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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.44 São Paulo set./dez 2017  Epub 19-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n44.7898 

Dossiê temático

A expansão da educação superior e a desigualdade regional brasileira: uma análise nos marcos dos planos nacionais de educação1

The expansion of higher education and brazilian regional inequality: an analysis in the frameworks of national education plans

Cristiane de Sousa Brito1 

André Rodrigues Guimarães2 

1Especialista em Política Educacional. Professora da rede privada de Educação Básica, Macapá, AP - Brasil. cris-brito56@live.com

2Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amapá, Macapá, AP - Brasil. andre@unifap.br


Resumo:

Este trabalho tem como objetivo analisar a expansão da educação superior nos marcos dos Planos Nacionais de Educação (PNEs), na perspectiva de enfrentamento à desigualdade regional brasileira. Considera as leis e documentos formulados para direcionamento da educação como importantes fontes de investigação, na direção de refletir as políticas elaboradas para reparação das desigualdades regionais. A metodologia utilizada consiste na pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados apontam que os PNEs não apresentaram soluções para o problema da desigualdade regional na expansão da educação superior. Conclui que a expansão desse nível de ensino ocorre de maneira assimétrica e continua a confirmar a exclusão social das regiões Norte e Nordeste do país.

Palavras-chave: Diversidade Regional; Educação Superior; Planejamento Educacional

Abstract:

This article aims to analyze the expansion of higher education in the frameworks of National Education Plans (PNEs), in the perspective of confronting the regional inequality in Brazil. It considers the laws and the documents formulated to orientation of education as important sources of research, in order to reflects policies designed to redress the regional inequalities. The methodology used consists of the bibliographical and documentary research. The results produced informs that the PNEs did not represent solutions to the problem of regional inequality in the expansion of higher education. It concludes that the expansion of this level of education occurs asymmetrically and continues to confirm the social exclusion in the regions North and Northeast of Brazil.

Keywords: Regional Diversity; Higher Education; Educational Planning

Introdução

A diversidade regional brasileira, expressão de riqueza cultural do país, caracteriza-se pelas diferentes formas de produção de bens materiais e imateriais herdados e construídos pelos distintos grupos que formam a Nação. De acordo com Rodrigues e Abramowicz (2013, p. 17), “[…] diante da crescente afirmação das identidades, a ideia de diversidade tornou-se acontecimento significativo em que grupos e indivíduos reafirmam seus particularismos locais e suas identidades étnicas, raciais, culturais ou religiosas.” Contudo, em nossa formação histórica, a diversidade tem sido marcada pela grande desigualdade regional, a qual também se expressa no descompasso das políticas públicas sociais.

No âmbito das políticas educacionais, a valorização do tema da diversidade é pouco perceptível. As leis e documentos que norteiam a educação, em sua maioria, desconsideram o processo histórico do desenvolvimento social e econômico que ocorreu de modo desigual no Brasil. Como consequência, na esfera da educação, os índices educacionais, da alfabetização à educação superior, continuam baixos nas regiões onde a exclusão social ainda é uma constante.

O tratamento conferido ao tema afirma a diversidade como fator de desigualdade, o que é visível no cenário atual da educação superior pública. Como aponta Sguissardi (2008, p. 29), “[…] é na educação superior que se pode verificar […] o problema da relação da educação e diversidade regional, ou melhor, podem observar-se as maiores assimetrias regionais neste campo.” Portanto, as disparidades regionais na expansão desse nível de ensino configuram um dos motivos da exclusão social no país.

As desigualdades regionais, evidentes em vários aspectos da sociedade, sobretudo na distribuição dos recursos destinados à educação, demandam a elaboração de políticas sociais para que sejam corrigidas. Na educação superior essas reparações devem ser previstas nas leis de planejamento da educação e garantidas pelo Estado, que tem o dever de possibilitar o desenvolvimento educacional de maneira que atenda às especificidades das regiões menos favorecidas economicamente. Nesse sentido, o setor público caracteriza-se como único capaz de solucionar os problemas da desigualdade regional. Voltando a Sguissardi (2008, p. 42):

Seria desnecessário repetir e enfatizar que apenas o Estado e seu polo público têm condições de enfrentar os problemas da diversidade regional, que se traduzem em disparidades, assimetrias e exclusão social. Assim também, que os interesses privado/mercantis dificilmente irão se mover para além dos municípios, estados e regiões onde estejam garantidos uma clientela com poder aquisitivo suficiente para pagar os serviços (quase-mercadorias) oferecidos e o lucro naturalmente visado.

Em vista disso, entende-se que os instrumentos de planejamento da intervenção estatal devem, para enfrentar a desigualdade regional, considerar a necessidade de fortalecimento do espaço público. Para a análise aqui abordada, destaca-se como central o Plano Nacional de Educação (PNE), conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988 em seu Art. 214. No texto constitucional original já estava indicado que o PNE deveria ter como intuito articular e desenvolver a educação nacional, integrando o poder público nas tarefas de erradicar o analfabetismo, universalizar a escolarização, melhorar a qualidade educacional, formar para o trabalho e promover o desenvolvimento humanístico e científico-tecnológico do país. Com a Emenda Constitucional 59/2009, esse artigo foi reformulado para, além da inclusão de mais um objetivo - estabelecer meta de ampliação de recursos públicos para a educação proporcional ao Produto Interno Bruto brasileiro -, explicitar que os PNEs, de duração decenal, devem articular o Sistema Nacional de Educação, em regime de colaboração dos entes federados, “[…] e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas […]” que permitam alcançar os objetivos educacionais estabelecidos constitucionalmente. (BRASIL, 2009)

Para garantir o cumprimento do Art. 214 o PNE deve atuar, com o fortalecimento do polo público, na perspectiva de valorização da diversidade e no enfrentamento da desigualdade regional brasileira. É fundamental que ações políticas sejam estabelecidas para eliminar o acesso desigual à educação nas distintas regiões do país, como mecanismo indispensável para erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento e garantia de formação escolar de qualidade. No caso específico deste estudo, considera-se como se deu o acesso nacional e regional à educação superior na vigência dos PNEs instituídos pós-1988.

