“A engrenagem das ideias e verdades somente se conserva mediante um movimento constante e efeitos recíprocos” (Fleck, 2010, p. 95)
INTRODUÇÃO
O diálogo com as ideias do polonês médico e filósofo da ciência Ludwik Fleck (1896-1961) presente na literatura da área tem permitido rever episódios da história da ciência (Queirós, Nardi & Delizoicov, 2014), pensar questões epistemológicas com viés social (Lambach & Marques, 2014), disseminar uma representação da produção da ciência como um empreendimento coletivo e intercoletivo, dar atenção ao papel da circulação de ideias e da comunicação, como, por exemplo, entre físicos especialistas e físicos-educadores, contribuindo para problematizar a formação de professores, como é o caso do artigo de Denardin, Guimarães & Harres (2022), publicado no último volume da Ensaio, cujo parecer foi o brotamento para este trabalho.
Neste artigo, busquei explorar algumas aberturas da filosofia empírica e não-especulativa da ciência de Fleck a título de notas e questões para futuras pesquisas, e, ao mesmo tempo, indicar implicações e possibilidades para pensar a formação de professores no campo das ciências da natureza.
As ideias de Fleck sobre a produção do conhecimento científico podem ser consideradas uma obra aberta, como argumentou Martins (2020), no sentido de aspectos que apresentam potenciais para a educação em ciências quando problematizados, ampliados e articulados, abordando os conceitos de estilo de pensamento, de acoplamentos ativo-passivo, o papel da educação e a iniciação dos novatos em um estilo de pensamento, bem como sua postura política de Fleck.
Além de uma obra aberta, é importante apontar o caráter precursor de muitas de suas ideias com relação aos desdobramentos mais recentes nos campos dos Science Studies e da História e Filosofia das ciências.
Assim, exploro essa abertura em três direções, colocadas aqui na forma de questões. Ler Fleck hoje, ou lê-lo ontem? Há possibilidades de articulações entre suas ideias e outros campos de conhecimentos, autores e autoras, e com diferentes perspectivas de pesquisas em nossa área? Há possibilidades de aprofundar conexões entre diferentes aspectos internos às suas próprias ideias? Que implicações as explorações possíveis dessa abertura trazem para pensar, problematizar e pesquisar a formação de professores?
Ler Fleck como um antiempirista, certamente é uma leitura possível, mas que parece ser precedida e ficar circunscrita ao campo da epistemologia clássica. Fleck se opunha ao Círculo de Viena, e isso se encontra explicitamente na página 94 de seu livro. Mas, seu antiempirismo é muito mais ontológico, se é que se pode chamar isso de antiempirismo, do que epistemológico. Enfatizar esse suposto caráter antiempirista de sua obra, e, portanto, lê-lo com um viés puramente epistemológico, pode levar a não perceber (dado que a percepção é orientada, e, portanto, a leitura também) o quão importante é a questão da linguagem em sua teoria. Como há estilos de pensamento que opõem estudos epistemológicos a estudos da linguagem, essa percepção teria aí uma condição de coerção interpretativa do texto de Fleck. Assim, torna-se importante perceber que o lemos a partir de uma tradição específica de leituras e problematizações. A historiadora da ciência Lorraine Daston, como veremos adiante, considera que Fleck estava muito mais preocupado com ontologia do que com epistemologia. A dinâmica ativo-passivo é muito mais ontológica do que epistemológica, como procurou mostrar Maia (2013; 2015).
A segunda implicação é a de que podemos trabalhar essa abertura, engajando-nos para aprofundar o que ela insinua mas não aprofunda. E há muito disso no livro de Fleck. Posso citar pelo menos dois exemplos. O primeiro está na página 165, quando Fleck aponta, não sem ironia, que a teoria não especulativa do conhecimento deveria se preocupar com a epistemologia da ciência popular. Ora, a história da ciência já tem seguido essa direção ao considerar, como objetos de estudo e fontes, outros atores que não apenas os “especialistas” e outros textos que não apenas os artigos de periódicos.
As leituras de Fleck no campo da Educação em Ciências são produzidas entre esse caráter aberto de sua obra e as diferentes histórias de leituras da ciência, da epistemologia, dos diferentes aportes e perspectivas com que temos configurado problemáticas e objetos de análise e reflexão numa área essencialmente caracterizada pela multiplicidade de perspectivas.
