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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.43 São Paulo maio/ago 2017  Epub 11-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n43.7480 

Dossiê temático

Autoformação, condição humana e dimensão estética

Self-formation, human condition and aesthetic dimension

Cleide Rita Silvério de Almeida1 

Mariangelica Arone2 

1Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP - Brasil. cleidea@uol.com.br

2Doutora em Educação. Professora da Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP - Brasil. angelicarone@yahoo.com.br


Resumo:

O presente artigo, de natureza bibliográfica, aborda a autoformação e sua relação com a condição humana e a dimensão estética. Procura-se demonstrar a compreensão do processo autoformativo, entendido como um todo constituído de partes heterogêneas entrelaçadas, que abarcam os primeiros processos de socialização, a dinâmica escolar e tudo aquilo que o sujeito aprende por si, com os outros e nos processos sociopolítico-culturais. O corpo teórico apoiou-se no pensamento complexo de Edgar Morin e na teoria tripolar de Gaston Pineau. Entende-se a autoformação como aprendizagem impregnada pela cultura e se considera o desenvolvimento de um saber viver estético como pilar fundamental da própria condição humana.

Palavras-chave: Autoformação; Condição humana; Estética; Pensamento Complexo; Teoria Tripolar

Abstract:

This article, of bibliographical nature, deals with self-formation and its relationship with the human condition and the aesthetic dimension. It seeks to demonstrate the understanding of the process of self-formation, identified as a whole set composed of heterogeneous and intertwined parts, which encompass the first processes of socialization, the school dynamics and everything that the subject learns by himself, with other people and in sociopolitical-cultural processes. The theoretical approach lies on the complex thought of Edgar Morin and on the tripolar theory of Gaston Pineau. Self-formation is understood as learning impregnated by culture and the development of an aesthetic living knowledge is considered as the main foundation of the human condition itself.

Key words: Self-formation; Human Condition; Aesthetics; Complex Thought; Tripolar Theory

1 Introdução ou o correr das águas

Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre as pedras: liberdade caça jeito.

(BARROS, 2007, p. 32)

Apresentamos e propomos uma discussão sobre autoformação cujo ponto de partida é a ideia retratada na epígrafe, ao considerar a importância do movimento e de processos dinâmicos que fluem com liberdade, como a “água que corre entre as pedras”, não se fixando em caminhos lineares como os trilhos de um trem.

A autoformação é um processo educativo que se desenvolve ao longo da vida e que não se restringe apenas aos processos cognitivos de ensino-aprendizagem da relação professor-aluno, estabelecidos pela educação escolar regular. A autoformação considera a formação escolar, mas também a ultrapassa, compondo um tecido cuja trama envolve todos os momentos vividos. Para apresentarmos nossas reflexões, buscamos apoio na abordagem de dois autores: Edgar Morin, com o pensamento complexo, e Gaston Pineau, com a teoria tripolar.

A metáfora do correr das águas pode transformar-se em nossa pergunta inicial: como correm as nossas águas? Morin (2015, p. 15) nos dá uma primeira indicação quando discorre sobre o viver: “Aprende-se a viver por meio das próprias experiências, primeiro com a ajuda dos pais, depois dos educadores, mas também por meio dos livros, da poesia, dos encontros.” O entendimento de Flávio Di Giorgi (1980) possibilita tecer um diálogo com Morin, na medida em que aponta para a importância de nos compreendermos diante do processo de socialização. Para isso, o autor expressa-se por meio da metáfora do primeiro banho de água:

[…] as agências de socialização, a família em especial, ou coisa que se assemelhe à família, funcionou para cada um, como quem deu o primeiro banho, mais importante talvez que o primeiro banho de água, foi o banho que o tornou Homem, isto é, o banho no universo do símbolo. Isto é, o banho da cultura, e de que nós permanecemos perpetuamente úmidos, que toalha nenhuma enxuga, e se enxugados reverteríamos à mera biologia que nos anularia como seres humanos. Isto é, nós somos seres humanos porque fomos banhados pela cultura; bem, mas a cultura, este banho, evidentemente, é um banho que de certa forma nos serviu de trampolim para constituir o homem como criador de sua própria realidade pessoal, como ela é, mas serve também de jaula porque toda cultura é uma repressão que nos limita […] (DI GIORGI, 1980, p. 75)

