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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.43 São Paulo maio/ago 2017  Epub 11-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n43.7365 

Artigos

Movimentos estéticos na pedagogia: pelas bordas do caminho, o (des)vestir de um corpo

Aesthetic movements in the pedagogy: by the ways of the path the (des) dress of a body

Denise Aquino Alves Martins1 

1Doutora em Educação (UFPel/RS). Professora Adjunta na Universidade Federal do Tocantins (UFT) no Colegiado de Pedagogia do Campus de Palmas. deniseaquino@uft.edu.br


Resumo:

Este estudo objetiva identificar elementos estéticos da formação docente que se constituíram por meio de cruzamentos derivados das memórias de (auto)formação narradas por um grupo de estudantes do Curso de Pedagogia (UFT) participantes de um projeto denominado Mobilizar-te. A pesquisa está ancorada no método (auto) biográfico, na potencialidade da memória como ferramenta de formação. No artigo apresentamos fragmentos de entrevistas com 8 acadêmicos egressos do curso de Pedagogia: depoimentos escritos, anotações avulsas em cadernos, relatórios de grupos. Olhar esse movimento que é feito de marcas, desassossegar uma forma previamente pensada é sentir a vitalidade do tempo produzido na docência que se teceu com o outro.

Palavras-chave: Experiência Estética; Formação Docente; Memórias; Protagonismos Discentes

Abstract:

This study aims to identify aesthetic elements in teacher education, which were constituted through crossings derived from the memories of (self) formation narrated by a group of students of the Pedagogy Course (UFT) participants in a project called Mobilizar-te. The research is anchored with the (auto) biographical method in the potentiality of memory as a training tool. In the article we present fragments of the interview with 8 graduates of the Pedagogy Course; Written statements, separate notes in notebooks, group reports. To look at this movement that is made of marks, to unsettle a previously thought out form is to feel the vitality of the time produced in the teaching that has wove itself with the other.

Key words: Aesthetic Experience; Teacher Training; Memories; Leading Students

Primeiras impressões

Destacar a importância dos tempos na formação é carregar de potência a estética da existência no espaço de se fazer professor, diferente de falar de tempos na formação como algo reduzido a uma reprodução cronológica, de significado autoritário, pois esse é um tempo que joga contra a itinerância-errância e a inventividade, por consequência. Não é um tempo que possibilita o processo de autonomização de quem aprende e se forma. É um tempo-controle que intensifica a burocratização do aprendizado e facilita a alienação no desejo do outro instituído, ou melhor, do Estado-controlador. (MACEDO, 2007, p. 123)

Para compreender o lugar em que vivo, precisei entender as culturas, formas de vida presentes nas narrativas dos acadêmicos, seus gostos e artefatos como elementos fortes de uma experiência de ser tocantinense. Descobri que aqui habitam todos os lugares deste país. Somos todos migrantes, trazendo na bagagem nossos objetos e símbolos culturais e isso é uma questão que atravessa o currículo de formação de professores.

Essas inspirações motivaram a investigação da memória da experiência de formação presentes no projeto Mobilizar-te: acontecimento em arte e educação na UFT- encontros com artefazer-se docente. Esse processo e seus desdobramentos na formação discente passam a constituir o foco deste artigo, a partir de ensaios de criação, expressão e estética. As memórias do Mobilizar-te, construído no período de 2008-2014 no curso de Pedagogia de Palmas (UFT), e suas articulações podem ampliar o conceito de processos criativos realizados, refletindo sobre a possibilidade de bricolagem no espaço de formação acadêmica.

Em se tratando da lida do corpo/arte/educação1 na formação da profissão docente, coexistem as incertezas de quem somos, dos rumos a tomar, da necessidade premente de (des)vestir quem pensamos que somos ou pretendemos ser: professores? O que dizer então do corpo discente do curso de Pedagogia, que parece destituído de um corpo? Como irão trabalhar com crianças que exigem uma disponibilidade corporal para estar no mundo? Essas e outras inúmeras preocupações me fizeram projetar uma didática pensada no corpo e na arte/educação com/para o movimento.

