SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CURRÍCULOS NÔMADES: CONEXÕES COM A FILOSOFIA PÓS-ESTRUTURALISTAA REPRESENTAÇÃO DO ANIMAL COMO RECURSO DIDÁTICO: ETAPA 2 DO MODELO DE RECONSTRUÇÃO EDUCACIONAL (MRE) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

versão impressa ISSN 1415-2150versão On-line ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.24  Belo Horizonte  2022  Epub 10-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/1983-21172022240107 

Artigos

O CASO MARIE CURIE PELA LENTE DA HISTÓRIA CULTURAL DA CIÊNCIA: DISCUTINDO RELAÇÕES ENTRE MULHERES, CIÊNCIA E PATRIARCADO NA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

EL CASO MARIE CURIE A TRAVÉS DEL LENTE DE LA HISTORIA CULTURAL DE LA CIENCIA: DISCUTIR LAS RELACIONES ENTRE MUJERES, CIENCIA Y PATRIARCADO EN LA EDUCACIÓN CIENTÍFICA

1 Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO:

A pesquisa aqui apresentada foi construída na premissa que a educação em ciências deve superar um ensino voltado à aprendizagem de conceitos científicos, indo em direção a uma educação crítica e conectada com questões políticas da modernidade, como as relações entre ciência e patriarcado. A partir da recorrência na literatura de Marie Curie como exemplo de mulher na ciência, desenvolvemos a pesquisa com vistas a responder a seguinte questão: quais condições possibilitaram Marie Curie a participar da ciência e como a compreensão dessas condições permite caminhos na educação em ciências capazes de promover discussões a respeito dos baixos números de exemplos femininos na história da ciência. Com base em referenciais da educação em ciências e da História Cultural da Ciência, construímos subsídios para responder à pergunta de pesquisa, apontando que trazer exemplos de mulheres na ciência é insuficiente para uma suposta representatividade feminina. Isso porque a visibilidade de uma cientista depende de suas condições de participar das práticas científicas e, portanto, para termos mais mulheres na ciência, as condições estruturais para elas trabalharem devem ser ampliadas.

Palavras-chave: Mulheres na ciência; Patriarcado; Educação em ciências

RESUMEN:

La investigación presentada se fundamentó en la premisa que la educación científica busca superar una enseñanza orientada hacia el aprendizaje de conceptos científicos, avanzando hacia una educación crítica y conectada con las cuestiones políticas modernas, como las relaciones entre las ciencias y el patriarcado. Partiendo de la recurrencia en la literatura de Marie Curie como ejemplo de mujer en la ciencia, desarrollamos una investigación con miras a contestar a la siguiente pregunta: qué condiciones permitieron a Marie Curie participar en la ciencia y cómo la comprensión de estas condiciones permite trazar caminos en la educación científica que estimulen las discusiones sobre el bajo número de ejemplos femeninos en la historia de la ciencia. Basados en referencias de la educación científica y la Historia Cultural de la Ciencia, construimos soportes para contestar la pregunta de la investigación, señalando que utilizar ejemplos de mujeres en la ciencia es insuficiente para una supuesta representatividad femenina. Esto porque la visibilidad de una científica depende de sus condiciones para participar en las prácticas científicas y, por lo tanto, para que haya más mujeres en la ciencia, se deben ampliar las condiciones estructurales para que puedan trabajar.

Palabras clave: Mujeres en la ciencia; Patriarcado; Educación científica

ABSTRACT:

This study was developed from the perspective that science education must overcome teaching that focuses on scientific concepts, moving towards critical science education connected with the current political issues, as the relations between science and patriarchy. Marie Curie is a recurrent example in the literature of a woman in science. From this, we develop a study to answer the question: what conditions enabled Marie Curie to participate in science, and how the understanding of these conditions allows discussions in science education about the low occurrence of female examples in the history of science. Based on the Cultural History of Science approach and references from science education, the results indicate that discussing female scientist examples is insufficient to a female representation in science. The visibility of women in science is linked to the conditions to participate in scientific practices. Therefore, the structural conditions need to be expanded to have more women doing science.

Keywords: Women in science; Patriarchy; Science education.

INTRODUÇÃO

A educação em ciências é recorrentemente apontada como um caminho para promover visões críticas sobre ciência e sociedade (Hodson, 2010; El Jamal & Guerra, 2020; El Jamal, 2021). Entendemos que, em vista de tal perspectiva crítica e baseado em Hodson e Wong (2017), Rudolph e Horibe (2016), é preciso ultrapassar um ensino de ciências voltado à aprendizagem de conceitos científicos, indo em direção a um ensino conectado com questões políticas da modernidade, como aquelas relativas à participação das mulheres na ciência. Defendemos, assim, um viés mais politizado para a educação em ciências que considere as relações entre a exploração-dominação de grupos subjugados e a ciência, com vistas a potencializar um entendimento crítico sobre as relações entre ciência e patriarcado e a ação sociopolítica (Hodson, 2010; El Jamal, 2021).

Os resultados das pesquisas bibliográficas desenvolvidas por Prado e Rodrigues (2019) e por El Jamal e Guerra (2020) motivaram a pesquisa apresentada assim como esse olhar para a educação em ciências. Prado e Rodrigues (2019) e El Jamal e Guerra (2020) analisaram como a participação de mulheres na História da Ciência (HC) é abordada em periódicos voltados ao ensino de química. Mesmo enfocando periódicos diferentes e em décadas distintas, as duas pesquisas apontam que há poucas referências à participação de mulheres na ciência. Os resultados de El Jamal e Guerra (2020) mostram que dos 51 artigos que destacam trabalhos ou trajetórias de cientistas, apenas 11 fazem referência a alguma cientista. Além disso, Marie Curie é um nome recorrente. A cientista é destacada como a primeira e a única mulher em muitos fatos da história da ciência e apontada como um exemplo importante para incentivar as jovens mulheres para o mundo da ciência (Owens, 2009; El Jamal & Guerra, 2020).

Esses resultados nos remetem à defesa de Schiebinger (2001; 1989) de que usar exemplos de mulheres excepcionais para incentivar a participação de mulheres na ciência é insuficiente. Esse caminho acaba por sugerir que bastam incentivos às mulheres para reverter o problema de suas baixas representações na ciência, ignorando o problema da desproporcionalidade entre o número de mulheres cientistas e número de mulheres que buscaram fazer ciência e estão fora da área. Schiebinger (2001) também indica que esses exemplos excepcionais não revelam como a ausência de mulheres na ciência está relacionada ao patriarcado, nem como mudanças na estrutura das instituições científicas são necessárias para que a situação mude.

Marie Curie, por exemplo, ganhou o prêmio Nobel em 1905 e 1911, mas isso não significou a abertura de portas para as mulheres na HC. Isso é apontado na reincidência da cientista e na ausência - ou no preterimento - de outras mulheres nas pesquisas bibliográficas realizadas por Prado e Rodrigues (2019) e por El Jamal e Guerra (2020). O prêmio Nobel e outros fatores na trajetória de Marie Curie conferiram notoriedade à cientista não apenas no mundo acadêmico. Ela recebeu destaque em vários veículos de comunicação do início do século XX o que contribuiu para a consolidação de sua imagem (Quinn, 1997).

Sob essas reflexões, argumentamos que Marie Curie é uma mulher “visível” na ciência e sua visibilidade traduz, de forma análoga, a invisibilidade de outras mulheres. Consideramos, então, ser importante discutir o que podemos aprender com exemplos como esse de exceções de mulheres na ciência. Aliado a isso, o recorrente exemplo de Marie Curie, apontado por Prado e Rodrigues (2019) e por El Jamal e Guerra (2020), sugere que esse caso está presente na educação em ciências e que a cientista é bastante conhecida por professores e estudantes brasileiros. Essa percepção nos levou a indagar como podemos utilizar esse exemplo para questionar a sua própria excepcionalidade. Isso porque a discussão sobre a visibilidade de Marie Curie pode revelar quais foram as condições necessárias para que a cientista participasse das práticas científicas, assim como nos permite pensar que é a ausência dessas condições que tornam uma ampla maioria das mulheres excluída historicamente da ciência. A partir dessa perspectiva, desenvolvemos uma pesquisa à luz da vertente historiográfica da História Cultural da Ciência (HCC) sobre o caso Marie Curie, com o objetivo de responder à seguinte questão: quais condições possibilitaram Marie Curie participar da ciência e como a compreensão dessas condições permite caminhos na educação em ciências capazes de promover discussões a respeito dos baixos números de exemplos femininos na HC?

A lente historiográfica da HCC, como discutiremos na próxima seção, considera a prática científica como uma das categorias de análise, compreendendo a ciência como cultura (Pimentel, 2010). Escolhemos essa lente historiográfica porque, ao enfocar as práticas científicas que fizeram parte da trajetória de Marie Curie e da consolidação da radioatividade, podemos discutir as condições contextuais e locais para o sucesso de seu trabalho. Em linhas gerais, para discutir possibilidades de considerar questões sobre mulheres na história da ciência com estudantes, aliamos os fatores sociais, históricos e culturais à compreensão da natureza da ciência e do trabalho científico através da lente teórica da HCC (Moura & Guerra, 2016).

Para responder ao objetivo proposto, o artigo está dividido em quatro seções. Na primeira seção, traremos a fundamentação teórica da HCC e como essa lente historiográfica nos serve para estabelecer relações entre a ciência e o patriarcado. Na segunda seção, investigaremos alguns aspectos historiográficos da trajetória de Marie Curie, da consolidação da radioatividade e suas relações com as práticas científicas de institucionalização, circulação do conhecimento e experimentação. Na terceira seção, discutiremos os resultados dessa investigação e de que forma esses resultados podem inspirar caminhos na educação em ciências que vise à formação de estudantes críticos em relação à ciência e ao patriarcado. Antes das considerações finais, destacamos as articulações entre o caso Marie Curie e a educação em ciências no Brasil. Terminamos o artigo com algumas considerações finais.

PATRIARCADO E HISTÓRIA CULTURAL DA CIÊNCIA NO ENSINO

No campo da educação em ciências, os trabalhos de Brickhouse (2000; 1994) e Carlone et al (2015) apontam que questões a respeito da participação de mulheres na ciência se relacionam com a forma como as identidades das mulheres se sobrepõem ou não a identidades científicas. No trabalho de Carlone et al (2015), por exemplo, as formas como as mulheres sentem-se representadas pelos indivíduos que fazem ciência e como se reconhecem como pessoas científicas são indicadas como elementos que influenciam escolhas por uma carreira científica. Para esses trabalhos, a identidade é reconhecida como algo fundamental para se compreender a participação de mulheres na ciência. Entretanto, apesar da relevância dessa questão, deve-se considerar, como destaca Harding (2015), que a limitada presença de mulheres na ciência é decorrência também das questões estruturais nas quais a ciência é coproduzida historicamente.