Os dois autores levam-nos a perceber a necessidade de nos situarmos diante das marcas recebidas no interior das culturas que vivenciamos: a familiar, a escolar, a profissional, entre várias outras. Nossa vida se desenrola a partir de inúmeros pertencimentos a grupos e de nossas relações com esses grupos, do momento histórico em que estamos envolvidos, dos impactos e influências que recebemos e ao mesmo tempo exercemos. O correr das águas do processo de autoformação é como um caleidoscópio que se transforma a cada movimento, multifacetado, impregnado de nuances, diante de fatos visíveis e invisíveis, colocando-nos frente a decisões e armadilhas. A autoformação é uma tarefa à qual estamos expostos continuamente e que impõe responsabilidades. É um devir a partir de constituintes heterogêneos.

2 A autoformação na teoria tripolar

A autoformação é, para Pineau e Marie-Michèle (1983, p. 113, tradução nossa), dar-se uma forma, isto é, “pôr em conjunto elementos diversos que podem ser contraditórios.” É a porta de acesso a um saber, ou seja, um instrumento capaz de promover mudanças nas ações do sujeito em formação, levando a uma possível transformação de si mesmo.

Em sua teoria tripolar, Pineau propõe três movimentos: autoformação (personalização), baseada na apropriação da aprendizagem pelo próprio sujeito, de modo que este seja responsável pelos processos e os fins, para, assim, expressar o saber fazer sozinho; heteroformação (socialização), aspecto das relações sociais e culturais em que um processo contínuo de trocas com os outros propicia a apropriação de saberes; e ecoformação (ecologização), um modo de assimilar e recriar a experiência, por meio da interação com o meio ambiente físico, dando ao sujeito um sentido novo e o integrando em seu contexto. Dessa maneira, o processo de aprendizagem do sujeito é um ato de busca, de troca, de interação com a natureza, segundo o qual essa vivência o vai transformando naturalmente.

A autoformação acontece preservando o processo formativo, responsável pela construção de si. Disso, podemos afirmar que fazem parte da condição da ação humana escolhas, avaliações e decisões na apropriação do conhecimento, e essas são construídas nas inter-relações com o mundo. Assim, o que somos, ou poderemos ser, passa pela autogerência e elaboração do projeto de vida desejado. Pascal Galvani (2002, p. 7), que dialoga com Pineau, apresenta-nos três níveis de autoformação:

  • a dimensão didática dos saberes formais: o sentido como significação1;

  • a dimensão prática dos saberes da ação: o sentido como orientação no agir, sendo aí compreendido o agir intelectual;

  • a dimensão simbólica dos saberes existenciais: o sentido como percepção.

O sentido como significação engloba tudo o que o sujeito aprendeu com os outros no processo de autoformação, no qual revela a estilização das experiências vividas e as escolhas em função do resultado de experiências pessoais, objetivas e subjetivas, em meio a uma teia de relações sociais. O sentido como orientação inclui a direção, cujo objetivo principal é revelar os saberes e experiências produzidos na ação interativa do sujeito com seu meio ambiente físico e social. O sentido como percepção é o que provoca reflexões sobre autorreferência, como modo de exploração e validação da ação do sujeito; é o que busca dirigir o comportamento social que se dá nas trocas com o meio ambiente físico e social, e é produzido na multidimensionalidade humana.

O sentido como significação, primeira característica dos três níveis da autoformação, revela-nos a impressão do sujeito sobre sua relação com os outros e o conhecimento adquirido nesta troca. Este saber não é apenas marcado pela cultura, mas pelo mundo exterior, que passa a ser absorvido e transformado. Esse contexto formativo conversa, dialoga. O diálogo nasce da ideia da aprendizagem, considerada como um processo dinâmico de (re)construção contínua do conhecimento, de interação do sujeito consigo mesmo, com os outros e com as coisas de seu meio, o que Pineau (2000) chama de teoria tripolar de formação.