Portanto, estabelecer estratégias para lidar com essa abertura torna-se uma tarefa importante quando se pretende mobilizar suas ideias no campo da Educação com ciências da natureza. E são muitas as estratégias possíveis. Não tem sido infrequente que suas ideias sejam articuladas a de outros autores justamente para aprofundar alguns de seus aspectos ou noções, conforme os objetos de estudos específicos para os quais elas vêm sendo mobilizadas e conforme as abordagens específicas que constituem esses objetos dentro da problemática configurada pela pesquisa. Para mencionar apenas alguns exemplos, Fioresi (2000) e Fioresi & Silva (2022) desenvolvem uma articulação entre sua noção de “ciência popular” com aportes de estudos sobre divulgação científica, para a análise do hibridismo textual e epistemológico de livros didáticos; Setlik (2022) e Setlik & Silva (2021) articulam com Bakhtin as relações entre linguagem e produção e circulação de conhecimentos presentes em seu livro, para analisar a presença de textos de divulgação científica na formação de professores de Física numa licenciatura; Saito (2018) tece relações críticas entre uma abordagem baseada em Fleck e alguns pressupostos da alfabetização científica; Galieta-Nascimento (2005) articula noções fleckianas com a análise de discurso de origem francesa. A coletânea organizada por Condé (2012) traz ensaios que articulam ideias de Fleck com as de autores como Walter Benjamin, Wittgenstein, Mannheim, bem como aprofundamentos sobre a questão da popularização da ciência (Oliveira, 2012), além de inúmeras publicações que apontam aproximações e distanciamentos entre Fleck e Thomas Kuhn como a dissertação de Parreiras (2006). Denardin, Guimarães & Harres (2022) articulam a teoria de Fleck à análise de discurso de origem francesa para análise de seus dados.
Sem a pretensão e espaço para maiores desenvolvimentos neste artigo, consideramos ser importante, no mínimo, apontar alguns aspectos de sua obra que merecem maiores considerações e desenvolvimentos futuros, principalmente quando relacionados com a Educação com ciências.
Apresento, então, essas notas nos próximos subtópicos, e, para cada uma delas, desenvolvo potenciais relações com a formação docente e, ao final, teço algumas considerações a título de esboço de síntese preliminar.
Antes, no entanto, há uma consideração geral a fazer sobre sua obra, e que diz respeito ao caráter precursor de suas ideias.
Publicadas principalmente entre as décadas de 1930 e 1940, suas ideias podem ser consideradas precursoras de muitos desdobramentos produzidos nas últimas décadas nos campos da filosofia e da história das ciências, assim como de aspectos presentes em diferentes autores e diferentes abordagens dos Science Studies. Isso ficará mais evidente ao longo do artigo, pois alguns desses autores, abordagens e desdobramentos serão mobilizados para apontarmos outros aspectos que consideramos relevante chamar a atenção com relação à sua obra. Harry Collins, Trevor Pinch, Bernadette Bensaude-Vincent, Giorgio Agamben, Carlos Alvarez Maia, Lorraine Daston, Ian Hacking, Andrew Pickering, Steven Shapin e Simon Schaffer, Bruno Latour, são apenas alguns dos autores contemporâneos e talvez mais conhecidos, da filosofia, história e estudos da ciência, que citam trabalhos de Fleck, além do já bastante conhecido episódio com relação à obra de Thomas Kuhn. Alguns desenvolvem comentários muito elucidativos sobre aspectos de seu pensamento.
A ontologia relacional, que Maia (2013; 2015) aponta como aspecto relevante do pensamento de Fleck, também está desenvolvida em obras de Karen Barad, Donna Haraway. Há muito mais na teoria de Fleck do que uma sociologia ou uma epistemologia do conhecimento científico. Seu único livro só foi traduzido para o inglês em 1979. Alguns dos desdobramentos desses campos dos quais Fleck pode ser considerado precursor, mesmo quando citado em edições posteriores, tiveram seus desenvolvimentos muito provavelmente sem o conhecimento de sua obra. No Brasil, além de Carlos Maia, o pensamento de Fleck é analisado à luz e na correlação com outros autores e abordagens, como nos ensaios que compõem a coletânea de Condé (2012).
A seguir, elenco alguns aspectos desse caráter precursor de sua obra, a título de notas, reforçando, com isso, a necessidade de maiores desenvolvimentos não comportados neste artigo.
SOBRE A NOÇÃO DE ESTILO DE PENSAMENTO EM FLECK COMO NOÇÃO CULTURAL
A noção de estilo de pensamento tem sido compreendida por um viés cognitivista e, muitas vezes, individual, ou como trocas entre cognições individuais. No entanto, entendo que pensamento em Fleck não seja uma noção nem individual, nem lógica, cognitivista, “mentalista”, e nem estritamente epistemológica. Trata-se de uma categoria teórica histórica, social e cultural na medida em que o pensamento de que fala Fleck é uma instância que pertence ao coletivo e jamais a um indivíduo apenas. O “pensamento” em “estilo de pensamento” não se trata de como o sujeito indivíduo pensa, mas do que possibilita e limita seu pensar, seu agir e sua percepção, ou melhor, do que fornece as condições de possibilidade de seu pensamento na forma de ação, percepção e conceitualização. Trata-se do “impensado do pensamento”. O fato de que um mesmo indivíduo pertença necessariamente a vários coletivos, ou seja, a várias tradições culturais, já implica em si “trânsitos” e emaranhamentos. Estilo de pensamento tem seu correlato em coletivo de pensamento, que não é uma soma de indivíduos, pois o conhecimento não é uma convenção, um acordo, um consenso entre as posições individuais.