Na proposição de desvestir o corpo docente/discente carrego comigo o pensamento de Larrosa (2001) de uma Pedagogia Profana, despida de cumplicidade com o sistema que o aprisiona do pensamento autônomo, posto que na última década se acirraram as decisões sobre o fazer desse corpo na escola. Busco uma composição de cores, fios e teias ao entrar no fluxo da existência de sentidos, enredo-me com eles, permitindo a coexistência de redes e conexões, feito os pescadores em alto mar, quando se lançam para pescar, nos tantos pedaços de si que carregam, na experiência de vida habitada.

Lembrando Macedo (2010, p.136): estética é lugar a ser habitado”, destaco a presença de protagonismos discentes na autoria dos movimentos organizados pelos acadêmicos, nas relações estabelecidas de autonomia na produção de um fazer algo distinto, produto de pesquisa e elaboração de cenários, ambientes próprios para o aconchego, para o encontro de pares no compartilhar experiências de si.

1 Regresso dos professores: notas sobre um transbordamento na formação docente

Nóvoa (2011) destaca, em relação à formação de professores, que há um verdadeiro transbordamento de pesquisas sobre o trabalho docente, com uma tendência aparente de valorização da profissão na ação dos docentes. Esses discursos e seus consensos trazem certa vulgarização do saber docente, uma vez que ocupam um espaço dos próprios professores como narradores de si. Nesse território profissional, em que seus significados são traduzidos por outros grupos, o autor argumenta a necessidade de pesquisas, na área de formação de professores, por dentro da profissão, num reforço necessário da dimensão pessoal e da presença pública dos professores. Ao destacar que o conhecimento pessoal é necessário no processo de formação, para captar o sentido da profissão, Nóvoa (2011, p.4) aposta em “redes de trabalho coletivo” capazes de diálogos em práticas de formação.

Para Macedo (2007, p.27), o ato de compreender a formação se caracteriza como uma atividade de fato, em que a “experiência da formação conhece a temporalidade, a duração, o inacabamento, a realização, tão importante para pensarmos na complexidade do tempo e das existências em formação.” No mesmo sentido, Nóvoa (2011) afirma que formadora é a pesquisa sobre a experiência, destacando o investimento em lugares de formação em que a presença pública dos professores seja valorizada.

O elemento da comunicação de atos de profissão parece despontar como saída frente à desvalorização crescente do trabalho docente. A relação de reflexão é uma condição para existência de formação em processo, para pensar o “acontecimento encarnado” daquilo que resulta da experiência como algo que me transforma, com a produção de sentido e “abre o caminho do sentido.” (MACEDO, 2007, p. 33) Esse autor destaca quatro conceitos a respeito da palavra sentido: sensibilidade, intenção, orientação e significação, acrescentando que o processo de formação é algo para além dos modelos explicativos teóricos e precisa ser compreendido no ato e em sentido de uma experiência de formação.

Em seus estudos sobre currículo, Goodson (2007, p.242) afirma que “precisamos mudar de um currículo prescritivo para um currículo como identidade narrativa; de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem narrativa de gerenciamento da vida.” Gerenciamento da vida, identidade narrativa, pesquisa sobre a experiência e trabalho coletivo são nuances de um processo em transformação, na necessidade do acontecimento que passa pelos sentidos, atravessa os tempos formativos instituídos e instituintes. (op.cit., p. 128)

Assim, ao falar de currículo de formação de professores, é pertinente observar a relevância dos autores acima citados, para compreensão desse fenômeno tão arraigado e naturalizado que funciona como uma mística do saber, o que envolve processos de gerenciamento do conhecimento dos professores que não estão produzindo impactos sobre a experiência de uma profissão.

A universidade, como espaço de interlocução de distintos saberes, graças à adesão cada vez mais à padronização no gerenciamento de condutas no processo de formação, perdeu-se e enroscou-se por meandros de produtividade que nada parece deter essa mística. Parece anestesiada em sua maioria. Duarte Jr. (2004) questiona em que medida a maioria das nossas escolas, faculdades e universidades, hoje, não consistem, em termos mesmo de espaço, construções e cuidados com o ambiente interno, num retrato da falta de sensibilidade daqueles que ali convivem.