Essas questões, aliadas à perspectiva de uma educação em ciências que propõe entendimentos críticos sobre ciência e sociedade (El Jamal, 2021), levaram à escolha historiográfica da HCC para a pesquisa do caso Marie Curie. De acordo com Pimentel (2010), a historiografia da HCC, derivada da Nova História Cultural na década de 1980, deixa de ser narrativa histórica exclusivamente textual, que foca no cientista individual e em sua teoria, para se tornar uma história das condições contextuais e locais do desenvolvimento da ciência, mais especificamente, do estudo das práticas científicas.

As fontes com as quais trabalha a HCC são variadas: artigos científicos e de jornais, cartas, diários, relatórios de expedições científicas, imagens científicas, documentos de instituições científicas, entre outras. A partir dessas diversas fontes, o historiador cultural da ciência estuda as práticas científicas, que são aqui entendidas como uma teia de ações, negociações e relações sociais que constituem a ciência e sustentam a atividade científica (Burke, 2008). Práticas experimentais, práticas médicas, práticas de observação, práticas de divulgação, práticas de migração, todas servem para estudarmos o comportamento dos cientistas, o contexto e as formas de produção de conhecimento (Pimentel, 2010).

Na análise das práticas científicas que sustentam o que entendemos por fazer ciência, damos ênfase às formas de produção e comunicação do conhecimento científico, aos seus meios de representação e ao contexto social e cultural de sua produção. A HCC engloba temas recorrentes dentro dos estudos culturais e sociais (Burke, 2008), tornando explícita a opção de analisar as práticas científicas e os temas que se misturam, como temas de gênero, corpo e sexualidade, raça e etnia, história e memória, entre outros (Pimentel, 2010).

A partir dessas considerações, entendemos que essa linha historiográfica permite a discussão de diversas questões, inclusive a participação das mulheres no desenvolvimento da ciência. Ademais, a HCC ajuda a perceber que ciência e sociedade se coproduzem. Assim, a HCC contribui para o entendimento de que a ciência foi e é construída sob uma estrutura patriarcal, o que também se revela em uma epistemologia que carrega em si uma visão contaminada de gênero há décadas e na invisibilidade feminina no campo (Harding, 2015; Nyhart, 2016).

Para estabelecer a relação entre ciência e patriarcado através da lente da HCC, é preciso argumentar também sobre o regime do patriarcado. De acordo com Saffioti (2015), o patriarcado é o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens. Segundo Cordeiro (2020), a família é o pilar sociológico do patriarcado, pois é na família que os membros são cooptados a performar papéis sociais dentro da sociedade patriarcal. Contudo, o patriarcado não abrange apenas a família, atravessando a sociedade e o estado. E, apesar de focar na diferença dos sexos, o patriarcado também engloba as questões de raça e classe nas relações políticas, ou seja, as mulheres estão em condição de dominação-exploração seja pelo gênero, raça ou classe (Saffioti, 2015). Isso porque, segundo Saffioti (2015), as contradições na realidade historicamente construída são causadas pelo nó frouxo entre patriarcado-racismo-capitalismo, a tríade que a autora chama de subestruturas na estrutural global.

De acordo com Saffioti (2015), o patriarcado é o sistema político mais longevo da humanidade, abrangendo os seis ou sete milênios mais recentes da história. Apesar de longevo, o patriarcado assumiu novas conformações ao longo da história conforme estruturas de poder se alteravam e intensificavam. Segundo Saffioti (2015) “de fato, como os demais fenômenos sociais, também o patriarcado está em permanente transformação” (p. 48). Considerando o patriarcado um regime cooptado pelo regime capitalista, o mesmo circula ampla e ideologicamente, o que garante sua manutenção no decorrer dos anos (Cordeiro, 2020). Além disso, embora a subordinação das mulheres aos homens seja operada de maneiras diferentes de acordo com seu tempo e lugar, “[...] a natureza do fenômeno, entretanto, é a mesma. Apresenta a legitimidade que lhe atribui sua naturalização” (Saffioti, 2015, p.107). Sendo assim, tanto o caso Marie Curie quanto a ausência de outras mulheres na ciência podem ser entendidos como reflexos do patriarcado em manutenção.

No patriarcado, a desigualdade econômica entre homens e mulheres se aprofunda com a institucionalização da educação, da qual as mulheres são excluídas desde o início desse processo (Cordeiro, 2020). Na Europa, as mulheres só tiveram amplo acesso à educação superior a partir do final do século XIX (Schiebinger, 2001). A falta de liberdade das mulheres sofreu manutenções e perdurou com o avançar do capitalismo, ocasionando a desigualdade civil e econômica feminina em relação aos homens (Saffioti, 2015). A educação feminina era forma de emancipação das mulheres, visto que o apego à autoridade do homem era essencial para a sobrevivência da esposa.

Nesse sentido, há uma indissociável relação do patriarcado com o mundo do trabalho (Saffioti, 2015; Federici, 2019). O predomínio das atividades privadas foi alocado na esfera da família e o de atividades públicas na esfera do Estado. Com a divisão sexual do trabalho, a mulher foi responsabilizada pelos trabalhos da esfera do privado, enquanto os homens pelo trabalho da esfera pública. Saffioti (2015) explica que uma sociedade pautada no regime do patriarcado constrói os gêneros masculino e feminino com papéis designados a cada um, na esfera pública e na esfera privada, respectivamente.

Essa relação do patriarcado com o mundo do trabalho reflete sobre a participação de mulheres na ciência. Schiebinger (2001; 1989) aponta que no século XIX com a Europa transformando-se numa sociedade de propriedades, as características sexuais assumiram um novo significado na determinação de quem faria ou não ciência. Nesse mesmo contexto, acontece na Europa o que Schiebinger (2001) chama de “profissionalização da ciência”. A profissionalização da ciência é concomitante à polarização das esferas pública e doméstica, colocando o trabalho em ciência dentro das universidades, indústrias, academias de ciências. Enquanto a família se mantém na esfera doméstica privada, a ciência migrou para a esfera pública. Se ao longo do século XVIII na Europa, mulheres participaram da ciência, elas o fizeram no âmbito doméstico (Opitz, 2016; Schiebinger, 2001).

A permanência da ciência no espaço público no século XIX dificultou às mulheres o acesso à ciência, visto que muitas restrições permearam o acesso amplo das mulheres nas universidades, laboratórios e outras instituições científicas (Schiebinger, 2001). Dentre as dificuldades, a principal envolvia o trabalho de reprodução social em descompasso com a institucionalização da educação e da ciência (Schiebinger, 2001). Com a ciência na esfera pública, as mulheres precisaram enfrentar muitos obstáculos para participar das práticas científicas, porque a norma do gênero as responsabilizava pela esfera privada. Dentre as poucas mulheres que ocuparam os bancos das universidades europeias, em fins do século XIX e início do XX, está Marie Curie na Universidade de Paris-Sorbonne.

Essas considerações levam-nos a defender que o estudo das práticas científicas à luz da HCC é um recurso para levar o tema mulheres na ciência à educação em ciências, estendendo-se a compreensão da ciência como um coproduto de uma sociedade patriarcal (Harding, 2015). E, assim, através do estudo das práticas científicas como práticas culturais podemos entender não apenas como a ciência se construiu, mas quem se beneficiou e quem sofreu com essa formação (Nyhart, 2016). Com isso, possibilita-se discussões a respeito das dificuldades estabelecidas às mulheres na ciência, em que fatores políticos, sociais, culturais e econômicos podem alinhar-se na dominação-exploração das mulheres (Harding, 2015; Saffioti, 2015).

A historiografia da HCC é, portanto, uma escolha política, no sentido de que essa abordagem se descompromete com discursos triunfalistas e não centraliza o(a) cientista em si, mas propõe analisar seu entorno, a partir do estudo das práticas científicas durante o desenvolvimento de um tema científico. Na próxima seção, retornaremos à discussão da HCC por meio do relato dos resultados de uma pesquisa histórica sobre a trajetória de Marie Curie. Com isso, discutiremos algumas condições que levaram aquela mulher ao reconhecimento, ou seja, à visibilidade como cientista numa sociedade patriarcal.

O aporte historiográfico da HCC nos impulsionou a estabelecer um estudo micro histórico, focando na análise de práticas científicas estabelecidas durante a emersão da radioatividade na trajetória de Marie Curie. A partir das obras de Pugliese (2012) e Quinn (1997) sobre a cientista e de Martins (1998a; 1998b) sobre radioatividade, construímos um olhar sobre o episódio histórico. Esse panorama e o reconhecimento de que a cientista viveu e trabalhou na França nos fez elencar três práticas naquele contexto: a institucionalização da educação feminina na França, a circulação de pessoas e conhecimento, e a experimentação. Definidas as práticas científicas a serem exploradas, tomamos como fontes primárias os discursos de Marie Curie e Pierre Curie durante o recebimento dos prêmios Nobel de 1903 e 1911, os artigos publicados por Marie Curie e Henri Bequerel e o diário da cientista reproduzido na obra de Monteiro (2019). Além das obras de Pugliese, Quinn e Martins, tomamos como fontes secundárias os trabalhos de Weisz (1983), Picard (2010), Moulinier (2002), Sigrist, (2009) e Mayeur (2007), para estudar a institucionalização da educação feminina na França. E os trabalhos de Livingstone (2003), Fyfe, (2016), Opitz (2016) e Kirby (2016) que contribuíram tanto para a síntese sobre a circulação de pessoas e conhecimento, quanto para a síntese sobre experimentação.

A pergunta e olhar micro histórico que guiaram a pesquisa nos levaram a discutir a questão do patriarcado e da participação de mulheres na ciência com base exclusiva no caso Marie Curie. Dessa forma, com base nas fontes analisadas não é possível tecer comparações entre a formação da cientista com a de mulheres latinas em seu contexto. Entendemos, entretanto, que ao focar em um contexto particular podemos destacar de forma mais específica as relações de poder ali estabelecidas e com isso proporcionar reflexões mais gerais sobre patriarcado e ciência.

PRÁTICAS CIENTÍFICAS NO CASO MARIE CURIE

Nessa seção, relatamos a pesquisa sobre o caso Marie Curie à luz da lente historiográfica da HCC, a partir de três subseções que tratam de práticas relevantes para responder à pergunta de pesquisa: as práticas de institucionalização da educação feminina na França, as de circulação do conhecimento científico e as de experimentação.

Institucionalização da educação feminina na França XIX

O estudo da institucionalização da educação feminina na França no século XIX nos permite compreender que a entrada das mulheres nas universidades foi um processo gradual e lento naquele contexto (Weisz, 1983). No fim do século XIX, quando o número de matrículas femininas no ensino superior francês começou a crescer, as mulheres procuravam mais pelos cursos de artes e letras (Weisz, 1983). Nesse contexto, Marie Curie chegou a Paris-Sorbonne.

