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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.43 São Paulo maio/ago 2017  Epub 11-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n43.7418 

Dossiê temático

Sentido ético da formação: implicações escolares

the ethical Sense of education: school implications

Leoni Maria Padilha Henning1 

1Professora doutora em Educação atuante no Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Londrina-UEL, Londrina, Paraná- Brasil. leoni.henning@yahoo.com


Resumo:

A presente proposta, já pelo seu título, mostra-se ampla e, porque não, ambiciosa. Porém, o que pode parecer defeito, carrega e explicita a necessária cautela para que não se estreite o tratamento que um tema dessa natureza exige. O sentido ético da formação enreda aspectos antropológicos, políticos, estéticos, dentre outros, refletindo no processo educativo como um todo. O texto desenvolve alguns temas envolvidos no assunto central das relações entre Ética e Educação, tentando elucidar a impossibilidade de se pretender realizar uma “limpeza” do campo experiencial humano retirando dele as questões axiológicas. Daí apresentar algumas conexões, especialmente entre Ética, Estética e Política, relacionando-as com a Educação. Nesse âmbito de discussão, situamos a escola como um dos lugares especiais da formação das gentes, o que requer uma exigente atuação de professores formados num padrão de excelência filosófico-pedagógica, cujos assuntos apresentamos na sequência dessa argumentação.

Palavras-chave: Educação; Ética; Formação Humana; Valores

Abstract:

This proposal, since by its title, shows that it is broad and, why not, ambitious. However, what may seem defective, carries and makes explicit the necessary caution so that the treatment that a subject of this nature demands, in my opinion, should not be narrowed. The ethical sense of formation entangles anthropological, political, aesthetic aspects, among others, reflecting on the educational process as a whole. The text develops some of the themes involved in the central subject on the relations between Ethics and Education, trying to elucidate the impossibility of pretending to cleanse the human experiential field, removing the axiological questions. Hence, it presents some connections between Ethics, Aesthetics and Politics, among others, relating them to Education. In this scope of discussion, we place the school as one of the special places for the formation of people, hence requiring a demanding performance of teachers trained in a standard of philosophical-pedagogical excellence, about whose subjects we intend to present following the set of argumentation.

Key words: Education; Ethic; Human formation; Values

Introdução

Deparamo-nos, ainda hoje, com propostas pedagógicas que defendem a necessária objetividade do conhecimento, seja aquele produzido nas pesquisas seja o transmitido pelos professores nas escolas. À parte de um largo espectro de problemáticas que envolvem tais formulações e os equívocos que podem engendrá-las, tentarei mostrar a impossibilidade de se retirar os elementos axiológicos que enredam a experiência humana, tanto no que diz respeito ao homem comum quanto no que se refere aos profissionais, de qualquer área de atuação, focando essa reflexão na esfera da educação. Se assim o é, o que devemos eleger no rol das nossas preocupações docentes seria, a nosso ver, o investimento na “formação ética dos profissionais” como agentes provocativos de reflexão sobre os valores que cultuam, que investigam, que constroem com os demais interlocutores, buscando alcançar o verdadeiro sentido no âmbito das relações humanas, propiciando igualmente tal experiência aos educandos sob os seus cuidados. Defendemos, quanto ao sentido ético, que ele seja permanentemente elaborado e revisado no âmbito formativo e escolar, acompanhando assim as mudanças processadas no mundo contemporâneo, num esforço imorredouro para melhor abordarmos os problemas que invadem o universo humano, nos contextos político, econômico, intelectual, educacional ou social.

Nesse sentido, colocamos o humano no centro das preocupações pedagógicas, já que objetivamos relacionar estreitamente a formação com a escola, considerando tanto o professor que orienta a formação daqueles encontrados ao seu encargo, quanto os estudantes, que buscam conquistar a ascensão humana em suas mais diversas manifestações: no âmbito da empregabilidade ou em suas atuações no contexto da família, do grupo de amigos ou numa esfera social mais dilatada, considerando os seus concidadãos, aspectos esses que constituem a experiência humana ampliada. Aproximar a ideia de formação ao processo de humanização, contrariamente à mera formação técnico-científica e profissional, constitui, nesse particular, na oportunidade para a apreensão do sentido maior da empresa verdadeiramente educativa. Com efeito, quando buscamos o sentido ético da formação incluímos também na pauta desse esforço as considerações políticas, uma vez que ambos os aspectos recaem na preparação da conduta humana para a efetiva participação dos indivíduos no ambiente social e a sua tomada de consciência desse pertencimento.

