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Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

Print version ISSN 1415-2150On-line version ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.23  Belo Horizonte  2021  Epub Aug 17, 2021

https://doi.org/10.1590/1983-21172021230119 

Artigos

A MOTIVAÇÃO PARA OS ESTUDOS DE FÍSICA

LA MOTIVACIÓN PARA LOS ESTUDIOS DE LA FÍSICA

Magno Barbosa Dias1 
http://orcid.org/0000-0003-0936-8234

Maria Cristina Martins Penido2 
http://orcid.org/0000-0003-3732-8264

1Instituto Federal do Norte de Minas, Departamento de Ensino, Campus Araçuaí, MG, Brasil.

2Universidade Federal da Bahia, Departamento de Física, Salvador, BA, Brasil.


RESUMO:

Ao longo desse estudo são apresentados argumentos para a ideia de motivação de aprendizado de Física. As discussões no contexto de ensino superior nessa área conduzem ao seguinte questionamento: a motivação é algo que o estudante já deve trazer consigo ou é uma qualidade que ele desenvolve durante o curso? A partir dessa questão, o presente ensaio busca discutir as ideias acerca da natureza da motivação humana como subsídio para a atividade educativa do professor. A discussão se fundamenta nos estudos sobre a atividade humana, defendendo que a motivação para o conhecimento científico deve ser desenvolvida desde os níveis escolares mais básicos. O estudo aprofunda o significado de motivo, por meio da análise de conceitos baseada em princípios, concluindo que existem motivações distintas entre jovens do Ensino Médio e acadêmicos do Ensino Superior de Física, indicando a necessidade de Formação Docente e Iniciação Científica para essa transição educacional.

Palavra-chave: Motivação; Ensino; Física

RESUMEN:

A lo largo de este estudio se presentan argumentos para la idea de motivación en el aprendizaje de la Física. Esta discusión en el contexto del curso universitario de Física conduce a la siguiente pregunta: ¿la motivación es algo que el estudiante ya debe traer consigo o es una cualidad que se desarrolla durante el curso de Física? A partir de esta pregunta, se discuten las ideas acerca de la naturaleza de la motivación humana como subsidio para la actividad educativa del profesor. La discusión se basa en estudios acerca de la actividad humana, defendiendo la idea de que la motivación para el conocimiento científico debe ser desarrollada desde los niveles escolares básicos. El estudio profundiza el significado de la motivación, a través del análisis de conceptos basado en principios, concluyendo que existen diferentes motivaciones entre jóvenes de la enseñanza media y estudiantes de educación superior en Física, así como la necesidad de formación docente e iniciación a la investigación científica para esa transición educacional.

Palabras clave: Motivación; Enseñanza; Física

ABSTRACT:

Throughout this study, arguments are presented about the idea of Physics learning motivation. This discussion, raised in the undergraduate course of Physics, lead to the following question: Is the motivation something the students already have with themselves or is it a quality that they develop during the course? Considering this question, the purpose of this article is to discuss ideas about the motivation of human nature as a contribution for teaching activities. The discussion is based on studies about human activities and defends the idea that the motivation for scientific knowledge should be developed from very early school levels. The meaning of motivation is deepened through principle-based concept analysis. In conclusion, the study points to the existence of different motivations between high school and higher education students in Physics, indicating the need for Teacher Training and Scientific Initiation for this educational transition.

Keywords: Motivation; Teaching; Physics.

INTRODUÇÃO

O I Seminário Interno sobre Laboratórios Didáticos do Instituto de Física da UFBA, realizado em 2019, possibilitou um debate profícuo acerca da natureza da atividade que professores e estudantes desenvolvem nesses espaços. Dentre as diversas situações abordadas no evento, destaca-se o argumento recorrente sobre a falta de motivação para os estudos de Física. Sobre esse tema, encontram-se posicionamentos que oscilam entre dois extremos: de um lado, percebe-se a justificava da necessidade de criar mecanismos motivadores para promover o engajamento do discente nas tarefas do curso; por outro lado, há a defesa de que o estudante deve chegar ao nível superior com a motivação suficientemente desenvolvida para o aprendizado da Física. Em face desses posicionamentos divergentes, discute-se a natureza da motivação humana que permite aprofundar tais questões.

Para tanto, são reunidos trabalhos teóricos que tratam do aspecto formativo, ligado ao tema do “motivo”. Esses referenciais estão situados na Teoria da Atividade, da qual se destacam as obras de Leontiev (1978;1984) e Engeström (1987). O primeiro autor contribui para a compreensão do nível elementar das motivações, nas fases educacionais mais primárias. A segunda referência possibilita expandir as ideias de motivo, associando-o a um sistema de contradições internas, a partir de um núcleo primário da atividade humana. Por último, são feitas aproximações das ideias de Freire (1987;1996) com as referências supracitadas concernente à problematização de situações limites que implicam em apropriação de novo conhecimento na busca engajada e coletiva de solução do problema.

Para além dessas referências clássicas existem estudos mais recentes que abordam a temática do motivo no contexto específico do ensino científico. Mattos e Gehlen (2009), por exemplo, buscam articular as ideias de Motivação (Leontiev) e Problematização (Freire). Em outro estudo, Silva, Gehlen e Mattos (2017) se baseiam em Leontiev (1978) e Engeström (1987) para analisar a Atividade Educacional na perspectiva da Abordagem Temática Freireana (ATF). Nesse trabalho, os autores evidenciam diferenças nas dimensões axiológicas e epistemológicas da ATF, quando comparadas com a abordagem conceitual científica.