A cientista com o nome original de Maria Salomea Sklodowska (1867-1934) nasceu em Varsóvia, capital polonesa que era parte do Império Russo. De 1772 a 1795, o território polaco foi dividido entre o Reino da Prússia, o Império Russo e a Áustria (Pugliese, 2012). Portanto, Maria Sklodowska vivia na Polônia enquanto colônia, que recuperou sua independência apenas no final da Primeira Guerra, em 1918, quando a cientista já estava na França.

Seu pai, Wladislaw Sklodowski (1832-1902), era professor de física e matemática e sua mãe, Bronislawa Sklodowska (1835-1878), diretora de uma escola para meninas. Ambos eram envolvidos com o ensino de ciências e tinham em casa laboratórios improvisados para suas atividades de ensino (Quinn, 1997). Marie que já era estimulada pela ciência em casa, se destacava como a melhor aluna de sua turma na escola. Aos 15 anos, ela terminou a escola em primeiro lugar em todas as matérias. Entretanto, na Polônia tomada pelos russos, as mulheres só conseguiam frequentar as “universidades voadoras”, que eram universidades clandestinas frequentadas em sua maioria por mulheres que sonhavam continuar seus estudos nas poucas universidades no estrangeiro que as aceitavam (Pugliese, 2012). Um exemplo de “universidade voadora” era a Flying University, na qual Marie Curie começou seus estudos científicos, que funcionou de 1885 a 1905, em Varsóvia sob o controle do Império Russo (Quinn, 1997).

Aos 24 anos, na intenção de continuar os estudos, Maria Salomea Sklodowska partiu para Paris, seguindo sua irmã mais velha Bronislawa Dluska (1985-1939)1 para estudar física e matemática na Universidade Paris-Sorbonne (1971-2017), anteriormente parte constitutiva da Universidade de Paris IV (Pugliese, 2012). Maria Sklodowska teve ajuda de seu pai para migrar para França e se matriculou na Universidade, mesmo com poucos recursos. Em Paris, assim como fazia na Polônia, trabalhou como governanta para custear parte dos seus estudos (Quinn, 1997).

Antes de alugar um sótão perto do Quartier Latin, bairro que por ser próximo à Universidade de Paris era residido por muitos estudantes e intelectuais, Maria Sklodowska morou com a irmã e o cunhado. Em 1893, concluiu graduação em Física, Química e História Natural e começou a trabalhar no laboratório industrial do seu professor Gabriel Lippmann (1845-1921). Enquanto isso, com a ajuda de uma bolsa de estudos oferecida para alunos estrangeiros e de excelência, cursou uma segunda graduação na Sorbonne, em matemática, que concluiu no ano de 1894.

No ano em que começou sua carreira científica, ela conheceu Pierre Curie (1859-1906). O interesse de ambos pelas ciências naturais aproximou o casal. Pierre era professor na Escola de Física e Química Industrial de Paris (EPCI). Eles foram apresentados pelo físico polonês Józef Wierusz-Kowalski (1866-1927), que ouvira que Maria Sklodowska procurava um laboratório para realizar seus trabalhos e pensou que Pierre poderia ajudá-la. Apesar de Pierre não possuir um laboratório grande, ele disponibilizou um espaço para Maria (Pugliese, 2012).

Maria Sklodowska, em julho de 1895, casou-se com Pierre Curie, passando a ser chamada de Marie Curie. A mudança do nome advinda do casamento, segundo Pugliese (2012), a colocou numa posição diferenciada. Naquele contexto, os poloneses não tinham o mesmo prestígio que os franceses nas universidades e espaços científicos. Apesar do sotaque de Marie Curie, seu novo sobrenome escondia, por vezes, sua origem polonesa e, por outras, atiçava os patriotas eugenistas (Pugliese, 2012). Seu casamento com Pierre Curie teve um papel relevante tanto em seu “afrancesamento”,2 quanto em sua introdução no ambiente acadêmico. Pierre era homem e tinha relações sociais importantes no meio acadêmico (Pugliese, 2012).

Em 1896, já casada, Marie Curie adquiriu o certificado para ministrar aulas para o ensino secundário de meninas (Quinn, 1997). Apesar de limitar os saberes que deveriam ser aprendidos pelas mulheres, a institucionalização da educação feminina na França era uma grande novidade (Quinn, 1997). As novas escolas voltadas à educação feminina procuravam professores das grandes universidades e faculdades francesas (Weisz, 1983). Marie Curie ingressou como a primeira mulher a participar do corpo docente da escola de Sèvres (Quinn, 1997), escola pública de ensino secundário para meninas, fundada em 1881 no início da Terceira República (1870-1940) (Quinn, 1997).

A educação das mulheres na França do século XIX, no contexto de Marie Curie, estava diretamente relacionada com a política da Terceira República. Havia um grande movimento do regime republicano para tirar a educação da influência da igreja católica. O ensino superior tinha um papel a desempenhar no treinamento de elite e a educação secundária católica estava produzindo uma elite com visões sociais e políticas consideradas opostas ao regime (Weisz, 1983). Dessa forma, os republicanos empenharam seus esforços em laicizar o ensino. Como a educação secundária feminina era até então responsabilidade da igreja, ela foi o primeiro alvo do processo de laicização do ensino secundário.

Até então, o ensino primário e secundário conservava forte conotação religiosa devido à lei Falloux de 1850, que obrigava todos os educadores a inscrever o catecismo no currículo e a levar os estudantes à missa (Weisz, 1983). Como já destacado, com o início da Terceira República, os dirigentes do novo regime desejavam cidadãos instruídos e propunham excluir a religião do ensino. Assim, foi aprovada, em 21 de dezembro de 1880, a lei Camille Sée, que instaurou o acesso ao ensino secundário público para meninas e o curso de religião foi substituído por cursos de moral (Mayeur, 2007). Foi nesse contexto que, em 1881, foi aprovada a criação da Escola Normal Superior de Sévres com vistas à formação de professoras mulheres para os liceus.

Com a lei Camille Sée, os republicanos não tinham a intenção de preencher a lacuna intelectual entre os dois sexos, o que se concretizava pelo fato de o currículo para meninas excluir as humanidades e a filosofia clássica, e não ter a intenção de prepará-las para ingressar nas universidades (Mayeur, 2007). Para os defensores do novo sistema, a verdadeira questão era política: a educação secundária pública para mulheres desejava um ensino laico para as futuras mães e, assim, afastar a educação de crianças da influência clerical. Em termos de educação da mulher, a Terceira República não era nem igualitária nem emancipatória, ela era laica (Mayeur, 2007). Entretanto, o estabelecimento de um sistema de educação secundária para meninas, em 1880, foi um grande divisor de águas, porque produziu uma clientela pronta para as universidades.

Apesar disso, até a virada do século XIX para o século XX, a presença de mulheres em todas as universidades francesas era baixa, nunca ultrapassando 3% do número total de estudantes (Weisz, 1983). Nesse pequeno grupo, a maioria das estudantes integrava os cursos de humanidades (Weisz, 1983). Os estudantes que procuravam os cursos de ciência, em geral, seguiam os estudos até o doutorado e, como reflexo daquela sociedade patriarcal, pouquíssimas mulheres permaneciam tanto tempo na Universidade e longe da esfera privada (Schiebinger, 2001).

Tal porcentagem estudantil feminina era composta, em grande parte, por estrangeiras, que vieram à França em busca de uma educação universitária, inacessível em seu país, ou atraídas pelo prestígio da metrópole cultural (Sigrist, 2009). Maria Sklodowska foi uma dessas estudantes estrangeiras, ela fazia parte de um grupo de 23 mulheres dentre dois mil estudantes matriculados na Faculdade de Ciências da Universidade de Paris-Sorbonne, em 1891, uma década após a aprovação da lei Camille Sée (Quinn, 1997).

A Universidade de Paris respondia por quase metade das matrículas femininas no ensino superior francês, sendo também a mais frequentada por estrangeiros de ambos os sexos (Sigrist, 2009). Picard (2010) destaca que nesse contexto havia uma centralidade do conhecimento científico na capital francesa. As universidades fora da capital eram menos reconhecidas. Dessa forma, em Paris, concentrou-se a maior parte da produção científica francesa e com isso maior visibilidade para a metrópole (Picard, 2010).

Para a trajetória de sucesso de Marie Curie, portanto, estar no polo universitário da capital teve seu papel. Para os que desejavam a carreira científica havia boas razões para tentar a sorte na capital, atraídos para a Sorbonne pela eminência de seu corpo docente e pelas perspectivas de vida na capital (Weisz, 1983; Picard, 2010). O corpo docente da Sorbonne, especialmente, era formado por professores de grandes instituições de pesquisa e tinha contato com a comunidade científica internacional. Nota-se, ainda, que o diploma da área de ciências mais cobiçado era o diploma único em Física, Química e História Natural (PCN), instituído em 1893 na Paris-Sorbonne, que foi obtido por Marie Curie.

A forma de ingresso de estudantes na Universidade de Paris-Sorbonne se deu de diferentes maneiras ao longo da história da instituição. Durante a maior parte de sua história, a Universidade exigiu o pagamento de taxas anuais e taxas de ingresso, além da realização de provas de concurso (Weisz,1983; Picard, 2010). Embora, a partir de 1800, o ensino secundário fosse gratuito para as meninas e o ensino superior oferecesse bolsas de estudo para franceses e estrangeiros, ingressar no ensino superior exigia certas condições materiais, como os custos relacionados à migração e moradia. Dessa forma, podemos destacar que o fato de Marie Curie obter uma bolsa de estudos foi fundamental para que completasse uma segunda graduação em Matemática (Quinn, 1997).

Em relação ao perfil dos estudantes do Quartier Latin, a maioria era pertencente ao gênero masculino à classe social burguesa, embora o feminino tenha se imposto aos poucos (Moulinier, 2002). Nesse contexto, em 1891, Marie Curie ingressou na Sorbonne e, após morar com a irmã, alugou um sótão no bairro. Devido aos custos da moradia na capital, ela passou três anos em quartos mal aquecidos no inverno, economizando e estudando intensamente (Quinn, 1997). Os altos custos de moradia do bairro mais próximo à Faculdade de Ciências indicam o quanto as condições materiais são necessárias para a prática científica.

O sistema de ensino superior francês entre os anos de 1863 e 1914 era bastante periférico à maioria da população, atendendo preferencialmente aos grupos sociais mais ricos (Weiz, 1983). A melhor instituição de pesquisa estava situada na capital, o que tornava o ensino inacessível para as classes mais baixas e que viviam afastadas de Paris. Em síntese, altos padrões educacionais estavam associados às classes superiores da sociedade (Weiz, 1983).

Tendo em vista o perfil elitista do ensino superior francês na época, as dificuldades de ingresso de mulheres nas carreiras científicas não se justificam apenas pelas normas do gênero feminino impostas pelo patriarcado, mas também pelas desigualdades econômicas impostas pelo capitalismo, o que salienta a relação entre patriarcado-capitalismo trazida por Saffioti (2015). No contexto em que a Faculdade de Ciências de Paris-Sorbonne formava estudantes, que eram em maioria homens de classes sociais abastadas, Marie Curie tornou-se a primeira mulher a obter um doutorado na Paris-Sorbonne. A prática de institucionalização da educação feminina na França implicada no caso Marie Curie se refere ao processo de legitimação da educação feminina naquele local, considerando o fato dela fazer parte de um seleto grupo de mulheres na Faculdade de Ciências (Quinn, 1997).

