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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.43 São Paulo maio/ago 2017  Epub 11-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n43.7372 

Dossiê temático

Entre tempos e história da arte: por um processo de apropriação

Between time and history of art: for an appropriation process

Marilda Oliveira de Oliveira1 

Carin Cristina Dahmer2 

1Doutora em História da Arte. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS - Brasil. oliveira.marilda27@gmail.com

2Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS - Brasil. carindahmer@gmail.com


Resumo:

Neste artigo, busca-se abordar o tempo, a história da arte e as imagens do passado que a compõem. Apresenta-se como alternativa conceitual o processo de apropriação, que pela diferença nos proporciona meios para problematizar as imagens. Nesse sentido, dialoga-se com Deleuze e Guattari (2011; 2005), Cherem (2009) e Archer (2012), buscando caminhos ou percursos para a movimentação com os detritos das leituras realizadas e as experiências docentes. Ao abordar a história da arte que não pela sua linearidade ou cronologia buscam-se algumas brechas por entre o passado e o presente, em entre-tempos que se atravessam. Para tanto, traz-se a cartografia como possibilidade metodológica para articular a sobreposição desses tempos: as trajetórias e experiências educativas com as imagens do passado. Destaca-se como resultado desta pesquisa as imagens que nos cercam como detritos que orbitam o espaço-tempo e que irrompem em fraturas e brechas, potencializando outros sentidos ao presente.

Palavras-chave: Apropriação; Docência; História da Arte

Abstract:

In this article is searched to approach time, the history of art and the images of the past that compose it. The process of appropriation is presented as a conceptual alternative, which by the dissemblance provide means to problematize the images. Accordingly, it generates a dialogue with Deleuze and Guattari (2011; 2005), Cherem (2009) e Archer (2012), searching pathways or tracks for the dynamic between the debris of the readings and the teaching experiences. Approaching the history of art not by its chronology or linearity, some breaches are sought out between past and present, in between-times that cross themselves. To achieve that, a cartography is used as a methodological possibility to articulate the interposing times in trajectories and teaching experiences with the images of the past. Stands out, as a result of this research the images that surround us as debris orbiting the space-time, and that erupt in fractures and breaches potencializing other senses for the present time.

Key words: Appropriation; Teaching; History of Art

Entre tempos… entre a história da arte

Ao pensar sobre as relações entre a história e a arte, busco me aproximar de alguns atravessamentos entre o passado e o presente, no sentido de pensar os tempos que nos afetam nesta passagem. O tema da história da arte normalmente se apresenta no contexto da educação básica e com mais ênfase no ensino médio ou mesmo do ensino superior, como conteúdo planejado de forma linear, a fim de memorizar movimentos ou artistas importantes. Esta narrativa muitas vezes se detêm nas imagens do passado, em uma história da arte consolidada, o que reduz as possibilidades de problematizarmos estas imagens com a experiência de um presente que nos cerca.

Percebo a história a partir de suas potencialidades para pensar o presente, deslocando-o de uma mera narração factual do passado e enlaçando os tempos como entre-tempos, a partir de Deleuze e Guattari (2005), em um passado-futuro-presente, como processo de coexistência de tempos. Esses entre-tempos se referem não ao tempo linear e cronológico, mas aos tempos e fragmentos que nos orbitam, como as imagens do passado que tendem, por determinados movimentos, encontrar brechas e irromper no presente. Este movimento nos traz composições singulares, pois toda repetição é diferente por seus outros sentidos sempre variantes, que se produzem nas relações entre sujeitos e nas contingências do encontro.

A partir do desejo de entender como se pode trabalhar nas aulas de artes visuais com a temática da história da arte, sem cair apenas nas rememorações, na narração factual, na apreciação da obra de arte, na análise formal e estilística e na compreensão de contextos biográficos, é que inicio esta pesquisa com esta pergunta, em busca de uma outra possibilidade, uma outra história da arte. Elucido assim minha problemática: Como pensar as imagens da história da arte como apropriação, na contemporaneidade, dos contextos educativos?

