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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.42 São Paulo jan./sbr 2017  Epub 06-Jun-2017

https://doi.org/10.5585/eccos.n42.6551 

Dossiê temático

Unilab: uma proposta freireana de universidade popular?

Unilab: a freirean proposal of a popular university?

Stela Meneghel1 

Jaana Flávia Fernandes Nogueira2 

Sofia Lerche Vieira3 

1Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Fundação Universidade Regional de Blumenau- FURB, SC - Brasil stmeneg@terra.com.br

2Doutora em Educação. Técnica em Assunto Educacional do Ministério da Educação, Brasília, DF - Brasil jaanafernandes@gmail.com

3Doutora em Educação (PUC/SP). Pesquisadora do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará - Brasilsofialerche@gmail.com


Resumo:

A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) foi criada em 2010, no contexto das Diretrizes Internacionais para a Educação Superior dadas pelas Conferências Regionais e Mundiais da Unesco. Este artigo resgata o contexto, a origem e os fundamentos da proposta da Unilab e faz um breve balanço dos objetivos atingidos após cinco anos iniciais. Nesse sentido, aponta alguns dos principais problemas enfrentados na sua implementação: a) manter uma interlocução sistemática com instituições e pesquisadores parceiros; b) promover um fluxo de entradas anuais e o intercâmbio de estudantes estrangeiros; c) formar corpo docente com conhecimento e vivência da realidade dos países africanos. Em face deste contexto, recorre-se à contribuição do educador Paulo Freire, de modo a subsidiar a reflexão sobre como, apesar das dificuldades atuais, a Universidade pode manter coerência com sua proposta inicial, independentemente das limitações impostas pela escassez de recursos financeiros e a burocracia.

Palavras-chave: Cooperação internacional; Educação superior; Paulo Freire; Unilab.

Abstract:

The University of International Integration of the Afro-Brazilian Lusophony (Unilab) was established in 2010 in the context of the International Guidelines for Higher Education given by the Unesco’s World and Regional Conferences. This article captures the context, the origin and the foundations of the Unilab proposal and makes a brief assessment of the objectives achieved after its initial five years. It points out some of the main problems in its implementation: a) maintain a systematic dialogue with institutions and research partners; b) promote a flow of annual inflows and the exchange of foreign students; c) training faculty with knowledge and experience of the reality of African countries. Given this context, it is recalled the contribution of the educator Paulo Freire, as a way to subsidize the reflection about how, despite the current difficulties, the university can maintain consistency with its original proposal, regardless of the limitations imposed by the scarcity of financial resources and bureaucracy.

Key words: Internacional cooperation; Higher education; Paulo Freire; Unilab.

Introdução

A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) foi criada em 2010, com um objetivo bastante ousado: fortalecer a cooperação Sul-Sul, em particular com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na perspectiva do que seu projeto institucional chamava “cooperação solidária”, a Unilab deveria contribuir para a construção de conhecimento favorável ao desenvolvimento econômico e social sustentável dos países parceiros, estabelecendo cursos de graduação em áreas estratégicas ao continente africano e à América Latina. Para tanto, previa até metade de discentes e docentes com origem nos países parceiros, além de dupla diplomação.

Mas qual a origem desta proposta inovadora? Tem encontrado muitos problemas ou, cinco anos após a chegada dos primeiros estudantes, está fortalecida nos propósitos iniciais? E ainda: de que alternativas dispõe para lidar com as dificuldades, de forma a garantir o projeto original? Este texto tem por objetivo responder a essas perguntas, recorrendo a um diálogo com as ideias de Paulo Freire na perspectiva de buscar alternativas para superar os desafios com os quais a instituição tem se deparado no percurso entre a formulação e a implementação de seu projeto.

1 Unilab: contexto de criação e características da implantação

1.1 Das origens: a influência das diretrizes internacionais para a educação superior

Desde sua criação, as Universidades tornaram-se conhecidas como espaço privilegiado para a formação das elites sociais e econômicas. A pesquisa e a extensão, incorporadas nos últimos dois séculos (a primeira no início e a segunda no final do século XIX), ganharam relevância no século XX, em decorrência do acúmulo de demandas econômicas, políticas e sociais oriundas de uma sociedade que, crescentemente, valoriza o conhecimento como base da transformação da realidade.

