SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Potentials of social interactions to make knowledge explicit in Chemistry experiments with the participation of a blind studentCOMMUNITY OF PRACTICE UNDER REVIEW: TRAINING SCIENCE TEACHERS IN RESEARCH IN BRAZIL AND PORTUGAL author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências

Print version ISSN 1415-2150On-line version ISSN 1983-2117

Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. vol.25  Belo Horizonte  2023  Epub Aug 20, 2023

https://doi.org/10.1590/1983-21172022240154 

Arigos

A Natureza da representação a partir do referencial de Bas van Fraassen e a atribuição de sentido ao conhecimento químico escolar

La naturaleza de la representación basada en el marco de Bas van Fraassen y la atribución de significado al conocimiento químico escolar

Marcelo Gonzaga Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0002-5650-9573

Juliana Machado1 
http://orcid.org/0000-0002-1972-7854

1Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca | CEFET, Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO:

Inicialmente apresentam-se aspectos da problemática da natureza da representação no ensino, evidenciando a desconexão entre os sentidos atribuídos pelos professores e pelos alunos aos modelos representativos de conhecimentos científicos escolares, a partir de exemplos oriundos do ensino de Química. Em seguida, são resgatados e discutidos aspectos da concepção pragmatista de Bas van Fraassen. Ao cotejar aqueles exemplos com categorias de pensamento desse referencial, foi possível evidenciar que os desafios que surgem na aprendizagem da Química relacionados às representações não são solucionados pela introdução de teorias mais complexas e, portanto, mais “próximas da realidade”, mas constituem desafios inerentes à própria relação de representação. Em particular, foi possível apontar aspectos constitutivos essenciais da representação: seu caráter relacional, seu caráter intencional ao atribuir predicados, sua distorção virtuosa e a assimetria em sua relação com o representado. Concluímos que a reflexão sobre esses aspectos pode contribuir para o aprofundamento da compreensão da natureza das representações químicas, na perspectiva de uma abordagem que vise priorizar a construção de sentido ao conhecimento químico.

Palavras-chave: Representações; Modelos; Epistemologia

RESUMEN:

Inicialmente, se presentan aspectos del problema de la naturaleza de la representación en la enseñanza, destacando la desconexión entre los significados atribuidos por profesores y por los alumnos a los modelos representativos del saber científico escolar, a partir de ejemplos provenientes de la enseñanza de la Química. Luego, se rescatan y discuten aspectos de la concepción pragmatista de Bas van Fraassen. Al comparar esos ejemplos con categorías de pensamiento de este marco, fue posible mostrar que los desafíos que surgen en el aprendizaje de la Química relacionados con las representaciones no se resuelven introduciendo teorías más complejas y, por lo tanto, más “cercanas a la realidad”, sino que constituyen desafíos inherentes a la propia relación de representación. En particular, fue posible señalar aspectos constitutivos esenciales de la representación: su carácter relacional, su carácter intencional al atribuir predicados, su distorsión virtuosa y la asimetría en su relación con el representado. Concluimos que una reflexión sobre estos aspectos puede contribuir a profundizar en la comprensión de la naturaleza de las representaciones químicas, desde la perspectiva de un enfoque que pretende priorizar la construcción de sentido al conocimiento químico.

Palabras clave: Representaciones; Modelos; Epistemología

Introdução

A Química, enquanto ciência, baseia-se em uma ampla variedade de representações. Esse fato levanta a questão: o que é representar, no ensino de Química? Comumente, considera-se que a Química investiga a matéria e suas propriedades. Ao compreender que a Química estuda tais objetos, é importante atentar para dois universos aparentemente distintos, embora relacionados: o universo submicroscópico (que envolve entidades tais como átomos, íons, moléculas) e o universo macroscópico (englobando as propriedades das substâncias químicas, reações químicas, entre outros).

Mas como os químicos representam o conhecimento construído sobre esses objetos? Um químico não consegue falar sobre átomos, por exemplo, sem um modelo que os represente. Nessa ótica, Gilbert e Treagust (2009) investigam o chamado “tripé representacional” na Química e em seu ensino. O tripé representacional é um instrumento que interliga os dois universos da Química mencionados, somando-os a uma linguagem simbólica. Essa estruturação em um tripé, no qual há três vértices (macro, submicro e simbólico) que estão conectados e interligados, foi discutida por Johnstone (1991) e constitui um modo de argumentar que a Química é uma ciência que se estrutura a partir desses níveis de pensamento. Para Gilbert e Treagust (2009), o fator que torna possível o estabelecimento das relações entre os níveis macro e submicroscópico pela Química é a utilização de uma linguagem simbólica (Gilbert & Treagust, 2009).

Essa reflexão conduz a uma segunda questão: O que é um modelo? Segundo Justi (2006), “... o ponto de vista mais amplamente aceito é que um modelo é a representação de uma ideia, objeto, evento, processo ou sistema, criado com um objetivo específico” (Justi, 2006, p. 175). Nessa ótica, representar algo em um modelo não é somente exibir um aspecto visual, ou promover uma experiência: é, também, abstrair uma informação e traduzir de outra maneira aquilo que foi representado. Gilbert e Justi (2016) e Justi (2006) apontam, também, uma controvérsia relativa à natureza do modelo, na qual uma posição consiste em enxergá-lo como uma cópia da realidade e a outra maneira como uma criação mental que se assemelha à realidade em certos aspectos e graus. Em seu posicionamento próprio, mais tarde, Gilbert e Justi (2016) destacam a compreensão de modelos como artefatos pertencentes a uma classe pública de objetos cuja natureza é científica (Knuuttila & Boon, 2011).

Em uma perspectiva semelhante, Passmore, Gouvea e Giere (2014) enfatizam que: “1) modelos são definidos pelo seu contexto de uso; 2) modelos são representações [renderings] parciais dos fenômenos; 3) modelos são distintos da forma representacional que eles tomam” (Passmore, Gouvea & Giere, 2014, p. 1176). Trata-se de um posicionamento pragmatista, justificado principalmente com base na chamada virada da prática (practice turn) ocorrida nas últimas décadas na filosofia e, mais recentemente, na educação em Ciências. Com relação especificamente ao tema modelos, essa virada significa que não basta discutir a relação entre o modelo e seu referente; faz-se necessário refletir também sobre o papel do agente cognitivo, isto é, sobre como os modelos são realmente usados na prática científica. É por essa razão que Passmore, Gouvea e Giere (2014) buscam aprofundar o significado dos modelos para o ensino ao integrar contribuições de diversos referenciais teóricos pragmatistas, tanto da filosofia quanto das ciências da cognição, tais como Ronald Giere, Tarja Knuuttila, Nancy Nersessian, Jay Odenbaugh e Stella Vosniadou. O resultado dessas reflexões é uma defesa da necessidade de raciocinar com e sobre os modelos, com um propósito último de dar sentido aos fenômenos.