O foco do presente artigo está em lançar outro olhar sobre as imagens do passado. Problematizo esse outro olhar a partir das apropriações que fazemos dessas imagens do passado, produzindo com elas outros sentidos. Ao propor abordagens que potencializam essas imagens do passado, a partir das apropriações, dentro do contexto educativo, outras problematizações são produzidas. Para tanto, opero a pesquisa a partir da abordagem da cartografia de Deleuze e Guattari (2011) que, apropriada por outros autores, tornou-se produtiva para o campo da educação. Nesse sentido, não há procedimentos ou métodos que orientam a pesquisa em direção a um certo resultado. A pesquisa se delineou como uma experimentação, que foi sendo construída nesse processo entre pesquisadora, corpos, vidas, encontros, desvios e paradas. Articulando a cartografia aos territórios educacionais, relacionando as intensidades e desejos que movimentam os entre-tempos e a história da arte, entre suas totalizações e fugas, conforme nos propõe Oliveira (2014).

Na pesquisa cartográfica, não há percursos determinados, nem objetos e dados já sabidos para a pesquisa. O cartógrafo irá bordando este percurso, a partir dos encontros e desvios que acontecem nos territórios que são percorridos, em meio à vida, seja dos espaços educativos ou não, mas que se relacionem e movimentem a pesquisa. Perceber esses territórios e suas pistas faz do cartógrafo também um performático, que necessita estar entre os fluxos e as intensidades, ser um estrangeiro em sua própria terra, em um devir-minoritário, por uma emergência de si e do mundo a partir da experiência. (PASSOS; EIRADO, 2009)

Desse modo, a pesquisa ocorre com o estar docente e discente, com os caminhos que percorro, sejam as leituras que pulsam, sejam as palavras ditas ou não ditas em sala de aula. Todos esses percursos são intensidades que formam mapas-platôs de uma caminhada docente.

Por uma outra história da arte

Para pensarmos sobre essa outra história da arte e suas possibilidades como potência para as aulas de artes visuais, procuro problematizar alguns conceitos que movimentaram minhas leituras na direção de pensar e escrever sobre apropriação e história da arte. Opero com o conceito de entre-tempos (DELEUZE; GUATTARI, 2005), rizoma e multiplicidade (DELEUZE, GUATTARI, 2011), cintilância (CHEREM, 2009) e apropriação (ARCHER, 2012).

Há múltiplas possibilidades de abordar as imagens da história da arte, saindo das catalogações e dualismos de uma história focada no legitimado ou somente no ignorado. Podemos abordar essas imagens como cintilância, como citado por Cherem (2009, p. 131), ressaltando que se inserem em contextos anacrônicos, variados, em fuga do “varal cronológico”. Ou seja, essas imagens do passado são também potentes ao se relacionarem com o presente, colocadas em movimentos diferentes, mas que são partes da história da arte e que em outro contexto adquirem outros sentidos. Inúmeras imagens orbitam os territórios onde nos situamos e esses territórios são espaços latentes de colapsos ou rupturas nos quais imagens irrompem o tempo e que nos dão um testemunho de seu passado, sem que nos tragam conteúdos prontos, pois sempre serão filtradas por nossas experiências e sentidos. Assim, ao recombinar essas imagens estamos dando-lhes não linearidade, mas uma maior duração nas práticas sociais, ao realizarmos apropriações sobre esse passado. É o constante movimento de atribuir-lhes outros sentidos que faz dessas imagens da história da arte, especificamente, uma outra história da arte do presente, próxima de quem lhes lança seus olhares.