Ao longo do século XX, a Universidade consolidou-se como local de questionamento e revisão do saber instituído, bem como de geração do novo, desempenhando papel crucial na era da economia globalizada do aprendizado (LEYDESDORFF et al., 2002). No entanto, a possibilidade de conhecer e transformar a realidade não gerou benefícios à população como um todo - seja da perspectiva do seu acesso ao conhecimento, seja da utilização da tecnologia produzida.

Diante desse cenário, desde as últimas décadas do século XX, as instituições de educação superior (IES) de todo o mundo tornaram-se alvo de críticas por seu descomprometimento com as causas sociais (MINOGUE, 1977; SANTOS, 1994; THAYER, 2002), razão pela qual passaram a ser chamadas de “torre de marfim”. A necessidade de mudança de direção ficou evidente quando, na 1ª Conferência Mundial sobre Educação Superior (CMES), realizada pela Unesco em Paris, em 1998, definiu-se por unanimidade que a Universidade do século XXI deveria considerar o papel do conhecimento como fundamento do desenvolvimento humano e sustentável e, por isso, a educação como um direito público vital para a sociedade.

É importante notar que a concepção da Universidade como direito de todos os cidadãos, responsável pela promoção da justiça e equidade social e por uma atuação ética e respeitosa às diferentes culturas e ao meio-ambiente, é incompatível com a visão de instituição regida por regulamentos e organismos atuantes segundo a lógica do mercado. Por essa razão, a CMES/1998 também apontou a necessidade de maior responsabilidade e compromisso das IES na mitigação das origens do subdesenvolvimento e da exclusão social, enfatizando o conceito de pertinência, entendido como a atenção e adequação dos sistemas e das instituições acadêmicas às demandas sociais do entorno onde se inserem.

A concepção de educação superior (ES) da CMES/1998 guarda significativa afinidade com a proposta de Paulo Freire. Pois os princípios da humanização e transformação da realidade a partir do conhecimento, caros ao autor, são as pedras fundamentais da Declaração produzida na Conferência, de modo que o conceito de qualidade da formação está diretamente vinculado aos de relevância e pertinência social.

A Conferência Regional de Educação Superior, realizada na Colômbia, em 2008, também chamou a atenção para a questão da internacionalização da ES, lembrando a importância de construir e ampliar mecanismos de cooperação acadêmica que, ao invés de reforçar as diferenças entre países e regiões - explícitas na evasão de cérebros (brain drain), nos índices de produção científica e nos registros de patentes, por exemplo, venham a contribuir para uma internacionalização solidária.

Quando a Unesco realizou a 2ª Conferência Mundial de Educação Superior, em 2009, o cenário de defesa da ES como bem público e social não era o mesmo de 1998. Apesar de os debates na última década parecerem estar longe de um consenso, as propostas de mudança e reforma nas políticas de ES (tanto de países quanto de entidades internacionais) indicavam preocupação com promover inovações pedagógicas e tecnológicas, com a transferência de conhecimento e com reformas sistêmicas - tal como o Tratado de Bolonha, que busca unificar o sistema europeu, favorecendo a mobilidade de estudantes.

No entanto, na visão de um dos principais especialistas da área em todo o mundo - Dias (2002) - há indícios de que este conjunto de mudanças apenas mantenha a estrutura conhecida, dando-lhe novas roupagens, dado que a ES continua servindo às elites e aos países centrais na produção de conhecimento.

1.2 A proposta da Unilab (conforme documento da Comissão de Implantação)

Nas décadas recentes, temas como interculturalidade, solidariedade, conhecimento e interação entre povos entraram na pauta da agenda global contemporânea, impondo um grande desafio às instituições educacionais. Pois, ao mesmo tempo em que essas instituições expressam um determinado sistema e modo de organização social, são também fundamentais para a crítica e revisão das práticas sociais estabelecidas, sendo agentes de sua transformação.