Circulação de pessoas e do conhecimento científico

Para o estudo do caso Marie Curie, consideramos fundamental dar atenção à circulação de pessoas e de conhecimento científico naquele contexto. Apesar da ampliação da educação feminina, os homens franceses continuaram por um tempo a constituir o maior grupo de estudantes universitários. As universidades francesas foram especialmente bem-sucedidas em atrair estudantes estrangeiros e as mulheres francesas lutaram por mudanças nas condições estruturais daquela sociedade, permitindo que a vantagem numérica de homens franceses em relação às duas novas categorias de estudantes - mulheres e estrangeiros - diminuísse durante o século XX (Sigrist, 2009).

No final do século XIX, nas universidades alemãs, havia uma oposição considerável à admissão de mulheres e estrangeiros. A inimizade com a Alemanha e a derrota francesa na guerra franco-prussiana motivou a França não só a investir na educação em todos os níveis, como também a receber, sem restrições, estrangeiros. Programas de bolsas em 1877 e 1881 para estudantes estrangeiros foram estabelecidos na Sorbonne para coordenar todas as atividades nesta esfera (Weisz, 1983).

Weisz (1983) aponta que a migração universitária para a França contribuiu para a formação das elites nos países de origem dos imigrantes. Com relação ao componente feminino desses fluxos migratórios, são sobretudo as estudantes do Leste Europeu, e mais particularmente do Império Russo que majoritariamente compuseram esse grupo. As condições políticas e sociais dos países colônia na Europa Oriental, incluindo a proibição da educação superior feminina, foram as principais responsáveis pelo afluxo em grande escala de estudantes à França (Weisz, 1983).

Como decorrência desse movimento, durante o ano acadêmico 1893, todas as universidades francesas receberam do Império Russo 83% do número total de estudantes estrangeiras (Weisz, 1983). No entanto, relatos históricos sobre estudantes russos na França incluem apenas alguns trabalhos, em sua maioria destacando o grupo masculino e em estabelecimentos de ensino técnico superior (Sigrist, 2009). Nesse caso, as trajetórias das estudantes do Império Russo na França permanecem, em muitos aspectos, desconhecidas, com exceção daquelas que como Marie Curie ganharam visibilidade após a vida universitária.

A pesquisa estatística realizada por Weisz (1983), intitulada Women Students in Universities, nos permite olhar mais de perto a população feminina nas universidades francesas. Entre 1902 e 1914, a proporção de mulheres nas universidades francesas aumentou de 3,6% para 10,1%, enquanto a de estudantes francesas aumentou apenas de 2,2% para 6,1%. Weisz (1983), também, mostra que o número de mulheres inscritas em ciência aumentou concomitantemente à tendência de crescimento do número de estudantes estrangeiras femininas na França. Marie Curie integrou esse contingente migratório, do Império Russo à França.

Os fluxos migratórios da Europa Oriental à França consistiam em mulheres em busca de oportunidades de cursar o ensino superior em um país, no qual a educação feminina estava permitida. Os estrangeiros e estrangeiras chegavam à Universidade de Paris também devido ao prestígio internacional que a instituição da capital havia conquistado. As mulheres procuravam mais pelos cursos na área de Letras e Artes do que pela área científica. Conforme Shiebinger (2001), com a ciência na esfera pública a partir do século XIX, as mulheres encontravam mais dificuldades de participar da mesma. Segundo Perrot (2006), portanto, havia um retraimento de mulheres no espaço público e uma constituição de um espaço privado familiar feminino no século XIX, na França.

De acordo com Shiebinger (2001), com a crescente profissionalização da ciência, as mulheres que queriam seguir carreiras científicas tinham duas opções. Elas podiam tentar seguir o curso de instrução e certificação pública através das universidades, como seus equivalentes masculinos, iniciativa que não levava a êxito até a virada do século XX, ou elas podiam continuar a participar no interior da esfera (privada) familiar como assistentes cada vez mais invisíveis de maridos ou irmãos cientistas. Marie Curie uma cientista polonesa que estudou na Paris-Sorbonne em fins do século XIX, apesar de ter compartilhado reconhecimento científico com seu marido em muitas premiações e nos laboratórios da universidade, alcançou a fama (Schiebinger, 2001).

A circulação do conhecimento se dava também pela divulgação e premiação de pesquisas científicas por meio de sociedades científicas que se espalharam por toda Europa (Livingstone, 2003). No contexto do caso Marie Curie, segundo Livingstone (2003), havia uma profunda “influência da geografia na produção do conhecimento científico e em seu movimento ao redor do mundo” (p. 137). A geografia do conhecimento estava centrada em países como Inglaterra, França e Alemanha. Segundo Fyfe (2016), três idiomas dominavam as publicações científicas no início do século XX: inglês, francês e alemão.

As publicações permitiam que o conhecimento circulasse de um país a outro (Livingstone, 2003; Fyfe, 2016). Foi assim que o tema dos Raios X circulou da Alemanha à França, despertando o interesse de outros pesquisadores, como Henri Becquerel (1852-1908), Pierre Curie e Marie Curie, permitindo novos campos de estudos e novos resultados na ciência. A centralidade de alguns países da Europa, em relação às redes de comunicação entre cientistas e a divulgação do conhecimento científico, provocava a notoriedade e o avanço de certas pesquisas científicas.

Estudando os raios X, Becquerel encontrou novos resultados em relação aos raios de urânio. No início de 1896, ele apresentou os primeiros resultados de suas pesquisas na Academia de Ciências de Paris. Becquerel (1896) encerrou sua comunicação de 18 de maio com a indicação de que o urânio era “o primeiro exemplo de um metal que apresenta um fenômeno da ordem de uma fosforescência invisível” (p. 1088). Assim, na mesma comunicação, o cientista expôs o fato de os compostos de urânio emitirem radiação mesmo não sendo expostos à luz.

A pesquisa de Becquerel sobre os raios de urânio foi o ponto inicial das pesquisas de Marie Curie. Ao decorrer de seus experimentos, Marie pretendeu tornar públicos os seus resultados. Entretanto, apenas homens e membros da Academia de Ciência de Paris poderiam apresentar seus trabalhos publicamente (Quinn, 1997). No século XIX, as revistas bem-sucedidas estavam nas mãos de editores com habilidades editoriais e bem influente no meio acadêmico, ademais, tanto os editores quanto os autores dos periódicos científicos eram homens (Fyfe, 2016).

Na Academia de Ciências de Paris, Marie Curie só conseguiu divulgar seus trabalhos iniciais por intermédio de Pierre Curie. Pierre não era membro da Academia, mas conseguiu convencer seu antigo professor e orientador de Marie Curie, o cientista Gabriel Lippman, a ler os resultados de sua esposa, em abril de 1898, na Academia de Ciências de Paris sobre os raios Becquerel e a radiação espontânea do urânio e do tório. Em julho do mesmo ano, o cientista Henri Becquerel apresentou na Academia uma comunicação discutindo os resultados de Marie Curie (Pugliese, 2012).

Além das comunicações entre cientistas, as Academias de Ciências eram responsáveis pela realização de premiações. A Academia de Ciências de Paris concedeu a Marie, em 1898, seu primeiro prêmio Gegner e 12 anos depois foi premiada com a medalha Berthelot (Pasachoff, 1996). Mas só em 1905, após a morte de Pierre, ela se tornou chefe de laboratório na Sorbonne e teve a primeira oportunidade de ganhar salário. Esses dados apontam para o longo tempo de permanência na pesquisa sem remuneração, uma característica do fazer científico.

Em síntese, o fato de Marie Curie ingressar num espaço acadêmico de prestígio e estabelecer relações naquele ambiente permitiram que sua produção circulasse e com isso fosse reconhecida. Outros fatores foram também fundamentais para o sucesso da cientista, como a escolha do tema de seu doutorado, que discutiremos na seção seguinte.

A experimentação da radioatividade

Marie Curie teve um caminho experimental longo, não-linear e complexo até chegar no seu dispositivo experimental que estabeleceu a radioatividade como fenômeno geral. Tal dispositivo não tratava de um instrumento de laboratório, mas de um conjunto de práticas, técnicas e outras atividades usadas para detectar a radioatividade (Pugliese, 2012). Nesse caminho, algumas pesquisas e controvérsias acompanharam a emersão do tema de doutorado na vida da cientista e a construção de seu dispositivo experimental.

A experimentação da radioatividade não tem um início determinado (Cordeiro & Peduzzi, 2010), mas podemos estabelecer que se intensifica a partir dos trabalhos do cientista alemão Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923), que detectou em experimentos um fenômeno até então desconhecido, o qual nomeou de Raios X. A Alemanha fazia parte do centro geográfico da ciência no século XIX, o que permitiu que os enigmáticos Raios X saíssem do pequeno laboratório em Würzburg, na Alemanha, e chegassem a grandes laboratórios de outras partes da Europa. Pugliese (2012) aponta que “em menos de um ano, mais de mil comunicações científicas foram publicadas sobre o assunto, e os Raios X passaram a ser o grande tema de pesquisa na Física” (p. 34). Foi assim que o tema dos Raios X circulou da Alemanha à França, despertando o interesse de outros pesquisadores, dentre eles, Henri Becquerel (1852-1908), Marie Curie e Pierre Curie.

A busca da relação entre a fosforescência e os Raios X orientou boa parte desses estudos científicos, inclusive os do francês Henri Becquerel, membro da Academia de Ciências de Paris. Um percurso de Becquerel era experimentar se outras substâncias também sensibilizavam as chapas fotográficas quando iluminadas (Martins, 1998a). A princípio, Becquerel (1896b) defendeu que os sais contidos em minérios absorviam a radiação solar e, por isso, os deixou expostos ao sol. Entretanto, o único sal que provocou o fenômeno da imagem na chapa fotográfica foi justamente aquele que ele não havia deixado exposto ao sol. Concluiu que era esse era um minério rico em urânio e que emitia uma radiação diferente da radiação solar (Pugliese, 2012). Quando Becquerel observou que, em contato com os sais de urânio, as chapas fotográficas eram sensibilizadas mesmo sem a ação da luz solar, os raios de urânio receberam um estatuto de hiperfosforescentes, o que ficou conhecido como raios Becquerel, que apresentavam diferenças em relação aos Raios X.

Becquerel relatou seus experimentos na revista científica da Academia de Ciências de Paris, em março de 1896 (1896b). Depois da divulgação dos primeiros experimentos de Becquerel, outros cientistas também pesquisaram os sais de urânio e publicaram seus trabalhos. Ainda em março de 1896, novas pesquisas surgiram em torno dos experimentos sobre os raios Becquerel na Academia de Ciências de Paris (Pugliese, 2012).

