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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.43 São Paulo maio/ago 2017  Epub 11-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n43.7357 

Dossiê temático

Aspectos da formação humana: paidéia, bildung e geofilosofia da educação

Aspects of human formation: paideia, bildung and geophilosophy of education

Fernanda Antônia Barbosa da Mota1 

Heraldo Aparecido Silva2 

1Doutora em Educação pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. Professora Adjunta de Filosofia da Educação na UFPI. fabmota13@yahoo.com.br

2Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR. Professor Associado de Filosofia da Educação na UFPI. Coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo - NEFEP/UFPI. heraldokf@yahoo.com.br


Resumo:

O propósito deste artigo é apresentar um possível percurso para o estudo da formação humana no âmbito da filosofia da educação e, também, oferecer um preâmbulo sobre nossa versão de filosofia da educação deleuziana. O estudo se baseia em referenciais teóricos como: Jaeger (1995), Chauí (2002), Paviani (2003), Pagni e Silva (2007), Gallo (2007; 2008), Deleuze e Guattari (2010), dentre outros. Inicialmente, privilegiamos as relações entre a Filosofia e a Educação na Antiguidade (Paidéia) e modernidade (Bildung), enfatizando as ideias filosóficas mais influentes para a educação. Na contemporaneidade, destacamos alguns dos mais expressivos aportes teóricos constituintes do cenário filosófico educacional brasileiro: Dewey, Adorno e Deleuze. Finalmente, o artigo evidencia que a Geofilosofia da Educação conecta rizomaticamente os territórios filosóficos e educacionais sem incorrer na reprodução linear da história da filosofia ou da educação, mas buscando plataformas para a criação de novos conceitos.

Palavras-chave: Filosofia; Filosofia da Educação; Formação Humana

Abstract:

The purpose of this article is to present a possible course for the study of human formation within the philosophy of education and also to offer a preamble about our version of the philosophy of Deleuzian education. The study is based on theoretical references such as Jaeger (1995), Chauí (2002), Paviani (2003), Pagni and Silva (2007), Gallo (2007; 2008), Deleuze and Guattari (2010), among others. Initially, we favor the relations between Philosophy and Education in antiquity (Paidea) and modernity (Bildung), emphasizing the most influential philosophical ideas for education. In contemporaneity, we highlight some of the most expressive theoretical contributions constituent of the Brazilian educational philosophical scenario: Dewey, Adorno and Deleuze. Finally, the article shows that Geophilosophy of Education connects rhizomatically the philosophical and educational territories without incurring the linear reproduction of the history of philosophy or education, but looking for platforms for the creation of new concepts.

Key words: Philosophy; Philosophy of Education; Human Formation

Introdução

O propósito deste artigo é apresentar um possível percurso para o estudo da formação humana no âmbito da filosofia da educação e, também, oferecer um preâmbulo sobre nossa versão de filosofia da educação deleuziana. Inicialmente, privilegiamos as relações entre a Filosofia e a Educação na antiguidade (Paidéia) e modernidade (Bildung), enfatizando as ideias filosóficas mais influentes para a educação. Na contemporaneidade, destacamos alguns dos mais expressivos aportes teóricos constituintes do cenário filosófico educacional brasileiro: Dewey, Adorno e Deleuze.

O viés norteador da nossa exposição é resultante de uma conexão entre perspectivas distintas que compartilham preocupações similares acerca da especificidade da investigação filosófico-educacional. Nessa abordagem, evidencia-se tanto o entrelaçamento histórico entre a Filosofia e a Educação quanto a atualidade dos temas educacionais privilegiados pelo pensamento filosófico.

Para o deslocamento conceitual específico proposto aqui, é suficiente evidenciar que a perspectiva rizomática permite iniciar a breve exposição da história da filosofia da educação a partir de qualquer ponto, assim como estabelecer idiossincráticas conexões entre determinados autores, ideias e temas, e não sobre outros. Por isso, enfatizamos que nossa apresentação encerra uma possível entrada, dentre outras, para o estudo e o ensino da filosofia da educação.