Num dos tópicos de seu livro intitulado “O condicionamento social de qualquer processo de conhecimento” (Fleck, 2010, p. 81), buscando se afastar da concepção binária sujeito-objeto de conhecimento, Fleck introduz a noção de “estado do saber e da cultura” (Fleck, 2010, p. 82) como aquilo que articula um coletivo de pensamento. “Não se pretende dizer que o indivíduo não teria importância como fator do conhecimento” (Fleck, 2010, p. 88), mas, é preciso considerar a dimensão social, e diríamos cultural, dos sujeitos. Neste sentido, sua argumentação vai trazer uma série de autores importantes em época (Auguste Comte, W. Jerusalém, Durkheim, Lévy-Bruhl, Gumplowicz),2 cujos trabalhos trazem categorias socioculturais como “imaginário coletivo”, “comportamento regularizado”, crenças, costumes e comparações entre povos, que são comparações culturais. Trata-se de autores que buscavam já um método comparativo de compreensão das culturas e sociedades. Assim, podemos dizer que noção de coletivo de pensamento em Fleck, é uma noção tanto social, quanto cultural. Fleck se refere a hábitos, experiências, habilidades, costumes, tradições e, educação, enfim, categorias que representam o que é compartilhado entre humanos e que dão formas às relações entre humanos e entre humanos e não-humanos. Seria exercício de aprofundamento interessante reler os trechos em que Fleck utiliza o termo “social” intercambiando-o por cultural à luz dos Estudos Culturais e da Antropologia contemporânea. Em outras passagens, o termo cultural aparece explicitamente, como em “condicionamento cultural e histórico” dos estilos de pensamento (Fleck, 2010, p. 49), ou em “história cultural e particularidades da história do conhecimento” (Fleck, 2010, p. 50).
Diferenciando sua noção de pensamento daquela em que o pensamento pertence ao e tem origem num indivíduo, Fleck dialoga com esses autores do campo da sociologia cultural, e, ao mesmo tempo critica a deferência e excepcionalidade com que esses autores tratam das proposições científicas, como se o conhecimento científico não pudesse ser pensado a partir de noções teóricas socioculturais. Este é um dos tópicos nos quais Fleck apresenta sua ideia extremamente importante, mas também aberta e pouco desenvolvida, sobre os acoplamentos ativo-passivo. Poderíamos dizer, sem exageros do aparente paradoxo, que o pensamento de Fleck já havia superado as contendas que surgiriam apenas décadas mais tarde no contexto da chamada “guerra das ciências”. Para compreender os acoplamentos ativo-passivo é preciso superar a dicotomia moderna natureza-cultura, conhecimento-linguagem. Os fatos científicos, para Fleck, são simultaneamente naturais e culturais. Os esforços para essa superação podemos acompanhar em diversas obras e perspectivas diferentes produzidas nas últimas décadas como as de Bruno Latour, Donna Haraway e Anna Tsing, para ficar apenas em alguns filósofos. Fleck critica explicitamente tanto a sociologia cultural do conhecimento da sua época, que esquece o caráter participativo dos entes da natureza, quanto os teóricos das ciências de sua época, principalmente das ciências exatas, como os do círculo de Viena, que esqueceram o condicionamento cultural, e, portanto, coletivo, de qualquer atividade humana, mesmo das práticas científicas. O estado do conhecimento, do saber, da educação, da cultura (termos que Fleck intercambia ao longo do livro, por exemplo, respectivamente nas páginas 82, 51), não pode ser compreendido como a soma ou o conjunto de conhecimentos de uma época, mas as condições de possibilidade de determinados modos de pensar, de dizer, de praticar, de agir e perceber, ou seja, as condições histórico-culturais das experiências e vivências humanas, que são, necessariamente, experiências e vivências com outros seres, humanos ou não-humanos, vivos ou não vivos.
“Cada ser vive as coisas à sua maneira. Vivências atuais se conectam com vivências antigas alterando assim as condições das futuras. Cada ser, portanto, tem ‘experiências’ no sentido de que, durante sua vida, muda a maneira de reagir.” (Fleck, 2010, p. 92, grifos nossos).
Estilo e coletivo de pensamento podem ser interpretados, portanto, como categorias culturais e não apenas sociológicas. E, como apontado por Daston (2017), trata-se mais de uma ontologia do que de uma epistemologia.
Neste sentido, uma das possibilidades de trabalhar a abertura da sua obra estaria em colocá-la em diálogo com o Estudos culturais, os estudos da antropologia e os estudos decoloniais (Mignolo, 2017), como veremos no tópico sobre a dimensão ética (política) de suas ideias.
É interessante lembrar que a dimensão ontológica está no centro da antropologia atual (Heywood, 2017), assim como tem sido resgatada também na filosofia da ciência, como em autores como Lorraine Daston (2017), Donna Haraway (2021), Bruno Latour (2009), Ian Hacking (2009), Karen Barad (2007), Anna Tsing (2022). Penso que dificilmente conseguiremos avançar na compreensão de um importante aspecto de sua obra, a dinâmica ativo-passivo (Maia, 2015), sem nos envolvermos em diálogo com questões ontológicas, tanto da filosofia da ciência contemporânea quanto de outras áreas, como a antropologia.
Sintetizando, penso que se pode buscar aprofundamento na interpretação de sua noção de estilo de pensamento como uma noção essencialmente cultural e ligada a questões ontológicas.
Pensar e trabalhar com Fleck para além de um viés sociológico, em perspectiva interpretativa com viés mais cultural, pode trazer contribuições para aproximações com a História Cultural das Ciências (Guerra & Moura, 2022; Moura & Guerra, 2016), com questões sobre inter ou multiculturalidade, sobre a relação entre as ciências da natureza e educação com ciências, de um lado, e questões identitárias de outro.