Esse propósito pragmatista é compartilhado por um epistemólogo cuja potencial contribuição ao ensino ainda é quase inexplorada nessa área de pesquisa, apesar da importância da sua obra para a filosofia da ciência de um modo geral e para a linha de pesquisa sobre modelos e representações científicas em particular. Bas C. van Fraassen tornou-se conhecido principalmente pela concepção denominada de empirismo construtivo, e sua defesa do antirrealismo confronta uma posição adversária que se tornou também importante nos estudos sobre modelos no ensino: o realismo crítico.

Nas páginas que seguem, serão exploradas as contribuições da perspectiva de van Fraassen para a reflexão sobre a natureza das representações químicas e possíveis implicações à educação científica. Para isso, inicialmente apresenta-se a problemática da representação no ensino tomando como exemplo o caso da molécula de benzeno, destacando alguns aspectos de sua aprendizagem relacionados a suas representações. Nessa problematização inicial, apoiamo-nos principalmente em Bucat e Mocerino (2009), que levantaram algumas questões centrais envolvendo os sentidos construídos pelos alunos acerca das representações químicas. Em seguida, são resgatados e discutidos aspectos gerais da representação sob a ótica pragmatista de van Fraassen. Posteriormente, esses aspectos são transpostos para analisar outros exemplos provenientes da literatura para, finalmente, serem discutidas algumas implicações desse referencial. Nessa transposição, dialogamos principalmente com Hoffman e Laszlo (1991), que desenvolveram uma reflexão aprofundada sobre a natureza das representações químicas, o que permitiu construir uma interlocução com as ideias do epistemólogo neerlandês.

A problemática da representação no ensino de Química: o caso da molécula de benzeno

Argumentando com base no tripé representacional, Bucat e Mocerino (2009) afirmam que “o nível submicroscópico dos químicos diz respeito ao mundo dos átomos e seus derivados; íons e moléculas. Este é um mundo não observável, acessível apenas por imaginação” (Bucat & Mocerino, 2009, p. 12, grifo nosso, tradução nossa). Essa talvez seja uma afirmação discutível, pelo menos caso se considere a possibilidade de um acesso que também pode ser indireto. Por outro lado, é inegável que se trata de um universo que não pode ser alcançado de maneira direta pelos sentidos, necessitando assim de modelos representativos capazes de comunicar o conhecimento sobre ele produzido. Assim, no contexto do ensino, as representações levam o alunado a adentrar em temas complexos de estudo, e acarretam em desafios de grandes proporções (Bucat & Mocerino, 2009).

Um exemplo relevante de desafio é a discussão a respeito da existência ou não existência desses entes estudados pela química e, caso existam: como seriam? Muitas vezes, o professor de Química, mergulhado que está nos paradigmas de sua área, pode tender a apresentar os entes postulados pelas teorias químicas como se fossem objetos empiricamente observáveis. Esse é um aspecto destacado por autores como os próprios Bucat e Mocerino (2009) e Taber (2009), ao observarem a necessidade de compreender com clareza o que são esses entes e sua transposição nas representações químicas, sob pena de obscurecer o significado das representações químicas (Bucat & Mocerino, 2009; Taber, 2009).

Em diálogo com os autores mencionados, um trabalho produzido por Chittleborough (2014) que investiga o uso do tripé representacional nas aulas de Química e suas implicações na aprendizagem ganha destaque. Segundo a autora, “As explicações dos fenômenos químicos geralmente se baseiam no comportamento das partículas submicroscópicas que são representadas simbolicamente. Consequentemente, a compreensão dos alunos de todos os três níveis é fundamental para o sucesso de qualquer explicação” (Chittleborough, 2014, p. 31, tradução nossa). Nessa passagem, Chittleborough (2014) está defendendo que ensinarmos Química respeitando esse tripé representacional, ou seja, construindo as relações entre os universos submicroscópico e o macroscópico da matéria, é a chave para a compreensão do alunado quanto às explicações dos fenômenos químicos.

Gilbert e Treagust (2009) destacam que compreender noções centrais da Química requer engajar-se mentalmente com as representações químicas e com os fenômenos com os quais elas se relacionam. . Talvez por esse motivo, o tripé representacional investigado por Bucat e Mocerino (2009), Gilbert e Treagust (2009), Taber (2009), Chittleborough (2014) tornou-se uma abordagem amplamente disseminada nas reflexões sobre o ensino da Química. Nos dois últimos séculos, a Química vem se desenvolvendo como uma ciência que constrói relações entre os universos submicroscópico (repleto de entidades pequenas demais para serem observadas) e o universo macroscópico (fenômenos químicos observáveis). Para comunicar as teorias que traçam uma conexão entre esses dois universos aparentemente distintos, a química mergulha em uma linguagem simbólica que auxilia a comunicação entre seus pares.

Um dos dilemas pertinentes que os autores Bucat e Mocerino apontam está relacionado com a explicação da estrutura da molécula de benzeno. Um modelo que representa a estrutura de ressonância da molécula é dado por:

Fonte: Figura produzida pelos autores.

Figura 1 Representação da estrutura de ressonância da molécula de benzeno 

Segundo Bucat e Mocerino (2009), essa representação provoca diversos conceitos em sala de aula que não são os previstos pela teoria: conceitos como os alunos acharem que as duas representações são diferentes pelas ligações duplas estarem em posições diferentes (Bucat & Mocerino, 2009). O cerne da problemática entre a explicação dada para o modelo pela ciência e a dificuldade pelo aluno em enxergá-la não está na representação em si, mas na crença que se assume ao visualizar o modelo e construir a partir do seu entendimento de realidade. E esse dilema é apenas a “ponta do iceberg”: os autores dão continuidade e apontam que esse problema da estrutura da molécula de benzeno fica mais complexo quando tratado por outras duas representações:

Fonte: Figura produzida pelo autor.

Figura 2 Representação da molécula de benzeno 

Fonte: Figura produzida pelo autor.