Marie Curie, desistindo de retornar à Polônia, iniciou a investigação para o seu doutorado com os raios Becquerel, que estavam em alta nos laboratórios da Sorbonne (Pugliese, 2012). Na Europa, as pesquisas sobre as radiações do urânio mostraram-se muito frutíferas, trazendo novas questões à ciência do início do século XX. Entretanto, foi nas mãos de Marie Curie, acompanhada de Pierre Curie, que o fenômeno ganhou uma nova interpretação (Cordeiro & Peduzzi, 2010). Até então o cientista Henri Becquerel divulgava com frequência resultados de suas pesquisas sobre o tema, mas sempre enfatizando a fosforescência. Marie e Pierre chegaram a um resultado que abriu novas possibilidades para se estudar o problema: a radioatividade como fenômeno geral.

Cordeiro e Peduzzi (2010) destacam que o grande diferencial de Marie e Pierre Curie no decorrer das pesquisas sobre as radiações do urânio e do tório teria sido a investigação através de métodos elétricos. Isto porque por esse método eles puderam medir a eletricidade gerada pela radiação dos elementos, o que diminuía a quantidade de erros em relação ao método fotográfico comumente utilizado. O eletromagnetismo era uma das áreas em que trabalhavam Pierre e seu irmão, para a qual inventaram um aparelho de alto grau de precisão, o eletrômetro do quartzo piezelétrico, instrumento integrante do dispositivo experimental de Marie Curie. Esse eletrômetro se mostrou capaz de medir a eletricidade gerada pelos raios do urânio (Pugliese, 2012). A parceria de Pierre Curie foi fundamental para a cientista obter um laboratório composto por uma câmara de ionização, um eletrômetro de balança de quartzo piezelétrico e o minério pechblenda, instrumentos que se mostraram fundamentais para o sucesso de sua pesquisa.

A intenção da pesquisa de doutorado de Marie Curie era, inicialmente, comparar os raios Bequerel com os raios X (Pugliese, 2012). Entretanto, sua investigação começou a ganhar proporções maiores, quando os raios do urânio se mostraram diferentes daqueles conhecidos até então, porque nada parecia afetá-los. Marie Curie, com o uso do eletrômetro a quartzo piezolétrico, concluiu que os raios emitidos pelos sais de urânio eram constantes e indiferentes a qualquer relação com o ambiente. A cientista decidiu, então, verificar se outros minérios produziam os mesmos efeitos e testou os minérios disponíveis na EPCI e que continham metais como o cobre, zinco, chumbo, estanho, platina, ferro, ouro, paládio, cádmio, antimônio, molibdênio, tungstênio e tório (Pugliese, 2012). Observou que a maioria daqueles minérios não descarregava o eletrômetro a quartzo piezelétrico, mas que esse fenômeno não era privilegio do urânio, porque compostos químicos de tório emitiam raios semelhantes aos do urânio. Esse resultado apontou que ali poderia estar manifesto um fenômeno mais geral do que algo específico ao urânio (Pugliese, 2012).

Em seguida, Marie Curie decidiu medir no eletrômetro a quartzo piezelétrico os raios dos minérios pechblenda e a calcolita. Inesperadamente, eles emitiam raios mais intensos do que a quantidade de urânio e tório que, a princípio, poderiam emitir. Anteriormente, Becquerel já havia notado que o urânio metálico produzia raios mais intensos do que qualquer um de seus compostos, o que o levou a denominar esse fenômeno de hiperfosforescência. Agora, Marie Curie se deparava com um resultado em que havia raios sendo emitidos pela pechblenda mais intensos do que o urânio metálico isolado.

Marie Curie, com a ajuda de Pierre, realizou experimentos de separação da substância ativa (urânio) na pechblenda. Após a separação, ela percebeu que a pechblenda, ao descarregar o eletrômetro a quartzo piezelétrico, ainda se mostrava mais ativa que o urânio isolado. Ela considerou o resultado importante e pretendeu torná-los público. Gabriel Lippman leu seus resultados na Academia de Ciências de Paris em abril de 1898. Em sua comunicação, Curie (1898) explicava a radiação espontânea do urânio por seu grande peso atômico, isto é, sua hipótese inicial era a de que a radioatividade era um fenômeno atômico.

Na mesma comunicação, Curie (1898) sugeria ainda um novo elemento na pechblenda. Mais uma vez a cientista encarou os métodos analíticos de separação, encontrando a primeira substância ativa que denominou “polônio”. Contudo, a pechblenda ainda emitia raios mais ativos que o suposto novo elemento. Isso sugeria que o “polônio” poderia ser, na verdade, mais de um elemento. Isso fez com que o casal realizasse mais procedimentos experimentais de química analítica, a fim de testar as substâncias separadas (Pugliese, 2012). Os experimentos os levaram a destacar um segundo elemento radioativo além do polônio, que Marie denominou de rádio.

Durante quatro anos consecutivos, a cientista se debruçou no laboratório pela radioatividade, com ajuda de Pierre. No ano de 1898, Marie e Pierre Curie apresentaram os elementos químicos - rádio e polônio - que justificariam a radioatividade como um fenômeno geral (Quinn, 1997). Segundo Pugliese (2012), a hiperfosforescência dos raios do urânio foi posta em controvérsia por meio do dispositivo experimental criado por Marie Curie, que levou a radioatividade a ser considerada um fenômeno geral.

No discurso de premiação do Nobel de Química de 1911, Marie Curie (1911) relata como suas práticas experimentais levaram-na a entender que os minérios pechblenda e calcolita eram muito mais ativos do que o previsto devido à quantidade de urânio e tório puro neles contidos. Contudo, a ideia de um novo elemento químico e, portanto, do fenômeno geral, foi recepcionada com desdém na época pelos membros da Academia de Ciências (Quinn, 1997). Não houve sequer um trabalho nas seções da Academia posteriores à leitura dos resultados de Marie, que remetesse aos seus estudos A reação inicial da comunidade científica levou Marie Curie a tentar isolar aquela substância desconhecida, a fim de fazê-la existir aos olhos da comunidade científica (Pugliese, 2012). Para essa tarefa, Marie Curie deu início a um trabalho de química analítica, com ajuda de Pierre Curie e do químico auxiliar da Escola de Física e Química Industrial de Paris (EPCI), Gustave Bèmont (1857-1937).

As práticas experimentais na radioatividade contaram com um longo e complexo percurso de pesquisas laboratoriais, financiamento, premiações, discursos, publicação de resultados, entre outros. Uma característica fundamental da experimentação, que pode ser analisada a partir das Conferências Nobel de Pierre Curie (1905) e Marie Curie (1911).3

Os experimentos para isolar os elementos sofreram sequências complexas de ir e vir, devido a resultados que não correspondiam com as expectativas dos cientistas. A Conferência Nobel proferida por Marie (1911), indica que o casal teve acesso aos trabalhos de vários cientistas, como os de Becquerel, Demarçay (com as análises espectrais), Debierne (descobriu o actínio e ajudou Marie Curie a isolar o rádio em estado metálico), Rutherford e Soddy (propuseram a teoria da transmutação dos elementos, a partir dos fenômenos radioativos propostas pelo casal). Além disso, na discussão sobre como se dava a atividade dos raios, Marie Curie defendeu que os elementos químicos de maior peso atômico absorviam “energia externa” e reemitiam em forma de energia radioativa (Curie, 1898). A partir de 1913, as investigações das causas da radioatividade ganharam novos contornos com o estabelecimento do modelo atômico de Bohr-Rutherford. Segundo Pugliese (2012), todos que quisessem estudar a radioatividade naquele contexto, teriam que tomar partido do dispositivo experimental de Marie Curie.

Para o êxito desse longo percurso experimental, foram importantes as condições materiais, a disponibilidade de tempo, o fato do casal estar num grande centro de pesquisa e ter acesso aos artigos fundacionais da área e os que deles decorreram, além da colaboração de outros cientistas. Fora isso, Marie Curie teve êxito por ter condições de estar num espaço público e não ser capturada pelos trabalhos de esfera do privado, o que não foi possível para a maioria das mulheres naquele contexto (Schiebinger, 2001; 1989; Saffioti, 2015). No que diz respeito à visibilidade de Marie Curie, é importante, ainda, destacar que a cientista dedicou longos anos à ciência junto ao trabalho da maternidade. A leitura de trechos do seu diário presente em Montero (2019) nos permite compreender que foi possível à cientista conciliar ambos os trabalhos graças à ajuda de uma babá.

No diário de 1906, escrito logo após a morte de Pierre Curie, Marie relembra o último passeio da família antes da morte de Pierre. Ela conta sobre a ida a Saint-Rémy-lès-Chevreuse, para uma casa de campo, na qual costumavam passar alguns dias na primavera e verão. Em 30 de abril de 1906, ela escreve no diário: “[...] Lá no alto, mandamos Irène e Emma à fazenda, e seguimos pela direita, tu e eu, com Ève, em busca dos lagos com nenúfares dos quais nos lembrávamos” (Curie, 1906 citado em Montero, 2019, p. 194, grifos nossos).

Em trechos do diário, aparece o nome de Emma, a babá de suas filhas. Sabe-se que Marie Curie contava com a ajuda de outras mulheres, babás para suas filhas, o que tornava suas possibilidades de trabalho fora de casa ampliadas. Nessas memórias, a cientista mencionou várias vezes Emma, a mulher que a ajudava com os trabalhos de cuidado da casa e dos filhos do casal. Ela escreve, por exemplo, que foi para a casa de campo, em Saint-Rémy-lès-Chevreuse, com suas filhas, onde seria mais fácil passar os dias sem babá. Marie queria que Pierre Curie ficasse em St. Rémy com ela e as meninas, mas ele insistiu em voltar ao laboratório. No dia 30 de abril de 1906, Marie descreve em seu diário a manhã final, o instante em que o marido foi embora de casa:

[...] Parti para St. Rémy na sexta-feira antes da Páscoa, era o dia 13 de abril, achei que faria bem a Irène e pensei que ali seria mais fácil cuidar de Ève sem a babá. [...] Emma voltou e tu a criticaste por não manter a casa bem o suficiente (ela havia pedido um aumento). Estavas saindo, tinhas pressa, eu estava cuidando das meninas, e foste embora perguntando em voz baixa se eu iria ao laboratório. Respondi que não sabia e pedi que não me atormentasses. E justo aí foste embora; a última frase que dirigi a ti não foi uma frase de amor e ternura. Depois, só te vi de novo morto. (Curie, 1906 citado em Montero, 2019, p. 189, grifos nossos)

A presença de uma mulher trabalhando como babá na esfera privada da família Curie para possibilitar o trabalho de Marie na esfera pública é também uma questão de divisão de classe, importante para compreender a manutenção do patriarcado, trazida por Perrot (2006), Saffioti (2015) e Biroli (2018). De acordo com Perrot (2006), havia um retraimento de mulheres no espaço público e uma constituição de um espaço privado familiar feminino no século XIX, na França. Tal retraimento era uma questão de gênero que abarcava diferentes classes, sofrendo as contradições de ambas as categorias. As caseiras eram as mulheres rurais, as senhoras de casa eram as mulheres burguesas e a donas de casa eram as mulheres da cidade que se dedicavam quase exclusivamente aos trabalhos domésticos e dependiam do salário dos maridos. A diferença de classes entre as mulheres no patriarcado é elucidada na relação entre Marie Curie, enquanto mulher que trabalha como cientista no espaço público, em uma univerdade renomada, e Emma, enquanto mulher que trabalha no espaço doméstico, como babá, na casa de Marie.