Diante do exposto, é preciso mencionar que a sequência escolhida para tratar da formação humana no âmbito da filosofia e da educação buscou estabelecer conexões que pudessem evidenciar, ao final do artigo, a relevância das filosofias da educação (no plural) de inspiração deleuzianas como propostas de sistemas conceituais abertos (rizomas) para o campo filosófico educacional do século XXI.

Os pressupostos filosóficos da educação antiga

Durante séculos, os domínios da Filosofia e da Educação foram compreendidos como aspectos complementares de um único processo formativo. O ápice dessa conexão tem seus momentos mais representativos na Paideia grega e na Bildung alemã, compreendidas, respectivamente, como formação integral e como formação cultural. Iniciaremos nosso percurso a partir da relação originária entre a Filosofia e a Educação, compreendidas intrinsecamente como projeto educacional no contexto das ideias dos sofistas e filósofos gregos.

Jaeger (1995) elucida que, após o declínio da visão de mundo configurada pelos mitos e o advento das cidades-estado, a Paideia sofística e a Paideia filosófica passaram a disputar entre si o predomínio educacional. Nesse contexto, fazia sentido um modelo formativo baseado na narrativa mítica dos poetas Homero. A Paideia decorrente desse ideal aristocrático remetia a uma educação voltada para uma formação cultural completa do guerreiro belo e bom. Por ser considerado descendente dos deuses, o jovem aristocrata aprimoraria seu corpo nos ginásios e teria por preceptores o legado de Homero e Hesíodo. A finalidade dessa educação era a preparação do corpo e do espírito do jovem guerreiro para sua “bela morte” nos campos de batalha, em defesa dos valores da sua sociedade. (PAGNI; SILVA, 2007)

Com a transformação geopolítica do mundo grego representada pela ascensão das cidades-estado, passou a vigorar um novo modelo de sociedade, caracterizada pelo urbanismo, artesanato, comércio e democracia. A areté aristocrática baseada no mítico preconceito do privilégio sanguíneo e da linhagem divina da nobreza é contestada e suplantada por uma nova educação baseada na “força espiritual e moral do saber, da sophia.” (JAEGER, 1995, p. 338) Nessa nova configuração da vida política, a formação dos jovens foi disputada entre sofistas e filósofos. Inicialmente, não havia distinção entre os dois grupos de sábios; posteriormente, Platão os designa como meros imitadores de filósofos que disfarçavam retoricamente seus discursos com uma aparência de sabedoria. Em geral, atribui-se à sofística os “fundamentos da Pedagogia, a qual não denominam de ciência, e sim de téchne ou arte da Educação.” (PAGNI; SILVA, 2007, p. 24) Como especialistas no ensino de técnicas retóricas, os sofistas também revestiam seu ideal formativo com um apelo político e moral, pois a educação oferecida por eles desenvolvia as habilidades discursivas e argumentativas com a finalidade de torná-los bons cidadãos.

Embora a filosofia e a sofística representassem um novo modelo formativo, baseado em fundamentos racionais, contrário à Paideia das narrativas míticas, filósofos e sofistas eram opositores entre si. A filosofia de Sócrates caracterizava-se pela utilização do método maiêutico, que partia da crença que os seres humanos já possuem ideias inatas, mas que necessitam de um “parto de ideias” para se tornarem manifestas. Seu procedimento pedagógico consistia na elaboração de uma série de perguntas que tinha o objetivo de auxiliar a pessoa a ter consciência de suas próprias ideias e, assim, analisar se as mesmas eram verdadeiras ou falsas (CHAUÍ, 2002). Os sofistas aprimoraram suas habilidades discursivas para defender causas e para ensinar aqueles que desejassem seguir a carreira política. Nos dois casos, o uso da retórica servia para convencer as pessoas a adotar seu ponto de vista e não o ponto de vista de seus adversários. Na arte da persuasão, tal convencimento é sempre marcado por um sedutor jogo de palavras que tem a intenção de agradar, comover ou amedrontar seus interlocutores. Assim, se na maiêutica socrática, temos um apelo intelectual, na retórica sofísta temos um apelo de caráter emocional.