Assim, o presente artigo tem o objetivo de analisar a expansão da educação superior nos marcos dos Planos Nacionais de Educação (PNEs), na perspectiva de enfrentamento à desigualdade regional brasileira nesse nível formativo. Para tal, analisa as temáticas da educação superior, diversidade e desigualdade regional nos dois últimos PNEs do Brasil; em seguida, demonstra, por meio de dados do Censo da Educação Superior, como ocorreram a expansão do setor e as desigualdades regionais no período 2001 a 2015; por fim, apresenta resultados e conclusões quanto às políticas públicas de ampliação do acesso e permanência na educação superior para as diversas regiões brasileiras.

Embora a reparação da desigualdade regional na expansão da educação superior represente uma responsabilidade social do Estado, na lógica mercantil isso é negligenciado. Como analisa Maués (2011), a educação superior tem sido alvo de inúmeras medidas que vêm contribuindo efetivamente para a sua reconfiguração, sendo que diferentes políticas foram implementadas com interesses meramente mercadológicos, na medida em que esse nível de ensino é considerado como um indutor do desenvolvimento e crescimento econômico.

Deu-se nesse contexto a aprovação do PNE, em 2001, com vigência de 10 anos. A Lei justifica as desigualdades apontando apenas a iniciativa privada como responsável pela expansão assimétrica, afirmando que o setor público cumpria e continuaria a cumprir sua função de diminuição das desigualdades regionais. Essa mesma questão apareceu como preocupação também na formulação do atual PNE, aprovado em 2014, com vigência de 10 anos.

Educação superior, diversidade e desigualdade regional nos marcos do planos nacionais de educação (PNE)

Neste item serão analisados o Plano Nacional de Educação - Proposta da Sociedade Brasileira (PNE-SB), formulado no II Congresso Nacional de Educação (CONED,1997) e o Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172/2001). Posteriormente, serão examinados o Documento Final da Conferência Nacional de Educação (BRASIL, 2010a) e o Plano Nacional de Educação (Lei n. 13.005/2014). Os dois momentos apresentarão reflexões que focam, em cada lei e documento, a relação entre público e privado e a democratização e as desigualdades regionais na expansão da educação superior.

O PNE da Sociedade Brasileira versus a Lei n. 10.172/2001

A construção de um Plano Nacional de Educação, a partir do estabelecido na Constituição Federal de 1988, indicava a possibilidade de a educação pública brasileira alcançar um padrão de qualidade. O que se esperava era a superação da difícil situação educacional do país, cenário de exclusão, desigualdades e manutenção de privilégios para alguns, marcas de seu caráter elitista. O PNE deveria representar um salto para a educação pública, gratuita e com garantia de qualidade para todos.

Em meio às discussões sobre a criação do Plano, na década de 1990, entidades da sociedade civil se organizaram e elaboraram sua proposta, o Plano Nacional de Educação - Proposta da Sociedade Brasileira, em 1997, no II Congresso Nacional de Educação (CONED). O documento justificou-se pela urgência na conscientização e mobilização popular frente à crise que a educação enfrentava, em meio ao governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Essa proposta representou um instrumento democrático de participação popular na organização da educação brasileira e consiste em:

[…] um documento-referência que contempla dimensões e problemas sociais, culturais, políticos e educacionais brasileiros, embasados nas lutas e proposições daqueles que defendem uma sociedade mais justa e igualitária e, por decorrência, uma educação pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade, para todos, em todos os níveis. (CONED, 1997, p. 02)

O PNE-SB foi protocolado no Congresso Nacional como Projeto de Lei (PL 4.155/982). Por sua vez, o Ministério da Educação elaborou, de imediato, o Projeto do Executivo, para que tramitasse ao mesmo tempo. Como resultado das discussões no Congresso Nacional foi elaborado um substitutivo que, em essência, mantinha a proposta governamental, o qual acabou sendo aprovado. O Projeto de Lei que originou o PNE (Lei n. 10.172/2001) não compreendia as pretensões da sociedade brasileira e, nesse sentido, o histórico da origem do Plano Nacional configurou-se em disputa de concepções contrastantes de educação.

Concernente ao ensino superior, o PNE-SB faz, num primeiro momento, um diagnóstico da situação da educação nacional, comparando com outros países latino-americanos. A partir disso, o Documento constatou que havia um baixo número de estudantes matriculados nesse nível de ensino e que, dentre os matriculados, um percentual mínimo estava na rede pública: “Na faixa etária de 18 a 24 anos, apenas 11% frequentam a universidade, e desses, apenas 3,5% estão em universidades públicas.” (CONED, 1997, p. 18) Verificou-se que, de um lado, a expansão estava ocorrendo rapidamente nas instituições privadas; de outro, o Estado se omitia no atendimento às necessidades das universidades públicas, especialmente em relação à aplicação de recursos financeiros.