Hoje, todavia, na esteira dessa regressão sensível operada pela sociedade industrial, a questão é verificar-se o quão embrutecidos e toscos se encontram os sentidos humanos (por detrás desse “modernoso” verniz de consumo e moda que os recobre) e tratar de sobre eles atuar, promovendo-lhes o crescimento e o desenvolvimento mínimos para que se possa adentrar no reino da sensibilidade simbólica regido pela arte. (DUARTE JR., 2004, p. 26)

Essa preocupação de anunciar uma crítica sobre um processo na formação traz, conjuntamente, o desejo de novos tempos. Tempos de saborear uma concretude na leveza de uma existência mais comunitária nos campi de instituições educativas. Novos tempos urgem novos sonhos - acalantos que me inspiram na docência.

Ancorada nessas premissas iniciais procuro novos rumos na escrita, retomando as primeiras linhas, em que delineio um contexto de encontro no passado com as emoções, sensibilidade e pistas de um compartilhar docente inquieto e fecundo na afirmação da experiência estética na formação. Encontro, para além do sentido estético-artístico, a estética do riso na despreocupação de sua existência, feito criança ao vento, ventania e poeira. Tempo próprio, dentro do tempo, divindade, templo ou caixa de surpresa, descoberta, novidade, perplexidade, cheiro de terra molhada - adubo. Assim (des)vestimos um corpo docente, sem preocupação em ser forma, prescrição, apenas uma possibilidade ético-estética, numa tentativa de que algo aconteça nas aulas para tantas Margaridas de que nos fala, em Poesias, o poeta Quintana (In: HOHLFELDT, 2006, p. 19):

De cada lado da sala de aula, pelas janelas altas, o céu azul convida os meninos, as nuvens desenrolam-se, lentas, como quem vai inventando preguiçosamente uma história sem fim… Sem fim é a aula: e nada acontece, nada… Bocejos e moscas. Se ao menos, pensa Margarida, se ao menos um avião entrasse por uma janela e saísse pela outra!

No próximo item apresento as narrativas dos egressos acadêmicos que salientam suas perspectivas em relação aos processos vividos na relação formação e experiência ao olhar para trás pela ausência. Pensar na imagem da professora balseira (Mabel)2 que volta à sua própria margem de origem e encontra-se no coletivo, movimento de ida-vinda para seu lugar, sobre seu processo de criação/escrita (somos os mesmos?).

2 Protagonismo discente e a estética do impulso: ação e intervenção

Aqui destaco desdobramentos de elementos percebidos nas narrativas acadêmicas quanto à presença constante da diversão, festa e animação, não separadas das aprendizagens de si, de modificações percebidas nos outros como processos ricos de formação. Essa configuração, tecida no ardor do tempo vivido ou na distância de seis anos para algumas das primeiras acadêmicas a construir o Mobilizar-te, elege a figura do corredor - lugar de passagem, intervalo - como símbolo do acolhimento existente no fazer e nesse sentido, para além da arte, a festa e a (auto)formação na ação e intervenção.

Há uma materialidade dos sentidos da presença do outro, na escrita dos acadêmicos em 2010 em que são destacados os espaços democráticos de expressão e a cultura do inusitado. Sobre esses elementos traço minhas análises cruzadas com as narrativas dos acadêmicos em 2014, em que aparecem a (auto)formação na ação e intervenção do Mobilizar-te na estética do impulso sobre si.

2.1 Para além da arte: a festa, a (auto)formação na ação e intervenção

Na minha memória do Mobilizar-te passam elementos diversos a todo instante, como brisas ou relâmpagos de efeitos rápidos ou pausas em que o sorriso é largo e demorado, e volto a sentir os sons de algazarras, conversas e cantorias… Risadas nos ecos dos entusiasmos de gurizada, que me remetem aos tempos de docência na escola. Os corredores dos prédios da universidade me fazem lembrar a escola de ensino fundamental, ensino noturno especificamente, de circulação de opiniões, combinações diversas, falas empolgadas verificadas durante a pesquisa de mestrado.