A categoria de análise axiológica, proposta por Rodrigues e Mattos (2007), é uma ampliação das dimensões ontológicas e epistemológicas do perfil conceitual de Mortimer (1995). Na dimensão ontológica, busca-se explorar o que é o conceito em seus múltiplos contextos e, na dimensão epistemológica, atenta-se para ideias de segunda ordem do conceito - categoria de raiz histórico-filosófica que permite conhecê-lo. O campo axiológico é caracterizado pelas razões das escolhas e fins, ou seja, pelos motivos que conduzem às preferências do sujeito por um determinado conceito.

Quando o próprio conceito de motivo entra em pauta, a sua análise axiológica apresenta uma dificuldade circular, pois envolve ter que elucidar “o motivo da motivação”. Logo, a categoria que possibilita abrir esse círculo é a de análise ontológica, a partir da qual o significado objetivo se expande entre as demais dimensões. Sem essa clareza básica, as múltiplas possibilidades de relacionar o tema do motivo conduziria a dificuldades de compreender o seu destino: a atividade humana. Nesse âmbito, as bases que possibilitam fazer a presente discussão também relacionam as ideias de Leontiev, Engeström e Freire. Porém, o foco do presente estudo não é discutir o motivo da opção por um conceito e sim o conceito de motivo e suas implicações na atividade docente.

Para tanto, o presente trabalho se baseia na Análise de Conceitos de Penrod e Hupcey (2005), a partir da qual são apresentados os princípios analíticos: Epistemológico - que permite examinar se o conceito está claramente definido naquela literatura; Pragmático - que foca na capacidade do conceito em explicar ou descrever fenômenos encontrados numa dada área de conhecimento; Linguístico - que atenta para a adequação dos significados do conceito que, no estudo em questão, está ligado ao contexto teórico; Lógico - que se refere à integração coerente entre os conceitos.

Dessa forma, o estudo analisa quadros teóricos de referência, por meio dos quais o conceito de motivo é colocado em evidência. Em termos contextuais, o “motivo” é examinado, inicialmente, em suas definições de origem clássica (LEONTIEV, 1978;1984), em coerência com as recomendações de Engeström para pesquisadores que buscam explorar o campo da Teoria da Atividade:

Tal teoria multivariada não deve olhar contradições internas e debates como sinais de fraqueza. Eles são uma característica essencial da teoria. Entretanto, isso requer, pelo menos, uma compreensão do caráter da célula inicial e uma compreensão coletiva de elucidá-la, bem como os múltiplos passos mediadores da célula para conceitos específicos. (Engeström; 1999, p. 20, tradução nossa)

A tese elementar que guia o presente estudo é a de que os motivos sofrem transformações qualitativas ao longo da vida do estudante, até os mais elevados níveis de formação. A partir dessa gênese interpretativa, os aspectos contraditórios e de desenvolvimento da motivação são discutidos em duas frentes: a) uma, em que se busca caracterizar o principal motivo da atividade de jovens que se formam no Ensino Médio; b) outra, em que se procura discutir os compromissos esperados dos discentes nos cursos superiores de Física.

Uma hipótese lançada é a de que o motivo principal de um jovem do Ensino Médio está orientado para a atividade coletiva, junto aos colegas com os quais mantém afinidade. No caso do estudante de curso superior em Física, espera-se que sua atividade esteja mais próxima dos compromissos com o conhecimento envolvendo a ciência e seu funcionamento. Tais apontamentos estão baseados nas ideias de El’Konin (2012), acerca das fases ontogenéticas da natureza motivacional humana. Além disso, os argumentos de Freire (1987;1996) são trazidos para reforçar o caráter educacional transformador dos motivos, engendrados pela problematização.

A discussão no contexto do Ensino de Física é relevante, em função da disciplina apresentar uma tradição internalista do conhecimento. Isso implica dizer que o Ensino de Física precisa dar maior visibilidade ao tema do motivo, retirando-o de uma estável condição de exclusividade intrínseca do indivíduo para uma questão externa discutível. Diante desse cenário, espera-se dar clareza à importância da formação de novos motivos como fator de redução das distâncias entre os níveis básicos e superior de Ensino de Física, tendo em vista o estratégico papel mediador do professor no âmbito da iniciação científica.

ARTICULAÇÕES TEÓRICAS

Um dos principais subsídios à presente discussão vem das obras de Leontiev (1978; 1984), ligadas à vertente da Psicologia histórico-cultural da Teoria da Atividade. O autor define que toda atividade é gerada por um motivo. Nesse sentido, ele explica que essa aspiração desempenha no sujeito uma função psíquica de orientação.

Devemos apenas sublinhar que não utilizamos o termo “motivo” para designar o sentimento de uma necessidade; ele designa aquilo em que a necessidade se concretiza de objetivo nas condições consideradas e para as quais a atividade se orienta, o que a estimula. (Leontiev, 1978, p.103).