Finalizo esta nota com outro trecho de seu livro:
“O estilo de pensamento não é apenas esse ou aquele matiz dos conceitos e essa ou aquela maneira de combiná-los. Ele é uma coerção definida de pensamento e mais: a totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira de perceber e agir.” (Fleck, 2010, p. 110)
Podemos entender isso como coerção cultural, “É a cultura, afinal, que prescreve as nossas noções a respeito do que é comum” (Bruner, 2014, p. 100), é o que produz sujeitos (e, simultaneamente, objetos, ou fatos), o que desenvolverei um pouco na próxima nota.
A DIMENSÃO CULTURAL, A DIMENSÃO ONTOLÓGICA E A PRODUÇÃO DE SUJEITOS
A historiadora e filósofa da ciência Lorraine Daston (2017) chama a atenção para alguns aspectos da teoria de Fleck que considero ainda pouco mencionados na literatura da área, particularmente quando a autora trabalha na historicização de categorias importantes para a compreensão das ciências, como a objetividade. Daston destaca a originalidade e relevância de Fleck para uma filosofia da observação científica, citando diretamente trecho que se encontra na página 142 da tradução brasileira. Seu comentário, trazendo Bruno Latour, tem contribuição tão importante que vale a uma citação direta ainda que um tanto longa:
“O insight de Fleck é frequentemente comparado à visão de Thomas Kuhn acerca das mudanças da apreensão das formas entre paradigmas ou a análise de Hanson da observação carregada de teoria. Mas estas leituras foram, por assim dizer, filtradas através de uma visão neokantiana da observação científica como sendo ela mesma um tipo de filtro. Em artigo recente, Bruno Latour3 traça um contraste forte e notável entre esta passagem de Fleck e formulações mais kuhnianas: ‘Fleck não diz, como no usual paradigma metafórico kantiano-kuhniano, que nós vemos apenas o que sabemos de ante mão, ou que nós filtramos percepções através das parcialidades de nossos pressupostos. Tal ideia unificadora é, na verdade, aquilo contra o que ele luta, pois, desse modo, o tempo não poderia ser parte da substância da gênese do fato. (...). Para Fleck, aprender a ver como cientista é uma questão de experiência acumulada -- não somente de um indivíduo, mas de uma coletividade bem treinada. A linha divisória em epistemologia não é entre sujeitos e objetos -- o grande divisor kantiano -- mas é entre inexperiência e experiência. Ao contrário dos neokantianos que se preocupavam em saber como a mente subjetiva poderia conhecer o mundo objetivo, Fleck estava preocupado em saber como a percepção formava tipos estáveis a partir de sensações confusas.” (Daston, 2017, p. 94-95)
Esse comentário inclina o sentido de estilo de pensamento para longe de sentidos como “filtro”, “óculos teóricos” ou “visões de mundo”. A gênese do fato para Fleck é algo que toma tempo, “é o resultado da experiência como um processo gradual em vez de produto de formas e categorias arraigadas” (Daston, 2017, p. 95). E a autora ainda acrescenta, logo a seguir: “Fleck estava mais interessado em ontologia do que em epistemologia”. “Fato científico” não diz respeito apenas a como conhecemos, mas muito mais ao que conhecemos. A percepção orientada, e no caso das ciências, bem treinada e disciplinada, de acordo com um estilo de pensamento, ou seja, uma experiência compartilhada constituindo um coletivo (que a compartilha), construiria uma ontologia.
Outro trecho do livro que evidencia a atenção profunda que Fleck dava à questão da ontologia, e seu caráter precursor em relação a desdobramentos contemporâneos da filosofia da ciência, como já mencionamos no tópico anterior, está no final da nota de rodapé 7 do capítulo 4:
“Traçamos uma fronteira demasiado nítida entre o que pensamos e o que existe: temos que reconhecer no pensamento uma certa força criadora de objetos, e nos objetos, uma origem a partir do pensamento-entende-se: do pensamento conforme ao estilo de um coletivo.” (Fleck, 2010, p. 164, n. 7)4
Ora, essas considerações parecem convergir para a leitura cultural de Fleck, conforme esboçada na nota anterior, e, no mínimo, incrementam em muito a ideia, pouco clara, mas já famigerada, da “não neutralidade”, com que Fleck tem sido lido.
Mas em Fleck sempre há mais e sempre há possibilidade de haver mais à medida que contemporaneizamos suas ideias. Notemos agora outro trecho do mesmo tópico do livro, intitulado “Observação, experimento, experiência”, a que a citação de Lorraine Daston se referiu:
“O processo de conhecimento altera o sujeito do conhecimento, adaptando-o harmoniosamente ao objeto do conhecimento, e é essa circunstância que assegura a harmonia dentro da opinião dominante sobre a gênese do conhecimento (….)” (Fleck, 2010, p. 136)
Ora, como o sujeito é alterado pelo processo de conhecimento? Se lembrarmos que, para Fleck, esse processo é longo, e produto também do tempo, e exige educação, treinamento, formação disciplinada, uma “suave coerção para dentro”, encontramos outro ponto em que o filósofo pode ser considerado precursor com relação à história da ciência contemporânea: a relação entre produção de conhecimento e formação de pessoas.