Aqui nos corredores do bloco A, lócus do ambiente acadêmico do curso de Pedagogia, circulam muitas pessoas, ecoam sons por todos os lados, labirintos e ensaios de existências na poeira do tempo. Andar por esses corredores é percorrer tempos de formação, encontrar escritas, cartazes empoeirados que resistem e assinalam algumas formas de manifestação e novas necessidades de encontros. Risos lembrados nas entrevistas de Roberto, Álvaro, Joice e Patrícia, em que aparecem elementos estéticos que se caracterizam pela presença da festa, do brincar e se divertir entre amigos. Os egressos da Pedagogia destacam a importância de estar ali nesse ambiente de aprendizagens, à espera de experiências-acontecimento e contentamento.

Roberto. […] e acabava que se tornava uma coisa que todo mundo esperava pelo semestre para se ter o Mobilizar-te, por causa o quanto era interessante, o quanto era bom estar ali. Era algo que não só trabalhava as questões pedagógicas, mas divertia. Trazia uma cara de que o curso de Pedagogia podia ser divertido. (18.01.2014)

Joice. A gente trabalhou música e o pessoal que foi, era visível, você vê assim o contentamento da pessoa em estar ali interagindo, porque o nosso [grupo] a gente interagia com as pessoas que vinham, você cantava, você puxava ela prá participar de brincadeiras, participar mesmo, não era aquela coisa de sentar e só ouvir histórias, era interagir e isso era fantástico. (29.01.2014)

Álvaro. E eu gosto dessa coisa de diversificar, é muito cansativo fazer um cenário desses em todo Mobilizar-te, seria chato, seria cansativo, não seria inovador, não seria criativo e não seria arte também, porque inovar, usar o diferente me atrai. Então, no dia da banda, a gente estava no auditório, as cadeiras espalhadas, a banda tocando e a galera se divertindo, dançando e foi ótimo. No último que eu participei, que foi do teatro, estava muito mais elaborado, muito mais apoteótico, tinha um camarim, tinham velas, tinha cortina, tinha palco, e foi legal. Tinha figurino e foi ótimo. Os elementos estéticos que me chamaram a atenção foram esses por isso, por serem diversos, por ser diferente entre si. Se fosse o mesmo segmento, a mesma coisa, seria cansativo. (30.01.2014)

A resposta a uma formação que leve em conta a diversidade dos processos que estão em jogo, no ultrapassar regras da própria condição institucionalizada, pode ser uma pista de outras possibilidades que seduzam ao crescimento de uma profissão. Esse outro possível, dentro de um curso de Pedagogia, que forma professores para trabalhar com crianças e jovens na espera de algo que não se faz todo dia, demarca o rompimento com a realidade na expectativa de produzir efeitos para si e os outros.

O elemento diverso da ordem pré-estabelecida da formalidade acadêmica, que se resume à sala de aula, parece não encerrar a totalidade das necessidades de formação para esses jovens. A festa se configura na margem, na periferia do sistema, quando a vida ainda pulsa. A estética do brincar, do corredor, do oposto à ordem linear escolhida como marca do currículo, ensina em formas mais espirais, me faz considerar esse espaço como conquista e demanda de jovens que possuem uma vida para além de serem alunos.

Ciclos de memórias em que passado e presente se misturam em fontes de dados, destacam a importância do movimento como fator de formação, inovação no elemento da diversidade. Nesse campo do divertir, “fazer mudar de fim, de objeto, de aplicação, distrair, desviar. […] Distrair(se), entreter(se), recrear (se)”, conforme Bastos (2009, p.118), anunciam quebra de rotinas, deslizamentos de fronteiras entre sério/cômico e institucional/informal. Ou como escreve um dos acadêmicos em sua avaliação, por escrito, do evento em 2010: “[…] o método de transformar pequenos instantes em brincadeiras incansáveis.”