O diagnóstico do PNE aprovado apresenta superficialmente a situação em que se encontrava a educação superior brasileira, retomando a constatação do PNE-SB, a qual citava o limitado acesso ao ensino superior, quando comparado inclusive a outros países da América Latina. Para justificar tal panorama negativo, a Lei afirma que o poder público cumpria sua função na reparação das desigualdades regionais. Conforme a Lei, registrou-se:

[…] no caso da educação superior, uma distribuição de vagas muito desigual por região, o que precisará ser corrigido. Deve-se observar, entretanto, que essa desigualdade resulta da concentração das matrículas em instituições particulares das regiões mais desenvolvidas. O setor público, por outro lado, está mais bem distribuído e cumpre assim uma função importante de diminuição das desigualdades regionais, função esta que deva ser preservada. (BRASIL, 2001, p. 30)

Diferentemente da Lei aprovada, o PNE-SB demonstrou, por meio de dados quantitativos e reflexões qualitativas, o cenário precário da educação superior pública no país. Desde aquela conjuntura já havia descaso das políticas governamentais para a educação superior, com destaque para as reduções de recursos financeiros e falta de verbas para a manutenção. Constatou-se que o Estado havia invertido as prioridades e se encaminhava na contramão da educação superior pública.

Em sentido contrário às críticas do PNE-SB, com relação à expansão da educação superior por meio do setor privado, o PNE (2001-2010) indica em suas diretrizes a expansão por meio das Instituições de Ensino Superior (IES) privadas como importantes fontes de contribuição na ampliação da oferta. A Lei incentivava o processo privatista do ensino superior como orientação política, fato confirmado pelos vetos que ampliavam investimentos para a educação pública. Conforme Lima (2015, p. 43),

O Plano Nacional de Educação 2001-2010 (BRASIL, 2001) foi aprovado com vários vetos presidenciais, anulando os subitens do Plano que promoviam alterações ou ampliavam recursos financeiros para a educação, especialmente aquele que tratava da alocação de 7% do PIB para a educação. Estes vetos estão inscritos no contexto de ampliação do número de IES privadas e de privatização interna das IES públicas.

A Lei propôs algumas medidas para a solução dos problemas que a educação superior enfrentava. Dentre as quais, apontou como objetivos e metas “prover, até o final da década, a oferta de educação superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos” (Meta 1) e “estabelecer uma política de expansão que diminua as desigualdades de oferta existentes entre as diferentes regiões do País” (Meta 3). Essas metas ficaram apenas na intenção, já que não houve destinação de recursos para sua efetivação, devido aos vetos. Assim, havia metas anunciadas e não garantidas, porquanto não existia a previsão de recursos para tal, o que levou a uma piora dos indicadores qualitativos.

Referente à diversidade e desigualdade regional brasileira, o PNE-SB citou o Brasil como o país que tem a pior distribuição de renda nas comparações internacionais. Também chamou a atenção para o cenário de descompromisso com as regiões mais pobres e alerta que:

[…] é necessário priorizar, em termos de recursos para a educação, sucessivamente: os estados mais pobres e, nestes, as regiões mais pobres; priorizar as regiões mais pobres dos estados com maior poder econômico; priorizar as regiões de maior déficit das áreas metropolitanas. Dessa forma procurar-se-á garantir a equalização educacional digna para todos os cidadãos brasileiros. (CONED, 1997, p. 38)

Diante do contexto político direcionado pela ideologia neoliberal, a elaboração do primeiro PNE representou uma disputa de diferentes concepções sobre o destino da educação. De um lado, a sociedade civil organizada lutava por uma educação pública, gratuita e de qualidade nos diversos níveis e garantida a todos. Em contrapartida, o Executivo instituía uma educação aos moldes do sistema capitalista, buscando gradativamente a mercantilização do ensino e a “desresponsabilização” do Estado na garantia desse direito. A concepção que se materializou na Lei n. 10.172/2001 expressa-se na ausência de compromisso com a expansão da educação pública, sobretudo do ensino superior, e com a superação das desigualdades regionais.

Após o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a política de incentivo à iniciativa privada na condução da educação superior do país foi mantida no governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). A nova gestão manteve e ampliou programas de cunho privatista, permanecendo o processo de mercantilização no setor.

Os anos finais do primeiro PNE deram início aos debates sobre o novo Plano Nacional de Educação 2011-2020. A Conferência Nacional de Educação (CONAE), em 2010, reuniu um conjunto de interessados no novo documento de planejamento para a educação, atentando para contribuições das regiões brasileiras. O documento originado dessa Conferência descrevia prioridades educacionais indicadas por segmentos da sociedade civil organizada. Posteriormente, o documento sofreu algumas modificações pelo governo e foi convertido no Projeto de Lei n. 8.035/2010. (BRASIL, 2010b)3

O novo PNE: a CONAE e a Lei n. 13.005/2014

O projeto da CONAE para o novo PNE foi construído ainda durante o governo Lula da Silva (2003-2010), todavia, a Lei só foi aprovada no governo Dilma Rousseff (2011-2016). A proposta da CONAE4 apontou como necessária a construção do Sistema Nacional de Educação, especificando as incumbências a serem executadas em todos os níveis de ensino. Para a educação superior, destaca a devida disponibilidade de docentes para suprir todas as precisões do ensino e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Discute ainda a relevância da autonomia universitária quanto às questões didático-científicas, administrativas e financeiras, já que esse direito está previsto na Constituição Federal de 1988.

Tratando-se de acesso ao ensino superior, o documento revela que um número reduzido de estudantes alcançava esse nível, devido à baixa oferta e frágeis condições de permanência, conceituando-o como elitista e excludente. Além disso, destaca que a expansão foi insuficiente para o alcance da democratização e que a qualidade estava abaixo do esperado; isso com o aumento considerável das matrículas nas instituições privadas de ensino.