Figura 3 Híbrido de ressonância da molécula de benzeno 

A figura 2, segundo a análise de Bucat e Mocerino (2009), é mais delicada, porque a teoria muitas vezes é mal compreendida pelos próprios professores. Alunos tendem a enxergar o modelo e imaginarem uma ligação e meia dos elétrons: uma vez que avistam a ligação simples e a tracejada, intuitivamente deduzem que seria uma espécie de ligação do tipo 1,5. Professores, por vezes, tendem a imaginar algo similar, porém mais sofisticado - porque dão uma explicação menos ingênua do que a do aluno. A figura 3 foi explicada pelos alunos, na investigação dos autores, como se os elétrons estivessem girando circularmente entre os átomos de carbono (Bucat & Mocerino, 2009). Os autores citados apontam esses conceitos errôneos que estão presentes no contexto do ensino de Química como concepções alternativas que conflitam com aquilo que a teoria propõe. A figura 3 leva intuitivamente a acreditar que os elétrons estariam circulando, devido à forma da representação. Os alunos aprendem que os átomos de carbono estão ligados, e veem um círculo no meio da molécula: a conclusão que consideram lógica é que os elétrons estariam dando voltas pelos átomos de carbono. Nesse contexto, os professores, quando não compartilham da mesma visão, encontram uma barreira para ensinar.

Uma possível objeção seria negar o problema como relevante, e alegar que este é facilmente solucionado ao ensinar a TLV (Teoria de Ligação de Valência) e os diagramas dos orbitais px, py, pz para construir o modelo da ligação π (Atkins, 2012). É possível observar, nessa linha, uma tendência a recorrer ao aprofundamento conceitual da teoria de ligação que normalmente ensinamos em sala de aula - pelo menos pensando na realidade do Ensino Médio. Contudo, o aprofundamento cria um outro problema, que é voltado para o entendimento da figura 2. Uma vez que entendemos a TLV, a figura 2pode sugerir uma espécie de ligação com meia ligação, afinal está tracejada, e tal conclusão tem um certo sentido quando observamos três elétrons em seis átomos de carbono. Aqui, criamos um novo problema conceitual que é mais complexo, porque a figura 2 representa a Teoria do Orbital Molecular (TOM) que é concorrente à TLV na comunidade dos químicos. A TOM não lê os orbitais como prevê a TLV. Os orbitais moleculares são distribuições espaciais compartilhadas pelos átomos componentes da molécula, onde há máxima probabilidade de se encontrar o elétron. O elétron não estaria mais localizado em uma ligação híbrida nos átomos de carbono, e sim numa ligação compartilhada entre todos os átomos de carbono (Atkins, 2012).

Compreende-se assim que recorrer ao aprofundamento teórico, embora possa ser necessário e importante em diferentes momentos por outros motivos, não soluciona as dificuldades que são levantadas pela problemática da natureza da representação. Sendo um problema de caráter epistemológico, é nesta arena que precisa ser enfrentado. Tümay (2016) e Bucat e Mocerino (2009) destacam que há uma desconexão entre os modelos científicos ensinados em sala de aula pelos professores de Ciências e os modelos imaginados pelos alunos. Esse descasamento entre o modelo proposto pela ciência e as compreensões do alunado geram como consequência uma interpretação equivocada da teoria. Os autores assinalam a importância dos professores de Ciências focarem na epistemologia e na ontologia dos modelos como meio relevante para enfrentar esse desafio (Bucat & Mocerino, 2009; Tümay, 2016 ).

Uma vez que a representação dos objetos de conhecimento constitui um ponto central da própria Ciência, entendemos que o desafio enfrentado pelos professores acerca da questão da natureza da representação conecta-se diretamente às discussões contemporâneas sobre a Natureza da Ciência (NdC) no ensino. Nessa linha de investigação, um resultado já apontado por diversos autores indica que aspectos sobre a natureza do conhecimento científico precisam ser trabalhados explicitamente (Cofré et al, 2019; Lederman, 2007; McComas, 2008). Uma abordagem potencialmente frutífera nessa direção é apresentada por Martins (2015), que propõe trabalhar a partir de temas e questões concernentes à NdC. Nessa proposta, a discussão sobre a natureza da representação se encaixaria dentro do eixo epistemológico, que já inclui elementos intimamente ligados à representação tais como os modelos e a modelagem, a relação entre teórico e empírico e a natureza da explicação.

Isso posto, parece necessário buscar na própria natureza do conhecimento uma compreensão mais ampliada das características da representação. Em sintonia com as preocupações acerca da necessidade de que os modelos científicos escolares priorizem a construção de sentido - ao invés da perfeição e exatidão -, levantadas na Introdução, apresentaremos a seguir algumas ideias do epistemólogo neerlandês Bas van Fraassen.

Representação científica à luz da epistemologia de Bas van Fraassen

Bas C. Van Fraassen é um filósofo da ciência que se dispôs em parte de sua trajetória acadêmica a argumentar em favor do empirismo na Ciência. Com o intuito de corrigir os problemas causados pelas doutrinas positivistas que marcaram a tradição empírica na filosofia da ciência, o autor se debruçou sobre a questão da origem do conhecimento para defender uma visão diferenciada para essa tradição filosófica, desvinculando-a da perspectiva reducionista presente no empirismo lógico e aceitando entidades não-observáveis como parte legítima do empreendimento científico (Machado & Rodrigues, 2022).

O sucesso da ciência, segundo van Fraassen (2007), consiste em produzir teorias empiricamente adequadas. Os elementos presentes na teoria não precisam existir empiricamente no mundo sensível: para serem aceitáveis, basta que sejam capazes de oferecer uma explicação satisfatória a um problema empírico (van Fraassen, 2007). Satisfazer esse critério pragmático seria, na perspectiva do autor, a virtude central do conhecimento científico, opondo-se assim às concepções epistemológicas realistas, que encaram o empreendimento científico como uma busca pela verdade.

Um ponto de interesse na visão do autor sobre a representação está em seu aspecto relacional . Embora a noção de representação como uma relação seja amplamente aceita, van Fraassen, à luz de seu empirismo construtivo, sublinha que o referente da representação pode não existir, e - o que é bem mais controverso - que isso não invalida a representação. Trata-se de um posicionamento consistente com seu antirrealismo, que fundamenta o empirismo construtivo.

Na verdade, dizer que algo é a pintura de um piquenique não implica em absoluto que haja um verdadeiro piquenique representado por essa pintura. “A Mona Lisa é um retrato de Maria Madalena”: esta afirmação pretende mencionar duas coisas reais e uma relação entre elas. Talvez faça. Mas o importante é que a forma por si só não pode revelar isso. Pois a afirmação ainda pode ser verdadeira se descobrir que Maria Madalena não foi uma personagem histórica real (Van Fraassen, 2008, p. 26, tradução nossa).