O historiador da ciência David Kaiser foi o organizador de uma coletânea de trabalhos de outros historiadores e historiadoras, publicada em 2005, cujos trabalhos historiográficos investigaram a educação científica, ou treinamento, dos cientistas. Esta coletânea tem um ensaio de conclusão, de autoria de Andrew Warwick e do próprio David Kaiser, intitulado “Kuhn, Foucault, and the Power of Pedagogy” (Kaiser, 2005, p. 393). Na conclusão, os autores sintetizaram e ressaltaram a complementaridade entre as ideias de Thomas Kuhn e Michel Foucault sobre a produção disciplinar de sujeitos, particularmente, os “sujeitos cientistas”. Mas, ressaltando ainda a educação científica, no sentido de formação dos cientistas, como objeto importante da história da ciência, e, de modo mais geral, dessa dimensão formativa na compreensão da ciência. Não há dúvida sobre a importância desses estudos para o campo da educação com ciências, de modo mais amplo, justamente uma área que tem produzido pouco sobre sua própria história.
Na nota de rodapé 16 desse ensaio encontra-se o seguinte apontamento:
“Kuhn was not alone in recognizing a link between pedagogy and scientific knowledge but failing to develop or historicize his comments. See for example Ludwik Fleck, Genesis and Development of a Scientific Fact, ed. Thaddeus Trenn and Robert K. Merton, tr. Fred Bradley and Thaddeus Trenn (University of Chicago Press, 1979 [1935])” (p. 407, nota 16)
Ora, professores de ciência estão submetidos ao mesmo processo de formação disciplinar, no sentido produzido pelo entroncamento entre Kuhn e Foucault. Em outras palavras, e para ser mais sintético aqui, os professores de física, particularmente, são treinados para serem futuros praticantes da “ciência normal”, e isso significa serem formados em física, mas atuarão num outro campo de experiências, com outras textualizações, das quais inclusive são produtores, o campo híbrido da textualização didática, entre aquela dos manuais e as textualizações da ciência popular (Fioresi, 2020). O treinamento disciplinar para a ciência normal controlaria hegemonicamente os textos que participam da sua formação e suas práticas de leituras correspondentes também a esse viés formativo. No entanto, o professor de física é um prático em outro aspecto, muito mais relacionado ao círculo exotérico e à ciência popular, o que exige experiência com outros textos, outras formas de textualização do conhecimento científico e outras práticas de leitura (Setlik, 2022).
De todo modo, um aprofundamento dessa questão, não cabe aqui, mas cabe nesta nota, chamar a atenção para o fato de que a filosofia de Fleck é também precursora nesse aspecto, o da relação entre produção de conhecimento e produção de sujeitos, e que se trata de outro ponto da abertura de seu trabalho que merece, em diálogo com produções mais contemporâneas, ser mais bem explorado.
Se a formação de professores está relacionada às práticas de leitura e escritura de textos científicos (e neste sentido, a própria aula pode ser considerada um texto, ou uma assembleia de textos em multimodalidade), ou seja, aos processos de textualização constitutivos da circulação do conhecimento científico, consideramos importante chamar a atenção para esse outro aspecto da obra de Fleck, qual seja, o de colocar em relação a produção, a circulação de conhecimento, a linguagem e a necessária e constitutiva produção e circulação de diferentes tipos de textos.
SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM, TEXTOS E PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
Enquanto as noções de circulação de pensamento, estilo e coletivo de pensamento, têm sido mais enfatizadas, o último capítulo do livro, particularmente os dois últimos tópicos desse capítulo, têm sido mais raramente mencionados. Ora, é justamente no tópico 4.4 (p. 164) de seu livro que Fleck faz uma síntese de sua teoria do conhecimento e se dedica a desenvolver uma espécie de esboço de uma teoria dos principais gêneros textuais da ciência moderna: o artigo científico, os manuais, os livros didáticos, e a ciência popular. Fleck descreve ali as características tanto textuais quanto epistêmicas dessas “ciências”. O fato científico fleckiano tem sua gênese, social, cultural, epistêmica e ontológica, implicada na e pela forma dos textos, compreendidos como formas sociais, e poderia se dizer, culturais de conhecimentos. É apenas na “ciência popular” que o fato se faz carne. E nos textos dos periódicos nunca temos fatos, apenas candidatos a fatos. Os textos, suas formas, são também formas culturais e históricas (Fleck chama de forma social de pensamento), de tal modo, que também se impõem como coerção cultural ao sujeito, e de acordo com um estilo (gênero) de texto e linguagem.
Fleck é, assim, precursor do que temos compreendido como textualização do conhecimento científico (Silva, 2019), uma noção que implica em analisar simultaneamente a dimensão textual (e suas implicações sociais, culturais e políticas) e a dimensão epistemológica ou ontológica dos objetos de conhecimento, e que tem aparecido em perspectivas diferentes em diferentes autores, principalmente do campo dos Estudos da Ciência, mas também da História e Filosofia da Ciência.
