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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.43 São Paulo mayo/agosto 2017  Epub 11-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n43.7258 

Dossiê temático

A produção estética da docência: macro e microdimensões

The aesthetic production of teaching: macro and microdimensions

Juliana Monteiro Vieira1 

Cristiano Ferronato2 

Dinamara Garcia Feldens3 

1Mestre em Educação e graduada em Psicologia pela Universidade Tiradentes/SE. Participante e colaboradora dos grupos GPHEN/CNPQ (UNIT/SE) e GPECS/CNPQ (UFS/SE). Aracaju/SE - Brasil, juhsantosvieira@gmail.com

2Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá. Coordenador, professor e pesquisador do PPED - UNIT/SE. Líder do GPHEN/CNPQ-SE. Aracaju/SE - Brasil; cristianoferronato@gmail.com

3Pós-doutora (UCM-Madrid). Doutora e Mestre em Educação (UNISINOS). Graduada em História (1996). Líder do GPECS/CNPQ e professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS). São Cristóvão/SE - Brasil; dfeldens@hotmail.com


Resumo:

Buscamos refletir acerca das múltiplas dimensões da estética docente, em âmbito macro e microestrutural. Evocamos uma discussão relativa ao estado existencial vivido na contemporaneidade, que atinge inevitavelmente a escola e a profissão docente. Nesse contexto, deparamos com um mal-estar generalizado que habita a macrodimensão dessa profissão. Por outro lado, buscou-se também evidenciar as produções subjetivas que ilustram o exercício constante de uma microestética relativa a uma fabricação da diferença.

Palavras-chave: Estética; Produção Docente; Subjetividade

Abstract:

We seek to reflect on the multiple dimensions of teacher aesthetics, both macro and microstructural. We evoked a discussion about the existential state lived in contemporary times, which inevitably affects the school and the teaching profession. In this context, we are faced with a general illness that inhabits the macro dimension of this profession. On the other hand, it was also tried to evidence the subjective productions that illustrate the constant exercise of a microaesthetic, relative to the manufacture of the difference.

Key words: Aesthetics; Teacher Production; Subjectivity

Introdução

Propõe-se, neste texto, refletir acerca das produções da docência, em suas macro e microdimensões estéticas, nas quais ressoam questões universais, porém, também subjetivas. Diante do contexto contemporâneo, é possível visualizar aspectos referentes a um plano estrutural que tem bases no pensamento filosófico ocidental, relacionados a uma macrodimensão que conserva similitudes niilistas e configuram, na atualidade, um mal-estar generalizado. Sob outra perspectiva, observa-se no docente a produção subjetiva de um viés único, próprio, autoral, que transborda regras e regulamentos e proporciona a possibilidade de novos comportamentos e de novas práticas em sala de aula.

A estética parece definir-se como a via possível entre o sentir e o pensar ou como a forma com que se organizam e se desenvolvem as práticas pelos sujeitos. Foi conceitualmente trabalhada desde os primórdios da Antiguidade, sendo um tema que acompanha as mudanças de concepção sofrida nos padrões específicos de racionalidade do Ocidente, dissertada quase sempre junto a noções de arte. A estética sofre com o estabelecimento da divisão entre a realidade lógica e realidade dos sentidos, sendo considerada uma instância “menor”, ao passo que as faculdades envolvidas em sua produção estão relacionadas à imaginação e a intuição. (PERISSÉ, 2009)

A referência socrático-platônica liga a estética diretamente a uma ideia de beleza e de redução da arte enquanto instrumento de imitação, elemento decorativo que serviria para aproximar o homem das divindades mitológicas. Para atingir a pólis ideal, a poesia e as demais artes deveriam adequar-se às metas políticas e educacionais instituídas pela filosofia clássica como orientadora dos valores.

Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo moderado e se restrinja na sua exposição a copiar modelos que desde o início estabelecemos por lei. (PLATÃO, 1999, p. 45)

A Idade Média evoca, com seus representantes, o sentimento estético direcionado ao trabalho divino: as belezas percebidas e sentidas no mundo eram prova de uma “Beleza Criadora”. O reconhecimento de uma beleza transcendente representada sob algo visível formula essa visão estética de Deus como “Suma Beleza e Sumo Artista” (PERRISÉ, 2009, p. 22). Estabelece-se, desde então, de forma a não se apropriar de “o que é de Deus” (beleza, criação, invenção, verdade) e de “o que é do homem” (violência, culpa, maldade, pecado). O conceito, nesse período, como não poderia deixar de estar, encontra-se implicado do dogma cristão e da metafísica clássica.

Já a concepção estética moderna recebe grande influência de Kant, galgada na ideia de gosto como o conjunto de valores que organiza o ato de apreciação individual (PEREIRA, 2013). Arte e estética aproximam-se da concepção do sublime, da materialização de um sentimento ou de uma ideia. A criação artística encontra-se sujeita aos desejos do mercado burguês, o que torna volátil a relação entre “alta cultura e cultura das massas”. Movimentos de elaboração da “arte pela arte” revelam os questionamentos acerca da forma submissa com que os artistas eram considerados.

A partir do século XX, a arte demonstra-se comprometida com a ruptura estética a partir da demolição de formas tradicionais. Desenvolve-se uma relação alternativa entre arte e vida buscando aproximações com a experiência cotidiana. Na segunda metade do século, após fortes movimentos e revoluções artísticas e conceituais, os limites de inteligibilidade são confusos, estabelecendo uma certa impossibilidade de racionalização nos dois temas. A estética é fragmentária, questiona profundamente os projetos totalizantes e não tem mais a pretensão de representar o universal, mas o individuo em suas particularidades (BREA, 2008). Liga-se agora a uma dimensão de experiência singular e subjetiva que produz efeitos de sentido e movimentos de realização da diferença. Não há um conteúdo essencial a ser apreendido, e sim os efeitos produzidos no processo. A arte em si mesma consegue ser agora visualizada por seus aspectos formativos: dá forma, configuração, materialidade a sentimentos, sensações, pensamentos, conceitos; ao mesmo tempo, nos constrói, nos compõe, nos produz - é formativa porque nos transforma.

Reflexões estéticas: macro e microdimensões

Pereira (2013) divide a perspectiva estética em duas ordens de existencialização: a macroestética e a microestética. O duplo movimento que se estabelece entre o macro e o micro não pretende posicionar-se sob uma perspectiva antagonista, pois são coexistentes. O conteúdo macro (político, social, cultural) é expandido e oficializado por instituições e documentos que o legitimam; antecede as possibilidades do acontecimento, agindo como meio de determinação. Quanto ao micro, ao menor, existe uma subversão nos modos de fazer, uma dissidência em relação ao modelo. É primordialmente cotidiano, da ação, do singular, do inusitado.

A macroestética é então, considerada um campo epistemológico independente que nasce no século XVIII enquanto disciplina. Relaciona-se com as ordens institucionais, com campos molares de determinação e controle, com os planos de efetivação das representações. O niilismo, conceito descrito pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche no século XIX, pode ser visto enquanto uma macroestética, na medida em que se estabelece como base de pensamento, como ampla ordem existencial que dialoga com os valores vigentes na sociedade. O “dever ser” estabelece-se como uma moralidade universal nessa macroestética, que tem normas institucionalizadas e capacidade de orientar e regular experiências subjetivas.

A institucionalização da figura docente legitima o estereótipo de uma prática originária, reduzindo as formas e os princípios a um tipo de organização e de conduta. Oficializar-se, determinar-se, estabelecer-se como professor pode, invariavelmente, esconder ou mesmo aniquilar uma ordem subjetiva que é própria da atividade. “Estar sendo professor” é muito diferente de “tornar-se professor”, pois resguarda ainda todas as representações da formação de uma figura institucionalizada.

