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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.42 São Paulo jan./sbr 2017  Epub 06-Jun-2017

https://doi.org/10.5585/eccos.n42.7216 

Resenhas

Crise educacional e mundo pré-totalitário: a compreensão de Hannah Arendt

Genivaldo Paulino Monteiro1 

1Mestre em Educação pelo PPGE-UFPE (2002) e Doutorando em Filosofia da Educação no PPGE-FEUSP. genivaldouepb@gmail.com

Crise educacional e mundo pré-totalitário: a compreensão de Hannah Arendt. Andrade, Flávio Rovani de. Teresina, PI: EDUFPI, ,, 2014. . p., 321p. .


O autor da obra resenhada, Flávio Rovani de Andrade , é graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção (UNIFAI), em 2002; mestre em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), em 2008, e doutor em Filosofia e História da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-UNICAMP), em 2012. Atualmente, é professor adjunto de Filosofia e Filosofia da Educação na Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Ao se debruçar sobre o legado do pensamento de Hannah Arendt acerca da política e da filosofia, Flávio Rovani de Andrade consegue lançar luz sobre um terceiro tema no conjunto das obras da autora, a educação, tendo por objetivo elucidar as influências do totalitarismo na crise educacional analisada pela pensadora alemã.

Além da Introdução, o livro está estruturado em quatro principais capítulos, nos quais o autor buscou, respectivamente: 1. Mapear o sentido contido no ensaio A crise na educação; 2. Apresentar o modus operandi do pensamento e da análise da autora acerca da crise na educação estadunidense; 3. Identificar e discutir os elementos e características do fenômeno totalitário; 4. Estabelecer análise e relação entre esse fenômeno e a crise na educação, fechando a obra com suas considerações finais.

Ao introduzir o tema, destaca a relevância das reflexões de Arendt sobre educação e enfatiza as possíveis contribuições de sua obra no debate brasileiro. Para tanto, toma como exemplo o impacto das reformas estabelecidas pelas leis de diretrizes e bases da educação nacional: 5.692/71 e 9.394/96, no que tange aos modelos e concepções de avaliação, aprendizagem e conhecimento. Aponta como principais consequências desses documentos legais: viés “profissionalizante” e “produtivista” do ensino; abandono dos conteúdos de ensino em prol das “competências” e “habilidades”; ênfase no “aprender a aprender”; perda do vínculo entre educação e legado da tradição; desvalorização do papel do professor, assim como o declínio de sua autoridade.

No primeiro capítulo, o autor faz uma contextualização do cenário educacional brasileiro e introduz o tratamento dado por Arendt à crise na educação em dois de seus textos principais sobre o tema: A crise na educação e Reflexões sobre Little Rock. Todavia, é a partir do manuscrito intitulado Totalitarismo, redigido em 1954, que Andrade estabelece as primeiras observações acerca do vínculo entre educação e totalitarismo nos trabalhos da autora. Arendt (2011) argumenta sobre a indissociabilidade entre a crise da autoridade e as origens do totalitarismo: a crise da autoridade significa a perda de uma referência à tradição e da “responsabilidade pelo mundo”, dos adultos em relação às crianças, na educação; na política, manifesta-se não só pelo esgarçamento da tradição, mas também pela substituição do argumento da autoridade pela sua antítese: a violência.

O itinerário do pensamento de Arendt em A crise na educação compõe o foco do segundo capítulo. Um dos primeiros argumentos da autora é de que essa “crise” tem relação com o “temperamento político” do país (EUA), relacionado à ideia de pathos do novo. A razão dessa característica diz respeito ao fato de o referido país ter se constituído como uma nação cujas ideias de um “Novo Mundo” e uma “Nova Ordem” estavam ligadas à chegada constante de imigrantes e a sua posterior integração pela “americanização”. Entretanto, apesar dessa peculiaridade, a razão principal atribuída por Arendt está na origem da tradição política estadunidense baseada na constante renovação dos pactos políticos e na possibilidade de “um novo começo” que estes representam. Tal condição aponta para uma das categorias fundamentais do pensamento arendtiano: a natalidade. No caso estadunidense, ela significa a possibilidade da ruptura e renovação constante do mundo e da fundação advindos tanto da política quanto da educação. O autor esclarece que Arendt atribui a esse conceito o significado da fenomenalidade da condição humana, diferente do labor, relativo ao tempo do consumo e da natureza e da obra (work), relativa à fabricação dos objetos.

O segundo argumento de Arendt é dirigido às reformas educacionais estadunidenses, contemporâneas aos escritos da autora sobre o tema. Eles têm como foco a influência do modelo pedagógico “progressivista”, pautado nas ideias de uma “sociedade das crianças”, pelas quais: retira-se da cena educacional o papel do professor; atribui-se à pedagogia o caráter de uma “ciência do ensino em geral”; secundarizam-se os conteúdos curriculares; firma-se a ideia de que só podemos conhecer aquilo que nós mesmos fazemos e, em decorrência disso, substitui-se o aprender pelo fazer.

O terceiro e quarto argumentos arendtianos que finalizam o segundo capítulo são, respectivamente, a “separação entre educação e política” e a “perda do senso comum”. Em resumo, o primeiro corresponde às consequências educacionais advindas do “progressivismo pedagógico” e à dissolução da divisa entre as esferas pública e privada, estabelecendo a crise da autoridade na educação como ressonância dessa dissolução. O segundo é consequência da supervalorização da ideia de progresso em detrimento do esgarçamento da tradição, tradição que, adverte o autor, não pode ser interpretada como o passado, mas como o que se conservou dele por meio de “categorias tradicionais”.

A partir dos elementos conceituais fundamentais aqui apresentados, Andrade introduz, como conteúdo do terceiro capítulo, a definição e a configuração do fenômeno totalitário, enfatizando sua gênese e extensão. Essa caracterização pode ser sintetizada a partir dos seguintes elementos: a crise da tradição, o declínio do senso comum e do espaço público e a expansão da ideologia na vida cotidiana. A ideologia, vale dizer, não manifesta apenas a representação ou versão de uma dada classe social sobre a realidade, tal como no marxismo. De um modo diverso, ela se constitui enquanto narrativa autossuficiente, amparada na ideia de dinâmica e de fatores naturais ou históricos, esclarecedores dos acontecimentos e das ações para além da própria experiência, dela nos apartando e a transcendendo.

Para Andrade, no capítulo que encerra sua obra, as influências totalitárias na educação extrapolam a questão da crise da autoridade, resultando concomitantemente da implicação da vida biológica ao poder político (biopolítica); da vitória do animal laborans sobre o zoon politikon; da ascensão da esfera social e seu consequente modo de conceber o homem enquanto ser previsível e calculável, tornando-se “massa”. Dessa concepção “administrativa” dos indivíduos resulta o “conformismo”, em substituição da capacidade de agir, a ideologia no lugar da tradição, da atitude judicativa e do pensamento

Referências

Andrade, Flávio Rovani de . Crise educacional e mundo pré-totalitário: a compreensão de Hannah Arendt. Teresina, PI: EDUFPI, 2014. [ Links ]

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