Essa reeducação do pensar continuou sendo desenvolvida por Platão (1972). Porém, a educação concebida por ele não é uma mera continuação das ideias de Sócrates, já que um dos principais propósitos de A República é “o projeto de reforma educacional”, na qual o filósofo é o educador e futuro governante da sociedade (PAVIANI, 2003, p.16). Sobre isso, Jaeger (1995, p.837) enfatiza que “A República platônica é, antes de tudo, uma obra de formação humana.” Platão sustenta que a educação é a arte que tem por objetivo a conversão da alma: “Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já a tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encaminhá-lo na boa direção.” (PLATÃO, 2000, p. 229) Assim, a educação não vai imprimir algo de fora para dentro do indivíduo, mas despertar algo que já existe latente dentro dele e que precisa ser direcionado para o caminho correto. (JAEGER, 1995)

O desafio para a Paideia platônica reside na harmonização entre dois ideais: a constituição de um Estado justo e a formação do homem virtuoso. Sua analogia entre o indivíduo e o Estado considera que tanto a alma humana quanto a cidade têm três estratos similares. A alma tem as instâncias concupiscente, colérica e racional, que correspondem, respectivamente, às classes sociais dos artesãos ou trabalhadores, dos guardiões e dos governantes. A harmonização dos indivíduos nessa cidade justa decorreria da estrita consciência de cada um acerca de seu lugar e função específica na sociedade. Tal consciência adviria do conhecimento propiciado pela educação acerca das três referidas forças que existem em graus variados em cada indivíduo. A comprovação das inclinações naturais dos indivíduos se manifestaria na sua capacidade de se distinguir nas provas e exercícios relativos ao desenvolvimento das qualidades de cada cidadão. Embora possua uma tendência natural, o cidadão necessita da educação para o desenvolvimento de qualidades específicas: o complemento para a força do desejo seria a virtude da temperança, para a força da emoção seriam as virtudes da prudência e da coragem e, finalmente, para a força do conhecimento a virtude adequada seria a sabedoria. (PLATÃO, 2000; JAEGER, 1995)

A principal crítica ao pensamento de Platão vem de Aristóteles, pois A Política é considerada como a principal réplica contra A República. Embora os dois livros tratem das relações entre Estado e educação, Platão apresenta uma idealização de reforma social e educacional, enquanto Aristóteles analisa modelos educacionais conforme fatos e experiências de governos existentes. Para ele, em suas mais diversas fases “a educação deve tomar como modelo a forma do governo” porque cada forma de governo “tem costumes que lhe são próprios” e cabe à educação a manutenção de tais costumes a fim de preservar o Estado (ARISTÓTELES, 2011, p. 55). Como Aristóteles considera o ser humano um animal político, isto é, alguém cuja vida somente tem sentido enquanto cidadão da pólis, a questão principal é saber como “situar os atributos do indivíduo sempre em função do bem de sua cidade, único horizonte dos valores humanos.” (CUNHA, 2007, p. 70) Na concepção aristotélica, como existe apenas um fim comum a todo Estado, também a educação tem de ser única e idêntica para todos os cidadãos, devendo a mesma ocorrer em conformidade com a forma de governo estabelecida.