Dessa forma, o conceito de motivo é explicado pela sua capacidade de estimular a ação do sujeito para um determinado fim. Contudo, na mesma obra, o autor admite que os processos de atividade (ações) e as motivações não são coincidentes nos seres humanos. Ao explicar aspectos mais elementares da atividade motivada, ele usa o exemplo das “caçadas primitivas”, afirmando que a ação de espantar a caça, desempenhada pelo batedor, não é coerente com o interesse de se alimentar dela ou obter a sua pele. Para demonstrar a natureza social do motivo que orienta a atividade humana, o autor recupera a coerência da ação do batedor pela ligação de seu resultado imediato com o resultado dos demais participantes do grupo que estão à espera do animal em fuga.

Evidentemente não é outra coisa senão a realização do indivíduo aos outros membros da coletividade, graças ao qual ele recebe a sua parte da presa, parte do produto da atividade do trabalho coletivo. Esta relação, esta ligação, realiza-se graças às atividades dos outros homens que constitui a base material objetiva da estrutura específica da atividade do indivíduo humano; historicamente, pelo seu modo de aparição, ligação entre o motivo e o objeto de uma ação, não reflete relações e ligações naturais, mas ligações e relações objetivas sociais. (Leontiev, 1978, p.84).

Para o autor, são essas relações sociais que dão origem à singularidade humana e fazem surgir o reflexo psíquico da realidade, ou seja, a consciência humana. Dessa forma, as ações específicas que entremeiam o motivo e o seu fim não podem ser operações vazias de sentido, pois se assim o fossem, estariam desprovidas de um reflexo psíquico de orientação. Logo, há de se ter um motivo para que as ações concretas se efetivem e apareçam nos sujeitos como operações conscientes. Além desse aspecto social, Leontiev também deixa claro que os motivos não se transmitem às gerações futuras na forma de uma herança biológica, mas pela cultura.

É de uma importância capital se se quer compreender a formação do psiquismo humano, na medida em que a característica principal deste último é precisamente desenvolver-se não a título de aptidões inatas, não a título de adaptação de comportamento específico aos elementos variáveis do meio, mas ser o produto da transmissão e da apropriação pelos indivíduos do desenvolvimento sócio-histórico e da experiência das gerações anteriores. Toda a progressão criadora ulterior do pensamento que o homem faz, só é possível na base da assimilação desta experiência. (LEONTIEV,1978, p. 201)

Se um motivo pode ser criado socialmente ou, mesmo formado, pode ser ainda transformado historicamente, então, essa é uma questão de interesse educacional. O problema de saber se um estudante deve chegar ao nível superior de Física já motivado, implica em desvendar como esses motivos se transformam no sujeito ao longo da vida. Um indicativo desses estágios motivacionais do indivíduo é dado pelo próprio Leontiev, quando aborda o conceito de Atividade Dominante na criança.

O desenvolvimento da sua consciência traduz-se pela mudança de motivação da sua atividade: os antigos motivos perdem a sua força motora, nascem novos motivos que conduzem a uma reinterpretação das suas antigas ações. (Leontiev,1978, p.333).

Definindo a Atividade Dominante como uma qualidade especial que condiciona as principais mudanças no psiquismo, o autor interpreta que a motivação de uma criança é diferente da motivação de um adulto, ainda que o imite ou seja submetido aos seus afazeres típicos. Em qualquer das condições, a Atividade Dominante numa criança é motivada pelo jogo, pela “coloração infantil” que reveste a sua personalidade. As ideias de Leontiev acerca desse tema são apresentadas como uma sequência de quatro etapas sistemáticas:

  1. 1unto com a atividade dominante do sujeito (por exemplo, brincar), há um motivo culturalmente valorizado para uma atividade mais avançada (por exemplo, estudar). Na consciência do sujeito, esse último existe apenas como um motivo ‘compreensível’.

  2. Os representantes da cultura induzem, por alguns meios (por exemplo, recompensas), o sujeito a se envolver em ações ou componentes selecionados da atividade mais avançada dentro da estrutura motivacional da atividade anterior.

  3. O motivo ‘compreensível’ da atividade mais avançada começa a ser ‘eficaz’, pois as ações selecionadas que a representam começam a produzir resultados excedentes dos limites motivacionais da atividade anterior. Essa transição se manifesta com rupturas - por exemplo, as ações preferenciais são, em dado momento, encerradas porque o sujeito sente, de maneira aguda, sua qualidade inadequada em relação ao motivo mais avançado emergente;

  4. Eventualmente, o novo motivo e atividade assumem o papel principal. (Engeström,1987, p.140, tradução nossa)

Para Engeström (1987), Leontiev vê a motivação como transmitida pela cultura, mas não considera as contradições internas. Por essa razão, ele se ocupa em expandir as ideias de Leontiev, por meio de um Sistema de Atividade composto de 4 níveis de contradições. A seguir, procura-se associar suas definições com situações típicas da atividade educativa.

O livro que o aluno estuda, por exemplo, possui múltiplos valores agregados -seu valor de mercado, o valor de uso para obter sucesso no vestibular, numa carreira profissional, até o valor que se atribui ao seu conteúdo artístico e científico. Dessa forma, Engeström (1987) considera que a contradição primária das atividades nas formações socioeconômicas capitalistas vive como o conflito interno entre o valor de troca e o valor de uso.

Por outro lado, ocorrem tensões sobre a forma atual da atividade que não comporta mais as demandas de um novo tempo. O laboratório virtual, por exemplo, é uma modalidade que está cada vez mais presente nos cursos superiores de Física, exigindo novos conceitos e práticas laboratoriais. Isso é um exemplo que situamos nas contradições secundárias discutidas por Engeström (1987). O autor caracteriza essa categoria pela rígida divisão hierárquica do trabalho, atrasada e resistente às possibilidades abertas pelos instrumentos avançados.