Abordo as imagens como potência a partir de suas marcas e vestígios. Podemos vê-las como parte de um tempo descontinuo, no que tange a sua permanência ou esquecimento, situação na qual a fragmentação é a constituição de um espaço-tempo incerto. Conforme expõe Fonseca (2006), as recorrências dessas imagens são também irradiações da própria história, sem presente, passado ou futuro, definidas pela cronologia linear dos processos históricos que nos são contados: “[…] cria-se, então, a onda, o vírus ou mesmo a radiação; radiação que faz do tempo um campo complexo, pois se transmite em todas as direções e desmantela os abismos entre passado e futuro com a fluência de um interesse e de uma indagação.” (FONSECA et. al. , 2006, p. 657)

Para a pesquisa, o viés da problematização acerca do tempo e da história da arte se desenrola para questionarmos, lançarmos perguntas sobre o nosso presente. Sendo assim, provavelmente este estudo trará mais perguntas do que respostas, pois não pretende ser prescritivo, e sim lançar um outro olhar a um tema recorrente e por vezes esquecido ou adormecido. Pesquisar e também escrever constituem pontes para pensar o presente, ou como uma terceira margem. Isso significa estar sempre a caminho, sem aportar, à espreita (DELEUZE, 1988-1989), sempre se fragmentando em multiplicidades. Pois, como nos lembra Fonseca et. al. (2006, p. 657), o pesquisar se faz em meio à vida, nos encontros “com as vertigens do devir sempre ventando, para que possamos manter o chamado ao presente e a porosidade necessária para entender o ato de pesquisar como um trampolim para a vida.”

Conforme nos aponta Cherem (2009, p. 135), a imagem também pode ser pensada como distância, pois as imagens do passado podem emitir “ondas ou vibrações do passado” que afetam o nosso presente - a imagem da fotografia pode ser vista como documento ou fóssil sobrevivente de um presente-passado. Esses termos, retirados da historiografia tradicional baseada em documentos e fósseis que carregam seu testemunho, sua história e que são lidos e interpretados pelos pesquisadores são vistos como imagem, não como mera ilustração, mas como monumentos, para serem lidos em exterioridade e volume, não pela interioridade e linearidade documental (REVEL, 2005). A arte pode ser pensada, talvez, dessa maneira, como um movimento, sem âncoras ou processos metódicos ou descritivos, é aquilo a que não pertence o fato, é seu contrário, ou pode vir a ser sempre outra coisa, como uma abertura. Seu potencial se encontra nos lapsos, nos esquecimentos, nas fissuras, nas brechas possíveis, e ao pensarmos sobre essa outra história da arte podemos olhar para seus retornos, seus “vestígios e sintomas partilhados” (CHEREM, 2009, p. 136), persistências e cintilâncias, seus outros sentidos.

Podemos pensar essas imagens como lâminas sobrepostas de temporalidades diferentes, que compõem outra imagem, mas que unem o passado e o presente em uma sobreposição, aproximando esses tempos distantes em um espaço-tempo deslocado da cronologia. São esses aspectos que problematizam as imagens em seu presente, sem se fixar unicamente no passado, procurando perceber os “sintomas” que as imagens portam e sua potência para pensarmos sobre a contemporaneidade em que vivemos.

Ao atuarmos no contexto escolar como professores da disciplina de artes visuais temos a possibilidade de propor a criação de pontes, partindo de problematizações das imagens do passado, sem nos fixarmos nelas, mas gerando relações com as visualidades que cercam os estudantes cotidianamente, problematizando o presente no qual essa relação temporal se dissipa em prol da produção de outros sentidos, conectando contextos e épocas a fim de que se construam experiências mais articuladas acerca do presente. Acredito que, de modo geral, quando sinalizamos a intenção de abordar a história da arte ainda nos remetemos a conceitos fechados, a trabalhos delimitados pelo conhecimento de datas, fatos e descrições, no que diz respeito aos temas a serem estudados em sala de aula. É essa a dinâmica que os próprios estudantes esperam seguir muitas vezes, talvez por hábito, talvez por tradição escolar. Foi normalmente dessa maneira que eles estudaram, caso tenham estudado, o conteúdo da história da arte.