A práxis humana está no centro da Paideia aristotélica porque nela ética e política convergem. À ética caberia o estudo da ação humana enquanto indivíduo que deve ser preparado para a vida na cidade e o estabelecimento de “princípios racionais da ação virtuosa” que objetivariam o bem do indivíduo em convívio com outros cidadãos, que também deveriam seguir os mesmos preceitos. Já a política seria responsável pelo estudo da ação do homem enquanto ser comunitário, no contexto mais amplo das distintas formas de regime político, visando estabelecer “os princípios racionais da ação política, cuja finalidade é o bem da comunidade.” (CHAUÍ, 2002, p. 350)

Na teoria aristotélica, embora a função da educação seja adequar o indivíduo à forma de governo na qual vive, isso não implica a simples acomodação dos interesses individuais aos interesses dos governantes, pois o objetivo primordial do Estado é o bem-estar dos cidadãos. Em vez de propor a criação de um estado ideal, como fizera Platão, Aristóteles estabelece as condições para a manutenção e aperfeiçoamento dos Estados existentes. Na sua Política, ele censura seus contemporâneos por não terem estruturado seus governos visando ao melhor fim, ou de não terem dado leis e educação visando atingir todas as excelências. Seriam três as coisas que podem tornar os homens bons e dotá-los de qualidades morais: a natureza, o hábito e a razão. Embora elas devam se harmonizar entre si, a prática da virtude deve ser exercitada sob a influência da razão. Na visão aristotélica, as “qualidades que não são concedidas pela natureza precisam ser lapidadas pela educação; aprendemos algumas coisas pela força do hábito e outras pela influência dos educadores.” (ARISTÓTELES, 2011, p.255-256)

Tanto o legado filosófico e educacional de Aristóteles quanto o de Platão serão bastante influentes nos séculos seguintes. Todavia, a releitura teológica efetuada por Agostinho e Aquino muda consideravelmente o aspecto de suas doutrinas filosóficas e, consequentemente, suas implicações educacionais. Todavia, em conformidade com os propósitos deste texto, não abordaremos o período medieval a fim de discorrer acerca de alguns aspectos do período moderno que conectam as noções de Paidéia e Bildung.

Os pressupostos filosóficos da educação moderna

Embora Descartes não tenha escrito especificamente sobre a educação, suas ideias se tornaram muito influentes e, consequentemente, tiveram reflexos no campo educacional, como sua ênfase na razão. Tomemos como exemplo a necessidade de exercitar o domínio da razão sobre os impulsos, desejos e apetites que agem sobre a humanidade como preceptores autoritários e discordantes entre si.

A forma como Descartes nos ensina como devemos conduzir nosso pensamento racional constitui uma pedagogia da razão na medida em que age como um preceptor no processo de reflexão (GELAMO, 2007). Sua relevância no campo educacional pode ser exemplificada pela influência exercida sobre Comenius, cuja obra Didatica Magna parte do princípio cartesiano de que, se existe um método universal para pensar corretamente, então deve existir também um método universal para ensinar tudo a todos de modo correto, visto que todos possuem a razão como base para a aquisição e construção do conhecimento.

Diferentemente de Descartes (2001), que concebia o referido período infantil de forma pejorativa, no qual as crianças são governadas pelos apetites e não pela razão, Rousseau enfatiza a complexidade do ato educativo ao demonstrar a especificidade das distintas fases de desenvolvimento humano, que abrange desde o nascimento até a fase adulta. Ele defende a importância da formação do indivíduo como sujeito moral, pois suas ações na sociedade deverão ser guiadas por princípios políticos como o exercício da liberdade, a autonomia e a crença na igualdade entre os seres humanos. Tais condições impediriam o surgimento de uma futura dependência social (moral) do cidadão em relação a outros indivíduos ou instituições. Rousseau (1999) identifica três tipos de educação: o desenvolvimento de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e a aquisição de nossa própria experiência sobre os objetos que nos cercam é a educação das coisas. Dessas três educações, a da natureza não depende de nós, a das coisas só depende em alguns pontos e a do homem é a única sobre a qual seríamos verdadeiramente senhores (embora não sejamos). Assim, se quisermos nos aproximar da perfeição, é para a educação da natureza que devemos direcionar as outras duas.