Em termos gerais, ao nos referimos à conduta moral de alguém, à formação do seu caráter, a um programa político e moral de uma instituição, às finalidades da educação, estamos no campo dos valores, esse que invade as mais diversas esferas da experiência humana. Contudo, para estabelecermos objetivos ou lançarmos metas em relação a um tempo futuro maior, para nós mesmos ou para a sociedade por inteiro, precisamos adotar uma visão antropológica, especialmente aquela em que o homem seja visto como um ser ativo, construtor, criativo e investigativo diante do mundo, e não apenas aquele que obedece os valores instituídos por outrem, sob pena de sermos e tornarmos os outros apenas sujeitos heterônimos, duplicadores de uma dada ordem.

Se, ademais, considerarmos que uma das funções principais da educação, em toda a sociedade, seria a de ajudar as crianças a desenvolver o seu caráter - enquanto um conjunto de hábitos e virtudes facilitador da sua realização plena, sem que haja o prejuízo de outrem (e vice-versa) -, entendemos que, assim, elas poderão se tornar conscientes do seu pertencimento no convívio social mais geral, o que acima já valorizamos. Segundo a perspectiva deweyana, o substrato favorável e estimulador de tal empreendimento seria o ambiente constituído pelas comunidades cooperativas, cuja persecução dos ideais do espirito democrático guiaria as ações e as práticas formativas. Sobre o tema aludido, educação para a cooperação ao invés da competição, Adorno (2000) nos ajuda a elucida-lo ao defender que as manifestações da racionalidade, sejam elas de conteúdo reflexivo ou, creio, seja do conhecimento racional em geral, podem servir igualmente à dominação, concorrendo mais para o efetivo aprisionamento da consciência do indivíduo, caso não se constituam em declarações em si mesmas garantidoras de finalidades humanas transparentes. Para ele, “[…] a competição é um principio no fundo contrário a uma educação humana.” (ADORNO, 2000, p. 161) Sabemos de suas preocupações de “desbarbarizar” a sociedade ao máximo, para que jamais retornem tamanhas atrocidades já ocorridas no passado. Para o autor, uma educação excessivamente competitiva em nada colabora para anular a efetiva possibilidade desse ressurgimento. Mesmo no âmbito do esporte que, para ele, deveria ser mais lúdico e não associado ao “desempenho máximo”, estratégias competitivas não serviriam. Assim, Dewey, ao se referir às qualidades relativas à moral como aquelas vinculadas intimamente às qualidades sociais, nos ajuda dando a devida importância à função social da educação. Por isso é que o autor define a virtude como “[…] ser-se plena e adequadamente aquilo que se é capaz de chegar a ser, por meio da associação com outras pessoas em todas as funções da vida.” (DEWEY, 1952, p. 466)

É compreendendo assim que devemos perceber a escola como um lugar especialmente social (sociedade em miniatura), em cujo ambiente os educandos aprendem, jogam, seguem regras etc., isto é, realizam a experiência comum amplificando as conexões, logo, vivem sempre associados aos outros. Além disso, Dewey defende que deva haver continuidade, conexão entre o aprendizado escolar e o extra-escolar, justamente pelo espirito de associação e experiência compartida - um exercício democrático. Não obstante a percepção deweyana enderece as atividades escolares para a sonhada democracia, a sociedade contemporânea em que vivemos apresenta traços de desumanização preocupantes que desafiam a educação no exato ponto da formação ética. Considerando o contexto alemão ao qual Adorno se refere e a época traumática de insegurança pós-nazista que amargamente o autor frankfurtiano experimentou, para ele não se trata de pretender transformar os homens e mulheres em seres excessivamente complacentes, destituídos de ação e pensamento esclarecidos. Ao contrário, ele adverte: “[…] esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente, apenas uma forma da barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.” (ADORNO, 2000, p. 164)

Acredito que essas observações são bem ilustrativas da dificultosa questão acerca dos conceitos que enredam a formação ética. Ao mesmo tempo em que o autor nos alerta para os perigos da “formatação” do indivíduo - pela imposição de ideologias e pelos direcionamentos que podem asfixiar a individuação -, ele também afirma ser a educação “[…] impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo.” (ADORNO, 2000, p. 143) Mas, adverte: “[…] ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior.” (id. ib.) Com essa afirmação, Adorno aproxima o conceito de emancipação à conscientização e racionalidade pretendidas pela pessoa bem educada, ativa e bem formada. Para ele, se considerarmos somente o último fator isolado, não garantimos ações éticas e humanizadoras.

Escola, para quê?