A animação é destacada por Patrícia e Joice: jovens/adultos se percebem maravilhados em mostrar seu lado criança, bem como à própria condição pessoal, quando Joice recorda da relação do brincar com sua mãe. Assim se expressam as acadêmicas:

Patrícia. O Mobilizar-te mostrou que dá certo trabalhar isso com o adulto, porque nós acadêmicos somos adultos […] até ficamos mais maravilhados do que as próprias crianças que estavam participando, porque o adulto ele não espera se deparar com a situação que ele possa estar mostrando o seu lado criança. (30.01.2014)

Joice. É a minha vida, é um pouquinho da minha vida, quando eu falo disso, eu lembro que eu sou muito brincalhona até hoje, porque eu lembro até da minha mãe, ela fazia casinha, comida, ela brincava, eu lembro até hoje, eu ganhei uma boneca, e a gente fez um batizado da minha boneca, a minha mãe fez chá, fez bolo, chamou as minhas amigas, ela me ajudou a organizar toda a minha casinha com boneca, então minha mãe sempre foi muito brincalhona. (29.01.2014)

Joice participou da primeira edição do Mobilizar-te, em 2008. Entre outras atividades do período, lembramos juntas que ela havia feito uma casinha de papelão e que sua filha, em torno de 16 anos na época, tinha adorado brincar junto. Encontro ressonâncias nos estudos de Brougère (1998) quando destaca a pertinência da dimensão antropológica presente na origem dos jogos no sentido social, presentes na vida de jovens, pois, “[…] antes de ser a atividade principal das crianças, a simulação lúdica parece ser um meio de expressão cultural, uma linguagem, até mesmo um ato eficaz na relação da sociedade com o sobrenatural.”

O mesmo autor, ao descrever a aproximação entre jogo e arte, como oposição à utilidade e ao trabalho produtivo, diz que “a arte deve reivindicar sua inutilidade essencial, sua improdutividade em relação à sociedade […]” (p. 28). Dessa forma, aproxima a lógica dos simulacros, jogos de cena (ludi scaenici) dos espetáculos de circo (ludi circenses) no reino da mimesis do “como se”, do fingimento, tanto no teatro quanto no circo (p. 37,38).

Mas há uma relação dupla entre não sério, não real, fingimento e o ludus (escola, lugar de aprendizagem), demarcando um ritual ou um mito. O jogo tem seu espaço no seio da ritualidade carnavalesca, amplamente fundada no fingimento, diz o autor acima citado; além disso, na organização dos jovens, pois está no centro da constituição de uma identidade e, nesse sentido, ele é espaço de aprendizagem, apesar de sua aparência de desordem, ou mesmo de violência. Um ritual fundado no fazer de conta que é algo diferente do real, permite uma atuação pessoal de autoconhecimento, como afirmam os acadêmicos:

Daniel. Eu vi colegas ali que se transformaram em personagens dentro do cotidiano, que a gente nem esperava. Eu chego na Universidade e não estou indo para atuar, estou para estudar e de repente você está aqui atuando, você está aqui apresentando aos outros […] e conhecendo a gente mesmo, é um processo de autoconhecimento de formação. (27.01.2014)

Roberto. Era a simulação de teatro, tinha as meninas que fizeram a peça de teatro lá, bem como outra coisa que sempre estava presente era a música que tinha os meninos que tocavam violão, pessoal, o C. que levou a banda, trouxe gente de fora da Universidade pra fazer participações para o evento e acabou que ali todo mundo se divertiu, ficou pulando, foi uma festa que todo mundo ficou se perguntando o que está acontecendo naquele bloco? (18.01.2014)

A seriedade da profissão em que Larrosa (2001) se dirige em seu discurso proferido para professores, oferecendo em oposição um discurso de leveza, com rigor, pode ser um indício da percepção dos acadêmicos não confrontando teoria e prática, mas entrelaçando as áreas de conhecimento e as formas de compreensão de aprendizagens construídas nesse movimento envolvente.

Na tese de Balinhas (2013), ao descrever os elementos de produção de subjetividades em jovens de ensino médio em Rio Grande (RS), especificamente das vidas nas festas, encontro aproximações com alunos adultos universitários no encantamento de se deparar com marcas da infância ao brincar e se divertir.