No Brasil, pode-se afirmar que o acesso ao ensino superior ainda é bastante restrito e não atende à demanda, principalmente na faixa etária de 18 a 24 anos, pois apenas 12,1% dessa população encontram-se matriculados em algum curso de graduação (Inep, 2007). Além disso, 74,1% das matrículas estão no setor privado, enquanto apenas 25,9% estão em IES públicas; cerca de 68% das matrículas do setor privado são registradas no turno noturno, enquanto o setor público apresenta um percentual de 36%. (BRASIL, 2010a, p. 66)

Este diagnóstico foi praticamente o mesmo de dez anos anteriores à CONAE, ou seja, o avanço nas matrículas de educação superior foi pouco significativo. No diagnóstico do PNE (2001-2010), o número de matrículas nesse nível de ensino, tratando-se da população de 18 a 24 anos, era de menos de 12%. O primeiro Plano trouxe poucos resultados no que se refere à expansão do acesso e manteve a supremacia das IES do setor privado na oferta de vagas. De acordo com a CONAE, para combater essa crescente privatização da educação superior no país é indiscutível a urgência da expansão da oferta pública nesse nível educacional, garantindo-se a democratização do acesso e a permanência. A destinação de verbas públicas exclusivamente para instituições públicas, diretriz proposta no Documento, permitiria a inversão dos sinais relativos ao número de instituições e de matrículas, que se encontravam majoritariamente em instituições privadas.

O Documento menciona a questão da desigualdade regional ao abordar a necessidade de financiamento estatal para assegurar a construção do Sistema Nacional de Educação. Ressalta que, para avançar na perspectiva de garantir acesso universal e equitativo à educação básica de qualidade, cabe, “além elevação substancial de estudantes matriculados/as na educação superior pública, urge aumentar o montante estatal de recursos investidos na área, além de solucionar a desigualdade regional.” (BRASIL, 2010a, p. 103) Isso exigiria uma reforma tributária ordenada pela justiça social e pelo equilíbrio regional. Além disso, no que tange à diversidade, o Documento reitera que as instituições de ensino superior devem atender às especificidades dos estudantes, levando em consideração aspectos socioeconômicos, étnico-raciais, de gênero e culturais.

O Documento Final da CONAE orientou a criação do Projeto de Lei nº 8.035/2010. Apesar de esse PL que originou o novo PNE apresentar contribuição da sociedade civil em sua elaboração, observou-se que o governo Lula da Silva não demonstrou interesse em defender as propostas da CONAE que lhes eram contrárias. Ao mesmo tempo, foi notória a pretensão da gestão vigente de reduzir sua responsabilização para com o financiamento e a expansão com qualidade do ensino superior. Segundo Silva (2015), muitas propostas em favor da educação superior pública foram desconsideradas, como a destinação de recursos financeiros públicos exclusivamente a instituições públicas e o percentual mínimo do PIB de investimento na área.

O PL nº 8.035/2010 apresentado pelo governo consolidou-se, com algumas modificações, no atual PNE (Lei n. 13.005/2014). Este veio com o mesmo discurso do anterior, destacando que consiste em uma lei de logo prazo que visa dar o direcionamento para a obtenção de uma educação de qualidade a ser ofertada à população brasileira. Para isso ser possível, o Documento enumera vinte metas em seu anexo consideradas primordiais para o alcance da educação pública ideal no país. A referida Lei destaca o tema da expansão da educação superior em cursos de graduação na Meta 12, com 21 estratégias. No entanto, não atentou para a diversidade regional e as assimetrias regionais quanto ao acesso a esse nível de ensino, problema este que persiste ao longo da história do país. O texto faz proclamações sem garantias de efetivação. Nessa perspectiva, tal Meta 12 anuncia o dever de:

Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% (cinquenta por cento) e a taxa líquida para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% (quarenta por cento) das novas matrículas, no segmento público. (BRASIL, 2014)

Desse modo, a lei não especificou a destinação de recursos para essa Meta, portanto, era pouco efetiva para seu cumprimento. Os vários debates sobre a necessidade de um investimento imediato de, no mínimo, 10% do PIB para a educação foram postergados, posto que o PNE aprovado estabelece o prazo de dez anos para a efetivação de tal anseio da sociedade. Verificou-se ainda que a Lei incentiva a crescente privatização do ensino superior por meio de políticas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Prouni, destinando recursos que deveriam ser investidos em instituições públicas. Conforme o artigo 5º., & 4 (BRASIL, 2014):

O investimento público em educação […] engloba os recursos aplicados na forma do art. 212 da Constituição Federal e do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, bem como os recursos aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no Brasil e no exterior, os subsídios concedidos em programas de financiamento estudantil e o financiamento de creches, pré-escolas e de educação especial na forma do art. 213 da Constituição Federal.

Nesse sentido, o novo PNE considera investimento no setor privado como investimento público, reforçando a expansão da educação superior pelo segmento privado, na medida em que investe nesse setor e concede vantagens, como a isenção fiscal. Na Estratégia 12.6 fica evidente esse caráter privatista da estratégia de expansão da educação superior impulsionado pela Lei, a qual anuncia “expandir o financiamento estudantil por meio do Fundo de Financiamento Estudantil FIES” (BRASIL, 2014), em uma perspectiva contrária à ideia de exclusividade de investimentos públicos para as IES públicas. Da mesma forma, a estratégia 12.20 indica a ampliação do FIES e do Programa Universidade para Todos. (PROUNI)

O processo privatista da educação superior brasileira fica evidente nesse novo PNE. Ainda que seja considerado um avanço a aprovação dos 10% para a educação pública, a ser alcançado em 10 anos, o texto aprovado redefine o próprio conceito de público, ao permitir que sejam contabilizados os recursos destinados para o setor privado como investimento em educação pública. Além disso, possibilita a ampliação do espaço privado-mercantil na disputa do fundo público destinado às políticas sociais-educacionais.