Nessa perspectiva, adquirem enorme importância as diretrizes da Unesco com relação à necessidade de as políticas de ES avançarem no sentido de contribuir para a internacionalização solidária, bem como de as IES atuarem com o compromisso de promover a cooperação, a paz e a equidade entre os povos. Por isso chamou a atenção a criação, pelo governo brasileiro, da Universidade da Integração LatinoAmericana (Unila) e da Universidade da Integração Internacional Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), apontando o interesse de aproximar-se de países do hemisfério Sul de forma qualificada, para além do comércio, e fortalecendo a cooperação Sul-Sul na perspectiva do diálogo e da cooperação solidária.

No caso da Unilab, o objetivo estava na promoção da integração entre Brasil e países-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente os africanos - Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. A proposta remetia a vários compromissos e acordos internacionais firmados com o objetivo de fomentar o desenvolvimento do continente africano por meio do apoio à formação em nível superior e do fomento à pesquisa, em particular nos domínios da ciência e tecnologia. Foram citados pela Comissão de Implantação da Universidade, em seu documento orientador:

  • Programa Educação para Todos - EPT (1990);

  • Marco de Ação de Dakar Educação para Todos (2000);

  • Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000);

  • Nova Parceria para o Desenvolvimento da África - NEPAD (2001);

  • Plano de Ação da Segunda Década de Educação em África (2006);

  • Declaração de Abuja, Nigéria, adotada na Primeira Cúpula América do Sul-África - ASA (2006);

  • Conferência Africana sobre Educação Superior - CAES (2008).

Diante de todo o exposto, compreendemos a origem do caráter absolutamente inovador da missão da Unilab, enunciada na Lei n.º 12.289, de 20 de julho de 2010, na qual o governo brasileiro indicava que à nova universidade caberia produzir e disseminar o saber universal de modo a contribuir para o desenvolvimento social, cultural e econômico do Brasil e dos países de expressão em língua portuguesa - especialmente os africanos, estendendo-se progressivamente a outros países desse continente - por meio da formação de cidadãos com sólido conhecimento técnico, científico e cultural e compromissados com a necessidade de superação das desigualdades sociais e a preservação do meio ambiente.

Segundo Gomes e Vieira (2013), a Unilab seria uma “ponte entre Brasil e África”, como metáfora da união de regiões que, mesmo distantes, são historicamente relacionadas e cotidianamente desafiadas a consolidarem laços e objetivos comuns. Mas quais condições objetivas propiciaram a criação da Unilab, em um quase inusitado esforço de cooperação do Brasil com a África?

Para Meneghel e Amaral (2016), ela decorreu de dois contextos: um, de ampliação do interesse brasileiro pela cooperação com a África, fazendo da Universidade parte da estratégia da política externa brasileira; outro, de forte militância dos movimentos sociais (em especial do movimento negro), que impulsionaram a ampliação do interesse e conhecimento sobre a cultura africana e afro-brasileira na perspectiva do resgate da dívida histórica do Brasil com a África.

Não menos importante, porém, foi o contexto da expansão do acesso à educação superior no Brasil. Ao longo da gestão de Lula, assim como na de sua sucessora, foram criadas diversas políticas e programas estatais para promover o acesso e a inclusão dos segmentos sociais excluídos da ES, representando uma intervenção significativa do governo brasileiro no sentido da expansão e da democratização do acesso (CAMARGO, 2015). Dentre estes, no âmbito das instituições federais, podem ser citados o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes).

Para concretizar seu objetivo, a Unilab selecionaria até metade dos estudantes dentre os países da CPLP, os quais deveriam contar com apoio dos Estados parceiros. A mobilidade docente e discente deveria ser estimulada, mas com atenção para evitar o êxodo de cérebros. Nesse sentido, a Universidade realizaria convênios com IES dos países parceiros, a fim de que, próximos do término da sua formação no Brasil, os estudantes voltassem aos países de origem, fazendo a transição para sua inserção profissional. Ou seja: a etapa final de formação ocorreria nos países de origem dos estudantes, permitindo a obtenção de dupla diplomação. Os estudantes brasileiros, por sua vez, teriam formação e titulação da própria Unilab, podendo complementar estudos por meio de oportunidades de mobilidade acadêmica com universidades parceiras de outros continentes - em África, Ásia e Europa.