Ela diz respeito à prática de arranjo e orquestração do feixe de forças vivas que atravessam uma existência singular, provocando uma desestabilização completa da figura até então vigente e gerando uma forma mutante em direção a um estado diferente de ser […] a microestética tem a natureza do risco, do investimento no improvável, da aposta no irreversível, na tragédia. Ao tratar da microestética, trato da construção de si, da produção de estados de singularidade por ação desejante, trato da diferença. Falo do sujeito que deseja e cujo desejo nada mais é do que a fervura do poder tornar-se diferente daquilo que tem sido, do querer vir a ser. (PEREIRA, 2013, p. 124)

A microestética reflete-se no atravessamento do sujeito em sua prática, no exercício da produção subjetiva, na composição de forças que se realizam na experiência singular, no exercício constante de produção desse continuum de forças caóticas. Diante da impossibilidade de uma prática completamente autônoma, é através da microestética que se evocam meios de diferenciação e de enfrentamento das hegemonias. Sob essa perspectiva, entendemos que sujeito é somente aquele que se realiza na ação concreta e que a subjetividade consiste nesse “estado de ser” que constantemente reage à articulação das forças vitais. O vir a ser é, pois, o que há de essencial no sujeito.

Não nos interessa buscar meios maniqueístas de pensar essas dimensões, mas sim explicitar suas sinuosidades, seus contornos. Dessa forma, entende-se que existe um choque de forças, uma simbiose, pois dentro do macro há pequenos micros e no micro existe a influência do macro, e assim também rupturas que pedem passagem. Interessa-nos, na verdade, pensar a estética e suas dimensões como linhas em movimento que esses professores vão percorrendo. Resgatar uma possibilidade metaestável em que, mesmo fincados em uma relativa estabilidade, possamos encontrar plenos de outros estados. (PEREIRA, 2013)

A perspectiva da “estética da existência” ou a “vida em autoria de si mesma” (RAGO, 2010) reconhece a produção subjetiva como processo de criação, destruição e recriação. Virar-se do avesso, desterritorializar-se; ser capaz de restituir uma experiência sensível consigo e com o mundo e refletir sobre as construções de sentido, as noções valorativas e as maneiras de se afetar. Essa construção de sentido é política e é objeto da estética. (MORICEAU; PAES, 2014)

Identidade, essência, habilidades necessárias, competências…. engana-se quem supõe existir um modelo certeiro para se considerar um “bom professor”. Essa crença se baseia, mais uma vez, no modelo de identidade, de “Ser” como raciocínio estável e dual de pensarmos nosso estar no mundo. Esse formato está muito mais ligado a um estado singular, a uma constituição temporal como processos e trocas: “A prática de professores assim entendida, pode ser pensada a partir da máxima Grega: ‘Converte-te no que tu és’. Converter-se no que se é, é buscar expandir as singularidades e as diferenças que produzem a vida docente.” (FELDENS, 2012, p. 02)

O mal-estar docente: a macroestética niilista

Refletindo sobre o estado existencial contemporâneo, parece evidente a falência das metanarrativas e a crise dos valores morais que atingem de forma significativa a educação e a escola. A “cidade de Deus celestial”, crença majoritária do período medieval, ou o “paraíso terrestre”, presente nos ideais racionalistas da Modernidade, demonstraram-se promessas de um futuro intrinsecamente ligados a ficções representativas.

A figura do “primitivo, nômade, não-civilizado” recorre a uma noção anterior. Aquela do humano selvagem, representação de extrema ameaça, pois é “[…] expressão do vigor nativo, primordial, societal, que o poder social, econômico, político dedicou-se a apagar.” (MAFFESOLI, 2010, p. 63) Essa vitalidade presente no vigor selvagem expressa-se ainda no humano de diversas formas, em constituições íntimas e coletivas: a energia da arte, a força dos movimentos sociais, a expressão da cultura de um povo, o exercício da resistência. Compreender esse distanciamento da vitalidade é compreender a quem servem o pensamento estático, moribundo, apático e passivo. Percebido como “salvador do pensamento” o ideal moderno de racionalidade claramente não está mais de acordo com a amplitude da existência. Movimentos como a Reforma Protestante, o Iluminismo, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial tornaram obrigatória a defesa da generalização da instrução pública, assegurando ao homem o centro do mundo e a racionalidade científica, o caminho para uma verdade universal. A noção de progresso como algo linear, contínuo e acumulativo ilustrou a marcha ocidental em direção a um ideal representativo moderno.