As festas se caracterizam pelo distanciamento das preocupações, pela ação de indivíduos em grupos, agrupamentos, bandos, tribos ou galeras, que se desfazem das rotinas e se transformam em personagens construídas com roupas e adereços, figurinos, maquilagens, pinturas, preferências, cenários, trilhas sonoras, ações, sensibilidades. (BALINHAS, 2013, p.56)

A autora diz que “os pressupostos da educação põem de lado a existência, o riso e a festa, sem levar em consideração os diferentes significados atribuídos à vida, buscando reduzir o ser humano a um denominador comum” (BALINHAS, 2013, p.18), fato que constatei na experiência da docência universitária, no desconhecimento da vida do aluno e de suas singularidades, pois durante a realização do primeiro Mobilizar-te descobri alunos que participavam de bandas e tocavam nos barzinhos da cidade à noite, sinalizando a presença da música na vida dos jovens. Os egressos destacam em suas memórias essa aproximação ao dizerem:

Álvaro. O que me vem mais na memória são as duas últimas edições que eu participei, que teve a banda, que a galera foi lá, cantou, tocou, e foi uma festa e eu lembro que ficou até um pouco mais tarde, bem mais tarde dentro da Universidade, dentro de um bloco que predomina a Pedagogia, mas tem o jornalismo, mas nas manifestações culturais desde então no nosso curso, nunca teve. (30.01.2014)

Rosane. Participei da 1ª edição em 2008 que estava relacionada a disciplina optativa que cursava na época- Artes e educação. Foi uma experiência nova e meu grupo ministrou uma oficina sobre música justamente pelas vivências anteriores e afinidades dos integrantes com a música, bem como por acreditar nela como uma das mais expressivas formas de manifestação artística. (18.01.2014)

“O espírito da festa” nas falas das jovens entrevistadas por Balinhas (2013, p. 136) lembra amizades, animação, encontros, prazer, transgressão, experimentação e intensidade como escolha, um jeito de experimentar a vida que se abre para a fruição. Nesse sentido, ela se torna “outro espaço”.

Retomando Larrosa (2001), quando questiona o pensamento único na ironia do encontro com a dúvida, também penso que esse processo de invenção de um ato desalinhado, descompassado, possibilitou na atividade uma irreverência impensada para o curso de Pedagogia. Como se nesse espaço sagrado da universidade não houvesse chance de experimentar caminhos de formação de si, de uma profissão. A pedagogia profana abre a possibilidade de existir o brincar dentro do campo pedagógico de uma profissão que se descobre brincante. A esse respeito, retomo a narrativa de Álvaro:

Álvaro. A minha participação se distingue nas três edições. Eu acho que na primeira edição mais tímido, na segunda nem tanto, mas na última tava com gás maior, e o interessante é a participação no projeto não era nada imposto, então quem estava lá, porque realmente queria estar lá e a galera curtia. (30.01.2014)

Na narrativa de Álvaro, o elemento central da participação no projeto está na percepção da livre escolha, ou seja, destaca-se na ausência de imposição de condutas - nesse processo há um prazer presente no ato de entrega de querer estar presente. Levando em conta os discursos produzidos pelas jovens do ensino médio, descritas por Balinhas (2013, p. 124), outro aspecto percebido nas relações entre escola e festa diz respeito a que “diferentemente da escola, a festa é vivenciada de outra forma. Nela, prevalece controle de si mesmo, o tempo da reflexão e da escolha.”

A presença da satisfação, a importância da experiência e as interações destacadas nas falas dos egressos salientam sensações de bem-estar, de domínio de espaços de produção de algo, possibilitando descobertas e aprendizagens. Lacerda (2008, p.63), quando retoma o pensamento dos gregos sobre lazer ou ócio - skolé -, afirma que o mesmo “tinha como uso a ideia de tempo desocupado para si mesmo e que gerava um prazer intrínseco.” A narrativa dos egressos direciona o pensamento nesse sentido de livre arbítrio e de tempo para si, embora as aprendizagens gerem produtos relacionados à profissão. O valor agregado a sua conduta e realização com sucesso modificam a cara do curso na possibilidade de reflexão presente no momento da diversão. Há uma quebra de sentidos percebidos pelos egressos na rigidez do ensino, numa estética que possibilitou uma intervenção. Assim se referem os egressos:

Daniel. O Mobilizar-te veio tentar, em minha opinião, romper um pouco com esse engessamento da Pedagogia, que ficasse naquela coisa rígida de ensino e conteúdo. É claro que isso é fundamental, importante em qualquer pessoa criativa requer leituras críticas, mas é necessário também, experimentações (27.01.2014).