Acreditamos que a pesquisa em arte na sala de aula pode ser um momento de criação que se distancia da prescrição, do decalque e que se faz em páginas pontilhadas. Pensar um processo de aprendizagem que não se acentue no ensinar, mas que possibilite um processo rizomático de aprendizagem, sem o controle do aprender do outro, quando nos aproximamos de um processo de pensar e aprender. Segundo Deleuze (2006a), o pensar requer um pensamento sem imagem, sem representações, que muitas vezes atravessam uma imagem do pensamento. Assim, o pensar propicia a formação da diferença e da multiplicidade, haja vista que não corresponde a nenhum decalque ou representação, e sim à invenção.

Dessa forma, o aprender não se apresenta como regra, mas como diferença, pois cada um aprende como e quando lhe for necessário e possível. Quando me foi questionado se os estudantes sabiam os nomes dos artistas que estávamos trabalhando, eles lembraram somente de alguns, por razões inúmeras, mas afinal esse conhecimento não era tão importante. A informação lhes foi ofertada, mas o presente se mostra mais interessante quando posto em relação com o que vivemos, e algumas dessas informações são transformadas em conhecimento, outras não, por pura questão de interesse.

Aprender e pensar são processos que envolvem momentos e sujeitos diversos: o momento de levantar a cabeça no ato de ler, conforme nos diz Barthes (2004), produzindo um outro texto, ou de se movimentar em uma aula, é sempre um movimento singular. Como nos diria Deleuze (1988-1989), uma aula é sempre uma matéria em movimento, e cada estudante pega o que lhe convém no momento que lhe convém.

Conforme Fonseca (et. al. 2006, p. 658), abordar a pesquisa é também um processo de desapego, “pesquisá-las [as imagens] implica em desprendê-las das formas e dos objetos de que se encontram impregnadas; implica, ainda, em conferir-lhes existência a partir daquilo que está feito e que dobra em si o que foi o seu próprio fazer-se.” Assim, para pensarmos com as imagens do passado as possibilidades de recombinações e como potências do presente, nos permite questionar sua constituição como marca ou vestígios, seus sintomas como desdobramentos desses tempos - é o processo de problematizá-las que mais nos instiga.

Rizomar a história da arte, cintilâncias e territórios

O movimento que a imagem e os sujeitos realizam, em sua ausência, esquecimento, criação e destruição, é cíclico e contínuo; eles permanecem em órbita à espera da próxima colisão que os lançará para uma outra esfera, com outros choques e rupturas, e que carregam também outros significados, que persistem e insistem nessa tarefa. Portanto, não podem ser reduzidos ao produto apenas de seu tempo: as imagens são resultados e funções de muitas recorrências em que nada nos remete à originalidade, mas sim a um retorno que nunca será o mesmo. Cabe a cada um se permitir ter outros encontros com essas imagens e pensar outros sentidos além dos já sabidos.

Segundo Deleuze (2006a), a repetição se apresenta como diferença na medida em que os atravessamentos afirmam sua singularidade a cada encontro, e dessa forma as imagens do passado nos permeiam pela diferença que produzimos. A repetição tem relação com os novos movimentos que cada sujeito tem com as imagens do passado, nos quais, dentro de variadas possibilidades, se encontram pontos de singularidade. Para pensarmos sobre as singularidades dos sujeitos devemos primeiramente permiti-las como possíveis, segundo Deleuze; nas palavras de Gallo (2003), ao pensar a educação, podemos ter como opção de experiência a educação menor, quando nos permitimos agir por micro resistências dentro da sala de aula, propondo que a dúvida permaneça como nossa única certeza. E quando algo nos foge do controle, é então que essa educação menor encontra suas brechas e vaza para além da história da arte, para além do que planejamos ou imaginamos como respostas. Ter como meta o questionamento do cotidiano por meio das imagens que nos cercam é um desafio que possibilita pensar de outra maneira. Assim, a multiplicidade se torna possível como conceito para pensarmos essa outra história da arte e essa outra educação que propomos, quando nos permitimos estar entre coisas, entre pessoas, entre imagens, entre encontros contínuos com o estar docente e com os estudantes, um exercício de multiplicidade, de rizomar, ampliar e cortar, mudar um conceito em movimento, em abertura, retomando algumas linhas de fuga em direções plurais, ou desviando entre linhas de vida, onde não há fronteiras.