Visando potencializar a interação acadêmica na perspectiva da cooperação solidária, foram identificadas as áreas e temáticas de relevância estratégica para o seu desenvolvimento, em torno das quais se fundamenta sua estrutura acadêmica e organizativa:

  • Desenvolvimento Rural;

  • Saúde Coletiva;

  • Educação Básica;

  • Gestão Pública;

  • Tecnologias e Desenvolvimento Sustentável.

Além desses eixos, previstos no projeto inicial, no primeiro ano de funcionamento da Universidade foi constituído o de Humanidades e Letras, dada a importância do conhecimento e da formação sócio-humanística e cultural dos estudantes para a adequada consecução do seu projeto.

No planejamento de atividades, para atingir os objetivos que lhe foram assignados pela lei de criação, a universidade previa:

  • analisar a questão da imigração e todas as questões a ela vinculadas: necessidade de aprender a viver juntos, o desenvolvimento da tolerância, a redução ou eliminação da pobreza, da precariedade e, principalmente, o desenvolvimento de uma cultura de paz, associada à promoção da cooperação internacional solidária e da cidadania;

  • orientar seus programas curriculares levando em consideração os objetivos da educação internacional que atinja a todos esses elementos. A interdisciplinaridade e a multidisciplinaridade são uma necessidade para a compreensão dos problemas de enorme complexidade e que não podem se limitar a disciplinas isoladas;

  • desenvolver programas de cooperação solidária com instituições congêneres em todos os continentes, com prioridade para os países de expressão portuguesa da África, estimulando a cooperação e compreensão mútua.

Importante ainda destacar a localização da sede administrativa da Unilab, na região do Maciço do Baturité, interior do estado do Ceará, ainda não beneficiada pela presença de uma instituição pública de educação superior. Os indicadores socioeconômicos da região, assim como dos países parceiros, revelam territórios marcados pela pobreza, pelo analfabetismo, e carências de infraestrutura básica. As tarefas de promoção do ideal de desenvolvimento socialmente sustentável, portanto, eram várias e estavam postas na origem da instituição.

2 Os primeiros anos de implementação: os desafios da Unilab

A Universidade foi implementada em amplos espaços, tendo na atualidade três campi no Ceará (o Campus da Liberdade, a Unidade Acadêmica dos Palmares e a Unidade das Auroras), em Redenção e proximidades, além do Campus dos Malês, na Bahia. Em que pesem as dificuldades de quase todas as Instituições Federais de Educação Superior que se propuseram construir novos campi e avançar em reformas, a Unilab conseguiu, de forma bastante rápida, propiciar aos estudantes bons espaços de ensino e estudo, ainda que algumas dificuldades estruturais ainda não tenham sido resolvidas, por exemplo, a moradia de estudantes, tão cara ao projeto inicial.

As áreas prioritárias deram origem a seis institutos: Desenvolvimento Rural; Ciências Exatas e da Natureza; Engenharias e Desenvolvimento Sustentável; Ciências da Saúde; Ciências Sociais Aplicadas e Humanidades e Letras. Eles abrigam 14 cursos de graduação presenciais, sendo mais da metade deles de Licenciatura - o que é coerente com os princípios da Universidade, dada a formação de professores ser prioritária tanto em Brasil quanto em África. As demais áreas têm se expandido com parcimônia, embora esteja previsto um curso de Medicina e expansão da Engenharia. No âmbito da Educação a Distância há um curso de Bacharelado em Administração Pública e três de Especialização: Gestão Pública; Gestão Pública Municipal e Gestão em Saúde.