Assim, os diferentes polos do processo formativo, definidos por Pineau (1988) como autoformação, heteroformação e ecoformação, ajudam-nos a perceber a perspectiva formativa e a entender a apropriação, por parte do sujeito, da condução de sua própria formação, trazendo a ideia de um “[…] aprendizado da vida, [que] sem dúvida, não acontece sem o aprendizado dos contratempos, condição importante para o acesso à sua realidade dialética, seu devir, sua formação permanente.” (PINEAU, 2000, p. 13)

Em seu processo de autoformação, o sujeito não dialoga somente com o próprio aprender, mas também com suas experiências na interação com os outros e as coisas, numa permanente dinâmica com o saber, a qual exige renovação e ressignificação, isto é, ele usa o saber para seu proveito, aplica-o a si próprio, tornando-se “objeto de formação para si mesmo.” (PINEAU, 1988, p. 67) Assim, apresentamos a autoformação como uma possibilidade do percurso que se entrecruza com outros caminhos e, segundo Pineau (PINEAU; MARIE-MICHÈLE, 1983, p. 9, tradução nossa), se dá na “apropriação completa do poder de formação.”

Nessa perspectiva, destacamos os processos que emergem da consciência reflexiva dos sujeitos para transformarem os conhecimentos e as relações estabelecidas com os outros e com as coisas do meio, em aprendizado, lembrando-nos do seguinte verso do poeta Antonio Machado (apud MORIN, 2003, p. 21): “Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar.” Nessa trajetória itinerante o sujeito é desafiado a exigir de si mesmo mudanças nas relações com o conhecimento e o autoconhecimento, numa relação direta com sua existência de ser-no-mundo-com-os-outros e com o ambiente que o constitui, desenvolve e transforma.

3 A autoformação como ação complexa

A educação deve contribuir para a autoformação da pessoa.

(MORIN, 2000a, p. 65)

Como dito acima, a autoformação tem um compromisso com a liberdade e disso decorre a importância da autonomia. É interessante realçar que ação faz parte da palavra autoformação e que apresentá-la como complexa significa que partilhamos com Morin (2001) a compreensão da ação como estratégia. Assim como a vida não é programada numa única direção, a formação das pessoas tampouco segue uma estruturação unidimensional, mas está sujeita a grandes turbulências, abalos, transformações e interferências que impactam o rumo inicial. Quando um novo cenário se apresenta, não é mais possível manter-se arraigado ao pensamento anterior, sendo necessário aprender a conhecê-lo. Nesse sentido, a autonomia torna-se parceira da estratégia para pensar sobre as ocorrências aleatórias e as incertezas. Como seres humanos complexos, não somos apenas “máquina trivial” (MORIN, 2002b, p. 280), o que indica que nossas atitudes e comportamentos não são sempre previsíveis. Por mais que a vida cotidiana e a cultura em que vivemos queiram nos aprisionar na jaula referida por Di Giorgi (1980), trivializando-nos, há o trampolim da autonomia-liberdade que nos impulsiona e projeta em direção ao novo e ao inesperado. Submetidos às programações constantes da dinâmica familiar, da vida escolar, da profissional e pelo momento sociopolítico e cultural, exercitamos nossas escolhas, elaborando intervenções que vão colocando vários tijolos de autoformação em nossa construção. Existe uma mecânica mutiladora que busca nos aprisionar em repetições e automatismos, mas também somos capazes de criar novas configurações que nos instigam a estar disponíveis para o novo, com a possibilidade de nos encantarmos. Se as atitudes programadas podem constituir-se em portas fechadas, a estratégia é uma janela aberta disposta a ver e entender o que se passa.

O pensamento complexo propõe a religação e, nessa direção, já temos que a ação é pautada pela estratégia, uma vez que não se prende apenas na relação linear entre as coisas. Morin (2000a, p. 76-77) pergunta:

O que é uma coisa? É preciso ensinar que as coisas não são apenas coisas, mas também sistemas que constituem uma unidade, a qual engloba diferentes partes. Não mais objetos fechados, mas entidades inseparavelmente ligadas a seu meio ambiente, que só podem ser realmente conhecidas quando inseridas em seu contexto.

Isso retoma e reforça o que foi dito anteriormente: a autoformação é um processo que considera os primeiros passos da socialização de cada pessoa no interior de dada família, seus grupos de relação, as escolas que frequenta e todos os outros locais e espaços, levando também em conta que a dinâmica existente entre os vários fenômenos não é de uma ordem estática, mas pode sofrer perturbações e desvios, tendo de se organizar a partir de uma desorganização que provoca novas interações.