Em linhas gerais, as práticas experimentais se referem ao processo de desenvolvimento da radioatividade. Essas também implicaram em financiamento para se obter local e material para realizar as pesquisas científicas, em premiações e em publicação de resultados que permitiu o conhecimento ser mais investigado ao redor do globo, através da articulação entre cientistas e suas ideias.

Sobre o caso Marie Curie, é possível perceber que na trajetória da cientista ela sofreu muitos obstáculos fincados pelo patriarcado. Nesse sentido, para a cientista permanecer na área, precisou de condições para enfrentar alguns desses obstáculos. As práticas científicas que permeiam o caso Marie Curie ajudam a compreender algumas das condições necessárias às mulheres para fazer ciência no patriarcado.

CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA AS MULHERES NA CIÊNCIA A PARTIR DO CASO MARIE CURIE

A construção da pesquisa sobre o caso Marie Curie foi feita sob a perspectiva historiográfica da HCC. Como resultado, discutiremos, nessa seção, questões que nos permitem indicar algumas das condições que possibilitaram a cientista a participar da ciência e como essas condições apontam para o porquê dos baixos números de exemplos femininos na ciência e, assim, construir subsídios para responder ao objetivo da pesquisa.

A visibilidade de Marie Curie - e a invisibilidade de outras mulheres na ciência - se expressa em diversos fatos. Dentre eles, Marie Curie foi a primeira mulher formada em ciência4 com o diploma em Física, Química e História Natural (P.C.N), quando no geral as mulheres que estudavam na França procuravam as humanidades. Foi também a primeira professora a trabalhar em um laboratório da Sorbonne, a primeira mulher na ciência a ser laureada com o Nobel, a primeira e única pessoa a receber dois prêmios Nobel e em diferentes categorias até o ano de 2021, e a única mulher a ter uma filha também ganhadora Nobel na área científica. A cientista ser a “primeira” ou a “única” em muitos desses fatos expressa não só a sua visibilidade, mas também a invisibilidade de outras e diversas mulheres na ciência.

Sobre a impossibilidade de um exame cuidadoso da história da ciência revelar equidade de gênero, El Jamal e Guerra (2020) lançam uma pergunta: se o raciocínio científico é uma competência que todos podem alcançar, então, por que as mulheres parecem estar de fora da HC? Outras mulheres dos séculos XIX e XX não se tornaram visíveis na HC, não por falta de esforço ou merecimento, mas por falta de condições melhores. A ausência de episódios diversos de mulheres na ciência aponta que muitas delas ficaram de fora da ciência devido às condições desfavoráveis do patriarcado e à impossibilidade de enfrentar os obstáculos de gênero, raça ou classe para fazer ciência.

Diferente de muitas mulheres, Marie Curie se inseriu e se destacou no meio acadêmico, enfrentando obstáculos para participar das práticas científicas. Para superar alguns desses obstáculos, foram necessárias condições mínimas e favoráveis. Ela não deve ser vista como privilegiada, mas como uma mulher que por ter condições de trabalho - ainda ausentes para uma ampla maioria das mulheres - conseguiu fazer ciência. Sendo assim, aprendemos com o caso que, para reverter o quadro de baixos números de mulheres na ciência, é preciso que essas condições se ampliem.

Por um lado, na trajetória da cientista, encontramos obstáculos fincados pelo patriarcado e, por outro lado, condições que a permitiram enfrentar alguns desses obstáculos. Um primeiro obstáculo se expressa na institucionalização da educação feminina, clandestina na Polônia e incipiente na França. Dentre as condições favoráveis, pode-se destacar primeiramente o fato de a cientista polonesa ter tido oportunidade de migrar para um centro de produção científica e se manter na capital francesa, apesar dos altos custos de moradia (Perrot, 2006; Picard, 2010; Weisz, 1983). Um segundo obstáculo se expressa na desigualdade de gênero dentre os pares no meio científico, no que diz respeito ao impedimento de publicações femininas na Academia de Ciência em seu contexto. A condição favorável para esse obstáculo é que Marie casou-se com um cientista, obtendo uma nacionalidade francesa e conquistando uma política familiar-acadêmica para si e para sua filha Irène Curie (Pugliese, 2012). Marie Curie estava na França, grande centro de circulação do conhecimento científico, ao lado de Pierre Curie, e pesquisando um tema de interesse à comunidade científica, o que lhe proporcionou relações profícuas. Um terceiro obstáculo refere-se ao trabalho de reprodução, isto é, a necessidade e a dificuldade de conciliar os ofícios de cientista e mãe, diante também da insalubridade de seu primeiro laboratório. Entretanto, Marie Curie teve condições de ocupar os espaços públicos do fazer científico da época devido ao auxílio de babás, o que a permitiu não ser capturada em totalidade pelos trabalhos de reprodução. Enquanto contava com babás para ajudá-la a cuidar de suas filhas, as possibilidades de trabalho fora de casa foram ampliadas e a cientista se dedicou durante anos aos experimentos de separação do polônio e rádio.

Além de não ter sido capturada pela divisão sexual do trabalho em sua totalidade, a cientista tinha uma família de professores que a incentivou e deu suporte em sua carreira científica. De acordo com Avraamidou (2019), a maioria das estudantes que escolhe fazer ciência é aquela que vem de famílias de classes socioeconômicas mais favorecidas e com um capital cultural maior, permitindo acesso amplo à ciência, conhecimento, museus e bibliotecas. Tal como no contexto de Marie Curie, a ciência era voltada à elite francesa do século XIX e o sistema de ensino superior francês era periférico à maioria da população (Weisz, 1983; Terrall, 1995; Picard, 2010).

Participar de práticas científicas e manter-se na ciência requer condições materiais, que implicam não apenas na possibilidade de financiamento, mas também em tempo para dedicação à pesquisa (Schiebinger, 2001; Avraamidou, 2019). De acordo com Saffioti (2015), as contradições do patriarcado não operam apenas na categoria gênero, raça ou classe, mas no nó frouxo entre as três (Saffioti, 2015). Nesse sentido, a visibilidade de pessoas na ciência parece ter relação com as contradições de classe social, raça e gênero. A análise dessas contradições ajuda a pensar sobre os obstáculos que a cientista teve que enfrentar para se tornar visível e compreender que é na falta de possibilidades para enfrentar essas contradições, que se justificam a invisibilidade de outras mulheres na ciência.

Diferente de Marie Curie, outras mulheres na história da ciência participaram do trabalho científico dentro de seus espaços domésticos e não tiveram possibilidades de engrenar em meios acadêmicos e dedicar-se à ciência. Opitz (2016), por exemplo, relata sobre a alemã Agnes Pockels (1862-1935), que experimentava filmes de superfície na década de 1900 em sua cozinha enquanto realizava responsabilidades domésticas referentes a cuidados com idosos e, por isso, Agnes não teve uma trajetória capaz de torná-la visível. Outros exemplos são destacados por Schiebinger (2001), como o caso de Margaret Huggins (esposa do astrônomo britânico Wiiliam Huggins), Edith Clements (esposa do ecologista Frederic Clements), e Mileva Maric (esposa de Albert Einstein), que contribuíram silenciosamente para as carreiras de seus maridos sem conseguir espaço de atuação nas esferas públicas.

A maior visibilidade no espaço acadêmico e científico se deve ao acesso a uma universidade de prestígio, que garantiu relações institucionais profícuas e condições para desenvolver as práticas experimentais. E essas relações puderam ser mantidas com Marie sendo mãe, pelo fato da cientista, com ajuda de outras mulheres, não ter sido capturada em sua totalidade pelos trabalhos de reprodução/domésticos. O fato de poder contar com o trabalho doméstico e de cuidado dessas outras mulheres a permitiu trabalhar fora de casa, durante longos anos, possibilitando-a se tornar visível no campo científico. Essa é uma condição não possível a todas as mulheres que estudam ciência, mesmo no século XXI, indicando ser esse um fator importante para entender a visibilidade de Marie e ao mesmo tempo a invisibilidade de muitas outras mulheres naquele e em outros contextos. Além disso, é preciso que as mulheres cientistas tenham condições materiais para se dedicar à carreira, que por muitos anos ocorre com a retribuição de bolsas de estudo. Podemos, então, entender os baixos números de mulheres na ciência em uma sociedade afetada pelas contradições do patriarcado-capitalismo (Schiebinger, 2001; Saffioti, 2015).

A presença de Marie Curie na Faculdade de Ciências de Paris e o seu dispositivo experimental, demonstrou imensa importância e um marco na história das mulheres, principalmente na França (Pugliese, 2012). Entretanto, mesmo após o caso Marie Curie, poucas mulheres são visíveis na ciência. Isso porque o êxito na ciência depende de uma variedade de fatores interdependentes, incluindo o acesso à educação e a prestigiosas instituições científicas (Schiebinger, 2001). Além disso, nas sociedades capitalistas e patriarcais, a divisão de trabalho entre emprego e lar, e o relógio da carreira acadêmica versus o relógio biológico, têm raízes históricas profundas, sendo um obstáculo ao ingresso das mulheres nas profissões (Schiebinger, 2001).

Essas considerações sobre as condições que tornaram Marie Curie visível na história da ciência e que justificam as dificuldades das mulheres nas carreiras científicas devem ser trazidas para uma educação em ciências que se pretende mais politizada, como proposto por Hodson (2010), Rudolph e Horibe (2016), Hodson e Wong (2017) e El Jamal (2021). Segundo Hodson (2010), uma educação em ciências deve incitar a racionalidade crítica dos sujeitos, formando “a base para o tipo de ação social que reforma a sociedade e suas práticas” (p.199). É nesse sentido que propomos a análise do caso Marie Curie sob a lente historiográfica da HCC. Isto porque o estudo das práticas científicas potencializa compreensões de que sem condições favoráveis e materiais para acesso e permanência em centros de conhecimento, eventuais migrações e igualdade de gênero não é possível fazer ciência. Entendendo isso, alunos e alunas podem ser mais críticos sobre ciência e patriarcado e se envolverem em ações sociopolíticas a favor de condições melhores para as mulheres na sociedade.