Expansão da educação superior e desigualdade regional nos marcos do PNE

Quando se analisa a expansão da educação superior brasileira, no contexto dos PNEs, percebe-se que as regiões menos aquinhoadas no atendimento a esse nível de ensino são Norte e Nordeste. Os dados demonstram que a expansão não atingiu o previsto nos documentos e leis de planejamento educacional, além de não ter solucionado o problema da desigualdade regional.

Ao considerar a população brasileira por região constata-se, de acordo com a Tabela 1, que em 2001 a região mais populosa era o Sudeste (43,5%), seguida pelo Nordeste (28,8%), Sul (14,9%), Centro-Oeste (7,0%) e Norte (5,7%). Em 2015 o Sudeste continuou concentrando a maior parcela da população (41,9%), seguida pelo Nordeste (27,6%); ainda que com pequeno decréscimo, o Sul continuou tendo a terceira maior população (14,3%); já o Norte deixou de ser a região com menor população (com 8,6%), a qual passou a ser o Centro-Oeste (7,6%).

Tabela 1: Distribuição percentual da população por região (2001-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
2001 172.742 5,7 28,8 43,5 14,9 7,0
2005 185.651 8,0 28,1 42,4 14,5 7,1
2011 197.825 8,4 27,8 42,1 14,4 7,4
2015 204.860 8,6 27,6 41,9 14,3 7,6

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (IBGE, 2016)

Devido ao grande potencial industrial e maior concentração da renda nacional, as regiões Sul e Sudeste se destacam como as mais ricas, seguidas pelo Centro-Oeste, e Norte e Nordeste representam as regiões com piores níveis de renda e maior índice de pobreza do país. Tal fato se deve ao processo histórico de formação econômica dessas regiões, que sempre tendeu a reproduzir o elevado grau de desigualdade quando relacionadas às demais. Essas desigualdades não foram compensadas pelo Estado, consequentemente essas regiões sofrem com as diversas formas de exclusão, o que também se manifesta no acesso à educação superior.

Em conformidade com a pesquisa de Carvalho e Waltenberg (2015), o acesso ao ensino superior no Brasil não atende à demanda populacional. Acerca das matrículas, o que ocorre historicamente no país traduz forte relação entre o número de ingressos em IES e o desenvolvimento econômico regional. No recorte de 2001 a 2015, versando sobre o crescimento do número de instituições de ensino superior por região, é notável que em 2015 as regiões mais ricas acumularam o maior número delas, enquanto o Norte foi reduzido a 150 IES. Em todo o período, no contexto dos dois PNEs, a região Norte representou o menor índice de IES públicas e privadas. A Tabela 2 apresenta os dados referidos.

Tabela 2: Evolução de Instituições de Ensino Superior, Brasil e regiões (2001-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
Total % Total % Total % Total % Total %
2001 1391 61 4,4 211 15,2 742 53,3 215 15,5 162 11,6
2005 2165 122 5,6 388 17,9 1051 48,5 370 17,1 234 10,8
2011 2365 152 6,4 432 18,3 1157 48,9 389 16,4 235 9,9
2015 2364 150 6,3 456 19,3 1118 47,3 405 17,1 235 9,9
∆% 69,9 145,9 116,1 50,7 88,4 45,1

Fonte: Censo da Educação Superior (INEP, 2002; 2007; 2012; 2016)

A partir da análise da relação entre os dados das Tabelas 1 e 2 é possível confirmar que, ao longo do primeiro PNE (Lei n. 10.172/2001) e já na vigência do segundo (Lei n. 13.005/2014), as assimetrias regionais permaneceram. Como se pode verificar, a segunda região mais populosa do país, o Nordeste, atingiu em 2015 um número de IES bem aproximado da região Sul, que possui população relativamente menor. Em 2001, a região Nordeste, com a segunda maior população do país, concentrava 211 IES, enquanto o Sul, com índice equivalente à metade da população do Nordeste, ultrapassou esse número atingindo 215 IES no mesmo período. Dessa forma, percebe-se que o ano em que foi aprovado o primeiro PNE foi marcado pelas gritantes disparidades regionais no tocante ao acesso à educação superior, pública e privada.

Em 2015, passado o decênio do primeiro PNE e no segundo ano de duração do II PNE, a região Norte, com 8,5% da população nacional, evoluiu para um número de IES equivalente a 6,3% em relação ao total do Brasil, ao mesmo tempo que o Centro-Oeste, com 7,5% da população, possuía 9,9% delas. Esse cenário estatístico demonstra que, no processo de expansão, a distribuição das instituições se concentrou nas regiões economicamente mais ricas. É importante observar como se deu essa expansão considerando a relação público e privado.

De acordo com a Tabela 3, considerada a expansão da educação superior no setor público, verifica-se que em 2001 as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, juntas, somavam 68,3% do número de IES; já Norte e Nordeste, concentravam-se 31,7% das instituições na rede pública. Os dados praticamente não mudaram em 2015, durante a vigência do novo PNE, sendo que as referidas instituições estavam em percentual mínimo (30,5%) nas regiões Norte e Nordeste.