O conceito de rizoma foi pensando por Deleuze e Guattari (2011) como contraponto à ideia da árvore, aquela que representa a raiz, da qual o tronco sustenta e origina toda a estrutura da copa, esse todo uno, que se apresenta por uma concepção evolutiva de sua constituição. Para o campo educacional, isso nos leva a pensar em uma aprendizagem não arbórea e em uma história da arte não arbórea. O rizoma se espalha pela superfície, pois todas as ervas estão nesse mesmo plano, sem hierarquias, nesse emaranhado de linhas compostas por multiplicidades, que permite um processo rizomático de aprendizagem, uma construção que envolve cada linha e cada traço. A multiplicidade aliada aos escritos de Deleuze e Guattari (2011) se apresenta como um conceito importante ao lado do rizoma. Segundo Deleuze e Parnet (1998), a multiplicidade e o rizoma estão imbricados nesse processo de saltar a linha, que resiste ao uno, às respostas certas e totalizadoras, inventando inúmeras possibilidades.

Ao pensar as multiplicidades destes pontos de singularidades, analisamos tanto os enunciados como as imagens, como dispositivos, segundo Foucault, ou como agenciamento, segundo Deleuze e Guattari, quando algo opera, gera movimento, faz vazar, cria brechas e então produz algo, conforme nos diz Gallo (2003). Nesse sentido, para problematizarmos o presente, o tempo histórico em que vivemos seria conveniente.

‘Problematizar as séries…’ discursivas ou não, as formações, as famílias, as multiplicidades são históricas. Não são meros compostos de coexistência - elas são inseparáveis de ‘vetores temporais de derivação’; e, quando uma nova formação aparece, com novas regras e novas séries, nunca é de um só golpe, numa frase ou numa criação, mas em ‘tijolos’, com a sobrevivência, o deslocamento, a reativação de antigos elementos que subsistem sob as novas regras. (DELEUZE, 2006b, p. 32)

As descontinuidades ou persistências das imagens, ou dos enunciados, podem ser vistos como o lapso ou a aparição, mas são rupturas e choques que acontecem em medidas de construções, como os tijolos, onde o muro nos remete a outras reconfigurações deste presente, das singularidades variáveis que existem dentro das possibilidades do vivido. Ao traçarmos um caminho em direção ao desconhecido, em que a imagem é em si uma travessia a qual nos propomos a fazer, quando deparamos com suas possibilidades, é na singularidade de escolhas dos caminhos que tomamos frente a elas que o conceito de multiplicidade de Deleuze acrescenta a esse trabalho uma outra dimensão.

Assim como em suas contribuições para pensarmos a imagem como uma repetição sem original, busco aproximar as contribuições de Deleuze (2006a) em seus escritos sobre a diferença como repetição, em que a diferença pode ser vista como a possibilidade do diferente, e a repetição é a cintilância dessas possibilidades do desvio. Segundo Deleuze, é a partir dos desvios que tomamos que estabelecemos nossas diferenças frente àquilo que se repete, que Deleuze denominou de roubo, e pode ser também apropriação.