Do ponto de vista externo à questão, podemos dirigir essa pergunta à população escolar: o que pretendem quando vem à escola? Cumpre investigar, portanto, o que as pessoas buscam na escola. A nosso ver, isso vai além da restrita procura por conhecimento, em vista da preparação para o trabalho e o sucesso pessoal futuro. Devemos considerar também o sentimento de uma necessária ampliação das relações sociais para além do universo familiar, muitas vezes excessivamente austero e limitante em razão da proteção que os mais velhos desejam impor aos mais jovens. Na verdade, percebemos um conjunto de fatores responsáveis pela procura do ambiente escolar, o que, se correspondido, torna certamente essa experiência mais significativa ao educando. O aprimoramento da participação do indivíduo no agrupamento escolar pode servir-lhe de experiência política sem igual, cuja preparação muito servirá para a sua inserção mais adequada na sociedade mais geral em que ocupará espaços os mais diversos, correspondendo a eles ainda insuspeitadas funções sociais na imaturidade.

Então, como deveria ser a escola para a assunção dessas responsabilidades e expectativas? Na visão de Dewey (apudWESTBROOK, 2010, p. 20), “[…] uma instituição que seja, provisoriamente, um lugar de vida para a criança, em que ela seja um membro da sociedade, tenha consciência de seu pertencimento e para a qual contribua.” Adorno (2000, p. 141-142, grifos do autor), por outro lado, se preocupa com o entendimento de educação enquanto “[…] modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior”, e também não se trata (a educação) da “[…] mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira.” Ainda segundo esse autor, trata-se de “[…] uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas.” Tal seria o traço pretendido aos indivíduos pertencentes a uma dada sociedade para a efetiva participação nas diversas esferas da vida pública, constituindo-os, como têm sido identificados, em “cidadãos”.

Nesse sentido, encontramos em Marques (2006, p. 155) uma conceituação esclarecedora do que seja a cidadania, aquela forjada no “[…] entrelaçamento da personalidade de cada cidadão e dos sentidos sociais e culturais compartilhados no espaço social em que ele convive com os demais”, significando, pois, “[…] distinções e intercomplementaridades, processos incessantes de individuação e socialização […]” Assim, cada cidadão é respeitado e visto na sua singularidade, ao mesmo tempo em que a ele se reivindica a capacidade de operar no lugar do outro, todos se entendendo segundo o regramento ético-politico da vida em sociedade instituído para o bem viver em coletividade: não massificado e obediente passivo em relação às regras nem alienado dos sentidos construídos pela coletividade da qual faz parte, mas operando com consciência sobre o “lugar” que nela ocupa. Eis aí o cidadão. Exige-se dele, dentre as várias funções correlatas à sua práxis social, a capacidade de emitir juízos de valor bem elaborados e arrazoados para contribuir com o tecido social maior, desenvolvendo o senso coletivo e crítico ajustado aos seus interesses pessoais.

Considerando, no tópico acima, o ponto de vista interno, devemos dirigir as questões a partir da “formação” docente. Nesse sentido, para que os educandos tenham, de fato, as condições necessárias para esse desenvolvimento, desafiamos os seus professores a “[…] criar um entorno social em que as crianças assumam, por si mesmas, as responsabilidades de uma vida moral democrática.” (WESTBROOK, 2010, p. 20) Tal importância social atribuída aos educadores, cruzada com o comprometimento das crianças pelo destino político da sociedade, constituem “a força da educação”, justamente pelo seu aspecto moral que, no caso, estaria sendo forjado segundo os parâmetros e normatização dos princípios democráticos. Tais ações devem ampliar o espectro dos segmentos envolvidos na escola como pais, funcionários, frequentadores da instituição. Contudo, nem sempre tais objetivos são estabelecidos por seus agentes!

A importante tarefa do professor na formação dos mais jovens exige dele atitude reflexiva e crítica constante dirigida às suas próprias ações, aos conhecimentos que professa, aos fundamentos da teoria que adota, reivindicando-se ainda que cultive o espirito investigativo aberto e uma disposição para a comunicação e o diálogo. Revisar constantemente os conceitos incorporados em sua prática e desejar permanentemente aprender sempre mais passam a constituir outra exigência ao professor. Vale destacar, de qualquer forma, que “Na medida em que a escola desempenha papel decisivo na formação do caráter das crianças de uma sociedade pode, se a prepara para isso, transformar fundamentalmente essa sociedade.” (WESTBROOK, 2010, 21, grifos nossos) Tal aspecto é muito ilustrativo da insofismável crença deweyana no programa reformador e progressivo de uma sociedade por meio da educação, sendo meritório quando se constitui na já anunciada “educação para a democracia”, não obstante ter o autor observado, em seu tempo, a predominância de uma educação reprodutora dos ideais tradicionais representados por uma elite dominante.