Além disso, uma representação, segundo van Fraassen (2008), somente poderia ser criada a partir de um propósito comunicativo. Não haveria representação isenta de propósito, pelo menos não na ciência. Mais do que isso, a existência de um propósito induz a criação da representação. O que o cientista escolherá representar? Como ele simbolizará a representação? Qual será a interpretação de uma representação? Essas são algumas das perguntas que serão respondidas de acordo com o propósito do cientista em representar aquilo que ele deseja. A linguagem simbólica presente na representação será adequada a esse propósito. É com um objetivo em mente que o cientista ajustará a representação para que ela se reporte ao conhecimento referido.

Esse reconhecimento do aspecto intencional da representação já havia sido sublinhado por Giere ao definir a representação como uma relação da forma: “S utiliza X para representar W para o propósito P” (Giere, 2004, p. 743), em que S é um cientista, um grupo de cientistas, ou até mesmo a comunidade científica, W é um aspecto do mundo real e X é o modelo utilizado para representar W. O modelo X pode se apresentar em diversas formas, seja em palavras, equações, diagramas, desenhos, gráficos, entre outros.

Van Fraassen (2008), ao discutir a diferença entre “representação de” e “representação como”, explicita ainda mais esse caráter intencional ao reconhecer que o ato de representar é, também uma atribuição de predicados àquilo que está sendo representado. Para o autor, “Não há representação exceto no sentido de que algumas coisas são usadas, feitas ou tomadas, para representar algumas coisas como sendo de uma forma ou de outra” (van Fraassen, 2008, p. 23, tradução nossa). Essa cláusula denota a representação como um artefato, um objeto cultural cuja função é outorgada por meio da prática e do contexto. Nesses termos, van Fraassen reformula a sentença de Giere para: X representa Y como F, que pode ser lida como: a representação (X) representa o referente (Y) como tendo o predicado (F). Assim, a proposição “a neve é branca” (X) representa a neve (Y) como sendo provida de cor (F).

O aspecto intencional da representação reside na sua necessária intenção epistêmica, ou seja, no fato de que alguém atribui certo predicado a um certo referente. “Se, por exemplo, eu desenhar um gráfico e apresentá-lo como representando a taxa de crescimento bacteriano sob certas condições, então, em virtude desse próprio ato, o que o gráfico representa é a taxa de crescimento bacteriano nessas condições” (van Fraassen, 2008, p.27). Compreender o aspecto intencional da representação permite entender porque ela pode ser diferente conforme o seu contexto de uso. O mesmo gráfico pode, em contextos diferentes, representar outras coisas, ou mesmo não representar nada. Quando o professor de Matemática ensina a seus alunos sobre o gráfico da função exponencial, por exemplo, não é absolutamente necessário que se saiba seja o que for sobre o crescimento bacteriano que eventualmente ela poderá ser usada para representar. Isso mostra também como a relação de representação não se presta ao estabelecimento de uma relação de identidade. Van Fraassen (2008) exemplifica esse fato ao destacar que, embora todas e apenas as criaturas com coração sejam criaturas com rins, representar uma criatura como tendo coração não é a mesma coisa que representá-la como tendo rins; de modo semelhante, toda mulher é uma filha, mas ser mulher não é a mesma coisa que ser filha. Esses exemplos evidenciam ainda que a atribuição de diferentes predicados resulta em diferentes representações, muito embora o referente seja o mesmo. Em ambos os casos, o sentido da representação depende fundamentalmente do contexto, isto é, de algo que está fora da representação em si.

Sendo a representação um artefato construído para um propósito, como este se manifesta na forma da representação? Van Fraassen (2008) argumenta que, muitas vezes, o sucesso de uma representação exige que ela se afasta deliberadamente da semelhança com o referente. Até mesmo uma deturpação (misrepresentation) pode ser uma representação. O autor convida a considerar uma caricatura da Sra. Thatcher que a representa como draconiana. Esta pode ser uma representação deturpada, mas certamente é uma representação dela (e não de outro referente).

Assim, distorção [distortion] - desvio da semelhança - que pode ser crucial para uma representação precisa em certos casos, é em outros casos o veículo de deturpação efetiva. A semelhança em algum aspecto particular pode ser o veículo de referência: reconhecemos a caricatura como sendo da Sra. Thatcher por causa da semelhança em certos aspectos. Também pode ser o meio de atribuição ou atribuição errônea de alguma característica: tomamos a caricatura para representá-la como draconiana por causa de alguma semelhança com um dragão, que na verdade é uma dessemelhança com ela (van Fraassen, 2008, p. 14, tradução nossa).

Ao fazer a caricatura da Sr. Thatcher, pode-se acrescentar ou reduzir aspectos na representação para guiar a atenção do leitor e levá-lo a uma interpretação daquilo que ele vê. Isso é crucial na representação científica, tendo em vista que podemos distorcer os fenômenos para alcançar outros objetivos, que não são apenas demonstrar o fato em si. Essa capacidade da ciência em trazer para a representação aquilo que está além do fato em si abre o caminho do sucesso científico, pois traz a possibilidade de trabalharmos sem nos limitarmos àquilo que nós observamos empiricamente: “ ... o que determina a relação de representação [...] pode ser, na melhor das hipóteses, uma relação do que está nela com fatores que não estão no próprio artefato nem no que está sendo representado”. (van Fraassen, 2008, p. 31, tradução nossa, grifos do autor).

Essa é uma característica que vai de encontro à visão de senso comum, em que o sucesso de uma representação pode ser medido pela semelhança com o referente. Van Fraassen não está apenas dizendo que a semelhança nem sempre é necessária, mas que efetivamente o afastamento do referente pode ser um aspecto crucial para o sucesso da representação. O autor chega a falar de distorção como uma virtude da representação (2008, p. 49), já que ela contribui para que o artefato cumpra seu propósito representativo.

Ainda examinando o exemplo da caricatura, van Fraassen indaga: por que diz-se da Sra. Thatcher que é draconiana, mas não se diz de um dragão que é thatcheriano? Haveria, para van Fraassen (2008), uma assimetria na representação que, portanto, ao contrário da semelhança, não é simétrica nem reflexiva. Logo, a existência de semelhança não é suficiente para configurar uma relação de representação, embora isso não implique que a semelhança não tenha qualquer papel.

Sobre o bebê de Rosemary, eles disseram “Ele tem os olhos do pai”. É difícil pensar em que eles disseram para o pai “Ele tem os olhos do bebê”. A réplica pode ser que, literalmente, a semelhança observada vai para os dois lados; mas “literalmente” pode aqui significar apenas “se você ignorar o contexto”. (van Fraassen, 2008, p. 18, tradução nossa).