A figura do educador encarna a emergência de um novo homem configurado a partir da racionalidade, da individualidade. A escola converte-se em uma das maiores instituições ocidentais da Modernidade, lugar de investimento e expectativas que, por sua finalidade civilizatória, proporciona um jogo de forças universalizado. Dotada de uma disposição trágica, a docência parece resguardar um querer interno, sendo este um território atípico constituído por errâncias. São necessárias profundas reflexões para compreender como se configuram o pensar-fazer docente, qual o motor ético, fardos, cansaços e alegrias subjetivas que o constituem. Em um contexto macroestrutural, a docência demonstra-se afetada pelo mal-estar compartilhado da cultura ocidental, por um sentimento inesgotável de vazio existencial e aprisionamento da vontade de potência. (SANTOS; SILVA, 2014)

No cotidiano institucional, essa crise de valores resulta em pessoas consumidas e esvaziadas de suas forças. Marcado pela ambivalência de sentimentos, a profissão docente parece conviver na “linha de frente da realidade”, lidando com problemáticas sociais, políticas e econômicas em sua rotina. As deficiências da formação universitária que idealizam uma Escola, mas que não estão “em seu chão”, parecem trazer a sensação de que nada do que foi aprendido é real. Além disso, existem paradoxos profundos relacionados ao afastamento de gerações, de intenções, de costumes que necessitam de reformulações, mas se encontram presos a antigos parâmetros. Os “valores superiores” carregados pelo professor convertem-se em fardos, algo entre o soldado e o salvador, neutralizado dos planos desejantes. Esses fardos constituem-se a partir dos encontros com a realidade, marcados pelo aprisionamento da ação em detrimento de valores abstratos e de perfis representativos e idealizados. A vontade de potência original, em momentos, pode reverter-se em uma vontade de nada guiada por atitudes reativas, condicionadas a uma incapacidade de afirmar a si e a vida. (GADELHA, 2005)

A decadência surge como uma doença social que insensibiliza e entorpece a vontade de potência dos indivíduos, provocando a falta de desejo, “[…] pois na ausência de desejo a energia se autoconsome sob a forma de sintoma, de inibição e de angústia.” (GUATTARI, 1987, p. 15) Para Nietzsche (2002), os valores de negação são a base do pensamento moderno ocidental, restando ao modelo escolar reproduzir e disseminar discursos previamente estabelecidos, julgando como bom algo que está posto a priori e não algo que parta do desejo, do instinto, da experiência, do querer; da identificação. É assim que “[…] não nos esforçamos por fazer uma coisa que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e a desejamos.” (SPINOZA, 1997, § 3) Nessa direção, Cei (2011, p. 8) acrescenta:

O nihil, isto é, o nada, prevalece. Acontece um descomunal esgotamento dos valores e dos ideais que sustentavam todas as esferas de atividades humanas no mundo ocidental: artes, política, economia, metafísica, estética, ciência, moral, religião e até mesmo o chamado “senso comum”, que orienta os hábitos cotidianos das pessoas.

O niilismo é intrínseco ao processo de pensamento do homem, é no nada que se origina e se destrói tudo. O nada é a fonte e a origem. É a partir do nada que se pode “converter o espírito” da passividade à atividade, livrando-se das falsas verdades. O “ser professor” exige deste sujeito uma sabedoria inventiva, uma produção de diferença, uma capacidade criadora, transgressora e transformadora. Dentro de um professor democrático existem devires niilistas. Devires que permeiam sua formação, suas experimentações em sala de aula, sua concepção de conhecimento. Não existe para o niilismo a definição de um marco temporal ou de uma estaticidade, pois ele se instaura como macroestética do pensamento, como fluxo de momentos de vitória e perda de uma moral escrava, de uma negação da vida.

O desencanto irreversível produzido pela prática desmedida da racionalidade científica aplicada a todos os âmbitos existenciais pressupõe um ciclo histórico agonizante e obscurecido pelas velhas normas e diretrizes, reproduzindo um politeísmo de valores, na busca de recursos alternativos a esse modus operandi.