O objeto da aprendizagem disponibilizado e a maneira como o estudante se comporta frente a ele surgem como contradições terciárias da atividade do professor.

A contradição terciária aparece quando representantes da cultura (por exemplo, professores) introduzem o objeto e o motivo de uma forma culturalmente mais avançada da atividade principal na forma dominante da atividade do sujeito. Por exemplo, o aluno do estudo primário vai à escola para brincar com seus colegas (o motivo dominante), mas os pais e o professor tentam fazê-lo estudar seriamente (o motivo culturalmente mais avançado). O objeto e o motivo culturalmente mais avançados também podem ser buscados ativamente pelos próprios sujeitos da atividade central. (Engeström, 1987, p.103).

Finalmente, as contradições quaternárias implicam em “atividades vizinhas” pelas quais o objeto e resultados imediatamente aparentes da atividade central são incorporados, conforme sustenta Engeström (1987). No caso de um aprendizado novo que afete as motivações dos estudantes, conformadas em um dado sistema de atividade, surge uma reação como resistência. Isso induz uma expansão complexa, de curto ou longo prazo, provocando mudanças qualitativas na motivação do estudante. Na ponta dessa atividade de ensino-aprendizagem, também ocorrem tensões pelas quais a atividade central de produção do conhecimento é ressignificada.

Engenström (1987) classifica a atividade de aprendizado em três níveis. Para o autor, além do aprendizado do “ir à escola” e o aprendizado “no trabalho”, há aquele que se caracteriza pela busca da verdade e da beleza, remetendo à ciência/arte como atividades dedicadas à busca desses mesmos valores. O autor ainda argumenta que “a diferença entre ciência/arte e aprendizado é comumente vista pelo fato de que os primeiros produzem verdade e beleza, enquanto os segundos os reproduzem.” (Engenström,1987, p.108)

Esse argumento é substancial para se desconfiar de um discurso muito presente no meio educacional: o de que a falta de compromisso do estudante ocorre pela sua indisposição natural em encarar o rigor do conhecimento científico. No contexto profissional de Ensino de Física, o sentido atribuído à falta de compromisso tem sua “órbita” ligada à falta de vontade, à falta de interesse e à não necessidade de conhecer, o que se traduz como ausência de motivo cognitivo.

Mas, se a motivação científica está relacionada ao entusiasmo com o seu valor cultural de descoberta/construção da verdade, a ausência de motivo implicaria em ausência de curiosidade. Contrariando essa ideia, sustenta-se que tal estímulo da imaginação está presente em todas as etapas da vida escolar, seja ele pertencente à esfera de motivo principal da Atividade Dominante do estudante ou não. A curiosidade, como explicada por Freire, é algo que ajuda compreender melhor essa premissa:

Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente “rigorizando-se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão. (Freire,1996 p.15)

O problema da ruptura, ao qual Freire se refere, surge quando é vista onde ela não existe: na oposição entre o prazer em aprender e o rigor metodológico da busca. Para ele, quanto mais se aprende, mais se admira a beleza do processo cientificamente rigoroso que possibilita ampliar a compreensão da realidade. O que faz um curso superior de Física se distanciar das aspirações de determinadas comunidades periféricas? Seria a falta de motivo cognitivo dos jovens que ali residem ou seria a falta desse convívio com a academia? Essas provocações servem para ilustrar o tipo de compromisso que os argumentos do autor ensejam. Quando situados no corpo da Teoria Dialógica, observa-se que suas ideias associam o aspecto cognitivo do motivo, não a um mero exercício intelectual, mas à superação de desigualdades sociais.

As “aspirações” de um grupo social que formam “o universo temático” ou “temática significativa”, em Freire (1987), são interpretadas como motivações. Elas são codificadas e decodificadas por meio da problematização da realidade desse coletivo. A consciência crítica dos limites existenciais desafia o sujeito a buscar respostas, não apenas teóricas, mas na forma de ações coletivas que visam a superação da condição percebida. Compondo-se da força motriz das aspirações de um grupo social, a problematização conduz à reflexão crítica e à ação transformadora da realidade. Nesse âmbito, a curiosidade ingênua também se transforma em curiosidade epistemológica. Portanto, o motivo - ou “aspirares” como definida em Freire (1987, p.57) - não é apenas cognitivo, mas fundamentalmente histórico-político.

Seja por causa excedente da Atividade Dominante, por contradição interna dessa atividade ou por superação das condições prático-sociais limitadoras, a presente discussão teórica aponta para a existência de motivações que sofrem mudanças ao longo da vida. Apesar de elas terem um caráter diverso e desenvolverem-se de forma complexa, é de interesse desse estudo aprofundar sobre questões em que um motivo específico se destaca, orientando a atividade principal do estudante em algum momento da sua vida. Nesse sentido, o aprofundamento sobre as características dessa atividade, como surge e em que medida é dada ou desenvolvida em estudantes, é levado para o próximo tópico.