O movimento, ideia-chave para pensar a autoformação, esteve presente em vários momentos da história do pensamento ocidental. Ao prefaciar o I Ching: o livro das mutações para a edição brasileira, Gustavo Pinto (1997, p. XII) destaca que o homem chinês constatava “um fluir contínuo do qual nada escapa.” Para ele, no entanto, essa mudança não deve ser pensada como algo que recai sobre pessoas ou situações, ocorrendo assim as mudanças e transformações. Ter essa compreensão significa entender alguém ou as coisas fora do movimento, mas nessa perspectiva o que existe são “os modos e estágios da mutação. […] Não há o que mude, não há quem mude, pois só há o mudar.” (PINTO, 1997, p. XII, grifo do autor)

Michel de Montaigne (2010, p. 207-208) pode ser interpretado como um pensador do movimento, tornando-se, nesse sentido, instigante para o diálogo com este tema.

Eu mesmo me agito e me atormento pela instabilidade de minha postura; e quem se observa de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado por onde a examino. Se falo de mim de diversos modos é porque me observo de diversos modos. Em mim encontram-se, de um jeito ou de outro, todas as contradições […]

Esse movimento das contradições é a linha que tece e constrói o ser humano complexo perpassado por atravessamentos da razão e do imaginário, da vida prosaica - que é prática e de dimensões técnicas - e da vida poética, na qual se encontra com o simbólico, o mítico e o mágico. A relação entre prosa e poesia não ocorre apenas de maneira antagônica, mas também complementar, pois essas duas partes são essenciais para a trama que constitui a vida.

Esta dinâmica profundamente humana da autoformação foi compreendida de forma sensível por João Guimarães Rosa (1970, p. 20): “O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.” Isso nos faz pensar que tal processo se fortalece e se desenvolve na espiral das condições pessoais, históricas, culturais e sociais. E essa metamorfose contínua pode ir apurando cada vez mais o olhar, o ouvir, o tocar, o degustar, o cheirar, na medida em que capta, admira e participa da singularidade disponível na vida e no viver, ou seja, a sensibilidade humana.

4 A condição humana e a autoformação

[…] eu era movido por aquilo que o Tao chama de espírito do vale, que recebe todas as águas que afluem a ele.

(MORIN, 1997, p. 41)

Com base nos estudos realizados, ficou clara para nós a necessidade de pensar a autoformação a partir da busca por responder às contradições do processo educativo humano. Foi possível perceber que o movimento formativo vivido pelos sujeitos volta-se ao processo da hominização, entendido como condição humana (MORIN, 2000b, p. 50), algo primordial tendo em vista o saber viver e que perpassa a animalidade e a humanidade. Para Morin (2000b, p. 51), a concepção de homem “tem duplo princípio; um princípio biofísico e um psico-sociocultural, um remetendo ao outro.” Entendemos que, nesse movimento, a complexidade humana não pode ser compreendida de modo dissociado dos elementos que a constituem: “[…] todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.” (op.cit., p. 55)

Sendo assim, o homem é concebido como um ser múltiplo, que vive antagonismos, ambivalências e incertezas em suas múltiplas dimensões. Morin (1988, p. 145) contribui com essa reflexão, afirmando:

[…] para compreendermos o homem, devemos unir as noções contraditórias do nosso entendimento. Assim, ordem e desordem são antagonistas e complementares, na auto-organização e no devir antropológicos. Verdade e erro são antagonistas e complementares na errância humana. Todos estes traços se dispersam, se compõem, se recompõem, consoante os indivíduos, as sociedades, os momentos, aumentando a incrível diversidade da humanidade […]

Entendemos que esses caracteres remetem à ideia de que “existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético.” (MORIN, 2000b, p. 59) Homem que é sapiens e demens na relação consigo, com o outro e com as coisas do mundo. Homo complexus, em suas diferentes dimensões, que se auto-eco-organiza, que se constrói ao estabelecer relações com o outro e se transforma continuamente. E nessa correlação de alteridade ele encontra a autoformação, conduzindo a si mesmo, a partir do outro, mas ao mesmo tempo dependente do meio exterior e da cultura, pelos quais alimenta o conhecimento, faz escolhas e as cria em suas obras de vida individual e coletiva, porque é criativo, artístico, político e ético.