A dimensão microestética da docência

Associar docência e vida parece ser o único meio para fazer essa caminhada. A docência habita o docente: suas verdades, mentiras, angústias e certezas. As marcas de sua produção são marcas que identificam os sujeitos, são produções próprias em interação com seu campo de ação, como um procedimento puramente alquímico: “[…] o processo de formação de qualquer profissional deve passar, necessariamente, pela aprovação crítica de sua história de vida.” (PEREIRA, 2013, p. 61)

O entendimento da microestética perpassa justamente o plano imanente que desfaz a distinção privado-público, na medida em que o que constitui o movimento de singularização da docência, seja a produção dessa diferença na história do sujeito uma escolha que se dá no mundo, elaborada em um campo coletivo. Não se trata, nessa perspectiva, da procura de uma essência ou de um perfil identitário, mas de um “tornar-se”, em conjunto do que vinha sendo, dessa mesma descontinuidade, entre possível-finito e potencial-ilimitado (PEREIRA, 2013). Como separar sua prática de seus posicionamentos éticos, estéticos, políticos? De seus desejos, de suas experiências, de sua vontade?

Essa visão da experiência microestética é ilustrada como uma oportunidade de ampliação, renovação e expansão da subjetividade, como uma abertura desinteressada para os efeitos dos acontecimentos. A microdimensão estética pode ser coletiva, porém se estabelece na direção de uma singularização: oposta à noção de individualismo, a singularização é um processo de efetivação das afecções, que pressupõe expressão, criação, suspeita, produção da própria vida (PEREIRA, 2012). Junto à ética, a atitude estética relaciona-se, portanto, a uma disposição interna, a uma abertura circunstancial ao mundo que suspende os juízos racionalistas ou o interesse objetivo e pragmático, colocando-se em posição de vulnerabilidade aos efeitos da produção. Essa experiência inicia-se a partir da queda dos valores, da crise da subjetividade na qual o mundo apela para ser inventado, tendo o nada como origem e perpétuo devir. “A formação estética é um trajeto pessoal […]” (PERISSÉ, 2009, p. 56), conquistada a partir do aprender a conjugar corpo e pensamento. Não se localiza na relação primorosa do gosto, mas na descoberta e na compreensão dos próprios critérios de escolha, das sensações de estima e de repúdio, de apreciação e de antipatia. A formação de uma estilística própria parte do contato com o inarticulado, como uma marca de autenticidade que não pode ser escolhida, e sim produzida, atravessada por essas e outras vias estéticas.

Desafiando os entendimentos da tradição metafísica, a perspectiva da microestética renega a concepção do sujeito enquanto forma, organizado por uma ética que se reduz à moral, calcada na lógica racionalista, reprodutora de uma ordem subjetiva representacional. Os fatores de determinação transcendentes e extrínsecos ao indivíduo fazem parte do arcabouço da macrodimensão niilista. São os movimentos realizados na contramão disso, em forma de ruptura ou deslocamento, que se pretende aqui destacar.

A docência é, pois, este lugar de estratificações rígidas e severas, porém, apenas durante o percurso individual se costura nas potências subjetivas. Dessa forma, apesar da produção de condições existenciais próprias do niilismo em sua macroestrutura de pensamento, por meio de uma concepção microestética é possível pensar e problematizar como se formam outras vivências e movimentos de resistência exercidos pela docência em seu cotidiano. Operando sob vias molares, institucionalizadas, regidas por amplos regulamentos que engessam de várias maneiras a experimentação, existem produções desviantes pelas quais, sem recuo, faz-se no cotidiano um “trabalho de formiguinha” acontecer: “[…] o pensamento conformista dominante se esforça para excluir os que não tem o odor da matilha.” (MAFFESOLI, 2015, p. 22) A docência é quase sempre engendrada por estratificações duras e programadas. Consegue, porém, em sua dimensão microestética, propor fugas infinitas em um universo finito; possuindo suas salas de aula os docentes desenvolvem táticas de batalha. Esses movimentos são realizados cotidianamente, nesse “jogo/combate” que o docente trava com sua realidade laboral. As tentativas de (des)territorialização remetem a novas buscas, novos encontros, novas fugas que são criadas a partir da atitude ética que resolvem adotar enquanto docentes, na constante imposição de desafios e resistências ao que já está instituído. As subversões realizadas nesse processo coletivo de forças restauram na educação a possibilidade de ser veículo de desagregação de si mesma.