CAMINHOS E DESENVOLVIMENTO DOS NOSSOS ARGUMENTOS

Ao se debruçar sobre a problemática da motivação em curso superior de Física, como algo que o estudante já deve trazer consigo ou como uma qualidade a ser desenvolvida nele, aprofunda-se a discussão precedente em duas frentes: a) qual é o tipo de comprometimento que se espera de um estudante em um curso superior de Física? b) como se caracteriza a Atividade Dominante de jovens egressos do Ensino Médio? Há uma evidente relação entres essas duas questões. Caso os compromissos exigidos sejam iniciados e desenvolvidos na atividade de jovens do Ensino Médio, é esperado que o estudante tenha maior engajamento no Ensino Superior.

Para desenvolver essas questões mais específicas do nosso problema, as ideias dos referenciais são articuladas com foco na motivação do estudante, conforme ilustrado: - Leontiev (1978) usa o exemplo de um aluno que abandona a leitura de um livro, tão logo descobre que o seu conteúdo não fará parte do programa de vestibular, mostrando que a motivação do estudante em aprender aquele conhecimento não é efetiva; - buscando sustentação em Engeström (1987), tal situação é interpretada como contradições, ligadas ao sistema de recompensa decorrentes do valor que a presente atividade de ler o livro implica; - das ideias de Freire (1987;1996), depreende-se que a aspiração em solucionar um problema do contexto prático-existencial do estudante o encoraja a superar os desafios dessa leitura que, em princípio, deve conter os significados de seu “universo temático”. De toda forma, se o estudante deixa de ler o livro, ainda resta saber para qual fim se dirige a sua próxima atividade.

O caminho é encontrado no estudo de El’konin (2012), por meio do qual o autor sustenta a existência de duas fases ontogenéticas para o desenvolvimento da Atividade Dominante. Na primeira, o desenvolvimento de motivos, objetivos e normas humanas ocorrem na esfera das necessidades pelas quais as relações intersubjetivas dominam. Essa fase é preparatória para o desenvolvimento de habilidades técnico-operacionais que melhoram pelas relações entre o sujeito, os instrumentos e os objetos, tornando-se dominante na segunda fase. Logo, quando o estudante do Ensino Básico abandona a leitura do livro, é mais provável que sua atividade se oriente aos afazeres imediatos, ligados aos motivos parciais - geralmente, compromissos do círculo familiar. No entanto, essas ações parciais ainda são encaradas como tarefas que, uma vez cumpridas, tornam livre o seu caminho dirigido para o entretenimento midiático e social. Dessa forma, nota-se que há um motivo mais fundamental que encadeia uma série de ações na sua direção. O entendimento é de que esse motivo está orientado para a realização com os pares - ir ao cinema com a sua turma de amigos, por exemplo.

Nesse sentido, o olhar sobre o problema em estudo é dirigido, inicialmente, não para o estudante ou acadêmico como indivíduo autônomo, dotado de uma motivação intrínseca de conhecer, mas como aquele cuja autonomia vem sendo desenvolvida, aos poucos, pelos círculos ampliados nos quais estabelece a interação objetivo-social:

O ser humano vive em meio a uma realidade que parece ampliar-se cada vez mais para si. No começo, é um círculo estreito de pessoas e objetos que diretamente o circundam, interage com eles, tem uma percepção sensorial deles, assimila o que pode ser conhecido sobre eles e desenvolve um aprendizado de seus significados. Mas, posteriormente, começa a desdobrar-se diante de si uma atividade que se encontra muito além dos limites de sua atividade prática e de seu contato direto: mudam os limites do mundo que lhe é cognoscível e representável. O ‘campo’ real que agora determina suas ações não é o que está simplesmente presente, mas o que existe para ele, existe objetivamente ou, às vezes, apenas de forma ilusória. (Leontiev, 1984, p. 163)

Culturalmente, a brincadeira exerce uma forte influência motivacional na atividade da criança. Na adolescência, esses motivos deixam de exercer um papel principal, embora nunca desapareçam por completo. O que acontece de diferente com o adolescente é que ele começa a ter mais autonomia para agir. Os laços afetivos não desaparecem, apenas se deslocam para outras esferas sociais. A motivação com o jogo, a sua ligação com “motivos compreensíveis”, estimulados afetivamente pelos pais e pela professora do primário, passam a ter, na adolescência, uma nova necessidade orientadora: a de pertencimento a um grupo de colegas - a sua “tribo”.

Na sala de aula os jovens estabelecem contato próximo, criam vínculo afetivo e estabelecem um ethos como modo de pensar comum surgido da emoção ou paixão compartilhada e do sentimento coletivo de pertença. (Dias; March,2012, p.7)

Assim como, no caso de uma criança, motivada com a brincadeira, é esperado que um adolescente do Ensino Médio, motivado em pertencer a uma turma de amigos, ainda não tenha desenvolvido uma motivação pelo conhecimento científico, em seu caráter mais duradouro.

O motivo cognitivo, embora possa não presidir a Atividade Dominante no adolescente, está cada vez mais presente nas suas relações sociais. Ele não sai com os colegas apenas para ir ao cinema e tomar sorvete. Há também o interesse em estudar juntos, ainda que estudar seja um pretexto para estarem juntos. Dessa forma, o motivo de conhecer, influenciado pela escola básica e orientado para uma necessidade de pertença, prepara o caminho do adolescente para a entrada em uma dimensão mais autônoma do conhecimento que se dá no contexto do Ensino Superior. Isso harmoniza com as ideias de que:

O surgimento ontogenético da atividade de aprendizado, pelo menos nas sociedades capitalistas atuais, possa ocorrer com maior probabilidade na idade adulta ou na adolescência, quando o sujeito enfrenta, histórica e individualmente, contradições internas em sua atividade principal - seja no trabalho, escola, ciência ou arte. (Engeström,1987, p.144).