Considerações sobre linguagem e textos não se encontram, no entanto, apenas nesse capítulo final de seu livro, mas estão por toda obra. Eis alguns trechos, com grifos meus:
“As palavras e as ideias são, originalmente, equivalências fonéticas e intelectuais das vivências, que são dadas de modo concomitante.” (Fleck, 2010, p. 69)
“De qualquer forma, uma proposição, uma vez publicada, pertence aos poderes sociais [culturais] que formam conceitos e criam hábitos de pensamento, junto com todas as outras proposições; ela determina o que não pode ser pensado de outra maneira.” (Fleck, 2010, p. 80)
“O processo de conhecimento representa a atividade humana que mais depende das condições sociais [culturais], e o conhecimento é o produto social [cultural] por excelência. Já na estrutura da linguagem reside uma filosofia imperiosa da comunidade, já numa única palavra se encontram teorias emaranhadas. A quem pertencem essas filosofias a quem pertencem essas teorias?” (Fleck, 2010, p. 85)
“As palavras em si não possuem um significado fixo e recebem seu significado somente no contexto, numa área de pensamento. Essa matização do significado das palavras somente pode ser sentida por meio de uma ‘introdução’, seja ela histórica, seja didática.” (Fleck, 2010, p. 98)
“A palavra como tal representa um bem intercoletivo peculiar: uma vez que todas as palavras se lhes adere um matiz mais ou menos marcado pelo estilo de pensamento, que se altera na migração intercoletiva, elas circulam entre os coletivos sempre com uma certa alteração de seu significado.” (Fleck, 2010, p. 161)
A relação entre linguagem e cultura pode ser inferida no seguinte trecho, quando Fleck está abordando a questão das pré-ideias, páginas em que se opõe tanto ao empirismo de Mach quanto ao logicismo dos filósofos da ciência seus predecessores: “a representação por pensamentos não seria, originalmente uma atribuição unívoca como na lógica, mas a transferência de vivências em um material moldável e sempre à mão” (Fleck, 2010, p. 68, grifo meu). Esse material moldável seria a linguagem. Mas a linguagem também em sua forma histórica e cultural daquele momento, naquele coletivo.
Ora, só há circulação de pensamentos, se houver textos, sejam imagéticos, sejam verbais, orais ou escritos, sejam audiovisuais (no contexto mais recente da história das ciências), ou mesmo matemáticos, como no caso da Física. E as formas textuais, como já observava Bruner (2014) com relação às histórias e às narrativas, não são indiferentes aos sentidos, como têm insistido diferentes autores dos estudos da linguagem.
Os textos, assim, são moldados por e moldam os processos de circulação de pensamentos. São, ao mesmo tempo, produtos e agentes de uma atmosfera cultural específica. Os sistemas de saber têm suas formas correspondentes de expressão, seu estilo técnico e literário.
Embora Fleck torne evidente o papel constitutivo da circulação de pensamentos e práticas na constituição dos fatos científicos, não parece ser tão evidenciado que sua obra aponta também que não há circulação sem linguagens, processos de comunicação e processos de produção e circulação de textos.
Mas é importante atentar para a historicidade desses processos de circulação. Em Fleck, todas as categorias são históricas, tanto o sujeito, quanto o objeto, quanto o “estado do conhecimento”, quanto, inclusive, e talvez principalmente, os fatos científicos. Não há fatos primeiro ou antes dos processos de circulação de pensamento e práticas. Eles são produzidos, mantidos e modificados, pelos processos de circulação dos quais os textos são agentes constitutivos, porém, também históricos, que se mantêm ou se modificam, conforme os estilos.
Trata-se de outro aspecto precursor de sua obra com relação aos estudos contemporâneos sobre a produção das ciências. A análise de Shapin & Schaffer (2018 [1985]), por exemplo, sobre a controvérsias em torno da existência do vácuo, na Europa do século XVII, envolvendo, entre outros, Robert Boyle e Thomas Hobbes, considera três tecnologias implicadas na produção das chamadas “matérias de fato”: as tecnologias sociais, as tecnologias materiais e as tecnologias literárias. Estas últimas, especificamente abordadas em Shapin (2013).
Também Bruno Latour vai apresentar sua abordagem sobre a constitutividade dos textos na produção do conhecimento científico, mobilizando aportes da semiótica e da retórica, construindo noções como a de “inscrições literárias” e ao propor os híbridos semiótico-materiais nas cadeias de referentes que as práticas científicas produzem (Latour, 2001). Sua análise retórica do artigo científico, desenvolvida em Ciência em Ação (Latour, 2001), coincide em muitos aspectos, embora muito mais detalhada, com o que sintetiza Fleck sobre esse tipo de textualização do conhecimento científico, mais especificamente nas páginas 172-173 de seu livro.
Enfim, o lugar da produção literária, da produção textual, incluindo análises textuais propriamente ditas, encontra-se hoje bastante presente nos Estudos da ciência e na História da ciência, e além desses podemos citar outros autores como Lenoir (1997; 1998), Knorr-Cetina (1999).
SOBRE A DIMENSÃO ÉTICA
A dimensão ética, ou política, presente em sua obra, é também lembrada por Martins (2020), ressaltando sua atitude positiva em relação à multiplicidade de estilos de pensamento coexistentes.