Autonomia e dependência vão se interiorizando profundamente no sujeito, orientando-o de forma permanente, capacitando-o a se auto-eco-organizar e a se perceber como parte da teia da vida. Nas palavras de Morin (2017, p. 17), “o princípio de auto-eco-organização vale evidentemente de maneira específica para os humanos, que desenvolvem a sua autonomia na dependência à cultura, e para as sociedades que dependem do meio geoecológico.” O sujeito é ao mesmo tempo autônomo e dependente, de modo que se vai distinguindo e singularizando. E é nessa direção que ele abrirá possibilidades de diferentes visões de mundo de acordo com o caminho escolhido, ou seja, decidirá seus valores e assumirá suas ideias, como indica a autoética.

A construção da autoética implica uma ação de autoformação que é apresentada neste texto e que envolve uma ética de responsabilidade, de modo que o sujeito se torne responsável por si, pelo outro, por seu mundo; uma ética solidária, que o permita ver o outro como a si, diferente em sua subjetividade, mas igual na espécie humana; uma ética da religação, que una o homo sapiens ao demens, ao ludens, ao faber, e que una a dimensão prosaica com a poética, de modo a interligar os contextos que se entrelaçam, para que o sujeito possa desenvolver-se a partir do cultivo pessoal e do prazer por essa aprendizagem e, assim, descobrir-se, examinar-se, num esforço introspectivo. De maneira que na compreensão, na autocrítica reside a sabedoria, o que possibilitará o encontro de uma ética do sujeito ao assumir o destino humano, a antropoética. Voltamos a Morin (2015, p. 156-157), que esclarece:

Qualquer desenvolvimento verdadeiramente humano deve comportar também o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das solidariedades comunitárias e das construções de pertencimento à espécie humana.

O desenvolvimento da ideia de antropoética implica todo o processo de construção da autoformação, acenando com novas perspectivas de aprender a viver.

Nesse sentido, é necessário aprender a condição humana: uma nova perspectiva para o viver do sujeito, que está em compreender a oposição e complementaridade no mundo natural e no social, entre as relações e influências recíprocas, entre as partes e o todo, e as interligações que comportam o desenvolvimento de novos saberes e, por consequência, o contínuo desenvolvimento humano em sua complexidade. Desse modo, o homem não é simplesmente um ser que utiliza a razão em suas experiências de maneira previsível, pautado na mais perfeita ordem das coisas. Ao contrário, em seus atos congrega desordens, as quais possibilitam o surgimento de conhecimentos. Senão, entramos em um estado de automatismo, do qual não encontramos saída.

Não seria, então, importante reconfigurar também a formação? O pensamento complexo possibilita-nos indagar e conhecer os próprios modos de conhecer, como também nos permite uma aprendizagem transformadora, contextualizada, heterogênea e plural, imbricada nas interações entre as pessoas, no meio e nas atividades vividas. A proposta situa-se nas ideias de Morin (2000a, p. 10-11), quando este diz: “[…] o termo formação, com suas conotações de moldagem e conformação, tem o defeito de ignorar que a missão do didatismo é encorajar o autodidatismo, despertando, provocando, favorecendo a autonomia do espírito.” Em seu processo formativo, o sujeito pode ou não apresentar as múltiplas interferências, interpretações provenientes do processo dinâmico da aprendizagem necessária à vida de cada ser humano.

Ao experienciar o autodidatismo, Morin apresenta a ideia de autoformação, captada em profundidade diante da perspectiva de que “é um caldo de cultura onde prossigo minha formação sobre terrenos múltiplos.” (MORIN, 1997, p. 35) Um pensamento que reaproxima os saberes aparentemente antagônicos e possibilita ir além dos saberes escolares, isto é, compreender o processo de aprendizagem do sujeito na razão e no sentimento de realidade que ele transporta em suas ideias, as quais se apresentam dotadas de autodidatismo, num movimento espiral e recursivo. Assim, o homem estabelece um aprender por si mesmo, transformando as estruturas de sua aquisição dentro de um contexto de organização pessoal de fazer, analisar, questionar e compreender como se dá a construção para si.