Em outras palavras, só se produz na solidão da interioridade, mas ninguém produz do nada, no vazio. A produção depende de encontros, encontros são roubos e roubos são sempre criativos; roubar um conceito é produzir um conceito novo. Nesse sentido, a filosofia de Deleuze pode ser vista como um desvio. (GALLO, 2003, p. 34)

Assim, para pensarmos em outros discursos para a história da arte, e para as imagens do passado, seria necessário permitir que as brechas da singularidade interviessem sobre essas imagens, gerando, desse modo, sobreposições e recombinações desse passado no presente, proporcionando a diferença, a possibilidade de agir com os sujeitos cotidianamente.

Pensando na experiência educativa vivida para colocar esse movimento em funcionamento foi preciso nos desviar do que o artista ou a obra nos “quis” dizer, nos direcionando para aquilo que vemos de nós, de nosso tempo em imagens de um passado distante. Perceber essas cintilâncias e realizar esse atravessamento tomando um desvio, uma dobra, requer tempo, insistência. Ao propor aos estudantes que realizassem o exercício de pensar como nos relacionamos com as situações apresentadas nas imagens contemporaneamente, com essa percepção buscando construir elos e tramas entre o passado e o presente, fez-se possível problematizar as recorrências e propor outros sentidos e experiências sobre o nosso tempo.

Nesse sentido, a apropriação pode ser entendida como expôs Deleuze (2006a), uma repetição sem origens, na qual a questão da autoria é secundária, já que nos tempos do acontecimento o presente já foi e o passado ainda é, e a originalidade pode ser revista como conceito para pensarmos a arte e a educação, já que somos feitos pelos encontros que temos durante a vida e nos constituímos pelo mosaico dessas interações. Mas essa repetição não se concretiza pelo mesmo movimento anterior, e sim pela diferença produzida por essa intervenção, ação por um processo de apropriação e invenção com que o temos/vivemos em outros sentidos. As possibilidades de agir sobre os conceitos e representações então postos se constituem como abertura de fronteiras, ou seja, em um processo constante de nos desterritorializarmos e reterritorializarmos, assim como nos coloca Deleuze e Guattari (2011). Tais movimentos da ordem do rizoma, que nos trazem esses elementos da vida sem uma ordem estabelecida, sem verdades absolutas, ou rotas a seguir, permitem que a singularidade encontre fendas por onde se descolar e construir sua subjetividade, por um processo de apropriação constante daquilo que nos cerca.

Por um processo de apropriação da história da arte

Ao abordar a apropriação nos aproximamos de algumas possíveis brechas para a história da arte, linhas de fuga da linearidade e da narração factual, procurando inventar outras experiências em artes, com as imagens do passado problematizando o presente.

A a(própria)ação, para Knaak (2005), está vinculada às manifestações estéticas populares, pois se constitui na interação entre os âmbitos das formações históricas e sociais de cada época, isto é, está inserida no interior das relações de saberes e poderes de cada período. Tal cenário também se manifesta nos territórios da arte que compõem os conceitos e representações para esta. A pós-modernidade permite que a produção plástica esteja articulada com o cenário de que faz parte, ou seja, da cultura de massa, o consumo, a publicidade, todos os meios imagéticos que nos cercam. Nessa direção, pensar a apropriação pelo viés da arte nos leva a abordar as formas com que podemos nos apropriar daquilo que nos cerca e produzir outros sentidos para os mesmos.

É nessa perspectiva que a arte pós-moderna se vale da apropriação para questionar as próprias referências do mundo da arte, em busca de denunciar e transgredir. Podemos, então, partir das visualidades que nos cercam para problematizar e atualizar as nossas questões temporais, da contemporaneidade, seja na produção plástica dos artistas seja nas produções plásticas realizadas por nossos estudantes em sala de aula, e assim produzir brechas nesses entre-tempos, propondo algumas resistências pela história da arte.

Para Archer (2012), a pós-modernidade possibilitou que a arte não mais se guiasse por um viés evolutivo ou progressista, ou por tempos lineares, tornando-se mais livre com relação aos materiais, à autoria, à cópia e à originalidade de sua produção. A partir dos anos oitenta as possibilidades se multiplicaram perante a cultura contemporânea de mídias e imagens, que intervém e se sobrepõe sobre os tempos.