Elementos éticos para uma pedagogia humanizadora

Não podemos prescindir de falar em “formação humana” ao nos referirmos à educação. Justamente para evitarmos a associação das ações verdadeiramente educativas com aquelas que são definidas por seus objetivos relacionados a ações mais específicas e particularizadas: ao adestramento, treinamento, trabalho de curto prazo, iniciativas do universo da tecnificação de uma dada formação e assim por diante. Seguindo os ensinamentos de Freire (1997, p. 37), citamos: “[…] transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador.” É evidente que todas as iniciativas acima aludidas, também elas, deveriam nutrir-se de ideais humanizadores. Mas, grosso modo, frequentemente, tal perspectiva não ocupa o rol das suas preocupações, pelo menos de per se.

Uma outra inquietação em relação à justificação aqui apresentada é a necessidade de diferenciarmos o perfil próprio do setor educacional “formativo”, em relação ao qual queremos demostrar a presença indispensável dos valores refletidos por uma ética reforçada pela defesa do necessário trabalho filosófico-reflexivo na divulgação de conhecimentos. O trabalho “formativo” realizado pelas empresas e por outras iniciativas apresenta atividades e objetivos distintos, sustentados na valorização dos produtos resultantes de uma atividade revertida, de alguma forma, em compensação de caráter lucrativo e/ou de investimento na necessária visão de economia no uso do tempo e dos materiais utilizados, na minimização de perdas e maximização de ganhos. No entanto, a lida com pessoas, numa perspectiva de educação para a promoção humana, envolve, em contrapartida, uma coleção de aspectos nem sempre valorizados pelos gestores acima representados, pois as qualidades humanas que envolvem o pensamento, os sentimentos, as crenças, a sensibilidade e a valoração fogem quase sempre dos parâmetros da objetividade e do controle permitidos no manejo das coisas. Respeitar o que pode estar na mente e nos sentimentos dos alunos deve ser, na perspectiva humanista, tão importante quanto aquilo que está visível nos resultados das tarefas exigidas pelo professor.

A escola deve ter compromisso com a geração de indivíduos possuidores da consciência de pertença ao tecido social de uma dada nação, estabelecendo ações, estudos e realizações projetadas no horizonte alargado pelo ainda não atingido, porém viável, exequível e reparável nas iniciativas devidamente estruturadas da sua gente bem formada.

Palavras finais

Os perigos do recrudescimento da “barbárie” para a humanidade, apontados insistentemente por Adorno, ainda amedrontam. Haja vista o grau de violência e das guerras que assolam e destroem sociedades inteiras em várias partes do mundo, ao qual observamos com a aparente insensibilidade civil que penetra diversos grupos de diferentes países e origens. Embora observemos sofisticada teorização técnico-cientifica e pedagógica e decisivas propostas diretas de intervenção, a educação é ainda uma das mais frágeis soluções. Possuindo armas não letais ou subterfúgios de dominação explícita para a escravização e o apagamento da vida, a educação revela-se, contudo, um campo de conflitos, uma vez que possui outros instrumentos de poder. Com base no entendimento de Severino (2011), endossamos seus apontamentos sobre a natureza da prática educativa como aquela que necessariamente atinge o outro, intervém nas suas visões de mundo, em suas ações e identidade, desafiando a fragilidade dos educandos pelos procedimentos professorais dos seus educadores e gestores em geral. Logo, trata-se do “[…] lugar onde se faz ainda mais necessária a postura ética […]” (SEVERINO, 2011, p. 130-131)

O campo educacional é um ambiente de contendas epistemológicas que expõem a força do conhecimento em detrimento das crenças trazidas das experiências ordinárias e da tradição. Se, por um lado, ele nos mostra o pouco que sabemos em relação ao universo, cuja totalidade desconhecemos e ignoramos, embora aceitando sua grandiosidade, por outro lado nos instiga pela curiosidade que nos é peculiar. Esse choque de ideias e convicções, frequentemente traduzido por ofensas e imposições, exige do professor habilidades interpessoais para não transformar essa experiência em obstáculo ao crescimento dos educandos, um sentimento de ojeriza e desrespeito uns pelos outros. Freire expõe os desacertos em que um professor não bem preparado pode incorrer no ambiente de disputas, tentando impor verdades ou divisando e hostilizando os conhecimentos científicos. É preciso, diz ele, “[…] profundidade […] na compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo.” (FREIRE, 1997, p. 37). Para o autor, no trabalho de possibilitar o crescimento humano a decência e a boniteza devem estar sempre de mãos dadas (FREIRE, 1007, p. 36), pois o que é da ordem do Bem o é também da ordem do Belo.