Chama a atenção a rapidez com que foram abertos cursos de pós-graduação, com início recente: Mestrado Interdisciplinar em Humanidades; Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis, Políticas de Igualdade Racial no Ambiente Escolar e Mestrado em Enfermagem. O site da Unilab denota que a Universidade se organiza em torno da pesquisa: há diversos grupos de pesquisa cadastrados e projetos em andamento, inclusive com financiamento externo. A participação de estudantes estrangeiros, no entanto, ainda é reduzida: nos cursos de pós-graduação não se encontram estudantes (especialização com 491 estudantes e mestrado com 71) e tampouco docentes dos países parceiros, assim com na educação a distância (476). Assim, de um total de 223 docentes, sequer 10% é estrangeiro (apenas 18). Dentre os discentes, este percentual é bem maior: do total de 2.118, cerca de 39% (835) são africanos.

A pequena participação de docentes estrangeiros na Unilab revela a dificuldade de estabelecer parcerias internacionais. A maior parte deles está no Brasil porque veio fazer aqui seus estudos de pós-graduação - alguns deles vieram desde a graduação. E, depois, não quiseram atuar em seus países de origem, ou seja, são casos de fuga de cérebros. Em sendo assim, vivem relativamente distantes da realidade das IES africanas. Os brasileiros, por sua vez, com raras exceções, também não têm experiências de cooperação com África, desconhecendo a realidade dos seus países. Muitos deles, inclusive, jamais pensaram em fazer qualquer tipo de cooperação neste contexto, desconhecendo por completo o estado da arte da sua área de conhecimento nos países da CPLP. Esse perfil é, talvez, um dos elementos mais significativos para se compreender a razão por que não se encontra, no site, descrição de projetos de cooperação internacional na Unilab.

As dificuldades para empreender projetos de cooperação internacional são enormes, envolvendo desde aspectos acadêmicos (equipes integradas, com ritmo de trabalho semelhante e capazes de trabalhar a distância em objetivos comuns) e operacionais (encontros presenciais e constante comunicação em redes para discussão de resultados e efetivo intercâmbio e construção de conhecimento), até os burocráticos (visto, currículo, pagamento de recursos). O Brasil não dispõe de grande tradição nesse setor, assim como os países parceiros que, em geral, agregam ao que já citamos a dificuldade de dar continuidade às políticas institucionais. Este elemento é fundamental para que os processos de aproximação, interlocução e estabelecimento de parcerias entre instituições e grupos de pesquisa se consolide e frutifique. Nesse sentido, a própria Unilab ainda não alcançou sua maturidade, tendo passado por três reitores pro-tempore em apenas cinco anos1.

Há que se considerar, também, a questão do financiamento. Para que haja cooperação é preciso que os parceiros se conheçam e, neste caso específico, em que raros docentes têm vivência internacional, e mais raros ainda com África, a dificuldade de fazer a conexão local-regional com esse continente se amplia. A mobilidade docente é, portanto, determinante para o avanço de projetos conjuntos, de forma que chama a atenção que haja mais perspectiva de intercâmbio discente que docente.

Como o contexto não permite que se criem expectativas quanto à ampliação (ou mera existência) de apoio financeiro dos parceiros, lamentavelmente não se pode projetar o crescimento de parcerias internacionais. Por essa mesma razão, a proposta de término da graduação/formatura nos países de origem, assim como a dupla diplomação, deixaram de ser, neste momento, uma possibilidade para a Unilab.

3 A proposta educacional de Paulo Freire e a educação superior

Uma das premissas básicas da proposta educacional de Paulo Freire é que, para além de um ato de conhecimento, a educação é um ato político, não havendo neutralidade nas práticas educacionais (FREIRE; SHOR, 1986, p. 25). Os educadores precisam escolher entre ensinar para reproduzir o atual sistema opressivo no qual as pessoas vivem ou ensinar para transformar a realidade.

O debate sobre educação precisa levar em conta ao menos duas dimensões. A primeira diz respeito ao seu público preferencial - educação para quem? Em uma perspectiva freireana: educação com quem? O autor propõe uma pedagogia com, e não para o oprimido. A segunda dimensão avança sobre o propósito da educação - educar para quê? Para debater esse tópico, cabe analisar o conceito de libertação.