Esse conjunto de características, sem pretender estabelecer uma definição de representação ou mesmo esgotar todos os seus aspectos, é suficiente para trazer à tona algumas de suas principais complexidades e problematizar algumas noções de senso comum acerca da natureza desse construto. Na seção a seguir, discutiremos como esses elementos podem ser transpostos à reflexão sobre o papel das representações no ensino da Química, com vistas ao favorecimento da construção de sentido ao conhecimento químico escolar.

Transpondo aspectos da representação ao ensino de Química

Não é novidade afirmar que a Química é uma ciência intimamente ligada à representação (Hoffman & Laszlo, 1991; Kozma et al, 2000). Isso não significa dizer que as outras ciências não utilizem ou que façam pouco uso de representações, mas que a Química é uma ciência que não se comunica sem representações. As Ciências colecionam diversos modelos, mas a Química é a que carrega mais representações de entidades não observáveis empiricamente (Hoffman e Laszlo, 1991). É para cumprir com seus objetivos investigativos que a Química emprega representações de substâncias, átomos, moléculas, diagramas, gráficos, estruturas (Lewis, Newman, Fischer), entre outras, e todas intermediadas em uma linguagem simbólica. Essa linguagem simbólica é representacional e baseada em modelos. Mesmo quando tratam dos fenômenos macroscópicos da matéria, os químicos recorrem a modelos de objetos não observacionais. Quando a Química investiga a temperatura de ebulição das substâncias, por exemplo, a parte macroscópica das medições é acompanhada de uma explicação por meio de modelos do universo submicroscópico da matéria. Sendo assim, a Química não consegue se dissociar da simbologia representacional, tampouco representar o conhecimento de forma distanciada do universo submicroscópico (Hoffman e Laszlo, 1991; Kozma et al., 2000).

Hoffman e Laszlo (1991) defendem que nem todos os cientistas se comunicam por meio de modelos para representar a informação, mas os químicos são incomuns e quase todos, de alguma maneira, se apropriam das representações para se comunicarem. Isso, para os autores, deve-se ao fato que tais mecanismos facilitam o sistema comunicativo da ciência, em especial a Química, por remover as ambiguidades. As representações sob os modelos têm uma função que permite identificar especificamente a informação desejada. Por exemplo, as nomenclaturas e a isomeria são dois modelos que removem a ambiguidade de uma substância ocasionar dois fenômenos distintos ou duas ou mais substâncias terem o mesmo nome (Hoffman & Laszlo, 1991). “Uma fórmula Química é como uma palavra. Pretende identificar, para destacar as espécies químicas que representa” (Hoffman & Laszlo, 1991, p. 8). Portanto, para uma comunicação entre professores de Química e alunos faz-se necessário o domínio do entendimento da linguagem e de suas representações.

Para Hoffman e Laszlo (1991), a Química já é uma ciência madura que abandonou a prática primordial de descrições fenomenológicas das propriedades da matéria. Atualmente a Química é capaz de explicações ao observável a partir da escala submicroscópica de tal maneira que consegue traçar um paralelo entre o modelo atômico com seus elétrons distribuídos de uma molécula de tinta até sua cor. Essa ciência explica o macroscópico com base em modelos de um universo submicroscópico, e não simplesmente registra as observações empíricas da matéria. O ponto importante aqui é notar que o universo submicroscópico se tornou tão aceito e difundido dentro da Química que os cientistas o tratam como se fossem objetos observáveis similares às nossas experiências cotidianas. Tratar os modelos submicroscópicos como se representassem objetos observáveis pelos nossos sentidos pode ter como consequência um modo ingênuo de olhar os modelos químicos e não é muito diferente de acreditar em anjos (Hoffman & Laszlo, 1991).

Nossa disciplina é uma curiosa mistura de observação empírica e raciocínio abstrato. Isso não é diferente da música - mas separa a Química do rigor da matemática pura. Os alunos educados em lógica dedutiva têm dificuldade em lidar com a Química! (Hoffman & Laszlo, 1991, p. 9).

Essa observação dialoga com van Fraassen (2008) quando Hoffman e Laszlo (1991)tocam nas fórmulas que representam os fenômenos químicos, e destacam que a Química não é uma atividade puramente lógico-matemática. Utilizamos da Matemática porque ela oferece recursos que dão uma melhor precisão à representação do observável (van Fraassen, 2008). O tom jocoso que Hoffman e Laszlo (1991) dão aos alunos que são treinados com a lógica dedutiva encontrarem dificuldade em lidar com a Química ganha sentido quando os autores explicitam as fórmulas químicas como pertencentes à linguagem. Apesar das fórmulas possuírem uma função comunicativa própria da linguagem - e por isso são como as palavras que almejam representar algo -, diferentemente das palavras, elas combinam o simbolismo representacional com observações empíricas.

A natureza simbólica da fórmula química, o fato de os químicos saberem que um hexágono representa um anel de átomos de carbono que por sua vez é muito, muito menor, o conhecimento implícito de que esse hexágono não é uma fotografia ampliada do anel, todo esse distanciamento simbólico, é claro, aumenta a natureza metafórica do discurso químico. As estruturas não são o que representam... (Hoffman & Laszlo, 1991, p.12, grifo nosso).

É nesse ponto que os alunos apegados às formulações puramente dedutivas se perdem no entendimento da Química, pois a fórmula não é um conjunto de elementos simbólicos que funcionam igualmente como as formulações matemáticas. Os químicos utilizam da Matemática para traçar um parâmetro objetivo que permite criar novos conhecimentos e auxiliar na construção das teorias. Contudo, os valores empíricos não seguem o rigor matemático como previsto na fórmula. Hoffman e Laszlo (1991) defendem que o processo de representação na Química, ao consistir em uma transformação simbólica da realidade, carrega mais ambiguidade em sua linguagem gráfica do que os químicos costumam pensar, e discutem vários pontos de contato entre a representação química e a Arte. Esses autores defendem que a fórmula química é, em parte, um dispositivo de inferência, mas, ao mesmo tempo, também possui uma parte de imaginação. Com base em van Fraassen (2008) entendemos com maior clareza essa função matemática nas formulações químicas quando o autor exemplifica com a construção de uma cópia nossa usando uma escultura em gesso e se pudéssemos criar um gráfico tridimensional e preencher com pontos uma forma que fosse similar à nossa. O modelo gráfico - matemático - teria maior precisão do que a escultura de gesso, mesmo não tendo a semelhança visual apresentada pela escultura. De modo semelhante,

A arte tribal, seja ela de aborígenes australianos ou um clã esquimó, muitas vezes nos parece esquemática, deficiente em perspectiva. Esse é o nosso problema, pois para o grupo nativo que compartilha a cultura que informa essa arte, a representação pode ser altamente precisa e perceptiva. O mesmo ocorre com os desenhos químicos - sua perspectiva pode ser inadequada, sua representação artisticamente pouco sofisticada. Mas eles contam uma história concisa para o leitor de Química. Como imagens ou esculturas primitivas, desenhos químicos geralmente distorcem uma visão se a capacidade dos visualizadores de classificar claramente um objeto for aumentada por essa distorção. Portanto, se for importante mostrar que alguém possui seis ovelhas, as ovelhas serão colocadas de forma que sejam distintas e claramente vistas como ovelhas. Uma divindade será representada por seus atributos simbólicos de forma que não podemos confundi-la com qualquer outra (Hoffman & Laszlo, 1991, p. 12, tradução nossa, grifo nosso).

Hoffman e Laszlo (1991) discutem as distorções nas representações químicas de um modo similar às distorções que discutimos com base em van Fraassen (2008). Os autores trazem ainda outro exemplo do impacto que a distorção provoca na comunicação do conhecimento químico. Aqui, apresentamos uma pequena adaptação utilizando outra molécula e suas respectivas representações, mas o intuito é preservar a essência da discussão.

Fonte: Os autores.

Figura 4 Íon carbonato 

Fonte: VOLLHARDT, Peter; SCHORE, Neil E. Química Orgânica-: Estrutura e Função. Bookman Editora, 2013, p. 46.

Figura 5 Íon carbonato 

A figura 6 é a representação mais distorcida do íon carbonato, porém é a mais informativa acerca do objeto representado. Na figura 7 quase não é possível identificar sem especificar o nome do objeto que está representado. É com esse sentido que Hoffman e Laszlo (1991) tratam as virtudes da distorção. Na Química, o mais importante não é representar com perfeição o objeto, mas comunicar sua referência na representação de tal maneira que seja clara. Enquanto apresenta um nível mais alto de complexidade, a figura 6 desfigura totalmente o objeto, porém comunica com maior clareza sua referência. Esse exemplo ilustra como a distorção pode ser necessária para expressar o conhecimento.

Poderíamos ainda questionar: por que os químicos possuem tantas formas de representar o mesmo objeto? Porque cada representação possui uma função específica para comunicar o conhecimento. Enquanto a figura 6 traz uma pragmática na representação escrita, tornando muito mais fácil a comunicação do objeto sem recorrer a imagens computacionais, ou desenhos que se aproximem da molécula, ela não comunica, por exemplo, a distribuição das cargas na molécula. Para isso a figura 7 é muito mais efetiva, pois podemos enxergar a partir dela os pontos onde há maior concentração da carga negativa (em vermelho), e maior concentração da carga positiva (em verde e azul) localizadas nas extremidades dos átomos de oxigênio e no núcleo da molécula (representado pelo carbono que fica positivo ao doar os elétrons para os átomos de oxigênio).

Essa multiplicidade de representações construídas do mesmo referente evidencia o que Bas van Fraassen (2008) chamou de “representar como”: diferentes representações evidenciam os diferentes predicados atribuídos ao objeto, e são determinados pelo contexto e pelo propósito buscado com a representação. A partir dessa constatação, somos levados a questionar acerca das implicações desse aspecto da representação ao ensino-aprendizagem da Química. Essa questão foi investigada por Stull et al. (2012), que buscaram investigar habilidades de estudantes do ensino superior em traduzir a representação de uma molécula orgânica entre três diferentes formas representacionais diagramáticas (Fischer, Newman e Traço-Cunha), com e sem o auxílio de um modelo concreto tridimensional da molécula.

Fonte: STULL, Andrew T. et al. Representational translation with concrete models in organic chemistry. Cognition and Instruction, p. 406, 2012.

Figura 6 (a) Um modelo concreto (bola e palito), (b) Diagrama Traço-Cunha, (c) Diagrama de Newman e (d) Diagrama de Fischer 

A pesquisa de Stull et al. (2012) incluiu três dinâmicas para investigação com 153 alunos oriundos da graduação que cursaram a disciplina de Química Orgânica. Em uma delas, a base do procedimento experimental consistia em dar aos alunos um modelo concreto de uma molécula orgânica previamente montado, como aquele representado na figura 8a. Com o modelo em mãos, a atividade proposta para os alunos direcionava para eles traduzirem o diagrama de uma dada molécula para um diagrama diferente da mesma molécula . Nesse estudo, os autores buscavam verificar se e como os participantes usariam voluntariamente o modelo concreto e também se esse uso ajudaria na realização da tarefa. O que é relevante da prática proposta para a presente pesquisa é perceber que os alunos deveriam manusear o modelo e os diagramas de tal maneira que as representações fossem da mesma substância numa determinada conformação. Os autores concluíram a partir da pesquisa que os modelos concretos ajudaram no desenvolvimento das tarefas, ao relatar que os alunos que usaram tais modelos junto com os digramas obtiveram resultados melhores em comparação àqueles que não os utilizaram. Contudo, os autores notaram que, embora alinhar o modelo com o diagrama a ser elaborado tenha melhorado o desempenho dos estudantes, isso só ocorreu em uma minoria dos casos. Muitos dos estudantes simplesmente não fizeram uso do modelo concreto para realizar a tarefa.

Embora os autores não tenham investigado em profundidade as razões sobre esse baixo uso dos modelos concretos, alguns dos participantes relataram não ter sentido necessidade desses objetos, enquanto outros afirmaram não querer depender desse apoio, já que não estaria disponível no momento de prestarem exames. Outra possível razão levantada pelos autores foi de que os estudantes poderiam não estar distinguindo entre o diagrama - enquanto representação - e a realidade que ele busca representar (Stull et al, 2012). Esse é um aspecto que merece aprofundamento, tendo em vista a ubiquidade das representações na Química.

A dificuldade em compreender a relação de representação é compreensível, à luz do referencial teórico discutido na seção precedente, bastando observar que cada uma das imagens presentes na Figura 8 (a, b, c e d) consiste em um artefato epistêmico criado com uma determinada intenção (que pode não estar clara para o estudante) e que, ainda mais, distorce sobremaneira o seu referente - uma molécula orgânica real. Esses artefatos estão em uma relação assimétrica com seu referente (ninguém diria que a molécula real representa um diagrama bidimensional ou um modelo do tipo bola e palito) e, segundo van Fraassen, embora sejam criados buscando produzir uma explicação pragmática empiricamente adequada, não se restringem ao domínio empírico, mas lançam mão de construtos inobserváveis a fim de atingir seu propósito explicativo. A simples existência dessa delicada relação de representação deixa evidente que não podemos, em nenhum caso, igualar a representação ao objeto que está sendo representado.