“No seu trabalho não publicado de 1960, Fleck defende que ‘estudos comparados sobre estilos tornarão os estudantes mais tolerantes com estilos estranhos, e os prepararão para a coexistência’ (Fleck, 1986g, p. 157, tradução nossa). Imagina que pessoas de diferentes estilos possam se apreciar mutuamente se compreenderem que a causa das diferenças é um modo diferente de pensar e não má vontade.” (Martins, 2020, p. 1214).5
Na página 92 de seu livro, no tópico que já apontamos, quando Fleck dialoga criticamente com a sociologia e antropologia de sua época, há uma nota de rodapé que consideramos importante mencionar. As obras e autores desses campos de conhecimento que Fleck menciona são estudos sobre os então chamados “povos primitivos”, “naturais” ou “pré-lógicos”, este último, termo de Lévy-Bruhl, que aliás é ironizado no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, de 1928:
“Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.”
Fleck apresenta nessa nota de rodapé uma posição crítica similar explicitando sua discordância com relação a essas ideias e citando um dos autores em específico, o sociólogo Wilhelm Jerusalem:
“Também não podemos concordar com a posição de Jerusalem sobre o surgimento da lógica. (….). Os povos primitivos também fazem parte da humanidade como uma totalidade ou não? A lógica diversa desses povos é tão pouco universal quanto a nossa e onde estão os místicos gnósticos etc. que vivem entre nós? A concepção de um coletivo de pensamento abrangendo toda a espécie de homo sapiens é pouco útil porque a troca de ideias entre as diversas sociedades humanas é mínima.” (Fleck, 2010, p. 93, n. 41)
Trata-se de uma óbvia crítica decolonial. A ideia da sociologia e antropologia da época é de que haveria uma hierarquia lógica universal, dentro da qual os povos ditos “primitivos” ainda não teriam superado a fase pré-lógica. Para Fleck, os povos “primitivos” também fazem parte da humanidade, sendo coletivos que portam outros estilos de pensamento. Não há, portanto, estilo de pensamento universal. Mas há, sim, convivências, emaranhamentos, e nem sempre amistosos, vale lembrar, entre diferentes estilos de pensamento.
Penso que essa posição de Fleck também converge para uma interpretação mais cultural de sua obra e, particularmente, da noção de estilo de pensamento, e, com isso, reforço o argumento já colocado de que a abertura de sua obra poderia ganhar aprofundamento e mais conexão com as questões educacionais contemporâneas, se suas ideias forem colocadas em diálogo com estudos mais atuais do campo da antropologia. Campo este que tem produzido profundas e instigantes discussões sobre alteridade, relação com o outro, e numa vertente ontológica não-moderna, considerando como outro também os seres inanimados e os seres vivos não humanos.
Ora, inter ou multiculturalismo e decolonialidade não apenas não são temáticas novas, como são cada vez mais relevantemente consideradas no campo da Educação com ciências.
O emaranhamento de estilos de pensamento que constitui e caracteriza a ciência popular, como coloca Fleck, pode ganhar robustez e contemporaneidade se pensado também junto a autores do campo dos Estudos Culturais. Para citar apenas um caso, Néstor Garcia Canclini, por exemplo, é um autor argentino que tem estudado as hibridizações culturais que caracterizam povos colonizados, como as culturas latino-americanas (Canclini, 2019).
Retomando trecho da citação acima, quando Fleck coloca que “A concepção de um coletivo de pensamento abrangendo toda a espécie de homo sapiens é pouco útil porque a troca de ideias entre as diversas sociedades humanas é mínima”, é preciso lembrar duas coisas. A primeira é que Fleck escreve na década de 1930, muito antes da internet e da aceleração da globalização, e portanto, essa impossibilidade de “troca de ideias entre as diversas sociedades humanas” estava no impensado do seu estilo de pensamento. A segunda é que esses fluxos existentes hoje, e impensáveis para Fleck, ainda se animam em grande parte por lutas por hegemonias, tanto em nível macro, quanto em nível dos micropoderes. E isso, para mim, é uma questão simultaneamente ética, ontológica, cultural, dos estudos e compreensões da ciência tal qual ela se faz (Gil, 1999), assim como do campo da Educação com ciências.
E, concluindo esta nota, a pesquisa sobre formação de professores é um campo extremamente propício e importante para se pensar os emaranhamentos dessas questões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: PROFESSORES E PROFESSORAS, SUA FORMAÇÃO E SUA AGÊNCIA NA PRODUÇÃO-CIRCULAÇÃO-TEXTUALIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS
Uma leitura socioepistemológica da teoria de Fleck tem sido mobilizada para investigar a formação de professores, principalmente, noções como as de estilo e coletivo de pensamento e de circulação (ou tráfego) de ideias. A mobilização dessas noções têm permitido identificar estilos de pensamento de professores, mudanças de estilos, e levar em consideração os aspectos comunicacionais dentro de coletivos e entre diferentes coletivos de pensamento.
No entanto, atentando para o caráter aberto (Martins, 2020) e precursor de sua obra com relação aos desdobramentos contemporâneos da história e da filosofia da ciência, bem como dos Estudos da Ciência, há potencialidades ainda a serem exploradas.