A novidade não mais podia ser critério de julgamento pois a novidade ou a originalidade, como eram percebidas, não podiam ser alcançadas, podendo até mesmo se mostrar fraudulentas. Tudo já havia sido feito; o que nos restava era juntar fragmentos, combiná-los e recombiná-los de maneiras significativas. Portanto, a cultura pós-moderna era de citações, vendo o mundo como um simulacro. A citação podia aparecer sob inúmeras formas - cópia, pastiche, referência irônica, imitação, duplicação, e assim por diante -, mas por mais que seu efeito fosse surpreendente, ela não poderia reivindicar a originalidade. (ARCHER, 2012, p. 156)

Como citado anteriormente, a origem é em si a repetição, mas que corresponde então à diferença quando recombinamos, construímos sentidos para as imagens do passado-presente, esse espaço-tempo que não cessa de se movimentar, “recriação continua do passado” (ARCHER, 2012, p. 199). A apropriação é citada por Archer como cópia, sem origens no mundo pós-moderno, aquilo que os artistas faziam com as imagens que já existiam, “apropriacionistas” que eram das imagens que se alimentavam e se fundiam. As redes que se formam entre tempos são singulares e dizem respeito aos processos de subjetivação, pois “embora possamos consumir as mesmas coisas, a maneira pela qual cada um de nós o faz é bastante distinta.” (ARCHER, 2012 p. 189) Os encontros que temos com aquilo que nos relacionamos são distintos, logo, as singularidades produzidas pela diferença serão da ordem da multiplicidade.

Segundo Costa (2005), esse cenário da pós-modernidade permite pensar sobre as condições em que nos encontramos contemporaneamente. Pois se no moderno estivemos imbricados pela busca de uma verdade absoluta, de uma racionalidade e de uma identidade, agora no pós-moderno podemos nos permitir descolar o pensamento para fora do decalque, em direção a caminhos que não são traçados com antecedência, mas que por picadas são abertos cotidianamente, pela experiência, pela invenção. Essa ruptura estilhaça as concepções já traçadas para o mundo e o põe em distorção, em movimento imprevisível.

A distorção dos padrões e a dissolução das fronteiras são elementos que nos levam a pensar nas possibilidades da apropriação como experiência que problematiza esses tempos, as imagens tanto do passado quanto do presente, e que nos permite delinear outros sentidos. A apropriação também pode ser vista como o roubo a que se refere Deleuze, nas palavras de Gallo (2003), ao abordar a escrita, processo que se caracteriza também pela produção da diferença, um roubo criativo, pois nada produzimos no vazio. Assim, o processo de apropriação acontece no dito presente, que só existe em sua relação interligada com o passado, por conseguinte com o futuro: um presente sempre movente, que é passado e futuro ao mesmo tempo. Esses rastros de tempos produzem efeitos de diferença, pois não produzimos no vazio - é a partir dos rastros desses tempos que produzimos subjetividades, nos produzimos. Trata-se de um movimento que se efetua como tensão: quando há forças em ação, geramos resistências e modos de vida que produzem diferença, num processo de apropriação.