Álvaro. E a estética em si do Mobilizar-te por ser um trabalho de arte, possibilitando uma intervenção, por se tratar de uma mobilização com pessoas é essencial que ela seja diversa, diferente, que não seja engessada. (30.01.2014)

Essas observações realizadas a partir das entrevistas e dos relatos escritos, em momentos diversos no tempo, me fazem pensar no depoimento de Ferreira Gullar3 quando salienta o aspecto do acaso no seu próprio processo de produção artística, no grande jogo de dados dos números ou no lançar os dados. Da mesma forma, na medida do encontro com os participantes desta pesquisa, nos ecos produzidos de suas ações e arranjos de práticas autorais, percebo a obra do acaso se configurando num processo rico de princípios, para uma atividade fundada na liberdade de aprender a ser. Mais do que cardápios prontos aos moldes mercadológicos é preciso fazer a massa se constituir por si mesma.

No paradoxo da formação do encontro com a dúvida e o inusitado da obra, os entrelaçamentos e aprendizagens se fazem na convivência, no acolhimento, na improvisação de si e na atitude de indagar a própria experiência vivida. Nessa confluência, produto e produtor se mesclam e não há hierarquias pré-estabelecidas. A ordem da agenda é um fazer descoberto a partir de inúmeros processos de estudo e investigação, mas a leitura tácita é dos discentes, portanto, protagonistas. A presença do outro suscita cuidados e detalhes para satisfação própria, na busca de aprendizagens profissionais e pessoais, no conforto percebido na acolhida da teia, na lembrança do processo docente que não possui o controle na produção de sentidos, em que a espera pode produzir força de criação.

Daniel. E eu lembro que um rolo de barbante se transformou na teia de aranha com as poesias e aí a gente não esperava, e as pessoas olhavam e se sentiam de algumas formas acolhidas pela teia. Acomodadas no sentido de conforto, bem estar, de ficar a vontade. Esse foi um dos projetos que eu me lembro de ter tido um papel de protagonista um pouco mais acentuado. (27.01.2014)

Roberto. A integração entre todos os trabalhos em equipe era uma coisa bem fundamental, porque todo mundo se envolvia e a organização mesmo no dia, uma das coisas que eu lembro bem é que não importava se meu grupo tinha terminado ou o grupo B não tinha terminado, todo mundo ajudava todo mundo a organizar o local e o espaço para que aquilo lá ficasse organizado e tivesse a satisfação. (18.01.2014)

Sônia. A forma como foi coordenado o projeto nos proporcionou aprendizados ímpares para o crescimento profissional e pessoal. Tivemos oportunidade de dividir experiências, aprender com outros alunos, bem como contribuir para o acontecimento e realização do projeto. (27.01.2014)

Álvaro. E isso funcionou, porque a cada edição tinha elementos novos e que agregavam as pessoas, era convidativo, agregava as pessoas e todo mundo interagia, isso era muito legal. (30.01.2014)

A organização dos espaços de forma coletiva acentua a interatividade e realização do trabalho, agrega as pessoas na forma de condução do projeto Mobilizar-te. O protagonismo discente foi destacado pela presença de vínculos de amizade, troca de experiências de turmas e trabalho em equipe na sensação de acolhida. Assim dizem:

Joice. Porque eu acho que quando você vai para um lugar desses é isso que você procura, então senão tem aquela interação, a pessoa se sente mais acolhida, que foi uma acolhida na realidade o que a gente fez, a gente se sentiu bem e de certa forma as pessoas que passaram por ali também! Porque se sentiram acolhidas e entenderam nosso objetivo, o objetivo daquilo e, eu tenho certeza, de quem participou de uma forma ou de outra jamais vai esquecer. (29.01.2014)

Patrícia. O trabalho em equipe que foi bem importante possibilitou que no Mobilizar-te fosse aquele trabalho tão bonito, pelo menos prá mim, pelo grupo que foi desenvolvido. Além disso, a relação das pessoas que já tinham realizado o projeto com as que estavam realizando, a troca de experiência foi importante prá que nós pudéssemos desenvolver um trabalho que acredito foi bem feito. (30.01.2014)

Revejo nessas falas o mesmo processo de necessidade de estar presente com os outros, tantas vezes percebido em grupos de trabalho com jovens estudantes nas interações que as atividades físicas proporcionam; no jogo, na dança e nas brincadeiras de grupos em que o toque e a aproximação trazem alegrias e contagiam. Essa disponibilidade corporal sentida pelos egressos que participaram do projeto Mobilizar-te traz sentido para uma prática profissional repleta de envolvimentos sensoriais, no trato diário com corpos de crianças, adolescentes e jovens.