As contradições presentes e até fomentadas no ambiente formativo da escola não param por aí. Acrescente-se ainda a tudo isso o fato de que não somente os professores, mas os educandos, se veem diante de um fogo cruzado produzido, de um lado, pelos argumentos de cientificidade relativos às Ciências Naturais, promotoras de grande parte dos conhecimentos do currículo escolar, e de outro aqueles próprios das Ciências Humanas e Sociais e das Artes, cujas garantias de comprovação são quase nulas. “Estudar o quê? Para quê?”, pergunta-se o jovem. “Quais os recursos que devo usar no trabalho, relativo a esses diferentes universos”?, questiona-se o professor, dentre outras preocupações. É intrigante observarmos que os valores pervadem os dois universos, embora o locus de sua reflexão seja enquadrado no segundo! Frente ao que é relacionado ao ethos (mundo da liberdade, da interpessoalidade, da existência finita e do consentimento racional) e ao que se refere à physis (mundo da necessidade, da complexidade de fenômenos e da infinitude) outras dificuldades surgem na produção do conhecimento, na lida com a cultura e na ingerência humana no universo fenomênico, cujo patamar transitamos enquanto seres de experiência cognitiva, axiológica e política. Mas, “É no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável, e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude.” (FREIRE, 1997, p. 20)

Inflamado pela ideia do “progresso” e do poder do conhecimento, vimos assistindo a um desencadear de argumentações pró-dominação da natureza pela racionalidade “instrumental” que o homem desenvolveu, gradativa e ostensivamente, principalmente com o alto desenvolvimento da tecnologia. A questão que vimos observando, no entanto, nos mostra que “[…] um progresso técnico, de modo algum, produz o progresso prometido ou esperado em termos sociais e humanos, nem o acompanha no campo da sociedade.” (EIDAM, 2003, p. 124) Os problemas humanos parecem ter se multiplicado e se agravado ainda mais, ao invés das esperadas benesses decorrentes do “progresso” e do acúmulo de conhecimentos produzido pela racionalidade. Eidam (id.ib.) continua: “Como se sabe, o fascismo europeu não viu qualquer dificuldade ideológica na adaptação da técnica mais avançada; ao contrário, a regressão social e a técnica otimizada andavam aí de mãos dadas.” Como podemos perceber, o trânsito que o professor realiza nas suas aulas, passando pelas mais variadas ciências, o expõe a questões éticas, políticas e ideológicas cuja formação exige dele uma preparação mais ampliada do que simplesmente o domínio dos conhecimentos e de uma prática pedagógica consolidada.

O ambiente escolar também encoraja o enfrentamento do estabelecido ao propiciar o desvelamento das diferentes abordagens e modos de pensar, levando à busca, quiçá, a conquista do pensamento autônomo. Viver na pluralidade, eis uma grande lição oportunizada pela escola! Lição fortalecida se houver a captação do sentido ético de cada “presença” no conjunto dos indivíduos, num esforço de viver juntos sempre de um modo melhor

Referências

ADORNO, T. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2000. [ Links ]

DEWEY, J. Democracia e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952. [ Links ]

EIDEM, H. Ética e sociedade: perspectivas a partir da teoria crítica. Trad. Hans-Georg Flickinger e Claudio Almir Dalbosco. In: FÁVERO, A. A. et al. (orgs.). Filosofia, educação e sociedade. Passo Fundo, RS: UPF, Editora Universitária, 2003, p. 120-136. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática docente. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997). [ Links ]

MARQUES, M. O. Caminhos da formação de um educador. Coleção Mario Osório Marques. Ijuí, RS; Brasilia, DF: Editora UNIJUÍ; INEP, 2006. [ Links ]

SEVERINO, A. J. Formação e atuação dos professores: dos seus fundamentos éticos. In: SEVERINO, F. E. S. (org.). Ética e formação de professores - política, responsabilidade e autoridade em questão. São Paulo: Cortez Editora, 2011, p. 130-149. [ Links ]

WESTBROOK, R.B. Democracia e educação. In: WESTBROOK, R.B .; TEIXEIRA, A. John Dewey. Trad. e org.: José Eustáquio Romão e Verone Lane Rodrigues. Coleção Educadores. MEC/Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010 [ Links ]

Para referenciar este texto

HENNING, L. M. P. Sentido ético da formação: implicações escolares. EccoS, São Paulo, n. 43, p. 85-95. maio/ago. 2017

Recebido: 16 de Maio de 2017; Aceito: 20 de Junho de 2017

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