Ao contrário de Descartes, que defendia a necessidade de um aprendizado intelectualista voltado para o bom uso da razão, Rousseau argumentava que o aprendizado deveria priorizar a sensibilidade moral. Para ele, tudo que era necessário fazer era seguir as regras que se encontram escritas pela Natureza no fundo do coração humano e que serviriam como guias para examinar todas as questões que nos fossem apresentadas na convivência social. Essa ênfase no processo educativo voltado para a formação do ser humano como sujeito moral também é expressa na ideia segundo a qual o correto julgamento das coisas humanas brota como sentimentos originados da nossa própria consciência (ROUSSEAU, 1999). Essa perspectiva de Rousseau é mais favorável ao tipo de educação liberal que privilegia a preparação do indivíduo para uma vida autêntica numa sociedade de homens livres. Pagni (2007) considera que é Kant quem leva adiante esse último aspecto mencionado no ideal de formação humana rousseauísta nas suas considerações acerca da formação cultural (Bildung).

Kant (1996, p. 11) escreve que o ser humano é a única criatura que necessita ser educada, pois a educação deve ser entendida como “o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação.” Nessa mesma obra, o filósofo alemão sustenta a ideia de que somente a educação pode tirar o ser humano da animalidade, isto é, extraí-lo da condição inferior de selvageria para alçá-lo à condição superior de civilidade. A filosofia do Iluminismo (Alfklärung) contribuiu para dar novos sentidos aos conceitos de educação e cultura, visto que apresentava ideias e concepções novas que se contrapunham ao que era defendido no humanismo renascentista e na Paideia antiga. A respeito disso, a filosofia kantiana contribuiu com “conceitos e ideias que buscam definir os fins últimos que deveriam orientar os destinos da humanidade, tendo por base os princípios da autonomia e da dignidade humanas.” (PAGNI, 20007, p. 166-167) Assim, tanto a produção da cultura quanto sua transmissão por meio da educação são problematizadas por Kant, que revisa a concepção de formação e a finalidade da educação humana. Na base dessas ideias estão o pressuposto da liberdade do pensamento e a proposta de reorientação cultural na maneira de pensar das pessoas. Tal tarefa decorreria da filosofia tomada no seu sentido educativo, pois “Kant entende a Filosofia como educação, pensando a Filosofia e a Educação como indissociáveis, especialmente quando trata da figura do Alfklärung.” (PAGNI, 2007, p. 169)

Em decorrência do exposto, segue a recomendação kantiana de que “não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar.” (KANT, 1996, p. 28) A educação kantiana não pretende reduzir a criança à passividade da obediência, mas pretende que ela aprenda a pensar e agir por si mesma. Já a ideia de finalidade ou destinação como componente da lei moral universal explica a enfática advertência kantiana de que “não se devem educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação.” (KANT, 1996, p. 22-23) Para atingir esse ideal, o processo educativo consistiria em duas fases: a negativa, na qual o aluno seria disciplinado e ensinado a obedecer; e a positiva, na qual o aluno receberia instrução, cultura e aprenderia a usar sua razão livremente (PAGNI, 2007, p. 177). Na medida em que os conhecimentos adquiridos pelas gerações precedentes fossem transmitidos aos mais jovens e o legado cultural enfatizasse a formação desse pensamento racional e autônomo, as disposições naturais seriam paulatinamente disciplinadas e o homem poderia aspirar sua saída da menoridade, estágio no qual a humanidade seria considerada verdadeiramente livre e emancipada. O legado filosófico-educacional de Kant é considerado um dos mais influentes da modernidade e suas ideias foram discutidas por diversos teóricos nos séculos seguintes. Na sequência, examinaremos algumas das principais críticas filosóficas desferidas aos fundamentos modernos da educação.