As relações sociais dentro de uma profissão permeada de presenças constantes, de grupos e singularidades, se reforçam em processos de trocas e aprendizagens outras, diversas de um processo de escuta e subordinada aos ritmos acelerados de uma profissionalidade regulada por elementos externos. A dimensão política da formação de professores possui o desafio estético de incluir o acolhimento discente no seu processo de autoconhecimento e nos contatos presenciais de trocas acadêmicas que são fundamentais neste processo. Na pesquisa com estudantes de Pedagogia e Artes Visuais, Brandão (2008) percebe a presença das solicitações aqui anteriormente anunciadas, destacando o valor dos espaços de acolhimento no processo formativo desses jovens pesquisados. Assim se manifesta a autora acima citada:

Verifica-se claramente a necessidade de escuta e orientação, tanto dos educandos quanto dos educadores, que possibilite a descoberta de si e previna o risco de esvaziamento da pessoa ou de perda da identidade. Diante das solicitações de todo tipo presentes na sociedade contemporânea, que em ritmos crescentes exigem respostas cada vez mais rápidas, torna-se imperiosa a existência de espaços de acolhimento do humano, dos jovens e adultos envolvidos, que favoreçam o processo formativo no contexto atual. (BRANDÃO, 2008, p.456)

Essas palavras soam como ecos de uma estética presente na acolhida que rompe com esvaziamentos, denunciam ausências de encontros, narrativas de si, no envolvimento que suscita diálogos e valoração de processos profissionais relacionados às interações e trocas de informações. Os acadêmicos mostram a face do avesso do esperado e querem a possibilidade da diversão no espaço da universidade. Isso não os diminui na qualidade de seus atos, ao contrário, instiga-os a ser mais. Além disso, a reflexão da presença do não controle na prática docente elucida a disposição de lidar com os imprevistos e de como a experiência toma dimensões submersas.

Esses elementos permanecem vivos nas articulações das falas dos acadêmicos de Pedagogia, destacadas pelas teias e fios dos textos narrados e escritos, na inspiração que o Mobilizar-te projetou para configuração de uma profissão que lida com infâncias. E essa reflexão, na ação de pensar as manifestações infantis e seus desconhecidos caminhos no mundo próprio de ser criança, faz o pensamento transbordar pela estesia na ampliação de possibilidades e potência da ação educativa

Referências

BALINHAS, Vera Lúcia Gainssa. Jovens e a Produção de subjetividades: vidas na festa, vidas na escola. UFPel. Programa de Pós-graduação em Educação. Pelotas. Tese de doutorado. 2013. [ Links ]

BRANDÃO, Sílvia Regina. O percurso formativo de jovens na sociedade contemporânea. Psicologia USP, São Paulo, outubro/dezembro, 2008, 19(4), 455-466. [ Links ]

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Notas

1A partir de 2008, passei a trabalhar na Universidade Federal de Tocantins (UFT), no curso de Pedagogia, com as disciplinas: Teoria dos Jogos e Recreação, Arte/Educação e Fundamentos e Metodologia do Ensino da Arte e Movimento

2Trata-se da defesa de Tese de Doutorado de Irapuã Pacheco Martins: Da escrita acadêmica à biografia educativa da Professora Maria Isabel da Cunha: interlocuções com os estudos do Imaginário, em que a metáfora foi utilizada por Maria Isabel da Cunha - Mabel - durante entrevista para elaboração da tese. (UFPel, 2012)

3Documentário “Por acaso Gullar”. Coleção Curta na Escola, V. 3

Para referenciar este texto

MARTINS, D. A. A. Movimentos estéticos na pedagogia: pelas bordas do caminho, o (des)vestir de um corpo. EccoS, São Paulo, n. 43, p. 135-151. maio/ago. 2017

Recebido: 04 de Abril de 2017; Aceito: 14 de Junho de 2017

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