Conforme discutido na prática de institucionalização da educação feminina na França, a guerra franco-prussiana foi fundamental para a entrada de estudantes estrangeiras no país. Mas, além disso, movimentos feministas na França e ao redor do mundo exerceram um papel crucial para a entrada das mulheres nas universidades (Perrot, 2006). Perrot (2006) afirma que o movimento feminista francês foi tardio, assim como observa um acesso tardio das francesas ao direito do sufrágio, em comparação com os países anglo-saxões. Apesar desse atraso, percebe-se que o movimento feminista surgia em diferentes lutas das mulheres na França nos séculos XIX e XX. Portanto, apesar da entrada das mulheres no ensino superior francês acompanhar as contingências políticas da Terceira República, a educação feminina também demonstrava relações com a história e movimento das mulheres no país.

De acordo com Schiebinger (2001), as mulheres ingressaram em carreiras na ciência somente após o movimento das mulheres das décadas de 1870 e 1880 as impulsionarem às universidades. E conforme elas eram admitidas nas escolas de graduação, elas entravam em programas de doutorado, o que nos séculos XIX e XX já era um pré-requisito para dedicar-se seriamente à ciência. Infelizmente, muitas dificuldades permearam esse processo de entrada das mulheres nas universidades.

Perrot (2006) indica que o século XIX foi marcado pela divisão sexual do trabalho, pautada no discurso da diferença dos sexos. A divisão entre o público e o privado mudou com o tempo e foi acentuada no século XIX, um século liberal e constituído por um espaço político de dupla exclusão: a dos proletários e das mulheres (Perrot, 2006). Na França, concomitante à divisão sexual do trabalho estava a crescente responsabilização da mulher pelo papel da dona de casa. Nesse sentido, Marie Curie conquistava um espaço incomum às mulheres.

A modernidade do século XIX na França era caracterizada pelo confinamento e tutela das mulheres.5 Dado esse cenário de acentuação do patriarcado, desejos começaram a impulsionar um movimento de mulheres no país. A acentuada divisão entre a esfera pública e privada nesse século e as condições desfavoráveis das mulheres serviram de motivação para o nascimento incipiente de um movimento feminista no início do século XX.

Ao final do século XIX, as universidades francesas tinham uma política de ingresso para atrair jovens estrangeiros de países economicamente subdesenvolvidos. Tal como Marie Curie, os imigrantes enfrentavam altos preços de moradias nas cidades populosas. Então, em 1848, o povo exigia em Paris a suspensão de pagamentos das moradias e as mulheres eram um grupo presente na revelia contra os altos preços da capital (Perrot, 2006). No mesmo ano, as mulheres gritavam contra as congregações religiosas, os padres e conventos, que até então eram os responsáveis pela educação feminina (Perrot, 2006). Em linhas gerais, apesar das dificuldades sofridas pelas mulheres em função do patriarcado, Perrot (1995) faz questão de demonstrar que tudo o que mudou teve o papel das próprias mulheres como protagonistas das mudanças, principalmente na virada do século XIX para o XX. Segundo Perrot (1995), o desejo de conciliar trabalho assalariado - garantia de independência - e maternidade aparece na França do século XIX. Nessa mesma perspectiva, Schiebinger (2001) ressalta que a história das mulheres na ciência e sociedade não foi de avanços vitoriosos, mas de ciclos de avanço e recuo, acompanhada pelo contexto político e pelos movimentos sociais, sempre importantes para as transformações sociais na história e nas práticas científicas.

ARTICULAÇÕES ENTRE AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA AS MULHERES NA CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS NO BRASIL

A micro história sustentada pela HCC, que apresentamos nesse artigo, permite a compreensão de que existem particularidades na produção da ciência e quais são as condições necessárias para produzir ciência. Entendemos que, apesar de ser um caso de uma mulher francesa, a discussão sobre as condições de trabalho da cientista pode ser trazida à educação em ciências no Brasil para potencializar um entendimento crítico sobre as relações entre ciência e patriarcado, em prol da ação sociopolítica.

No Brasil, dados estatísticos são trazidos pelo censo da educação superior brasileira de 2019.6 O Censo revela que de 3,6 milhões de alunos que ingressam na educação superior, 84,6% estão em instituições privadas; 64% dos cursos de licenciatura estão em instituições privadas e 72,2% dos alunos matriculados em licenciatura são mulheres. Esses resultados mostram que a maioria da população brasileira que cursa o ensino superior está em instituições privadas e que a licenciatura é um título predominantemente procurado por mulheres.

Em relação ao trabalho e educação das mulheres, de acordo com as estatísticas de gênero e os indicadores sociais apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)7 em 2018, com ensino superior completo encontra-se uma minoria no país. São 23,5% de mulheres brancas, 10,4% de mulheres pretas ou pardas,8 20,7% de homens brancos e 7,0% de homens pretos ou pardos. E o tempo dedicado aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos é de 18,1 horas semanais para as mulheres no total, considerando que mulheres pretas ou pardas permanecem mais tempo do que as brancas, e de 10,5 horas semanais para homens no total. O rendimento habitual médio mensal de todos os trabalhos para as mulheres é de 1764 reais e para os homens é de 2306 reais. Bárbara Cobo, coordenadora de População e Indicadores Sociais do IBGE, conclui que as mulheres são mais escolarizadas do que os homens, mas isso ainda não está refletido no mercado de trabalho porque as mulheres estão escolhendo ocupações com uma jornada de trabalho mais flexível para que possam conciliar trabalho com a carga de afazeres domésticos. Sobre a condição das mulheres nas estruturas econômicas, participação em atividades produtivas e acesso a recursos, Bárbara Cobo acrescenta que só são resolvidas as desigualdades no mercado de trabalho através de uma política integrada de creche, visto que um dos principais fatores para as mulheres abandonarem o sistema formal escolar ou o mercado de trabalho são os afazeres domésticos.

Esses dados apontam para a falta de condições das mulheres, de um modo geral, para profissões que pressupõem tempo extenso de formação, dedicação integral e recursos materiais, como é o trabalho no campo científico. Dessa forma, nos aliamos a Hodson (2010), quando o autor aponta para um ensino e aprendizagem que preparem jovens para ações sociopolíticas. Uma educação que vise colocar em questão a representatividade de mulheres na ciência precisa promover compreensões sobre as condições históricas da participação feminina na ciência, discutindo que tais condições podem ser transformadas.

Consideramos, portanto, que o ensino de ciências precisa seguir um viés mais politizado, pelo qual os alunos e alunas sejam capazes de estabelecer relações entre a exploração-dominação de grupos subjugados e a ciência, percebendo a posição de mundo que ocupam. Isso porque, de acordo com Hodson (2010), sem a consciência crítica de suas posições de mundo, não há motivação para a ação sociopolítica. A motivação para a ação sociopolítica também se dá a partir da consciência de como e por que outros têm procurado trazer mudanças e do tipo de mundo em que nós e nossa comunidade desejamos viver (Hodson, 2010).

O exemplo histórico de Marie Curie sob a lente historiográfica da HCC mostra que para fazer parte do empreendimento científico, as mulheres precisam de condições favoráveis. Como essas condições são negadas à maioria das mulheres, os movimentos sociais são fundamentais para exigir, por exemplo, amplo acesso à educação, remuneração ao trabalho de reprodução feminino ou políticas que desresponsabilize as mulheres por tais trabalhos. Na França, por exemplo, apenas depois de uma década que as francesas conseguiram capitular o crime no Código Penal napoleônico do país, que dava direitos sexuais aos homens sobre as mulheres (Saffioti, 2015). Da mesma forma, a luta por condições melhores às mulheres no Brasil depende do movimento das próprias brasileiras.

A história revela que as grandes causas, benéficas especialmente aos contingentes discriminados e a quase todos os demais, obtiveram sucesso, apesar de terem sido conduzidas por pequenas minorias. E as brasileiras tem razões de sobra para se opor ao machismo reinante em todas as instituições sociais (Saffioti, 2015, p.49)

Abordar o caso Marie Curie à luz da HCC é um caminho para uma educação em ciências politizada. Na abordagem do caso, a discussão das condições necessárias para as mulheres na ciência pode motivar os estudantes brasileiros às ações sociopolíticas coletivas, como movimentos sociais antipatriarcais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa desenvolvida buscou construir subsídios para responder quais condições possibilitaram Marie Curie a participar da ciência e como a compreensão dessas condições permite caminhos na educação para a discussão crítica a respeito dos baixos números de exemplos femininos na ciência.

As discussões presentes no artigo se apoiam nas dificuldades geradas pela manutenção do patriarcado como justificativa para o fato de mulheres estarem em menor proporção na história da ciência. Dentre as dificuldades estão a consolidação de uma epistemologia predominante machista na ciência, a desigualdade de gênero, os papéis sociais presumidos para as mulheres, a responsabilização feminina pelo trabalho doméstico e de reprodução, a falta de acesso à educação e a falta de recursos materiais para manter-se na ciência (Federici, 2019; Harding, 2015; Saffioti, 2015; Schiebinger, 2001; 1989).

O destaque do sucesso de Marie Curie na literatura vai ao encontro dos trabalhos de Brickhouse (2000; 1994) e Carlone et al (2015), que defendem o reconhecimento de alunas com identidades científicas para inspirar mais mulheres a fazerem ciência. Nossos resultados, entretanto, apontam que trazer exemplos de mulheres na história da ciência é insuficiente para uma suposta representatividade feminina. Aprendemos com o caso Marie Curie que a visibilidade na área depende de condições de participar das práticas científicas e, portanto, para termos mais mulheres na ciência, essas condições estruturais devem ser ampliadas.

Considerando a desproporcionalidade entre homens e mulheres na HC, questionamos a ausência de uma ampla maioria de mulheres na ciência sem transformar um caso individual em exemplo triunfalista. De acordo com Schiebinger (2001; 1989), trabalhos que apenas mencionam as figuras excepcionais não questionam as dificuldades que impedem a maioria das mulheres de ingressarem nas profissões. Uma educação crítica pressupõe a compreensão das relações de poder no processo de construção da ciência, de forma a permitir discussões sobre como a estrutura das instituições científicas e do patriarcado precisam mudar, para que mais mulheres possam ingressar e permanecer em carreiras científicas (Schiebinger, 2001).

Nossa pesquisa permite agregar ao caso de uma mulher na ciência, recorrente na literatura, questões a respeito do patriarcado. Na perspectiva de uma educação conectada com questões políticas da modernidade e que promova visões críticas sobre ciência e sociedade, defendemos a importância de discussões nas aulas de ciências sobre por que razões o número de mulheres visíveis na HC é pequeno. Por meio dessas discussões, potencializamos compreensões críticas sobre ciência e patriarcado e tencionamos ações sociopolíticas pelas transformações sociais.

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq pelo financiamento da pesquisa.

O CECIMIG agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pela verba para editoração deste artigo.