Nas breves notas apresentadas neste artigo, destaquei: a possível natureza cultural da sua noção de estilo de pensamento, compreendido como condição de pensamento, e não pensamento propriamente dito, no sentido “mentalista”, cognitivo ou puramente epistêmico; a relação, também cultural, entre produção de sujeitos, como “suave coerção para dentro” de um coletivo de pensamento; a multiplicidade de gêneros textuais, como elemento dos processos de circulação que reforçam ou modificam estilos de pensamento, ao participar constitutivamente de tráfegos inter e intracoletivos de ideias e práticas; e a dimensão ética (política) de sua obra, necessária à nossa condição social inescapável de coexistência, nem sempre harmoniosa, de diferentes estilos de pensamento, ou seja, diferentes culturas, modos de pensar e constituir realidades e verdades, até mesmo diferentes ontologias.
Se a produção de sujeitos representa uma suave coerção para dentro de um coletivo, a formação de professores e professoras representaria um conjunto de estratégias disciplinares que conduziriam os sujeitos em direção aos círculos esotéricos do conhecimento físico (a pós-graduação representaria outro nível de afunilamento nessa formação). Isso estaria representado pela flecha vertical para cima, no esquema da figura 1 (abaixo). Isso significa que se trata de estratégias disciplinadoras que implicam em “purificação” dos estilos de pensamento. Como lembram Warwick e Kaiser (2005) sobre a contribuição de Kuhn a esse respeito, isso significa formar um sujeito para ser um futuro praticante da “ciência normal”.
No entanto, o(a) professor(a) de física, por exemplo, apesar de “ser físico(a)”, não atuará propriamente como praticante da “ciência normal”, mas como praticante de outras textualizações no sentido contrário do tráfego que reforçaria os estilos de pensamento da física (intracoletivo), o da seta vertical para baixo no esquema da figura 1. Ou seja, atuará justamente nos trânsitos na direção (sentido) do círculo exotérico dos estilos de pensamento científicos, e no campo das textualizações da “ciência popular”. Ora, o que caracteriza a ciência popular é justamente o fato de que ali não há estilos de pensamento purificados, mas um emaranhamento de estilos, inclusive os estilos de pensamento científicos dos círculos esotéricos da Física, entre outros aspectos, pela plasticidade de suas linguagens e textos.
Ser professor e ser professora implica não apenas selecionar, modificar, adaptar textos de ciências já existentes, quanto produzir novos textos, na dinâmica dos tráfegos eso→exo. E, ao mesmo tempo, na dinâmica do complexo emaranhamento dos estilos de pensamento físico com outros estilos de pensamento. A própria aula pode ser considerada um texto (um movimento ou tráfego eso<->exo), mesmo que seja um texto oral, embora frequentemente uma aula mobilize conjuntamente outros textos (escritos, imagéticos, audiovisuais). Assim, as relações que a formação de professores, tanto inicial quanto continuada, produzem entre futuros professores e textos (ou narrativas), é um objeto de estudo que merece atenção e ainda aprofundamentos (Setlik, 2022), principalmente em relação à escassez da experiência quanto à sua diversidade de formas, tanto de textos, quanto de práticas de leitura.
Neste sentido, ao produzir suas aulas, professores e professoras estão participando da produção dos fatos científicos, ou seja, do movimento e da historicidade da sua permanência/mudança, enquanto sujeitos nos círculos exotéricos das ciências e da Educação com ciências.
Professores e professoras situam-se numa complexa tarefa. Produzir textualizações do conhecimento científico num território cultural marcado essencialmente pela heterogeneidade. Ora, neste sentido, a posição ético-política de Fleck me parece ter muito a contribuir, principalmente se pensada em termos de inter ou multiculturalismos, como os exigidos por uma perspectiva decolonial. Isso, no entanto, não impede que esteja operando ali também uma “suave coerção para dentro” do estilo de pensamento científico com relação aos estudantes da educação básica, apenas implica em considerar que esse processo não pode reproduzir as práticas disciplinares que levam os sujeitos ao centro dos círculos esotéricos da ciência. Assim, a experiência que constituiria a formação de professores é justamente a experiência da convivência com diferentes formas textuais e práticas culturais, a da crescente compreensão da complexidade dos emaranhamentos de estilos que constituem a ciência popular. Uma caracterização mais aprofundada dessa complexidade do trabalho de professores e professoras pode não só informar melhor as mudanças necessárias aos currículos de licenciatura, como as práticas de formações continuadas de professores. Penso que o trabalho de Denardin, Guimarães e Harres (2022) seja uma contribuição nessa direção. O(a) professor(a) não pode retornar à posição única de estudante que sofre a “coerção para dentro” e em direção ao círculo esotérico, ainda que este movimento possa estar presente em formações como as oferecidas pelo CERN, dada a relação mais do tipo especialista → “leigos instruídos”, que se reproduz ali. Desconsiderar o movimento eso-exo e o papel cultural fundamental do trabalho docente na dinâmica de produção e circulação de conhecimentos científicos em nossa sociedade, significa desconfigurar a formação de sua subjetividade enquanto professor(a), ou seja, enquanto mediador fundamental dentro do campo da ciência popular, tanto no sentido epistemológico, quanto cultural, quanto ético-político, na relação de convivência com outros saberes.