Críticas aos fundamentos modernos da educação

A filosofia da educação de John Dewey é marcada pelos conceitos de experiência e democracia. Para ele, a educação escolar deveria ser uma preparação para a vida na sociedade democrática, então, a experiência educativa também deveria ser uma experiência democrática. Assim, ele pensava a educação como um processo ativo e de aprendizado cooperativo, a partir do qual seria possível a reconstrução da experiência e da cultura, além da mudança social.

A principal crítica de Dewey aos fundamentos filosóficos modernos da pedagogia está contida num contexto mais amplo, no qual a tradição filosófica, de Platão a Kant, é recriminada por ter oferecido sistemas teóricos desvinculados da vida prática, isto é, da experiência comum. Para ele, o idealismo antigo baseado na metafísica foi substituído na modernidade por outro tipo de idealismo baseado na epistemologia. Em ambos, persistia a crença na existência de um poder absoluto e universal que transcenderia toda e qualquer experiência humana (DEWEY, 1959b). Para combater os aspectos negativos da herança moderna que se encontravam enraizados culturalmente, era necessário que a educação promovesse uma cultura investigativa nas gerações mais novas (DEWEY, 1959a). Nessa acepção, a educação seria uma reconstrução contínua da experiência e do modo de vida democrático, pois os objetivos educacionais crescem, pluralizam e se modificam na medida em que são desenvolvidos no contexto concreto da prática entre professor e alunos.

Aqui, a visão de Dewey sobre o papel da educação na sociedade difere das propostas da Paideia antiga e da Bildung moderna, principalmente no que se refere aos seus objetivos. Para ele, a educação não pode ter objetivos rigidamente fixos, idealizados e impostos externamente. Ao contrário, os objetivos educacionais, para serem considerados bons, devem ser flexíveis, concretos (testados na prática) e pessoais. A ênfase de Dewey sobre o valor prático de uma experiência está ligada a sua capacidade de se remeter, de forma dinâmica, a outras experiências. Essa característica ativa da experiência difere do hábito que tende a fixar comportamentos. Para ele, as condutas individuais e coletivas rígidas não condizem com a vida ativa e em constante transformação nas sociedades democráticas. Dewey (1980) crítica o modo como escola tradicional prioriza as matérias escolares em detrimento do aprendizado ativo das crianças. Ele defendia que o ambiente escolar fosse um espaço democrático de participação e crescimento moral, e não um local onde a vida e as experiências são subordinadas a um currículo estático.

Essa concepção de filosofia foi criticada ainda nos anos 40 do século XX pelos filósofos da Escola de Frankfurt. Para Horkheimer, no pragmatismo deweyano o conceito de razão virou uma racionalidade subjetiva, atrelada ao processo social e limitada por seu valor operacional (DUARTE, 1988). Para Adorno e Horkheimer (1985), o legado filosófico moderno é contestado porque seu projeto iluminista teria se convertido no mito da razão instrumental. Eles usam o personagem Ulisses para representar a razão que triunfa sobre todas as potências míticas que obstam seu caminho. O herói grego personifica uma versão degenerada da razão porque suas vitórias astuciosas sobre as criaturas míticas ocorrem mediante trapaças e mentiras. Matos (1993) explica que Ulisses seria o Alfklärer, o homem esclarecido e formado conforme os preceitos iluministas de autonomia e emancipação. Todavia, Ulisses triunfa sobre as potências míticas pelo uso da lógica mercantil da razão instrumental: qualquer meio será considerado útil e verdadeiro se for capaz de eliminar obstáculos e concorrentes.