REFERÊNCIAS

Avraamidou, L. (2019) “I am a young immigrant woman doing physics and on top of that I am Muslim”: Identities, intersections, and negotiations. Journal of Research in Science Teaching, 57(3), 1-31. https://doi.org/10.1002/tea.21593 [ Links ]

Becquerel, H. (1896). Emission de radiations nouvelles par l’uranium metallique. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences. Paris, 122, 1086-1088. [ Links ]

Biroli, F. (2018) Gênero e desigualdades: Limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo. [ Links ]

Brickhouse, N., Lowery, P., & Schultz, K. (2000). What Kind of a Girl Does Science? The Construction of School Science Identities. Journal of Research in Science Teaching, 37(5), 441-458. https://doi.org/10.1002/(SICI)1098-2736(200005)37:5<441::AID-TEA4>3.0.CO;2-3 [ Links ]

Brickhouse, N. (1994). Bringing in the outsiders: reshaping the sciences of the future. Journal Curriculum Studies, 26(4), 401-416. https://doi.org/10.1080/0022027940260404 [ Links ]

Burke, P. (2008) O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]

Carlone, H. B., Johnson, A., & Scott, C. (2015). Agency amidst formidable structures: How girls perform gender in science class. Journal of Research in Science Teaching, 52, 474-488. https://doi.org/10.1002/tea.21224 [ Links ]

Cordeiro, M. D. (2020). Reflexões da história do patriarcado para esses tempos de pós-verdade. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 37(3), 1374-1403. https://doi.org/10.5007/2175-7941.2020v37n3p1374 [ Links ]

Cordeiro, M. D., & Peduzzi, L. (2010). As conferências Nobel de Marie e Pierre Curie: a gênese da radioatividade no ensino. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 27(3), 473-514. https://doi.org/10.5007/2175-7941.2010v27n3p473 [ Links ]

Curie, M. (1898) Rayons émis par les composés de l’uranium et du thorium. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences. Paris, 126. [ Links ]

Curie, M. Diários de Marie Curie (1906). Apêndice. In: Montero, R. A ridícula ideia de nunca mais te ver (pp. 189-205). São Paulo: Todavia. [ Links ]

Curie, M. (1911). Marie Curie - Nobel Lecture 1911. Disponível em <Disponível em https://www.nobelprize.org/prizes/chemistry/1911/marie-curie/lecture/ >. Acesso em: 9 ago. 2020. [ Links ]

Curie, P. (1905). Pierre Curie - Nobel Lecture 1905. Disponível em <Disponível em https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1903/pierre-curie/lecture/ >. Acesso em: 04 nov. 2020. [ Links ]

El Jamal, N; Guerra, A. (2021). O Lado Invisível da História da Ciência. Discutindo a ausência de mulheres na Ciência por meio da visibilidade de Marie Curie na Educação em Ciências. (Dissertação Mestrado). Diretoria de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro. [ Links ]

El Jamal, N; Guerra, A. (2020). O lado invisível na história da ciência: uma revisão bibliográfica sob perspectivas feministas para a educação em ciências. Revista Debates em Ensino de Química, 6(2), 311-333. [ Links ]

Federici, S. (2019) Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo. [ Links ]

Fyfe, A. Journals and Periodicals(2016). In: Lightman, B. (ed.), A Companion to the History of Science (pp. 387-400). Oxford: Wiley Blackwell. [ Links ]

Gooding, D. Putting Agency Back into Experiment (1992). In: Pickering, A. (ed.), Science as a Practice and Culture (pp. 65-113). Chicago: The University of Chicago Press. [ Links ]

Harding, S. (2015). Objectivity and Diversity: Another Logic of Scientific Research. Chicago: The University of Chicago Press . [ Links ]

Hodson, D. (2010). Science education as a call to action. Canadian Journal of Science, Mathematics and Technology Education, 10(3), 197-206. https://doi.org/10.1080/14926156.2010.504478 [ Links ]

Hodson, D., & Wong, S. L. (2017). Going beyond the consensus view: Broadening and enriching the scope of NOS-oriented curricula. Canadian Journal of Science, Mathematics and Technology Education, 17(1), 3-17. https://doi.org/10.1080/14926156.2016.1271919 [ Links ]

Keller, E. F. (1985). Reflections on gender and science. New Heaven: Yale University Press. [ Links ]

Kirby, D. A. Film, Radio, and Television (2016). In: Lightman, B. (ed.), A Companion to the History of Science (pp.428-443). Oxford: Wiley Blackwell. [ Links ]

Livingstone, D. (2003). Putting Science in its Place, Geographies of Scientific Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2003. [ Links ]

Luz, C. (2004). Como o Código Civil Francês se adaptou ao longo do tempo. Revista da EMERJ, 7(26), 24-35. [ Links ]

Martins, R. (1998a). A descoberta dos Raios X: O primeiro comunicado de Röntgen. Revista Brasileira de Ensino de Física, 20(4), 373-390. [ Links ]

Martins, R. (1998b). A descoberta da radioatividade. In: SANTOS, Carlos Alberto. Da Revolução Científica à Revolução Tecnológica (pp.29-49). Porto Alegre: Instituto de Física da UFRGS. [ Links ]

Mayeur, F. (2007). Les territoires d’une historienne. Histoire de l’éducation (online), 115-116. https://doi.org/10.4000/histoire-education.1418 [ Links ]

Moulinier, P. (2002). La Naissance de l’étudiant moderne (XIXe siècle). Histoire de l’éducation (online), 110-113. https://doi.org/10.4000/histoire-education.492 [ Links ]

Moura, C. B., & Guerra, A. (2016). História Cultural da Ciência: Um Caminho Possível para a Discussão sobre as Práticas Científicas no Ensino de Ciências? Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 16(3), 725-748. [ Links ]

Nyhart, L. K. Historiography of the History of Science. (2016). In: Lightman, B. (ed.), A Companion to the History of Science (pp.7-22). Oxford: Wiley Blackwell. [ Links ]

Opitz, D. L. Domestic Space (2016). In: Lightman, B. (ed.), A Companion to the History of Science (pp.252-267). Oxford: Wiley Blackwell. [ Links ]

Owens, T. (2009). Going to school with Madame Curie and Mr. Einstein: gender roles in children’s science biographies. Cultural Studies of Science Education, 4(4), 929-943. https://doi.org/10.1007/s11422-009-9177-6 [ Links ]

Pasachoff, N. (1996). Marie Curie and the Science of Radioactivity. Oxford: Oxford University Press. [ Links ]

Perrot, M. (1995) Escrever Uma História Das Mulheres: relato de uma experiência. Cadernos Pagu, (4), 9-28. [ Links ]

Perrot, M. (2006). Os Excluídos da História: Operários, Mulheres, Prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra. [ Links ]

Picard, E. (2010) A história do ensino superior francês: por uma abordagem global. Revista Educação, 33(2), 145-155. [ Links ]

Pimentel, J. (2010). ¿Qué es la historia cultural de la ciencia? Arbor Ciência, Pensamento y Cultura, 186(743), 417-424. https://doi.org/10.3989/arbor.2010.743n1206 [ Links ]

Pugliese, G. (2012). Sobre o “Caso Marie Curie”: a Radioatividade e a Subversão do gênero. Santa Catarina: Alameda. [ Links ]

Quinn, S. (1997). Marie Curie: uma vida São Paulo: Scipion. [ Links ]

Rudolph, J. L., & Horibe, S. (2016) What do we mean by science education for civic engagement? Journal of Research on Science Teaching, 53(6), 805-820. https://doi.org/10.1002/tea.21303 [ Links ]

Saffioti, H. (2015). Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Expressão Popular. [ Links ]

Schiebinger, L. (2001). O Feminismo Mudou a Ciência? Bauru: Editora da Universidade Sagrado Coração. [ Links ]

Schiebinger, L. (1989). The Mind Has no Sex? Women in the Origins of Modern Science. Harvard University Press. [ Links ]

Sigrist, N. T. (2009). Mulheres e a Universidade na França, 1860-1914. Histoire de l’éducation (online), 53-70. [ Links ]

Terrall, M. (1995) Gendered Spaces, Gendered Audiences: Inside and Outside the Paris Academy of Sciences. Johns Hopkins University Press, 3(2), 207-232. [ Links ]

Weisz, G. (1983). The Emergence of Modern Universities in France: 1863-1914. New Jersey: Princeton University Press. [ Links ]

1Maria Sklodowska obteve bastante apoio de sua irmã em Paris para seguir com seus estudos. Assim que migrou à Paris, Maria morou com sua irmã (QUINN, 1997).

2Marie Curie não muda sua etnia ao casar-se, contudo, seu novo nome e nacionalidade após a união com Pierre Curie, lhe conferiram um afrancesamento e consequentemente maior visibilidade. A Polônia, em condição de colônia, não havia o mesmo prestígio e produção de conhecimento científico como a França.

3Para ler as Conferências completas: CURIE, M. (1911). Nobel Lecture. Disponível em https://www.nobelprize.org/prizes/chemistry/1911/marie-curie/lecture/. CURIE, P. (1905). Nobel Lecture. Disponível em https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1903/pierre-curie/lecture/.

4Apesar de sua irmã, Bronislawa Dluska, ter se formado em medicina no ano de 1890, consideramos aqui as ciências físicas e químicas, áreas predominantemente masculinas no contexto e que demandam extenso tempo de formação (Terral, 1995).

5O artigo 213 do Código Civil francês de 1804, em vigor na época de Marie Curie, tratava a mulher como propriedade e tutela do marido - em nome da natureza, o Código Civil estabelece a autoridade absoluta ao marido, a mulher casada deixa de ser o indivíduo responsável. Dedicado ao casamento, o artigo assegurava a superioridade do homem, afirmando que o marido deveria proteger sua esposa e a esposa deve obediência ao seu marido. A esposa não poderia ter outro domicílio, não poderia agir na justiça sem autorização do marido e nem comprar ou vender sem aval do mesmo (LUZ, 2004).

6INEP. (2019). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior. Brasília: MEC.

7IBGE. (2018). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, (38), 1-13.

8A caracterização “preto” e “pardo” é dada pelo IBGE.

Recebido: 07 de Setembro de 2021; Aceito: 03 de Fevereiro de 2022

Contato: Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação - PPCTE Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET), Rua General Canabarro, 485 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ I Brasil CEP 20.271-204

Contato: Centro de Ensino de Ciências e Matemática de Minas Gerais - CECIMIG Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais revistaepec@gmail.com

Natasha Obeid El Jamal - Mestre em Ciência, Tecnologia e Educação com ênfase em História da Ciência e Ensino pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Núcleo de Investigação em Ensino, História da Ciência e Cultura do CEFET/RJ. E-mail: natashaobeideljamal@gmail.com

Andreia Guerra - Doutora em Engenharia de Produção com ênfase em História da Ciência (COPPE/UFRJ). Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Núcleo de Investigação em Ensino, História da Ciência e Cultura do CEFET/RJ. E-mail: andreia.moraes@cefet-rj.br

Editor responsável: Luciana Sá

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons