A preocupação com a ética em pesquisa remonta ao período da segunda guerra mundial, quando surgiu o Código de Nuremberg em 1947. Experimentos polêmicos em psicologia, como o de Milgran em 1961 e Stanford em 1971, indicaram que essa preocupação com os aspectos éticos deveria acompanhar a pesquisa e renovar códigos e diretrizes para pesquisadores constantemente. Fatores como o surgimento da internet e os movimentos de ciência aberta apontam que a cultura científica mudará mais nos próximos 20 anos do que nos últimos 200 (Bartling; Friesike, 2014). Soma-se a isso, mais recentemente, a ampliação do uso da inteligência artificial.
Atualmente a literatura no exterior adota os termos integridade acadêmica e integridade científica para englobar os aspectos éticos e ampliar as preocupações envolvidas na condução ética de pesquisas. No caso do Brasil, as associações científicas da área de pesquisa em Ensino de Ciências não têm produzido reflexões e documentos próprios. Apenas a Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPED)1, desde 2013, instituiu a Comissão de Ética em Pesquisa e Integridade, voltada para estudos e produções sobre o tema. Eles afirmam que a integridade acadêmica é um conceito multidimensional que envolve toda a universidade (ensino, gestão e extensão) e aponta para valores fundamentais como honestidade, confiança, responsabilidade, respeito, justiça e equidade, como proposto pelo The International Center for Academic Integrity (ICAI) (ANPED, 2023). Nesse mesmo documento, indica-se que a integridade científica envolve todo o desenvolvimento da pesquisa e casos de má conduta (falcatruas, falsidade e fraudes) e autoria e as publicações (incluindo preocupações com a propriedade intelectual e conflito de interesses). Documentos como o European Code of Conduct for Research Integrity orientam sobre boas práticas em pesquisa. No Brasil ainda temos poucos documentos orientadores além desses produzidos pela ANPED, como as Diretrizes Básicas para a Integridade na Atividade Científica do CNPq, o Código de Boas Práticas da Fapesp e a Resolução 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, que dispões sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com seres humanos. São documentos que deixam claro que, no Brasil, diferente de outros países, há uma separação de diretrizes sobre integridade científica e sobre procedimentos éticos relativos aos participantes das pesquisas. No documento do código de ética da American Educational Research Association (AERA, 2017) e da British Educational Research Association (BERA, 2018) esses aspectos são tratados em conjunto, permitindo uma articulação mais ampla e transversal dos aspectos éticos e da integridade da pesquisa em educação.
Segundo Mainardes (2023), no Brasil a ética tem sido relacionada à ética em pesquisa e ao processo de revisão (avaliação) ética, na qual se insere prioritariamente a ética com o participante da pesquisa. Já a integridade tem sido associada às boas práticas de pesquisa e de publicações, ou seja, cuidados com o plágio, autoplágio, autoria, etc. Muitas vezes, a ética relacionada ao participante tende a ser entendida no âmbito da pesquisa como sinônimo de Comitê de Ética (CEP). Em diversas unidades universitárias temos a presença de CEP vinculados à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por sua vez vinculada ao Conselho Nacional de Saúde e ao Ministério da Saúde, o mesmo órgão que produziu a Resolução 510 no âmbito de uma comissão específica para pensar as Ciências Humanas e Sociais. Os CEP tendem a ser vistos nacionalmente como instâncias de creditação das pesquisas, como âmbitos avaliadores do atendimento ou não aos cuidados éticos. No contexto pandêmico, o caso da Prevent Senior2 ocupou os principais noticiários como uma pesquisa que não havia sido aprovada pelo Comitê de Ética, o que era sinônimo de falta de legitimidade no estudo. Apesar dessa percepção como instância avaliadora e legitimadora da pesquisa no senso comum, os CEP, seguindo orientação da CONEP, são órgãos que atuam no sentido de auxiliar o pesquisador a adotar condutas responsáveis no tratamento ético dos participantes da pesquisa. Assim, ao pensar a ética como sinônimo de CEP desconsideramos diversos aspectos da integridade científica e das boas práticas de pesquisa que extrapolam o âmbito do participante. A CONEP se preocupa com a dimensão ética das pesquisas em (no caso da saúde) e com (no caso das humanas) seres humanos, assim cabe à pessoa que conduz a pesquisa pensar sobre aspectos considerados de integridade, como autoria, plágio, tratamento e abertura dos dados, entre outros diversos aspectos envolvidos na condução de uma pesquisa.
Em paralelo a essas preocupações, implementamos nesta revista, de forma progressiva, práticas de ciência aberta que, inicialmente, se concentraram na avaliação aberta e passaram a incluir os dados abertos (Azevedo; Mendonça, 2024; Mendonça; Franco, 2021; Mendonça et al., 2023;). Essas práticas nos levaram a reflexões sobre integridade científica envolvendo os processos de avaliação por pares (Mendonça et al., 2023) e autoria (Bizerra; Sá, 2022). A disponibilização dos dados, discutida em editorial recente (Azevedo; Mendonça, 2024), ampliou nossa preocupação com os aspectos éticos da pesquisa, uma vez que o participante de uma pesquisa com dados abertos deveria estar ciente dessa disponibilização e ter sua identidade preservada na divulgação dos dados. Por outro lado, a consolidação desse movimento na revista, que incluiu a criação da editoria de dados, nos deixou mais seguros em relação a aspectos de integridade científica como a transparência e responsabilidade no cuidado com os dados e com as análises (Azevedo; Mendonça, 2024). Por meio desse trabalho de editoria é possível questionar a autoria sobre qual dado deve ser aberto e como isso foi conversado com os participantes do estudo; o que pode ser aberto desde que anonimizado (transcrições com nomes fictícios, vídeos/fotos com rostos ofuscados); ou o que não poderia ser aberto por expor de alguma forma os participantes da pesquisa.
Dando continuidade à discussão dos editoriais anteriores, neste texto pretendemos trazer uma reflexão sobre as questões ligadas à discussão sobre ética com os participantes das pesquisas, particularmente nas pesquisas em Ensino de Ciências, e o papel dos periódicos científicos nesse processo.
Na área de Educação, há uma crítica frequente aos CEP de que eles não contemplam a especificidade das ciências humanas, derivada da vinculação à área de saúde, uma vez que, apesar de haver normas específicas para as Ciências Humanas (CH), como a resolução n.510/2016, mantém-se a centralidade no Conselho Nacional de Saúde, no qual a CONEP é vinculada, e consequentemente aos CEPs.
A Comissão de Ética em Pesquisa (2021; 2023) da ANPEd (2019) têm promovido discussões e produzido três importantes publicações sobre ética em pesquisa, envolvendo também as questões de integridade, nas quais orientam explicitamente às pessoas responsáveis pela condução da pesquisa na área a não submeter seus projetos aos CEP. Além de dificuldades de preenchimento dos dados na Plataforma Brasil, adotada pelos CEP com questões específicas da saúde (como hipótese e tamanho da amostra), na resolução 510/2016 há indicação de que a tipificação de riscos (em mínimos, médios e máximos) específica para as CH seria publicada em documento posterior, o que aconteceu na Resolução CNS nº 674, de 6 de maio de 2022. No entanto, não houve uma adaptação da plataforma e nem o diálogo necessário com a área de ciências humanas e sociais, causando uma manifestação da própria ANPED que indica que “a posição da ANPEd é que, de modo geral, o sistema CEP/Conep continuará inadequado para a avaliação ética das pesquisas em Educação, bem como para as demais áreas de Ciências Humanas e Sociais” reafirmando a posição de continuar atuando junto ao Fórum de Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA) “para a criação de um sistema de revisão ética próprio para essas áreas” (ANPED, 2022, p. 1).
A ANPED sintetizou, na forma de publicações bianuais, três volumes com verbetes sobre ética, em que cada aspecto (confidencialidade, consentimento, autoria, plágio etc.) é explorado de forma a explicitar os dilemas éticos envolvidos e subsidiar as decisões de quem conduz pesquisas. Podemos implicitamente entender que a intenção do material é superar a perspectiva de “instância avaliadora” que o CEP assumiu e adotar uma postura mais reflexiva atribuindo autonomia e responsabilidade para as pessoas responsáveis pelas pesquisas pensarem sobre os diversos aspectos éticos do seu estudo. Cabe ressaltar que embora nossa associação científica principal seja a Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC), a inexistência de discussões ou documentos orientadores sobre ética nessa associação nos direcionou para os materiais da ANPED por nos reconhecermos como pesquisadores mais próximos da área de Educação, em termos de preocupações éticas, do que das possíveis orientações que encontraríamos nas áreas de Química, Física, Biologia ou Matemática.
Outro desafio para o campo da educação e ensino é a natureza discursiva da atividade de pesquisa, em que, em algumas abordagens epistemológicas, há um processo de construção de dados com os participantes e não de “coleta” na forma considerada na pesquisa em saúde e outras áreas das ciências biológicas. Nesses casos, os dados são considerados também como processo dialógicos com a realidade (Martins, 2006).
Diante desse contexto, refletimos sobre o papel da Revista Ensaio e das revistas científicas em geral frente aos dilemas e cuidados éticos envolvidos em uma pesquisa científica. Como destacado por Carvalho (2021, p. 65), a ética repercute na produção científica, pois abrange “toda postura, toda conduta, todo propósito, toda ação, todo afeto e toda resposta de todas aquelas e de todos aqueles que congregam o sentido comum de pertença à comunidade científica” em uma relação constante entre o vínculo com o fazer ciência e o ato de publicizá-la em seus sentidos comunitários. Entendendo que o cuidado com as pessoas que participam das pesquisas é fundamental, mas não é suficiente para pensarmos sobre as revistas científicas, enquanto divulgadoras dos resultados de pesquisas, nos dedicamos a estudar esse tema na equipe editorial da Ensaio. Ao mesmo tempo que não participamos do processo de proposição e desenvolvimento das pesquisas somos a principal forma de tornar público resultados que, eventualmente, podem expor participantes, desagradar coautores, conter conteúdos fraudulentos ou plagiados, entre outros problemas éticos e de integridade seríssimos que poderíamos assumir como corresponsáveis ao publicizar pesquisas. Assim como vem sendo discutido na literatura, mais do que uma preocupação sobre responsabilização ou penalização, nos preocupamos em adotar uma postura formativa sobre o tema no âmbito da editoria e da autoria das pesquisas que divulgamos. Vilela e Londero (2023, p. 1) investigaram os princípios éticos adotados por 32 periódicos da área de Ensino de Ciências e concluíram que:
(a) 40,6% dos periódicos não citam qualquer preceito ético na política editorial; (b) 31,2% das revistas informam que os aspectos éticos devem ser incluídos no texto submetido aos editores, 3,1% por meio do envio de documento assinado, 25% mediante cópia de aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição e/ou do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aprovado, 12,5% deixa subtendido que o estudo foi realizado dentro das normas, padrões ou princípios éticos, sem a exigência de qualquer tipo de informação, e 43,8% não apresentam nenhuma referência aos autores; (c) 34,4% não inclui considerações sobre as más condutas científicas; e (d) apenas 15% das revistas apresentam algum tópico que explicita as retratações para os casos de má conduta.
Outros autores, como Fortunato e Neto (2018, p. 1), também constatam que “parcela significativa de periódicos apresentam informações superficiais nas normas de submissão sobre pesquisas envolvendo pessoas”, mas defendem a necessidade de que somente as instituições vinculadas ao sistema CEP/CONEP podem assegurar isso, o que desconsidera as tensões entre a área de saúde e das humanidades, bem como o fato da ética ir muito além dos CEP. Por outro lado, de forma muito aprofundada, Alves e Teixeira (2020, p. 1) discorrem sobre as controvérsias advindas do debate público entre a CONEP e os atores das CHSSA, e apresentam as especificidades da pesquisa em ciências humanas e sociais e suas implicações para a dimensão ética: “lógica argumentativa, relacional e intersubjetiva, transparência, vulnerabilidade e proteção aos participantes” e constata que “o alinhamento dos pesquisadores em ciências humanas e sociais na rede da regulamentação ética é frágil”, o que as discussões deste artigo corroboram.
A equipe editorial da revista Ensaio realizou movimentos reflexivos e de estudos, alternamos entre solicitar ou não à autoria a aprovação das pesquisas por meio de protocolos no sistema CEP/CONEP, considerando em determinado a possibilidade de ampliar nosso entendimento do CEP contemplando eventuais órgãos não vinculados à CONEP. Essa possibilidade se mostrou pouco frutífera uma vez que existem no Brasil poucas experiências que fogem ao sistema CEP/CONEP.