Quando o assunto é a motivação metacognitiva, ligada ao interesse com a autorregulação do conhecimento, interpreta-se que isso também carece de um desenvolvimento prévio, uma vez que o estudante precisa se apoiar em “histórico de interações autorregulatórias”, conforme sustenta Brown (1987, p.103). Em outras palavras, se a Educação Básica não desenvolve a motivação com o autoconhecimento, dificilmente ela aparecerá de forma espontânea no estudante do Ensino Superior.

Dessa forma, os principais compromissos que presidem a atividade do estudante em um curso superior de Física são os cognitivos e metacognitivos. Nesse nível de ensino, é mais provável encontrar estudante atravessando madrugadas, tentando resolver um problema, mesmo sendo informado de que tal temática não “cairá na prova”. Nesse contexto, também é razoável pensar em estudante substituindo seu momento de lazer com amigos para estar no laboratório de Física, fazendo dele o seu espaço predileto de confirmação de teorias e construção de significados. Na licenciatura, além das motivações com o objeto da ciência, a expectativa é que os discentes tenham interesse com aspectos epistemológicos, ligados à forma como o sujeito aprende tal conteúdo. Seja na licenciatura ou no bacharelado de Física, o fato é que, no nível superior de ensino, o engajamento principal que se espera do aluno é com o conhecimento e sua natureza, não sendo necessário motivá-lo para isso.

Porém, se o estudante do Ensino Médio não é iniciado nesses protocolos da Educação Superior, resta esperar que ele chegue imbuído dessas aspirações a partir de uma curiosidade epistemológica natural ou instigada pela própria esfera histórico-cultural. A primeira hipótese é descartada pela demonstração das “caçadas primitivas” de Leontiev (1978), discutidas no presente estudo. Dessa forma, resta analisar se a motivação de pertença dos estudantes do Ensino Médio satisfaz o motivo de aprendizado esperado no curso superior de Física.

Sobre isso, argumenta-se que a opção em fazer o curso Superior de Física está mais relacionada aos valores que a mídia, a escola, os colegas e as pessoas mais próximas do estudante do Ensino Médio atribuem a esse conhecimento e menos direcionada ao motivo autônomo de conhecer essa ciência. Ao considerar que o estudante do nível médio interage com seus pares, motivado pelo sentimento de pertença, há pouca chance de que a motivação cognitiva ou metacognitiva apareça, espontaneamente, sob influência do ciclo de convivência desses jovens. Mesmo quando consideramos o papel dos familiares na formação dos motivos, o estudo de Silva e Barbosa (2019) apresenta dados, indicando que a escolha dos candidatos à vaga em cursos de licenciatura de Física tem relação com o capital cultural e econômico dos pais, sendo que poucos deles conhecem a realidade de cursos de graduação ou pós-graduação. Isso corrobora com a ideia de que o motivo depende, não só de uma vontade, mas das condições externo-sociais para que tenha um caráter efetivo.

Ainda que ocorra como dilema “do que fazer depois do ensino médio”, essa imaginação não dá conta de revelar a eles o sentido do que se faz em um curso superior de Física. Logo, essa “contradição quaternária” é percebida quando o estudante entra no curso e confronta realidade e estereótipo. Não havendo contradições que exijam a superação de seus interesses, eles seguem harmonizados com os motivos que se avizinham da atividade dominante precedente. Por essa razão, o ato de ingressar no curso superior de Física pode desencadear o motivo de aprendizado, bem como permanecer interessado nas relações mais imediatas de pertença. De toda forma, é na esfera de contato com a cultura acadêmica que se encontram as explicações para tais influências de cognição e metacognição. Na falta dessas experiências, o que preexiste é a motivação de pertença que identificamos ser a causa sociocultural da principal atividade de jovens estudantes do Ensino Médio.

Mesmo tendo sua atividade orientada para seus pares, o estímulo mais importante que o estudante recebe para conhecer sobre ciências não surge dessa interação, mas sim das tarefas do contexto escolar. Para Engeström (1987), a escola é a instituição socialmente central e organizada que proclama a aprendizagem humana como seu objetivo. Dessa forma, a escola é fundamental para a indução de um novo motivo, ligado ao conhecimento.

Ao se agruparem em função de algum tipo de afinidade, os jovens têm uma grande oportunidade de conversa aberta sobre o que fazer da vida. Embora sejam manifestações, aparentemente espontâneas, essas discussões não são totalmente livres de influências externas. As expectativas desses estudantes, quanto ao ingresso em curso superior de Física, são alimentadas por diversos canais. A mídia, por exemplo, é um meio bastante influente de formação das ideias do estudante, acerca do que faz um físico. Nesse contexto de jovens em diálogo, surgem também os rótulos que, em função da imagem socializada sobre o cientista, acabam colando o perfil do sujeito ao perfil do conhecimento - é muito comum dizerem: “você é um nerd, tem cara de que vai fazer Física”.