Pensando um pouco sobre o “finito-ilimitado” compreende-se a existência de um campo existencial finito, que estabelece uma contraposição com o ilimitado da potência criativa. Pela organicidade, regularidade, estabilidade das molaridades instituídas estabelecem-se limites para que, ali dentro, “seja possível delirar”. Esse campo macroestrutural se faz, portanto, necessário, porém é inevitavelmente formado de mil platôs: “[…] toda situação de forças em que um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações.” (DELEUZE, 2005, p. 141) O plano/planejamento estabelecido é, então, um plano de consistência para o exercício da microestética, pois reconhecendo a realidade como limite, se reconhece também sua potencialidade.

Considerações finais

Na escola, a obediência ao “gosto comum”, aquele que é usualmente adotado, impera sob a forma de uma valoração moral socialmente disseminada. Rapidamente, comportamentos, gestos, corpos, vestimentas, atitudes precisam ser tensionados e manipulados para um lugar de adaptação. Reafirma-se a ideia da “falta”, sob um ideal ilusório de completude. O processo de “melhoramento” do homem, que tem como base instituída a escola, pressupõe intenções repletas de moralidade. Em contraposição à ideia da educação enquanto enredo controlável e seguro, é apenas pela experimentação que o educador aprende a educar-se, a reconhecer sua experiência corporal junto às forças da docência que lhe atravessam: “O grande pedagogo é como a natureza: ele deve acumular obstáculos para que sejam ultrapassados.” (NIETZSCHE, 2003, p.7)

Para ampliar e compreender no que consiste a concepção microestética é preciso desconstruir a noção de subjetividade subordinada aos modelos representacionais. A macroestética niilista parece ter como objetivo principal a domesticação das forças e a consequente manutenção de um regime identitário. A subjetividade, porém, tem um caráter transversal, que consiste na capacidade de sair de “impasses repetitivos e de se re-singularizar.” (GUATTARI, 1987, p.17) Esse estado de experimentação relaciona-se à tendência de ingressar constantemente em novos regimes de instabilidade. Experimentar é arriscar, partir de um ponto inicial, mas não saber onde irá chegar. Um exercício de experimentação é também um exercício de criação, de “artistagem”. Desenvolver experimentações é desconstruir o existente, o original, o discurso “verdadeiro”, romper relações aparentemente opostas de teoria e prática, da forma e do conteúdo. Enxergá-los pela ótica do presente. Encarar a falha como um ato de inteligência. (CORAZZA, 2016)

A afirmação da docência não está somente no fato de ser professor ou de estar inserido nesse universo, mas de viver a experiência subjetiva, produzir sua microestética. Uma nova concepção de educação e de docência necessita atentar-se para a reflexão sobre a existência, na experimentação solitária de um pensamento criador que, produzido a partir das próprias reflexões, reverbera em novas visões e em valores mais afirmativos. Apenas rejeitando os moldes binários previamente estabelecidos e percebendo a vida como única possibilidade de julgamento sobre ela mesma poderíamos relativizar as problemáticas das instituições modernas ocidentais, buscando mover suas rígidas bases. Esse reposicionamento exige, portanto, o reconhecimento da necessidade de desenvolver o potencial subjetivo, microestético, introvertido e solitário da docência, para compor uma atividade/vida cada vez mais ativa, transformadora, que incite e estimule a diferença

Referências

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Para referenciar este texto

VIEIRA, J. M.; FERRONATO, C.; FELDENS, D. G. A produção estética da docência: macro e microdimensões. EccoS, São Paulo, n. 43, p. 39-51. maio/ago. 2017

Recebido: 12 de Maio de 2017; Aceito: 12 de Junho de 2017

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