Nessa construção constante, de transformação e produção, podemos depreender, até o momento, que a dimensão do aprender por si e para si poderá levar a um devir cultural e humanizado, o qual se dá numa instância de mediações enriquecidas nas relações com o outro e com o mundo. Não obstante, refletimos ainda sobre a compreensão do significado que o sujeito dá ao processo de aprendizagem, em que, por trás de cada um, há a experiência pessoal e o resultado das trocas de conhecimento, num movimento recursivo e de exploração intersubjetiva. O sujeito desencadeia uma série de eventos que culminam em seu processo autoformativo. A formação tende a articular-se com o movimento inesperado, não só para significar sua escolha, mas também para descobrir uma nova forma de pensar, um novo paradigma. Trata-se de um tipo de pensamento oriundo de uma epistemologia complexa, que propõe a dimensão simbólica inerente à condição humana, como também religações e solidariedade na conjugação do racional e prático, do mítico e mágico, da ciência com as culturas, das artes e da filosofia, para a construção de um estado estético que expresse simbologia e densidade para encantar a obra da vida. Devemos nos esforçar para atenuar a dimensão prosaica, que tem provocado pressões, servidões e solidões, de modo que expressemos a emoção estética suscitada pela poesia da vida.

Esse caminho pode ser interpretado com Antonio Ciampa (1993), por meio de sua obra A estória do Severino e a história da Severina, que conta a passagem de Severina, que não se conhece, que só se vê pelo outro, e aos poucos vai se enxergando, se transformando e construindo seu conhecimento a respeito de si:

A gente […] não vai mudando de uma hora pra outra; vai mudando por etapa, devagarzinho; cada dia que a gente vai passando, cada hora, cada minuto, cada segundo da vida da gente, a gente vai sentindo e percebendo as coisas, vendo as coisas de outro ângulo, diferente do que a gente era. (CIAMPA, 1993, p. 110-111)

Numa primeira leitura aproximativa do caminho, percebemos que a transformação de Severina vai acontecendo em uma viagem simbólica, interpretada como passagem de um estado a outro, mas que a personagem vai preservando sua identidade. Parte de dado estado de múltiplos papéis que desempenha, em que os desafios e aprendizagens, o risco e a dúvida, o erro e o acerto, intrínsecos à condição humana, oportunizam profundas ressignificações.

Essa direção que o ser humano adquire ao tomar consciência de seu processo transformador é uma possibilidade para respostas menos limitadas, mais autônomas, mas também dependentes das interações com a cultura, com o meio ambiente. Tal possibilidade formativa, a nosso ver, contribui para o caminhar do homem, que vai buscando em seu interior a construção de um processo de aprender e apreender, e que vai revelando e modificando seu jeito de estar e viver no mundo. Nesse contexto, seria possível compreender o sujeito, que, uno e múltiplo - unitas multiplex -, é capaz de enxergar a si com autocrítica e num constante exercício de auto-eco-organização, em que se percebe na relação e no reconhecer do outro, nos limites do “nós”, com respeito à vida. Uma transformação compreendida pela ideia de aprender a condição humana, que evoca assumir, ao mesmo tempo, homo sapiens e homo demens, que é prosaico e poético e, assim, encontrar o que está dentro de si, a estética para o bem-viver.

5 Estética e autoformação

Para o pensamento complexo, falar em estética não significa discorrer sobre a beleza da maneira como é conceituada usualmente ou interpretá-la como uma característica própria das obras de arte. A estética faz parte da sensibilidade e o sentimento por ela despertado pode vir de diversas fontes de inspiração: uma paisagem, uma caminhada à beira-mar, o sabor de um alimento, a cena de um filme, um espetáculo musical ou mesmo de qualquer coisa sem intenção estética inicial, podendo ser provocado a partir de múltiplas circunstâncias, intimamente integrado com a forma poética de viver.

Essa emoção, sentimento ou condição estética manifesta-se em diversas culturas, não havendo, portanto, uma única maneira de expressar a beleza, da mesma forma que não se restringe à arte ou à poesia formalmente compreendidas. Podemos pensar em quantas vezes, ao longo de nosso processo de formação, arquivamos na memória imagens, cenas, locais, acontecimentos que nos marcaram profundamente.

A beleza também não deve ser vista como um conceito estático que acontece apenas quando há harmonia e regularidade; podemos aprender com alguns poetas, em especial Manoel de Barros, que os polos belo e feio, que o disforme, trazem muito potencial de qualidade estética:

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma

e que você não pode vender no mercado

como, por exemplo, o coração verde

dos pássaros,

serve para poesia.

(BARROS, 2007, p. 12-13)

Um exemplo de alcance estético pela via ou viés do incomum e que não se prendeu à ordem regular é a história e obra de Arthur Bispo do Rosário, um sapiens-ludens-demens que bordou seus mantos inspirado pelo mundo imaginário e transcendendo o real vivido no cotidiano de um hospital psiquiátrico. Artista? Louco? Gênio?