A partir dessa descrição, os filósofos alemães denunciaram que a época contemporânea vivencia tensões entre elementos contraditórios, tais como: a civilização e a barbárie, o progresso e a regressão, a autoconsciência e a alienação. E a principal responsável pela manutenção desse estado de coisas é a indústria cultural que impede a formação de pessoas autônomas e capazes de fazer o uso próprio de seu entendimento. Com uniformização cultural do indivíduo ao todo social, a indústria cultural tem um papel determinante, pois a tendência à barbárie é alimentada pela “banalização da cultura” e pela “semiformação cultural (Halbbildung)”. A semicultura é filha da indústria cultural porque a contradição entre a sociedade de consumo e a formação cultural não resultou numa não-cultura (o não-saber), mas numa cultura parcial e degenerada (o semi-saber). Se numa não-cultura há a possibilidade e a predisposição da busca pelo saber, na semicultura pressupõe-se a posse de um saber legitimado pela totalização midiática, fechando-se as portas para as genuínas possibilidades formativas e sapienciais, tornando-se co-autora da barbárie. (PUCCI, 1995)

Adorno (1995) diz que a concepção kantiana que concebe todo ser humano como um potencial sujeito autônomo e livre foi demasiadamente otimista. A exacerbada crença na razão impediu a percepção de que uma pessoa pode ser simultaneamente racional e cruel. Por isso, era necessário desmistificar a razão. Maar (1995) sugere que Adorno e os frankfurtianos jamais perderam a fé no ideal kantiano de formação cultural (Bildung). Todavia, a constatação que o ideal iluminista resultou na barbárie, os motivou a investigar o processo que fez da razão humana um suporte da dominação. A crítica dos frankfurtianos ao sujeito moderno é tão corrosiva quanto aquela que os autores pós-modernos realizaram posteriormente. Essas duas vertentes teóricas, no entanto, são consideradas antitéticas e irreconciliáveis entre si. Enquanto Adorno persiste no ideal de formação do sujeito autônomo e emancipado, os pós-modernos reivindicam sua abolição ou fragmentação, pois conceitos como autonomia, crítica, utopia e universalidade são recusados. (LOUREIRO, 2009)

Assim, a pós-modernidade propõe a fragmentação e o descentramento em relação às fontes tradicionais e novas do conhecimento, o cruzamento entre culturas e sociedades e a adoção de perspectivas teóricas híbridas que são relativamente favoráveis ao provisório, ao indeterminado, à incerteza e ao particular (SILVA, 2000). A partir dessa mudança, o sujeito educacional não pode mais ser pensado nos moldes iluministas modernos, visto que ele passa a ser considerado como uma construção histórica, social, particular e cuja consciência deixa de ser concebida como algo centrado e unitário para ser considerada como algo relacional e fragmentário. (SILVA, 1995)

Deleuze foi um dos autores cujos escritos, involuntariamente, contribuíram para a constituição e difusão do pensamento pós-moderno. Embora ele não tenha tratado especificamente da educação, suas ideias inspiraram muitos deslocamentos conceituais filosóficos para o campo educacional (TADEU; KOHAN 2005; GALLO, 2007). Para Deleuze, a filosofia é criação de conceitos. Cada conceito remete a um tipo de problema, de modo que a operação criadora de conceitos na filosofia ocorre sempre em função dos problemas que são considerados mal colocados. Podemos afirmar que a formação de conceitos constitui uma necessidade formativa a ser suprida, pois somente à medida que formamos conceitos é que podemos efetivamente lidar com os problemas suscitados (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Os conceitos se articulam horizontalmente (no mesmo plano) uns com os outros (sem hierarquizações), resultando, dessa relação imprevisível, uma gama de situações possíveis que pode suscitar a criação de novos conceitos, novos problemas ou remanejamentos diferentes para os conceitos e problemas atuais. (GALLO, 2008)