Coletivamente entendemos que, em acordo com as orientações da ANPED, bem como nas manifestações e tensões descritas anteriormente, mais importante do que a aprovação no CEP seria apontar para os compromissos assumidos na pesquisa em relação às boas práticas com os participantes e com o campo de pesquisa. Perguntamo-nos como a revista poderia contribuir para que os cuidados éticos com os participantes fossem seguidos, mas sem desconsiderar que existem desafios e tensões ainda na área e no campo da educação mais geral sobre o processo de submissão via Plataforma Brasil. Incluímos, assim, na nossa declaração de responsabilidade, encaminhada pela autoria no momento da submissão, o questionamento sobre o tipo de pesquisa e a submissão a algum tipo de CEP e construímos um documento de “Autodeclaração de Princípios Éticos e de Procedimentos Éticos na Pesquisa”, composto pelos seguintes itens:
( ) houve respeito à privacidade, à autonomia, à diversidade, aos valores e à dignidade dos participantes da pesquisa;
( ) foram empregados padrões elevados de pesquisa, adotando procedimentos éticos de condução da pesquisa como integridade, honestidade, transparência e verdade;
( ) o participante registrou (por escrito, em áudio e vídeo, ou outro formato) seu consentimento livre e esclarecido quanto à participação na pesquisa e o pesquisador tem a posse desses registros;
( ) no caso de uso de imagens há registro de autorização explícita da participação para a divulgação desse material em publicações científicas e o pesquisador tem o registro dessa autorização. Caso não tenha essa autorização as imagens foram tratadas de modo a proteger o anonimato do participante;
( ) houve garantia de anonimato e cuidado com a confidencialidade ou consentimento de que a identidade do participante será revelada;
( ) foram explicitados aos participantes os possíveis benefícios e riscos decorrentes da participação na pesquisa, bem como formas de minimizá-los;
( ) o participante tem o acesso aos contatos da equipe de pesquisa para que possam esclarecer dúvidas, ter acesso aos resultados da pesquisa e, eventualmente, retirar seu consentimento.
( ) foi previsto e houve registro da disponibilização aberta de dados da pesquisa;
Entendemos que a própria autodeclaração gera um compromisso das pessoas autoras em refletir sobre esses aspectos e problematizá-los no artigo. Possibilidades desse processo reflexivo podem levar os autores a não submeterem para a revista, caso não tenham atendido aos procedimentos indicados, ou de retomar o contato com os participantes, considerando, conforme previsto na Resolução 510/1996, que “a relação pesquisador-participante se constrói continuamente no processo da pesquisa, podendo ser redefinida a qualquer momento no diálogo entre subjetividades, implicando reflexividade e construção de relações não hierárquicas”.
No entanto, a autodeclaração não é suficiente no caso de pesquisa com povos indígenas, que possui um conjunto maior de regulamentações, como é o caso da Resolução CNS nº 304 de 2000,3 que dispõe sobre a pesquisa com essas populações, principalmente no que se refere ao processo de obtenção e de registro do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE , assegurada a adequação às peculiaridades culturais e linguísticas dos envolvidos e respeitada autoridades, não podendo ser apreciadas apenas em Comitês de Ética locais, devendo ser submetida também à Comissão Nacional de ética em Pesquisa. Além disso, se a pesquisa for realizada com a necessidade de entrada em terra indígena, solicita-se a autorização da Presidência da Funai, conforme estabelecem a legislação brasileira e a Instrução Normativa nº 001/PRESI/1995,4 que apresenta exigências específicas aos pesquisadores como, por exemplo, a necessidade de vacinação atualizada.
Entendemos que a dimensão ética extrapola os aspectos da publicação, mas que as revistas científicas têm responsabilidades formativas com o campo. Percebemos a falta de uma discussão clara na pesquisa em ensino de ciências sobre a temática dos dados abertos e da ética na pesquisa e indicamos a necessidade de ampliar esse debate nos nossos eventos e revistas. Pelo exposto, este texto se soma aos editoriais que apresentam preocupações com a idoneidade e ética na pesquisa em ensino de ciências, discutindo suas particularidades e seus desafios como uma pesquisa na área de Ciências Humanas e Sociais. Da mesma forma, a revista está atenta ao aumento do número de Comitês de Ética e Pesquisa nas universidades com representantes da área de Ciências Humanas e Sociais, em particular do campo do ensino de Ciências, que podem contribuir para pensar formas de participar mais ativamente no debate junto às associações científicas e à sociedade, valorizando o pluralismo metodológico da área, a diversidade dos participantes das pesquisas e a responsabilidade dos pesquisadores e das revistas científicas na defesa dos direitos humanos e da justiça social.