O tempo se encarregaria de seu reconhecimento nos domínios do humano. Em meio a bordados autobiográficos e autoficções, este eu meio verdadeiro, meio fabuloso tudo excedeu e, sobretudo, contribuiu para diluir as frágeis fronteiras entre razão, loucura, ficção e fé. (HIDALGO, 2011, p.176)

A dimensão estética é essencial no processo de construção e desenvolvimento de nossa formação. A aprendizagem é contínua e cotidiana, com as situações e experiências diversas, intrínsecas ao sentir, ocorrendo dialogicamente na medida em que associam os antagonismos: acontecimentos alegres e tristes, inesperados e esperados, bons e ruins, e que também operam recursivamente, na medida em que um retroage sobre o outro, produzindo novas situações. Esta ação ininterrupta provoca um diálogo intenso entre as partes e o todo que nos formam, reformam, autoformam, conformam, deformam, informam, transformam, performam, reordenando o caminhar. A autoformação não acontece como acabada e unidirecional, pois capta as fraturas e as conecta, criando novas leituras, nuances e possibilidades.

Cultivar a dimensão poética é propor uma abertura e disponibilidade ao estado de fruição, de gozo, que nos transforma pelo encantamento que produz e que nos humaniza. A estética não só é uma forma de conhecimento do mundo humano tecida pelo imaginário, como também de autoconhecimento. Os versos a seguir ajudam-nos a exemplificar esse sentir, essa emoção provocada pela música, ou pela literatura, ou pintura, ou cinema:

Certas canções que ouço

Cabem tão dentro de mim

Que perguntar carece

Como não fui eu que fiz?

(TUNAI; NASCIMENTO, 1982)

São experiências que nos marcam, fixam-se em nosso sentir e nos põem em contato com uma realidade mais profunda, projetando esse sentir numa música, como no exemplo citado, mas que poderia ser uma cena de cinema, de teatro, uma obra de Portinari. Um outro eu, exterior a mim, que encontro e que dialoga com o meu interior. Eu me desdobro e me encontro com a poesia, com uma imagem, e cada momento como esse ajuda a fecundar a autoformação.

6 Considerações finais

Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial.

(BARBERY, 2008, p. 218)

Pensamos a perspectiva autoformativa considerando-a no inebriar da arte de Muriel Barbery (2008), do esculpir as emoções, para criar e recriar a vida humana.

Nessa perspectiva, o presente estudo diz respeito a um movimento de Morin e Pineau em que constroem um olhar sobre a autoformação, numa postura dialógica que fomenta ações individuais capazes de religar os conhecimentos e fazer dialogar, para ensaiar novas escolhas pessoais, sociais, éticas, políticas.

Uma autoformação compreendida como um processo de apropriação do conhecimento, em que o sujeito liga os saberes a si mesmo, interliga-os às influências dos outros e às coisas do meio ambiente, em suas particularidades, trafega na ideia de cultivar a dimensão poética ao mundo interno e externo de cada um, para encantar o lado prosaico de sua condição humana. Há que considerar a dimensão estética como mote para a reflexão do aprender a viver com beleza e encantamento; para isso, são necessários modos de pensar que transitem com a incerteza e abram brechas para um autoconhecimento que introduza possibilidades criativas, autônomas e solidárias dos seres humanos.

Acreditamos que os dois autores, Pineau e Morin, trazem uma importante contribuição para os estudos sobre a autoformação ao reexaminá-la, gerar saberes, ideias e valores, a fim de instaurar a “brecha”, para que o improvável se realize.

Em suma, a autoformação estética, a reconstrução do aprender por si supõe a aceitação da razão/emoção e da metamorfose do sujeito que se auto-eco-organiza, renasce e projeta um devir, contemplando a esperança de um bem-viver que vislumbre o lado humano da vida dos sonhos que habitam a alma humana

Referências

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BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. Rio de Janeiro: Record, 2007. [ Links ]

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Nota

1Segundo Galvani (2002), significação (signos), sensação/percepção (vida) e direção (ação) é que levam à construção de si mesmo

Para referenciar este texto

ALMEIDA, C. R. S.; ARONE, M. Autoformação, condição humana e dimensão estética. EccoS, São Paulo, n. 43, p. 97-113. maio/ago. 2017

Recebido: 18 de Março de 2017; Aceito: 20 de Junho de 2017

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