Tabela 3: Evolução de Instituições de Ensino Superior, setor público, Brasil e regiões (2001-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
Total % Total % Total % Total % Total %
2001 183 12 6,6 46 25,1 75 41,0 33 18,0 17 9,3
2005 231 16 6,9 60 26,0 98 42,4 39 16,9 18 7,8
2011 284 27 9,5 63 22,2 134 47,2 42 14,8 18 6,3
2015 295 24 8,1 66 22,4 151 51,2 35 11,9 19 6,4
∆% 61,2 100,0 43,5 101,3 6,1 11,8

Fonte: Censo da Educação Superior (INEP, 2002; 2007; 2012; 2016)

Cabe destacar que os dados também demostram que a expansão no número de IES públicas ficou abaixo do índice de expansão geral (público e privado), com exceção do Sudeste. Isso significa que a ampliação quantitativa das instituições nas regiões mais periféricas foi impulsionada, sobretudo, pelo setor privado, ainda que no Norte e Nordeste a expansão pública seja considerável no período, 100% e 43,5%, respectivamente. Esse processo de privatização está posto na Tabela 4.

Tabela 4: Evolução de Instituições de Ensino Superior, setor privado, Brasil e regiões (2001-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
Total % Total % Total % Total % Total %
2001 1208 49 4,1 165 13,7 667 55,2 182 15,1 145 12,0
2005 1934 106 5,5 328 17,0 953 49,3 331 17,1 216 11,2
2011 2081 125 6,0 369 17,7 1023 49,2 347 16,7 217 10,4
2015 2069 126 6,1 390 18,8 967 46,7 370 17,9 216 10,4
∆% 71,3 157,1 136,4 45,0 103,3 49,0

Fonte: Censo da Educação Superior (INEP, 2002; 2007; 2012; 2016)

A Tabela 4 mostra a evolução das Instituições de Ensino Superior no setor privado. Observa-se que de 2001 a 2015 as regiões Norte e Nordeste tiveram uma variação acima da média nacional. Relacionando as Tabelas 3 e 4, constata-se o exorbitante crescimento de IES privadas em comparação com as públicas, sendo que o Norte apresenta, em 2015, 24 instituições públicas e 126 privadas, e o Nordeste, respectivamente, 66 e 390. Ainda que a distribuição percentual de instituições privadas esteja, nessas duas regiões, abaixo da respectiva distribuição populacional, é preocupante o fato de as mesmas apresentarem a maior expansão privada entre 2001 e 2015: o Norte com 157,1% e o Nordeste com 136,4%, bem acima da média nacional de 71,3%. Dessa forma, verifica-se a expansão das IES em um processo de crescente privatização do ensino, sobretudo nas regiões menos favorecidas economicamente.

Conforme já indicado neste estudo, o fortalecimento do setor púbico é condição necessária para o enfrentamento das desigualdades regionais que se manifestam também na educação superior. Nesse sentido, o processo de expansão privado-mercantil acaba por reforçar a negligência histórica do Estado brasileiro no atendimento educacional, reafirmando as assimetrias regionais.

Para melhor apreensão desse processo expansionista faz-se necessário considerar a evolução das matrículas. Conforme dados do Censo da Educação Superior, entre 2001 e 2015 registrou-se expansão de 118,9% no número de estudantes matriculados em cursos de graduação presencial, de 3.030.754 para 6.633.545. O Norte e o Nordeste foram as regiões com maior índice de crescimento, respectivamente, 233,9% e 211,4%, seguidas do Centro Oeste (137,1%), Sudeste (97,1%) e Sul (69,7%). Com o crescimento bastante acima da média nacional, ampliou-se o número de matrículas nas regiões mais periféricas em relação ao total do país: no Norte passou de 4,7% para 7,1% e no Nordeste de 15,2% para 21,6%. De qualquer forma, ao comparar com os dados da Tabela 1, percebe-se que esses índices são inferiores aos percentuais populacionais de tais espaços geográficos e, em contrapartida, no Sudeste, Sul e Centro Oeste os índices de matrícula são sempre superiores à distribuição da população em geral. Em síntese, o movimento expansionista do acesso à educação superior, no período em análise, considerando o conjunto das matrículas, públicas e privadas, atenuou o acesso desigual a tal nível formativo, mas ainda assim permanecem disparidades.

Para elucidar esse cenário, considerando os objetivos deste estudo, é indispensável analisar a distribuição entre o público o privado na expansão. A Tabela 5 demonstra a evolução das matrículas presenciais no setor público.

Tabela 5: Evolução de matrículas presenciais no ensino superior público, Brasil e regiões (2001-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
Total % Total % Total % Total % Total %
2001 939.225 86.100 9,2 285.646 30,4 313.513 33,4 165.486 17,6 88.480 9,4
2005 1.192.189 124.763 10,5 352.757 29,6 377.053 31,6 223.378 18,7 114.238 9,6
2011 1.595.391 168.327 10,6 471.209 29,5 533.355 33,4 277.696 17,4 144.804 9,1
2015 1.823.752 186.069 10,2 539.359 29,6 631.597 34,6 300.342 16,5 166.385 9,1
∆% 94,2 116,1 88,8 101,5 81,5 88,0

Fonte: Censo da Educação Superior (INEP, 2002; 2007; 2012; 2016)

Verifica-se que, em 2001, o menor número de matrículas na educação superior pública estava na região Norte, com 86.100 (9,2%), e o maior número no Sudeste, com 313.513 (33,4%). Em 2011, o Norte passou a ser a segunda região com menor número de matrículas, detendo 10,6% das matrículas nacionais, mantendo a mesma posição, mas com redução na distribuição para 10,2%, em 2015. De qualquer forma, foi essa região que apresentou maior expansão nas matrículas públicas no interim 2001-2015, com 116,1% de evolução. O Sudeste apresentou queda no percentual de matrículas em 2005, mas retomou ao índice inicial em 2011, alcançando maior número em 2015, com 34,6%, ficando sempre à frente das demais regiões. O Nordeste sempre ocupou a segunda posição no quantitativo de matrículas do país, porém, com crescimento abaixo da média nacional, reduziu sua participação de 30,4% para 29,6%.

Em todos os anos é importante observar que o Sudeste é a única região com percentuais de matrículas públicas abaixo da distribuição da população em geral, como também é a região com maior quantidade de estudantes na educação superior, indicando o setor privado como o principal responsável pelo atendimento educacional em tal espaço, fato que guarda relação com o maior poder aquisitivo de sua população.

De qualquer forma, para as regiões mais excluídas economicamente, a intervenção estatal para garantir a ampliação do setor público é elemento positivo no enfrentamento das disparidades regionais, porém, para efetivação desse processo, deve-se considerar o movimento de expansão também do setor privado. Na Tabela 6 nota-se que a distribuição das matrículas presenciais do setor privado, no período de 2001 a 2015, obteve maior variação percentual nas regiões Norte (1.048,0%) e Nordeste (882,2%). As demais regiões apresentaram percentuais consideravelmente menores: Sudeste (214,7%), Sul (257,8%) e Centro-Oeste (410,4%). Desse modo, as regiões historicamente mais excluídas indicam uma expansão nas matrículas da educação superior direcionada para a privatização do ensino, uma vez que as matrículas no ensino privado comprovam esse processo.

Tabela 6: Evolução de matrículas presenciais no ensino superior privado, Brasil e regiões (2001-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
Total % Total % Total % Total % Total %
2001 2.091.529 55.792 2,7 174.669 8,4 1.253.097 59,9 436.102 20,9 171.869 8,2
2005 3.260.967 136.384 4,2 385.505 11,8 1.832.580 56,2 621.963 19,1 284.535 8,7
2011 4.151.371 217.390 5,2 667.749 16,1 2.222.280 53,5 651.750 15,7 392.202 9,4
2015 4.809.793 287.779 6,0 894.047 18,6 2.456.228 51,1 720.807 15,0 450.932 9,4
∆% 305,4 1.048,0 882,2 214,7 257,8 410,4

Fonte: Censo da Educação Superior (INEP, 2002; 2007; 2012; 2016)

O texto aprovado no Congresso Nacional da Lei nº 10.172/2001 instituiu, nas diretrizes da educação superior, que o setor público deveria ter uma expansão de vagas nunca inferior a 40% do total5, determinação vetada pelo governo FHC. O novo PNE (Lei n. 13.005/2014) retomou a garantia desse percentual mínimo no segmento público. Como compreensão basilar do presente estudo entende-se que não basta a expansão pública do acesso à educação superior para enfrentar o problema da desigualdade regional: é indispensável frear o crescimento do setor privado, pois o intuito de sua ampliação, distante de afirmar o direito à educação, busca mercantilizá-la, conforme orientações de organismos financeiros mundiais.

Ao analisar a Tabela 6, identifica-se que é o setor privado-mercantil o principal responsável pela ampliação do atendimento educacional. No Brasil, as matrículas presenciais do setor público, no período de 2001 a 2015, cresceram 94,2% (Tabela 5), enquanto no setor privado essa expansão alcançou 305,4%. Os casos mais alarmantes do crescimento mercantil estão exatamente no Norte e no Nordeste, com ampliação, respectivamente, de 1.048% e 882,2%. Como o crescimento do setor privado foi superior ao público, ampliou-se a participação do mercado em relação ao total de matrículas em tais regiões: em 2001, o setor privado detinha 39,3% das matrículas no Norte e 37,9% no Nordeste; em 2015, esse atendimento subiu, respectivamente, para 60,7% e 62,4%. Conforme já mencionado, esse tipo de expansão é incapaz de solucionar o problema do déficit educacional no setor, na perspectiva de expansão com ampliação de sua acessibilidade às populações e regiões economicamente mais desfavorecidas.

A Tabela 7 mostra que a oferta via Educação a Distância (EaD) expandiu-se em todas as regiões brasileiras: no Norte (29,1%), Nordeste (39,2%), Sudeste (49,4%), Sul (35,0%) e Centro-Oeste (37%). Percebe-se maior crescimento dessa modalidade de ensino nas regiões Nordeste e Sudeste, consideradas a mais pobre e a mais rica em recursos financeiros, respectivamente. Isso posto, constata-se a fácil disseminação da EaD por todo o território nacional devido a seus baixos custos e elevados lucros para as empresas educacionais e para o próprio Estado, que também vem aderindo a essa modalidade como no caso da Universidade Aberta do Brasil (UAB).

Tabela 7: Evolução das matrículas a distância no Ensino Superior, Brasil e regiões (2011-2015) 

Ano Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste
Total % Total % Total % Total % Total %
2011 992.927 134.557 13,6 187.698 18,9 355.278 35,8 214.857 21,6 100.537 10,1
2015 1.393.752 173.761 12,5 261.274 18,7 530.886 38,1 290.052 20,8 137.779 9,9
∆% 40,4 29,1 39,2 49,4 35,0 37,0

Fonte: Censo da Educação Superior (INEP, 2012; 2016)

Como uma das estratégias de expansão e para fins de seu ajustamento aos requisitos dos mercados de uma formação mais rápida e em larga escala, os governos brasileiros recorreram à Educação a Distância. O resultado é um elevado número de matrículas em cursos de baixa qualidade e pouco proveitosos no sentido de contribuir com uma educação de nível superior que encaminhe o sujeito à reflexão crítica da realidade que o cerca.

A expansão pela via privatista, ao invés de reparar, reafirma as desigualdades regionais. Para a população, são apontadas diversas facilidades de ingresso ao ensino superior privado, todavia as políticas voltadas para a permanência do estudante e a atenção à qualidade do ensino são insuficientes. Em sua maioria, as escolhas dos cursos de graduação já são direcionadas para formações rápidas e de baixa qualidade, como no caso específico da EaD: os estudantes já saem “treinados”, mas com frágil qualificação para a grande competitividade presente nos mercados de trabalho. Essa realidade traduz o cenário histórico da permanência de desigualdades regionais do país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.

Considerações finais

A partir da análise das leis e documentos formulados para direcionar a expansão e reconfiguração da educação brasileira e da leitura dos dados do Censo da Educação Superior, é possível constatar que foi enfatizado, nos PNEs, considerável apoio do poder público para a expansão das instituições privadas. Diante do processo de mercantilização educacional, percebe-se que na medida em que é limitado o investimento na expansão das universidades públicas, há um acréscimo na aplicação de recursos financeiros públicos no setor privado.

Nesse sentido, as políticas em curso para esse nível educacional continuam a atender aos interesses mercantis, ainda que, por vezes, se sustentem no discurso da democratização do acesso. Assim, conforme ressaltam Guimarães, Monte e Santiago (2011, p. 29):

Aparentemente a expansão desse nível de ensino apresenta um caráter ampliador das oportunidades educacionais, mas, essencialmente, representa o favorecimento das políticas neoliberais, incentivadoras do alargamento do mercado educacional tanto na proliferação das instituições e matrículas privadas quanto pela consolidação de tal lógica no financiamento das instituições públicas.

O contexto neoliberal revela-se como determinante e multiplicador das assimetrias educacionais regionais. O enfrentamento dessa questão deveria materializar-se nas leis de planejamento da educação, mas, na prática, tais leis simbolizam instrumentos de reprodução da lógica capitalista que, ao invés de reparar as desigualdades, as reafirma com a constante privatização da educação superior nas regiões que historicamente foram colocadas às margens.

No tocante aos documentos analisados, é importante considerar que há diferenças nos processos organizativos e nos fins políticos do CONED e da CONAE. Quanto ao ensino superior, por exemplo, percebe-se que, enquanto o primeiro fazia frente ao processo de privatização da educação, a CONAE, mesmo apresentando um discurso contra esse processo, incentivava o financiamento do nível superior por meio de programas privatistas como o Prouni e FIES. Desse modo, o documento final da CONAE representou a continuidade, em grande medida, das políticas para a educação implementadas no governo Lula da Silva.

O PNE anterior (2001-2010) e o atual (instituído em 2014) não materializaram as reivindicações da sociedade brasileira para a educação superior. É notável que ocorre uma busca constante pelo atendimento às demandas do capital em detrimento da expansão de uma educação superior pública para todas as regiões. Em tal contexto, a reparação das desigualdades regionais no acesso a esse nível de ensino fica impossibilitada, uma vez que pela iniciativa privada não são apresentadas condições para tal correção. Ao contrário, ocorre a reafirmação dessas disparidades.

Assim, os dados apresentados permitem verificar que a expansão de vagas na educação superior brasileira ocorreu de maneira assimétrica e direcionada à privatização do ensino, além de continuar a reafirmar a exclusão social das regiões Norte e Nordeste. Em vista disso, é necessária a criação de novas políticas públicas que possibilitem a ampliação do acesso e permanência, na perspectiva da democratização, combatendo a desigualdade regional da educação superior no país. Além disso, é imprescindível a retomada da luta contra a mercantilização, a favor de maiores investimentos financeiros e de políticas que de fato objetivem a garantia do direito ao ensino superior público, gratuito e de qualidade para todos, como expresso na Constituição Federal de 1988

Referências

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Notas

1 Estudo desenvolvido a partir de pesquisa com financiamento do CNPq - Chamada Universal 01/2016.

2 Segundo Maués (2011), o PNE-Proposta da Sociedade Brasileira foi encaminhado ao Congresso Nacional antes da proposta encaminhada pelo MEC, porém, o texto do Executivo foi o privilegiado para se tornar um Projeto de Lei e, como tal, foi apreciado e aprovado em janeiro de 2001

3 O PL 8.0352010 recebeu alterações em relação às propostas da CONAE. Esta indicava a ampliação para, no mínimo, 10% do PIB em educação, enquanto que o PL do PNE apontava um investimento de, no mínimo, 7% do PIB

4 Segundo Guimarães, Monte e Santiago (2011), essa Conferência almejou legitimar a política de contrarreforma da educação brasileira atribuindo-lhe um caráter democrático. Entretanto, o governo Lula da Silva, na construção da CONAE e do próprio PL 8.035/2010, manteve a mesma concepção restrita de democracia (nos moldes de FHC): a participação da sociedade é apenas para legitimar a política executada

5 “Deve-se assegurar, portanto, que o setor público, neste processo, tenha uma expansão de vagas tal que, no mínimo, mantenha uma proporção nunca inferior a 40% do total.” (Lei 10.172/2001)

Para referenciar este texto

BRITO, C. S.; GUIMARÃES, A. R. A expansão da educação superior e a desigualdade regional brasileira: uma análise nos marcos dos planos nacionais de educação. EccoS, São Paulo, n. 44, p. 43-66. set./dez. 2017

Recebido: 02 de Setembro de 2017; Aceito: 10 de Novembro de 2017

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