Afirma o autor que a “[…] opressão - controle esmagador - é necrófila; é nutrida pelo amor à morte, não pelo amor à vida.” (FREIRE, 1970, p. 64). Palavras fortes como essas são usadas também para descrever a condição dos opressores:

Na ânsia desenfreada de possuir, os opressores desenvolvem a convicção de que eles podem transformar tudo em objetos de seu poder de compra; daí seu conceito estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas, e o lucro o objetivo principal. Para os opressores, o que vale a pena é ter mais - sempre mais - até mesmo a custo do oprimido ter menos ou não ter nada. Para eles, ser é ter e ser a classe dos “ricos.” (FREIRE, 1970, p. 64)

Nesse contexto, a educação pode tornar-se instrumento que alimenta o sistema opressivo - daí a crítica à opressão na sociedade em geral, bem como à opressão dentro das escolas, que acontece por meio do que define como “sistema bancário” de educação:

O conceito da educação bancária, que serve aos interesses da opressão, é também necrófilo. Com base em uma visão mecanicista, estática, naturalista e espacializada da consciência, ele transforma os alunos em objetos receptores. Ele tenta controlar o pensamento e a ação, leva as mulheres e os homens a ajustarem-se ao mundo, e inibe o seu poder criativo. (id. ib.)

Cabe notar que, ao promoverem a opressão, os próprios opressores perdem a sua humanidade. Em função disso, seria tarefa histórica dos oprimidos não apenas libertar a si próprios de sua condição, mas, também, seus opressores.

A transformação de uma situação passa, necessariamente, por sua compreensão - este é o passo inicial. Disso, portanto, a relevância de trabalhar as pessoas/estudantes no sentido de ampliar seu entendimento sobre a condição de opressão. Mas superar a situação de opressão e desumanização requer transformação, e transformação requer conscientização - conceito central de Freire (1986) -, entendida como ampliação da consciência dos indivíduos sobre sua realidade.

Educar não é uma prática abstrata, que ocorre independentemente de lugares e pessoas. Isso leva à proposição de um processo educativo cuja base é o que Freire chama “temas geradores” de uma determinada comunidade.

A investigação do que eu denominei o “universo temático” das pessoas - o complexo dos seus “temas geradores” - inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. A metodologia dessa investigação deve, do mesmo modo, ser dialógica, permitindo a oportunidade de descobrir os temas geradores e ao mesmo tempo estimular a consciência das pessoas sobre tais temas. (FREIRE, 1970, p. 86)

Portanto, segundo Freire (1970, p. 85), “[…] o ponto de partida para a organização do conteúdo programático da educação ou da ação política deve ser a situação presente, existencial, concreta, refletindo as aspirações das pessoas.”

Do exposto, fica claro que, para o autor, professores e estudantes são ambos sujeitos do processo de investigação. Dessa perspectiva, também temos que o conteúdo das aulas deve ser desenvolvido com os estudantes e não para eles. Mas cabe perguntar qual a consequência de um processo educacional fundamentado no diálogo e na conscientização, ou o que estaria a ele associado. Para Freire (1970, p. 53),

A insistência para que o oprimido engaje uma reflexão sobre sua situação concreta não é um chamado para uma revolução de braços cruzados. Ao contrário, a reflexão - a verdadeira reflexão - conduz à ação. Por outro lado, quando a situação exige uma ação, essa ação constituirá uma verdadeira práxis apenas se suas consequências virarem objeto de uma reflexão crítica. Nesse sentido, a práxis é a nova raison d’être dos oprimidos; e a revolução, que inaugura o momento histórico dessa raison d’être, não é viável sem seu envolvimento consciente simultâneo. Do contrário, a ação é puro ativismo.

O que se deseja, portanto, é a possibilidade de libertação, definida como “[…] uma práxis; a ação e reflexão dos homens e mulheres sobre seu mundo tendo em vista transformá-lo.” (FREIRE, 1970, p. 36). Em outras palavras, uma educação libertadora, na qual professores e estudantes se envolvem criticamente na busca de entender seu ambiente circundante e agir sobre ele conscientemente.