Essas representações, muitas vezes distorcidas, sobre o que se faz em um curso de Física, são algumas das razões que tornam os compromissos de aprendizado do Ensino Superior conflitantes com a motivação de estudantes do Ensino Básico. Uma causa mais essencial disso é a ausência de programas de iniciação científica em muitas escolas de nível médio no Brasil, conforme fica claro em Costa e Zompero (2017). Tal lacuna, acaba gerando condições para que a atividade desenvolvida em um curso superior de Física prevaleça como uma ideia distorcida. Uma consequência é a desilusão que ocasiona elevados níveis de desistências e ou mudanças de cursos, implicando inclusive, em enorme desperdício financeiro governamental.

Por outro lado, um aspecto potencial para o desenvolvimento motivacional se encontra no fato de que o estudante não adentra no nível superior de ensino como alguém totalmente desorientado sobre a atividade que ocorre lá dentro. Essa “ponte” entre a motivação cognitiva, do Ensino Superior, e a motivação de pertença, do Ensino Médio, se materializa pelo trabalho daquele que vivenciou compromissos oriundos desses dois contextos: o professor.

A formação profissional é parte da cultura dos “saberes docentes”, materializados na prática do educador. A sua iniciação na docência é diferente da que ocorre em outras carreiras. De modo geral, ela acontece ao longo da própria vida escolar, pela imagem que vem criando acerca dos seus professores, desde a infância. Nas licenciaturas em Física, essa atividade assume um caráter formal quando o licenciando entra em contato com o currículo subdividido desse conhecimento e com as disciplinas didático-pedagógicas. Tudo isso é articulado com práticas laboratoriais, metodologias e estágio supervisionado obrigatório. Finalmente, ele regressa à escola, assumindo a frente da sala de aula com a experiência dessas duas realidades: a do Ensino Básico e a do Ensino Superior. Isso torna o docente o principal mediador da motivação de pertença coletiva de jovens do Ensino Médio e a motivação cognitiva, mais frequente no Ensino Superior.

Evidente que desenvolver uma motivação cognitiva não é o mesmo que desenvolver um conhecimento. O conceito de motivação está muito mais ligado às funções formadoras da personalidade (desejo, vontade, necessidade, sentido da vida, entre outros) do que com obrigações escolares. Em termos motivacionais, tanto é possível apenas “provar” do conhecimento e adquirir um enorme entusiasmo na direção apontada, assim como se pode estar exposto a uma descarga cognitiva que em nada muda o estado de motivação do sujeito, na perspectiva pretendida. Embora um conhecimento específico de uma área possa assumir a forma de uma atividade motivada, ele não implica, por si só, na principal força motora da atividade do estudante na Educação Básica. Por essa razão, dentre os vários estímulos que levam o estudante a entrar no curso superior, destaca-se, em sua Atividade Dominante, não só o motivo de conhecer mais, como mais do motivo de conhecer.

Para que o estudante passe a desejar o conhecimento e sua natureza, é necessário que esse motivo seja desenvolvido. Nesse sentido, o professor tem um papel ativo no processo de formação e desenvolvimento da motivação do estudante até o ponto em que ele passa a assumir um compromisso com o seu próprio desenvolvimento intelectual. Isso tem implicações direta com a autonomia do sujeito, uma vez que ele é estimulado a trazer para si um compromisso com a própria aprendizagem, à medida que passa a ter o desejo, a vontade, enfim, um verdadeiro motivo de conhecimento que o direciona para certo campo epistemológico do saber.

IMPLICAÇÕES PARA A ATIVIDADE DOCENTE

A estrutura complexa pela qual se desenvolvem as motivações diz respeito a sua natureza diversa, da qual se destaca, dinamicamente, uma afinidade por um campo epistemológico, razão pela qual nem todos os estudantes se veem inclinados a se aprofundarem nos estudos da Física. Porém, a equivocada ideia de que “fazer um curso superior de Física” é uma vocação natural do estudante, nega o fato de que ele, quase sempre, não dispõe de parâmetro de iniciação científica para realizar essa escolha com maior segurança.

Ao mesmo tempo que uma cultura científica pode estimular os motivos, ela também pode formar grandes barreiras para essa transição. A confusão que se faz entre o desenvolvimento de novos motivos e o desenvolvimento linear de conteúdo acaba por gerar distâncias entre aquilo que está no campo de motivação do estudante e o que está no campo de motivação do professor. Uma mudança de motivação se faz apoiada pela apropriação gradativa de novas razões que, em última instância, passam pelo julgamento do estudante. O que se pode fazer é fornecer as condições de razoabilidade da sua emergência, uma vez que mudar o motivo diretamente é impossível pelo seu aspecto subjetivamente integrado e dinâmico.

Na prática, admite-se que há estudantes com características cognitivo-motivacionais mais desenvolvidas do que outros. No entanto, isso só reforça os argumentos teóricos de que a motivação não se desenvolve ao mesmo tempo para todos. Tratar a motivação em aprender a Física como capacidade dada no sujeito, é pernicioso porque inibe o seu enriquecimento qualitativo nos estudantes, vistos como pouco interessados, mas que podem se destacar como físicos de grande talento, futuramente. O ideal é tentar desenvolver, em todos, o prazer pelo conhecimento científico, buscando também melhorar as condições materiais para que se sintam motivados a aprofundar esse conhecimento.