Pensando a experiência educativa em artes visuais, a apropriação nos permite trabalhar com a produção da diferença, partindo das imagens que se repetem, da história da arte, procurando outros sentidos para o que vemos e vivemos. Tratando as imagens a partir de sua temática e a relacionando com a contemporaneidade, percebo que alguns estudantes conseguiram se deslocar por outros caminhos, percebendo, naquelas imagens do passado, ressonâncias e possíveis recombinações para o seu cotidiano, gerando assim problematizações acerca dos temas trabalhados como alimentação, sustentabilidade, modos de ver a criança etc. Ao trabalhar com uma turma do ensino médio somente solicitei que percebessem as imagens como seus escombros, que daqueles fragmentos seriam gerados outros sentidos, dados por eles a outras imagens produzidas. De modo geral se tornou um projeto difícil, porém, foi possível algumas experiências como um vídeo clipe produzido por alguns estudantes, dentre eles estudantes de outras turmas. Elas nos fizeram pensar sobre os modos de ser e conviver contemporaneamente. A obra “A ceia”, de Leonardo da Vinci, foi sobreposta por apropriação pelos estudantes, em meio ao harlem shake1 e coca-colas. Essa experiência educativa se torna uma possibilidade de trabalhar em sala de aula com tais temáticas que permaneceram durante muito tempo enraizadas a normas e prescrições. Buscava-se, dessa forma, outros caminhos para a história, a arte, o tempo e a apropriação, sem um destino traçado, apenas como uma experiência que se fez, junto com os estudantes, em que os percursos foram se realizando e se modificando cotidianamente.

Ao propor uma abordagem que problematize as reverberações das imagens de tempos-espaços diversos, que se desdobram novamente neste presente, com o conceito de apropriação, nos aproximamos do processo de desorganizar as imagens e objetos cotidianos, os movimentando a partir de múltiplas invenções, experimentações, a fim de produzir sentidos singulares.

A imagem é fonte de problematizações, seja ela a obra de arte que hoje se encontra no museu ou a que permanece anônima na rua. São os atravessamentos dessas visualidades que podem oferecer caminhos para pensar uma educação das artes visuais partindo de questionamentos e problematizações acerca deste mundo potente e que se estabelece nas múltiplas possibilidades da contemporaneidade.

Caminhos abertos - entre respostas e perguntas

Penso que temos, diante do pesquisar, da docência, da vida, que fazer escolhas. Neste artigo procurei percorrer alguns desvios para problematizar a história da arte pelo viés do presente. Se para concluir devemos finalizar, então esta é uma inconclusão, pois sei apenas dos encontros que tive e espero que o leitor também tenha algum, já que desses encontros se produziram outros rizomas, outras múltiplas possibilidades de abordar o tema da história da arte por brechas, desdobramentos, para pensarmos juntos uma história da arte que não nos leve à prescrição, aos fatos decorados, mas que nos leve a problematizar o que na nossa superfície se internaliza.

Quando escrevemos estamos ao mesmo tempo nos reconstruindo, produzindo pequenas, mas significativas rupturas, procurando palavras e caminhos que transbordem sempre em outros sentidos. E, se assim fazemos, é porque estamos escolhendo agir por esse meio, potencializando a medida da resistência e do diferente que a palavra carrega e nós cintilamos em nossas vidas.

Portanto, esta é uma pesquisa resistente em suas palavras, porém, somente até o ponto final dessa linha, porque este é um caminho aberto. Assim, procurei alguns autores e conceitos que movimentaram esse diálogo ao abordar a história da arte pela apropriação do presente, procurando possibilidades diante das imagens do passado. Esses sentidos estão, sim, vinculados às formações sociais históricas dos sujeitos, mas é no processo de apropriação que encontramos brechas para fazer vazar o diferente, abrindo caminho pelas multiplicidades de caminhos, afirmando a possibilidade de agirmos e problematizarmos as imagens do passado, pela sua apropriação, quando produzimos outros sentidos ao lançarmos nossos olhares.

Mas é apenas mais um caminho possível, entre inúmeros outros

Referências

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Nota

1Harlem Shake foi uma música de 2013-2014 em que todos os sujeitos do vídeo aparecem em movimentos dramáticos, que se tornou um vídeo viral na rede mundial de computadores

Para referenciar este texto

OLIVEIRA, M. O.; DAHMER, C, C. Entre tempos e história da arte: por um processo de apropriação. EccoS, São Paulo, n. 43, p. 69-83. maio/ago. 2017

Recebido: 08 de Maio de 2017; Aceito: 14 de Junho de 2017

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