Em todo o mundo, a educação é considerada condição fundamental para que os indivíduos desenvolvam suas capacidades produtivas e também conceitos de cidadania. Há um grande apelo social para que as IES estabeleçam vínculos entre o conhecimento científico produzido e as demandas sociais, fazendo com que o saber acadêmico apoie e promova a melhoria das condições econômicas, sociais, políticas e culturais do seu entorno.

Mas esse enfoque parece longe da realidade da maior parte das IES de todo o mundo: a ES tem sido, tradicionalmente, espaço de formação de elites e, portanto, de perpetuação de desigualdades. E, nas últimas seis décadas, adquiriu enfoque nitidamente economicista que, na prática, impede assumir a tarefa da formação atenta à promoção da humanização.

Diante desse contexto, a maioria das IES tem se assemelhado a uma fábrica de produção de diplomas, que treina indivíduos e certifica papéis que legitimam o exercício profissional. No Brasil, as poucas instituições que se dedicam à produção de conhecimento, em geral universidades públicas, muitas vezes têm dificuldades para transferi-lo e aplicá-lo à sociedade. Não raro o produto acadêmico atende apenas a demandas de setores privados, sem que exista preocupação com a possibilidade de uso e apropriação de benefícios para a sociedade como um todo.

4 Paulo Freire e a proposta da Unilab: pontos de convergência?

Uma das premissas básicas da filosofia de Paulo Freire é que, para além de um ato de conhecimento, a educação é um ato político. Para o autor, não há neutralidade nas práticas educacionais; portanto, escolhas nesse campo ou reproduzem o sistema opressivo no qual vivemos ou buscam formas de transformar a realidade.

Neste texto em que apresentamos a Unilab, um breve balanço dos objetivos atingidos após os cinco anos iniciais denota dificuldades em: a) manter uma interlocução sistemática com instituições e pesquisadores parceiros; b) promover um fluxo de entradas anuais e o intercâmbio de estudantes estrangeiros; c) formar corpo docente com conhecimento e vivência da realidade dos países africanos. Diante disso, talvez seja importante que ela volte seu olhar para as ideias de Paulo Freire.

Os desafios para a execução de um projeto freireano para a ES são muitos, como principal, a percepção da necessidade de transformação de alguns elementos do senso comum desse nível de ensino. Como exemplos:

  • a percepção corrente de que estudantes precisam ser formados principalmente para atender as demandas do mercado;

  • o entendimento, de docentes e instituições, de que educar significa, primordialmente, aprendizagem de conteúdo.

Para supera-los, é preciso apoiar os docentes no desenvolvimento de práticas pedagógicas referenciadas no cotidiano dos estudantes, o que exige que abandonem mecanismos tradicionais de: a) repasse de conteúdos - ou seja, adquirir a percepção da necessidade de que seus planos de ensino não ignorem o histórico dos estudantes, que precisam ser instigados a conhecer e identificar objetos de interesse e estudo; b) relacionamento com os estudantes.

A proposta de Paulo Freire demanda docentes extremamente qualificados, com conhecimento de outras realidades, com uma visão de como se constroem determinados hábitos culturais, bem como da diversidade de formas de organização social. No caso específico da Unilab, esse desafio ganha dimensão ampliada, dada a diversidade de origem dos estudantes.

Nesse sentido, a mobilidade acadêmica - não só de estudantes, mas também de docentes - é fundamental, tendo em vista a criação de um espaço de diversidade e de aprendizagem por meio da convivência. Ao mesmo tempo, faz-se necessário que a instituição ofereça suporte pedagógico, tanto aos estudantes quanto aos professores, por meio de programas diversos (monitoria, tutoria, acompanhamento psicopedagógico, laboratórios de ensino-aprendizagem e incorporação de recursos tecnológicos), para que ambos adquiram elementos e linguagens comuns para uma efetiva interlocução. Nesse sentido, a constituição de uma rede de IES (de dentro e de fora do Brasil) que já atuam com estudantes africanos pode ser salutar no sentido do intercâmbio e da troca de experiências.