Essa não-identidade entre objeto e representação traz à tona outro aspecto, destacado pela perspectiva empirista construtiva do autor, que é o caráter relacional da representação. Toda representação é representação de algo. Mas será que o referente da representação sempre está claro para os estudantes de Ciências? No caso do estudo de Stull et al (2012), os diagramas seriam representações da molécula orgânica ou do modelo concreto tridimensional?

Imagine: adquiri uma famosa fotografia da Torre Eiffel, Au Pont de l’Alma, de Doisneau. Ela está pendurada na minha parede, mas eu a escaneio e imprimo a imagem escaneada. Esta impressão também é uma imagem - o que ela representa? A Torre Eiffel vista da Pont de l’Alma, ou a famosa fotografia? (van Fraassen, 2008, p. 21, tradução nossa).

Essa situação resgata o sentido da expressão do autor para a representação: X representa Y como F, ou, numa versão mais completa, “Z usa X para representar Y como F” (van Fraassen, 2008, p. 21). Tanto na situação da pesquisa de Stull et al (2012) quanto no exemplo da Torre Eiffel, fica claro que a resposta para a questão sobre o que representa o que depende essencialmente do contexto. Assim, se alguém enviar essa imagem enquanto está de férias em Paris, como um cartão postal, então a imagem representa a torre; por outro lado, se ela está em uma das páginas de um livro sobre fotografia, então ela representa a fotografia famosa de Doisneau (van Fraassen, 2008). O mesmo raciocínio pode ser aplicado às tarefas propostas no estudo de Stull et al (2012): era esperado dos estudantes que trabalharam com o modelo tridimensional que produzissem uma representação diagramática daquele modelo. É evidente que a habilidade de trabalhar com representações diagramáticas é indispensável na aprendizagem em Química. Contudo, a situação ilustra algo que ocorre com frequência no ensino de Ciências de forma geral, que é a indiferenciação entre a representação e o objeto a ser representado. Não causa surpresa, portanto, que os estudantes encontrem dificuldade em compreender essa diferença, com consequências sobre a aprendizagem (Taber, 2012).

Conclusões

Com base na discussão precedente, é possível concluir que os desafios que surgem na aprendizagem da Química relacionados às representações - em especial aqueles ligados às dificuldades em distinguir os objetos de conhecimento do próprio conhecimento sobre eles produzido - não são solucionados pura e simplesmente pela introdução de teorias mais complexas e, portanto, mais “próximas da realidade”. O suporte oferecido pelo referencial de van Fraassen, direcionado às questões oriundas da prática de ensino de Química, evidenciou que esses desafios são inerentes à própria relação de representação, o que demanda uma reflexão acerca da natureza dessa relação.

Os exemplos examinados (íon carbonato e molécula de benzeno) permitiram elucidar como as representações podem sofrer distorções capazes de torná-las mais adequadas para comunicar o conhecimento. A partir dessas discussões, concluímos que compreender que uma representação científica - seja ela diagramática, concreta, pictórica, verbal ou matemática - é uma relação com um referente, e, portanto, não é idêntica a ele, é essencial para a aprendizagem científica, uma vez que o próprio significado da representação deriva de um contexto que lhe deu origem. A necessidade de responder a uma questão proveniente desse contexto motiva a construção de determinadas representações, e nessa questão está embutida uma intencionalidade que, por sua vez, molda as características dessa representação.

Esse reconhecimento da função central do contexto sintoniza-se com tendências na área da educação científica alinhadas com a virada da prática, em especial aquelas que investigam o papel dos modelos e da modelização na aprendizagem de Ciências. Tal alinhamento se traduz, por exemplo, na defesa de que “... ao definir modelos no contexto de seu uso, o foco muda para a escolha de um modelo que possa ser usado para dar sentido ao fenômeno-alvo de uma maneira apropriada para o agente cognitivo” (Passmore et al., 2014, p. 1181).

A partir dessa perspectiva, deixa de causar estranheza o fato de que as representações científicas inevitavelmente distorcem os objetos que visam representar: percebe-se que essa distorção cumpre um papel positivo na explicação científica. Por exemplo, uma fórmula estrutural de uma determinada substância química não é uma mera simplificação grosseira de uma molécula, mas é um artefato produzido de maneira intencional para comunicar certos aspectos de interesse acerca desse objeto (e que fatalmente deixa de comunicar outros). Essa abordagem permite compreender a afirmação de Hoffmann e Laszlo (1991) de que as estruturas não são aquilo que elas representam. Ao mesmo tempo, essa compreensão também possibilita entender a existência de múltiplos modelos de um mesmo referente - por exemplo, o fato de existirem diversos modelos diferentes de átomo (Dalton, Thomson, Bohr, Rutherford, Sommerfeld) -, pois, se a construção de uma representação visa dar um sentido pragmático dependente de um contexto, já não se trata mais de um caminho linear em direção a uma verdade última, em que os modelos “corretos” vinham substituir os modelos “errados”, aprendidos em etapas anteriores da escolarização.

Ainda outro aspecto que pode ser mais bem compreendido a partir da reflexão sobre a natureza da representação é a existência de discrepâncias entre a projeção teórica e a observação empírica nas atividades experimentais. A partir do referencial de van Fraassen torna-se possível notar que essa discrepância não é, em si, uma contradição, já que os modelos teóricos (no sentido de conhecimentos produzidos sobre os objetos e fenômenos estudados e que são capazes de oferecer explicações e previsões acerca desses objetos e fenômenos) cumprem um propósito diferente da simples observação ao incorporar outros elementos que são externos ao fato em si. É isso que permite ampliar a capacidade comunicativa do modelo e utilizá-lo para diferentes propósitos. Um deles é a explicação. Os modelos representativos dos fenômenos, por serem capazes de comunicar um conhecimento a respeito do observável, acarretam um potencial explicativo. Utilizamos esse potencial explicativo para responder nossos anseios pessoais por conhecimento racional assim como o utilizamos para comunicar-nos para os outros.

Tanto Bucat e Mocerino (2009) quanto Hoffman e Laszlo (1991) tratam a química como uma ciência que se comunica por meio de representações. Os modelos permitem e estimulam a propagação do conhecimento químico. A noção de distorções virtuosas de van Fraassen (2008) conduz um a olhar com mais ênfase para a função do modelo e do que desejamos comunicar. Isso nos faz vislumbrar um outro panorama ao lidar com as “contradições” entre a teoria e prática, pois, ao invés de olharmos para a contradição e tentarmos justificá-la, somos levados a refletir: o que desejo comunicar? As distorções existentes entre o modelo e o objeto observacional podem, assim, ser compreendidas a partir da função explicativa do modelo. Retomando todas as figuras que trouxemos para a pesquisa, podemos concluir que nenhuma delas, sob a perspectiva de van Fraassen (2008), fala sobre objeto em si: elas estão falando de uma teoria que as projetam. A projeção teórica nada tem a ver com a perfeita correlação ao objeto, mas, como vimos, com o compromisso pragmático de dar sentido ao seu contexto de origem.

