadas. Nesse sentido, espera-se que a existência de um material informativo possa fazer com que o assunto DDS seja discutido nos canais de comunicação, vencendo a invisibilidade e o preconceito ainda existentes.

Os resultados do estudo realizado mostram a pertinência da proposta de divulgação científica, bem como a necessidade de uma fundamentação teórica adequada. Com base nisso, as etapas futuras desta pesquisa englobam tanto proceder à aplicação e discussão de folders informativos e à sua disponibilização na internet quanto efetuar atividades práticas na rede de saúde pública. A partir disso, pretende-se avaliar o material produzido ao mesmo tempo em que se introduz a discussão sobre o que é DDS nesses locais.

AGRADECIMENTOS

As autoras agradecem a colaboração e o apoio da psicóloga Marlene Inácio que selecionou os pacientes para as entrevistas.

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1No sétimo Simpósio Internacional de DDS, realizado em São Paulo de 4 a 7 de julho de 2019, houve uma votação para a mudança de nomenclatura. O termo “distúrbios” foi substituído pelo termo “diferenças”. Neste artigo, adota-se a nomenclatura mais recente.

2A hiperplasia adrenal congênita ocorre em bebês 46, XX, que em condições usuais se desenvolvem como meninas. No entanto, devido ao excesso de andrógenos, os órgãos genitais sofrem uma virilização, o que pode gerar confusão a respeito do gênero da criança. Em alguns dos casos que sofreram maior virilizaçao, eles podem ser registrados e educados como meninos

3A insensibilidade parcial ou total aos androgênios ocorre em fetos 46, XY - que em condições usuais se desenvolveriam como homens. No entanto, devido a mutações genéticas, seu organismo não responde aos hormônios masculinos durante a gestação. Após o nascimento, esses pacientes apresentam genitália feminina ou atípica. Costumam ser educados como mulheres.

Esta pesquisa foi devidamente submetida ao Comitê de Ética. Processo CAAE: 135.16918.3.0000.0068

Recebido: 17 de Abril de 2020; Aceito: 09 de Outubro de 2020

Contato: Disciplina de Endocrinologia e Metabologia Hospital das Clínicas da FMUSP - Prédio do Instituto Central Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 255 - 7º andar - Sala 7037 CEP 05.403-900 - São Paulo, SP - Brasil

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Pós-doutoranda. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Departamento de Endocrinologia. E-mail: anafukui@hotmail.com

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Professora Titular de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de Endocrinologia (FMUSP) E-mail: beremen@usp.br

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