A análise da proposta da Unilab revela duas dificuldades estruturais. A primeira é a de romper os vínculos há séculos estabelecidos pela instituição acadêmica com a sociedade. A tradição elitista e as pedagogias tradicionais, imbricadas ao desenvolvimento do sistema capitalista, tornam extremamente complexa a tarefa de gerar práticas acadêmicas com foco no estudante, como propõe Freire. A segunda dificuldade é a de construir propostas e metodologias de formação voltadas ao contexto da IES e à origem dos estudantes e, no caso específico, de avançar na formação e produção de conhecimento de outra perspectiva - a da cooperação solidária. Em ambos os casos, fica evidente a necessidade de rever as práticas e os processos internos, de modo a inovar e prover alterações que permitam promover o desenvolvimento humano e os valores ético e social, ao lado de uma formação para o desenvolvimento ambientalmente sustentável.

Ao mesmo tempo, a Unilab não pode fugir de seu contexto - toda instituição educativa é historicamente condicionada. E os limites dados para a implantação de seu projeto são muitos, inclusive os financeiros, apontando a necessidade de planos de médio e longo prazo, com forte apoio do Estado e dos países parceiros, a fim de que sejam construídas as condições para sua execução.

No entanto, os processos formativos e a aprendizagem ocorrem com as pessoas e nos espaços concretos em que estas se situam. Cabe aos atores institucionais e a toda comunidade acadêmica estarem cientes e atentas aos fundamentos que originaram a Universidade, para que, apoiada nos seus princípios, identifiquem formas e oportunidades para alterar a realidade atual.

De acordo com Milanez (2003, p. 83-84), o caminho para a implantação do desenvolvimento sustentável deve levar a uma mudança paradigmática, em que se faz necessário “[.…] rediscutir, em primeiro lugar, nossos valores e costumes. […] A essência desta mudança, que é política, está na relação entre as pessoas e delas com o meio […]” Nessa linha, a proposta da Unilab exige que os docentes estejam dispostos a rever questões metodológicas e éticas envolvidas na produção do conhecimento e na formação humana, uma vez que a aprendizagem dos indivíduos e os temas de pesquisa, tradicionalmente determinados pelas regras de financiamento, possam ganhar também a perspectiva da relevância e pertinência social.

Também nesta direção, é fundamental que os estudantes e toda a comunidade acadêmica sejam estimulados a refletir sobre os vários sentidos - políticos, econômicos, sociais, culturais, humanos - produzidos pelas atividades que desenvolvem, tendo em vista o contexto social e a proposta da instituição. Ou seja, devem ser estimulados a questionar quais os valores da universidade (e da educação) na sociedade atual, como eles se relacionam com o projeto da Unilab e, a partir disso, (re)definir seu papel e atuação acadêmica.

Toda Universidade deve manter-se contemporânea e atenta às necessidades de grupos e classes com os quais é desafiada a interagir, sem perder de vista seu próprio projeto institucional. Esse difícil equilíbrio entre a necessária ousadia para buscar novas práticas e sentido para as atividades de ensino, pesquisa e extensão, junto com a pertinência social para além do elitismo que rege a instituição acadêmica há séculos, talvez seja o principal desafio da Unilab

Referências

CAMARGO, M. S. Indicadores da educação superior brasileira de 2003 a 2013: dados e resultados das políticas públicas implementadas. Atos de Pesquisa em Educação, Blumenau, v. 1, n. 10, p. 176-202, jan./abr. 2015. [ Links ]

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Nota

1 Prof. Dr. Paulo Speller (2011 a 2013); Profª. Drª. Nilma Lino Gomes (2013 a 2014) e Prof. Dr. Tomaz Aroldo da Mota Santos (2015 até a atualidade)

Para referenciar este texto

MENEGHEL, S.; NOGUEIRA, J. F. F.; VIEIRA, S. L. Unilab: uma proposta freireana de universidade popular? EccoS, São Paulo, n. 42, p. 21-37. jan./abr. 2017

Recebido: 13 de Junho de 2016; Aceito: 14 de Agosto de 2016

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