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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.42 São Paulo jan./sbr 2017  Epub 06-Jun-2017

https://doi.org/10.5585/eccos.n42.7276 

Resenhas

Estranhos à nossa porta

Ana Maria Haddad Baptista1 

1Mestra e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/ SP. Pós doutoramento pela Universidade de Lisboa e PUC/SP. Pesquisadora e professora dos programas de educação stricto sensu e do curso de Letras da Universidade Nove de Julho.

Estranhos à nossa porta. Bauman, Zygmunt. Rio de Janeiro: :, Zahar, ,, 2017. ., 119 pp. .


Zygmunt Bauman é mundialmente conhecido. Nasceu na Polônia. Faleceu recentemente (janeiro de 2017). Um grande pensador que soube avaliar, com muita lucidez, problemas e conflitos da contemporaneidade. Famoso, em diversos meios, por ter “ressignificado” o conceito de “liquidez”. Ou seja, amores líquidos, tempos líquidos e tantos outros indicadores, acima de tudo, da rapidez, efemeridade, transitoriedade, velocidade, que caracterizam os tempos atuais. Liquidez autoriza, inclusive, repensar memórias rapidamente descartadas. Memórias em inúmeras dimensões (não custa assinalar), que jamais deveriam estar enterradas ou, praticamente, encerradas em si mesmas.

O livro em referência trata, em especial, da questão dos refugiados. Na primeira parte da obra Bauman denuncia, causticamente, a forma pela qual a mídia em geral e os discursos políticos se unem, em sintonia com a hipocrisia, para tratar da “crise migratória”. Esclarece, de forma cristalina, que a migração em massa é um fenômeno antigo. Lembra que, entre outros fatores, o modo de vida sob o ponto de vista da modernidade exclui, cinicamente, as pessoas consideradas inúteis em seus locais de nascimento ou não empregáveis.

Além disso, prossegue o autor, existe a famosa desestabilização do Oriente Médio que, mesmo diante dos pretensos acordos para colocar fim nos conflitos, apenas fracassam e conseguem dar um tom mais pesado à crise migratória. O autor alerta da importância de se considerar que as partes do planeta vistas como desenvolvidas se alegram com a chegada de migrantes, visto que para grandes projetos econômicos o fluxo migratório não passa de mão de obra barata. Destaca que a fragilidade existencial, aliada a um mercado de trabalho local, e mais as incertezas de nossos tempos acabam por legitimar discursos políticos que prometem, falsamente, solucionar problemas graves e, neste momento histórico, praticamente incontornáveis.

Nessa perspectiva: “A humanidade está em crise - e não existe outra saída para ela senão a solidariedade dos seres humanos […]”( p. 24). Sugere, desta forma, que uma das únicas portas para uma possível saída da crise (em todos os sentidos) na qual nos encontramos seja, efetivamente, o diálogo, e assim a humanidade, como um todo, deverá compartilhar seus problemas contemporâneos para que se tenha um futuro que os reduza. Ressalta que a indiferença de nada adianta. Bauman questiona as comoções (tão promovidas pela mídia) em relação à situação dos refugiados. Mostra-nos que são passageiras. Pontuais. Oportunistas. Inoperantes.

Por quê? O ponto de partida do autor é o da insegurança existencial, para, então, mostrar as implicâncias, em todos os sentidos, no que isso representa ideologicamente. Ou seja, que a insegurança propagada seria um meio eficaz e perverso que aciona todos os tipos de reações negativas para a sociedade. Assim, os encaminhamentos propostos (para solucionar o problema dos refugiados) acabam por esbarrar nas fragilidades sociais como desemprego e violência. E o pior, destaca o autor: “Os governos não estão interessados em aliviar as ansiedades de seus cidadãos. Estão interessados, isto sim, em alimentar a ansiedade que nasce da incerteza quanto ao futuro e do constante e ubíquo sentimento de insegurança[…]” (p. 33). Todas as instituições sociais se valem da insegurança para, então, de alguma maneira, tirar proveito a seu próprio favor. Tal contexto favorece e reforça o repúdio contra os terroristas e legitima determinadas iniciativas contra tais grupos. Mais uma vez ‘legaliza’ governos que prometem o combate aos terroristas.

Nessa medida, os refugiados entram na categoria de terroristas em potencial. E com isso, como era de se esperar, a sociedade se isenta por não ter que carregar o fardo e dividir responsabilidades com o destino dos miseráveis. Uma espécie de alívio individual. “Por esse alívio - de modo consciente ou não -, muitas pessoas são gratas. A quem? Obviamente, aos políticos que tensionam músculos e falam duro […]” (p. 38). O que favorece, segundo Bauman, a aceitação dos discursos de Trump e suas promessas políticas que vão desde a diminuição do desemprego nos Estados Unidos até muros, em todas as dimensões, que “protejam” os americanos.

Outro ponto essencial em Estranhos batem à nossa porta é o questionamento, sempre mordaz e irônico, de que a depressão - uma doença que se fundamenta numa sociedade de performáticos - não seria motivada pelo excesso de responsabilidades nem de deveres. A performance é uma espécie de nova regra da sociedade pós-moderna. Mas numa dimensão muito diferente daquelas propostas por Foucault (sociedade da disciplina) e Kafka ( expurgação de criminosos). O que vale, realmente, numa sociedade de performance, é fabricar e erradicar os considerados depressivos e todos aqueles que não se ajustam ao sistema. Por essa mesma trilha, as consequências são quase que imediatas. Isto é, aqueles que não se enquadram aos supostos quadros ideais estabelecidos sofrem de baixa auto estima, sentem-se desvalorizados e excluídos. A responsabilidade recai, de forma abrasadora, em cima do indivíduo. Desta maneira, reforça-se uma incapacidade que, na verdade, inexiste. Mas o movimento, em diversos sentidos, de culpar o indivíduo acaba destruindo-o, fazendo-o acreditar que ele é dotado, apenas, de incapacidades.

Bauman lembra que uma das grandes heranças de Hobsbawm é ter prevenido que sociedades fracassadas esperam, como solução, uma pessoa nacionalista. E essa pessoa, em geral, é belicosa e militante. Eis o grande perigo. Em síntese: “A verdade é que os atalhos sugeridos pelos homens e mulheres que aspiram à condição de tiranos não são menos sedutores pelo fato de serem enganosos[…]” (p. 67). Lembra que promessas fraudulentas são, sem dúvida, cativantes e atrativas. Dessa forma, há um grande espaço para tiranos e tiranas exercerem seu “fascínio” sobre populações que vivem a atmosfera das grandes incertezas do futuro.

A última parte da obra em questão recai, de forma mais direta, no conflito dos refugiados. Estes representam para a humanidade um perigo, uma verdadeira ameaça. Expõem claramente as misérias humanas. Mazelas que, na verdade, causam pânico e, portanto, todos evitam a qualquer custo enfrentá-las cara a cara. Quer os políticos com seus programas de governo infames e hipócritas, quer as sociedades em geral.

Bauman não foi somente um grande pensador (acusado de pessimista). Mas, acima de tudo, sua escritura revela um profundo conhecimento de literatura, história, filosofia, sociologia e da humanidade. O autor revela em seus textos valores amplamente literários, em especial ao fundamentar, com comparações metafóricas, seus postulados. Criou um estilo. O estilo, sabe-se, é a essência de quem realmente sabe escrever. Estilo é a marca registrada do singular e do inimitável e, sobretudo, de autonomia intelectual

Referências

Bauman, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017 [ Links ]

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