As contribuições conceituais feitas a partir do pensamento de grandes filósofos e educadores ocorrem apenas na medida em que reativamos seus conceitos em nossos problemas, inspirando, assim, a necessária criação dos nossos conceitos. O retorno às ideias dos autores clássicos que enfatizaram a relação entre a filosofia e a educação consiste num estudo necessário sobre a história de determinados conceitos relevantes para a filosofia da educação contemporânea. Sem tal conhecimento conceitual, corre-se o risco da mera repetição conceitual em novas roupagens. Os conceitos não se encaixam uns nos outros como peças de quebra-cabeças, mas ressoam entre si, no plano de imanência (a imagem do pensamento), sempre em animação como um tear gigante de movimentos infinitos. Além disso, há a necessidade de personagens conceituais que são os elementos operativos indispensáveis para se trabalhar as ideias. Como os planos de imanência são inúmeros, eles podem se agrupar ou se separar conforme a perspectiva dos personagens conceituais. A filosofia só consegue lidar com a relação entre o conceito, o plano de imanência e os personagens conceituais, trabalhando os três termos conjuntamente, mas preservando suas peculiaridades distintivas e respectivas funções. (DELEUZE; GUATTARI, 2010)

A filosofia é considerada uma geofilosofia porque a dinâmica do movimento do pensamento ocorre, metaforicamente, na saída (desterritorialização) de um território em direção (reterritorialização) a outro território. E todo movimento de desterritorialização é acompanhado por uma reterritorialização. Aqui, a filosofia como uma geofilosofia pode ser explicada a partir do conceito de desterritorialização. Se assumirmos que, dentre as três exclusivas formas de pensamento, somente a filosofia (e não a ciência ou a arte) é capaz de inventar conceitos, então o movimento de desterritorialização original, isto é, a criação de um novo território, compete exclusivamente a ela. (id. ib.)

O aprofundamento tanto nos conceitos filosóficos quanto nas articulações com questões de natureza educacional não devem, no contexto de nosso estudo, ser considerados como territórios isolados, mas como platôs para onde possamos nos nomadizar a fim de efetuar a construção de novos conceitos, perspectivas e conclusões. Assim, se em alguns momentos faz-se necessário o mergulho no território da Filosofia ou no território da Educação, o pensador nômade apenas se situa provisoriamente em tais instâncias, pois o seu lar é o espaço-processo itinerante e conectável da Geofilosofia da educação.

Conclusão

Em decorrência da amplitude de autores e da diversidade de suas contribuições temáticas oferecidas ao longo de séculos, constatamos a necessidade de um critério para selecionar autores e temas nessa trajetória. O critério encontrado foi a problematização que, por também constituir um viés, pode se conectar rizomaticamente tanto à perspectiva histórica quanto à temática, ou a ambas. E a problematização que impulsionou o movimento inicial dessa trajetória foi: como é que se entra no estudo da Filosofia da Educação?

A resposta, na perspectiva rizomática, é que podemos iniciar nosso percurso investigativo no âmbito filosófico educacional a partir de qualquer caminho: “entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio, mesmo se é quase um beco, uma ruela ou em curva e contracurva etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 19)

Abordar a filosofia da educação a partir desse enfoque nos permitiu acessar os principais matrizes e conceitos filosófico-educacionais, antigos e modernos, atravessando-os com temas pertinentes para equacionar a atualidade e relevância de suas ideias. Em seguida, tratamos da crítica filosófico-educacional contemporânea ao legado moderno. Nesse último tópico, encerramos provisoriamente com a proposição de uma versão de filosofia da educação deleuziana, a Geofilosofia da Educação.

A característica rizomática mais expressiva da Geofilosofia da Educação consiste na função de conectar os territórios filosóficos e educacionais. Tarefa complexa porque religar provisoriamente ambos os platôs implica um mergulho por eras no qual se busca não a reprodução linear da história da filosofia ou da educação, mas plataformas para a criação de novos conceitos. Assim, longe de constituir um abandono dos textos clássicos, ela se caracteriza como um forte apelo para retornarmos aos mesmos

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Para referenciar este texto

MOTA, F. A. B.; SILVA, H. A. Aspectos da formação humana: paidéia, bildung e geofilosofia da educação. EccoS, São Paulo, n. 43, p. 53-68. maio/ago. 2017

Recebido: 02 de Maio de 2017; Aceito: 14 de Junho de 2017

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