As condições materiais podem limitar ou favorecer o professor em sua prática institucional, comprometida na direção do desenvolvimento motivacional. Isso é ilustrado com o caso do professor que, em projeto de iniciação científica, deseja levar os estudantes do Ensino Médio para conhecerem o curso superior de Física, com o objetivo de estimular o interesse da turma nessa área. Se bem que haja uma cooperação docente entre esses diferentes níveis de ensino, o professor pode se deparar com situações externas e adversas, em que muitas providências precisam ser reivindicadas, tais como transporte, alimentação e estadia, por exemplo. Isso demonstra que a superação, associada aos motivos, não é uma questão apenas interna do conhecimento, sendo necessárias ações de engajamento social para a sua efetivação. Dessa forma, a atividade educativa, com vistas ao desenvolvimento de novos motivos, tem implicações com a dimensão política, em consonância com as ideias de Freire (1987).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No estudo realizado, questiona-se a condição da motivação como algo que o estudante traz consigo ou como uma qualidade a ser desenvolvida nele. Esse problema conduz à discussão de base teórica que permite chegar com mais clareza ao tema do motivo. A abordagem precedente aponta para um problema de natureza ontológica da motivação, cujo delineamento trouxe uma compreensão maior acerca do perfil motivacional esperado de estudantes de Física, bem como, do papel da atividade educativa nessa transição de motivos.

No que diz respeito ao argumento de que o estudante precisa chegar motivado nos cursos de Física, considera-se, de fato, o desejado. Os argumentos desenvolvidos sugerem que não há razão para que o estudante do Ensino Médio saia desse nível sem um direcionamento de seu motivo principal, no sentido de um campo epistemológico afim. O fato de o estudante ter Atividade Dominante motivada pela necessidade de pertença deve corroborar com o motivo cognitivo da ciência, introduzido por meio da atividade educativa. O motivo de conhecimento em uma área, mais ligada à atividade do professor, pode ser desenvolvido e elevado à classe de importância principal para o estudante, ao final do nível básico de ensino. Portanto, esse deve ser um dos objetivos do Ensino Médio, no tocante à motivação.

Quanto à motivação para a Física, é preciso também romper com a ideia de que o rigor metódico dessa disciplina se opõe ao prazer em conhecer. Como a curiosidade é algo que se desenvolve muito cedo no indivíduo, há sempre a possibilidade do seu estágio ingênuo ser superado pela apreensão de uma curiosidade epistemológica, como sustentado por Freire (1996).

Dessa forma, o equívoco acerca das motivações do estudante são as ideias distorcidas de prontidão do sujeito. Esperar que o estudante ingresse no curso superior de Física comprometido com o aprendizado, é pressupor que ele chegue, motivadamente pronto, sem que tenha experimentado as contradições existentes entre esses níveis de ensino, na direção do que Engeström (1987) aponta. Por outro lado, essa expectativa de prévia aptidão decorre da ontologia que atribui ao motivo uma causa natural e espontânea no ser humano.

Esse pensamento dá origem à crença de que estudantes escolhem fazer um curso de Física porque têm inclinações individuais ou próprias de sua esfera educacional básica, as quais se espera que sejam equivalentes às que predominam no nível especializado. Pelos argumentos de Leontiev (1978;1984), demonstra-se que esse desenvolvimento natural não se sustenta, uma vez que o motivo de conhecer do estudante surge em conexão com as aspirações presentes no seu contexto sociocultural.

Também fica evidenciado que existem limites culturais, condicionados pelos círculos de convivência de jovens estudantes, os quais podem ser transformados pelos estímulos sociais e instrumentais ligados ao motivo de conhecimento científico. Dessa compreensão, resulta a importância não só da escola, mas da inter-relação entre os níveis de Ensino Básico e Superior, o que permite identificar o papel mediador do professor nesse processo de transformação dos motivos de pertença em motivo cognitivo na Física.

A ideia de que o motivo de aprendizado na Física surge através de uma cultura espontaneamente vocacionada pode cristalizar uma outra realidade: a de ver justificada a falta de ações de iniciação científica na Educação Básica. Seguindo essa lógica de demanda espontânea, seria necessário aguardar que o motivo de conhecer surgisse das profundezas do universo psíquico para que uma condição material fosse, posteriormente, oferecida aos jovens estudantes do Ensino Médio.

Contrapondo a ideia de naturalização do motivo, os argumentos de Freire (1987) evocam a necessidade de problematização desse tema. As aspirações de jovens quanto ao ingresso em curso superior de Física, ainda que presididas por motivações ingênuas ou distorcidas, devem ser problematizadas e as condições materiais da mediação entre os diferentes motivos existentes nesses níveis de ensino precisam ser reivindicadas como uma política pública. Consequentemente, o estudo em questão aponta para a importância de investir na formação do Professor de Física do Ensino Médio, visando também a sua qualificação como orientador da iniciação de motivos pertinentes às atividades do curso superior nessa área.

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Recebido: 02 de Fevereiro de 2021; Aceito: 22 de Junho de 2021

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Magno Barbosa Dias - Doutor em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia, Professor de Física Geral (Departamento de Ensino) no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais- Campus Arçuaí- MG, Brasil, E-mail: magno.dias@ifnmg.edu.br

Maria Cristina Martins Penido - Doutora pela Faculdade de Educação da USP, Professora Titular (Departamento de Física) na Universidade Federal da Bahia-Salvador-BA, Brasil, E-mail: mcrispenido@gmail.com

Editor responsável: Geide Rosa Coelho

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