A partir dessas reflexões, consideramos ser indispensável que a prática da educação científica inclua de forma explícita a discussão acerca da própria natureza das representações que compõem seu conteúdo. No caso da Química, a onipresença das representações torna ainda mais necessária essa explicitação, especialmente tendo em vista com que facilidade as estruturas são identificadas com aquilo que elas representam. O referencial de van Fraassen permitiu apontar alguns dos aspectos essenciais que constituem a representação: seu caráter relacional, sua característica intencional ao atribuir predicados, sua distorção virtuosa e a assimetria em sua relação com o representado. Por se tratar de aspectos que sustentam a função explicativa dos modelos representativos de objetos da Química, podem servir para destacar questões que direcionem a discussão sobre a natureza das representações em sala de aula, na perspectiva de uma abordagem que vise priorizar a construção de sentido ao conhecimento químico.

Agradecimento

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências

Atkins, P., Jones, L., & Laverman, L. (2012). Princípios de Química-: Questionando aVida Moderna e o Meio Ambiente. Bookman Editora. [ Links ]

Bucat, B., & Mocerino, M. (2009). Learning at the sub-micro level: Structural representations. In: Multiple representations in chemical education(pp. 11-29). Springer, Dordrecht. [ Links ]

Chittleborough, G. (2014). The development of theoretical frameworks for understanding the learning of chemistry. In: Learning with understanding in the chemistry classroom (pp. 25-40). Springer, Dordrecht. [ Links ]

Cofré, H., Núñez, P., Santibáñez, D., Pavez, J. M., Valencia, M., & Vergara, C. (2019). A critical review of students’ and teachers’ understandings of nature of science. Science & Education, 28, 205-248. [ Links ]

Giere, R. N. (2004). How models are used to represent reality. Philosophy of science, 71(5), 742-752. [ Links ]

Gilbert, J. K., & Justi, R. (2016). Modelling-based teaching in science education(Vol. 9). Basel, Switzerland: Springer international publishing. [ Links ]

Gilbert, J. K. (2009). Multiple representations in chemical education (Vol. 4, pp. 1-8). D.F. Treagust (Ed.). Dordrecht: Springer. [ Links ]

Hoffmann, R., & Laszlo, P. (1991). Representation in chemistry. Angewandte Chemie International Edition in English, 30(1), 1-16. [ Links ]

Johnstone, A. H. (1991). Why is science difficult to learn? Things are seldom what they seem. Journal of computer assisted learning, 7(2), 75-83. [ Links ]

Justi, R. (2006). La enseñanza de ciencias basada en la elaboración de modelos. Enseñanza de las ciencias: revista de investigación y experiencias didácticas, 173-184. [ Links ]

Knuuttila, T., & Boon, M. (2011). How do models give us knowledge? The case of Carnot’s ideal heat engine. European journal for philosophy of science, 1(3), 309-334. [ Links ]

Kozma, R., Chin, E., Russell, J., & Marx, N. (2000). The roles of representations and tools in the chemistry laboratory and their implications for chemistry learning. The Journal of the Learning Sciences, 9(2), 105-143. [ Links ]

Lederman, N. G. (2007). Nature of science: Past, present, and future. In: Handbook of research on science education(pp. 831-879). Routledge. [ Links ]

Machado, J., & Rodrigues, M. G. (2022). É possível reabilitar o empirismo no Ensino de Ciências? Virtude pragmática sob a ótica antirrealista de Bas van Fraassen. Ciência & Educação (Bauru), 28. [ Links ]

Martins, A. F. P. (2015). Natureza da Ciência no ensino de ciências: uma proposta baseada em “temas” e “questões”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, 32(3), 703-737. [ Links ]

McCOMAS, W. F. (2008). Seeking historical examples to illustrate key aspects of the nature of science. Science & Education, 17, 249-263. [ Links ]

Passmore, C., Gouvea, J. S., & Giere, R. (2014). Models in science and in learning science: Focusing scientific practice on sense-making. In: International handbook of research in history, philosophy and science teaching(pp. 1171-1202). Springer, Dordrecht. [ Links ]

Stull, A. T., Hegarty, M., Dixon, B., & Stieff, M. (2012). Representational translation with concrete models in organic chemistry. Cognition and Instruction, 30(4), 404-434. [ Links ]

Taber, K. S. (2009). Learning at the symbolic level. In: Multiple representations in chemical education(pp. 75-105). Springer, Dordrecht. [ Links ]

Taber, K. S. (2012). The natures of scientific thinking: Creativity as the handmaiden to logic in the development of public and personal knowledge. In: Advances in nature of science research (pp. 51-74). Springer, Dordrecht. [ Links ]

Tümay, H. (2016). Reconsidering learning difficulties and misconceptions in chemistry: emergence in chemistry and its implications for chemical education. Chemistry Education Research and Practice, 17(2), 229-245. [ Links ]

Van Fraassen, B. C. (2007). A imagem científica. UNESP. [ Links ]

Van Fraassen, B. C. (2008). Scientific Representation: Paradoxes of Perspective. Oxford University Press. [ Links ]

Vollhardt, P., & Schore, N. E. (2013). Química Orgânica: Estrutura e Função. Bookman Editora. [ Links ]

O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Declaração sobre disponibilidade de dados

disponibilidade de dados “Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo e em trabalhos preliminares citados neste trabalho. De acordo com a aprovação do projeto em comitê de ética, terão acesso aos dados coletados unicamente a pesquisadora e seu orientador que poderão publicá-los em trabalhos”.

Recebido: 01 de Janeiro de 2023; Aceito: 28 de Julho de 2023

Contato: Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. Avenida Maracanã, 229 - Maracanã. Rio de Janeiro - RJ | Brasil. CEP 20271-110

Contato: Centro de Ensino de Ciências e Matemática de Minas Gerais - CECIMIG. Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais. revistaepec@gmail.com

Marcelo Gonzaga Rodrigues - Mestre em Ciência, Tecnologia e Educação (PPCTE/CEFET/RJ). E-mail: marcelogr19@gmail.com

Juliana Machado - Doutora em Ciência, Tecnologia e Educação (PPCTE/CEFET/RJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET) - Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: juliana.machado@cefet-rj.br

Editor responsável: Luciana Sá

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons