SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número44Visões de futuro em Freire e Dewey: perspectivas interculturais das matrizes (pós)coloniais das AméricasInterações Moodle-Mooc: presente e futuro dos modelos de e-learning y b-learning nos contextos universitários índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.44 São Paulo set./dez 2017  Epub 20-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n44.7381 

Artigos

Escritas de mim: narrativas e a autoformação docente

Written by me: Narratives and Self-teaching

Deise Cristina Carvalho de Jesus1 

Elvira Cristina Martins Tassoni2 

1Mestre em Educação. Professora da Rede Municipal de Paulínia e de Sumaré, SP - Brasil. deise_cristinacj@yahoo.com.br

2Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, SP - Brasil. cristinatassoni@puc-campinas.edu.br


Resumo:

Este artigo traz um recorte de pesquisa autobiográfica que investigou o processo reflexivo-formativo de uma das autoras, como movimento potencializador do desenvolvimento pessoal e profissional docente. A produção do material empírico foi feita por meio de rememorações das experiências vividas em um programa de formação em serviço para professores alfabetizadores, proposto pelo PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) de língua portuguesa, no ano de 2013. A pesquisa reuniu um conjunto de materiais relacionados diretamente ao curso de formação em questão, mas, contou ainda com narrativas escritas que foram se constituindo em um potente recurso reflexivo e de tomada de consciência, resultando em um processo formativo orientado pelo compromisso com a aprendizagem dos alunos num ambiente de produção de conhecimento e de respeito mútuo.

Palavras-chave: Formação de Professores; Pesquisa Autobiográfica; Planejamento Pedagógico

Abstract:

This article brings a review of an autobiographical research that investigated the reflexive-formative process of one of the authors as a movement that enhances the personal and professional development of teacher. The production of the empirical material was done by means of remembrances of the experiences lived in a program of in-service training for literacy teachers, proposed by the PNAIC (Portuguese National Pact for Literacy in the Right Age), in the year 2013. The research gathered a set of materials directly related to the training course in question, but also had written narratives that were becoming a powerful reflexive resource and awareness, resulting in a formative process guided by the commitment to the learning of the Students in an environment of knowledge production and mutual respect.

Keywords: Teacher Training; Autobiographical Research; Pedagogical Planning

1 Introdução

A biografização como metodologia de pesquisa científica no campo educacional iniciou-se no Brasil a partir século passado, movimento que foi denominado de “virada biográfica em educação.” (PASSEGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 370) Infelizmente, esse movimento sofreu ao longo do século XX (e ainda sofre) diversos preconceitos, advindos de concepções de ciência enraizadas nos moldes positivistas de pesquisa, ou seja, nos moldes que procuram uma ciência que dê resultados como verdades absolutas.

A autobiografia como pesquisa científica em educação preocupa-se com a investigação qualitativa das trajetórias que professores tiveram até hoje, e, por conseguinte, as trajetórias que esses mesmos professores poderão vir a ter, favorecendo-os na construção de seu identitário profissional (PASSEGI; SOUZA; VICENTINI; 2011).

É, portanto, uma ferramenta de autoformação, já que é pela escrita de si que a pessoa é levada a refletir sobre seu percurso de formação, seja em espaços formais, não formais e informais. É o que Pereira (2010, p. 97) argumenta: “[…] a escrita autobiográfica sugere um resgate mais subjetivo de ressignificação da própria história e construção da identidade docente.”

As lembranças foram provocadas por recursos que serviram de disparadores de memória: as pautas dos encontros de formação realizados na época, os livros de leitura para deleite realizada em cada encontro; os cadernos de formação oficiais do curso, as caixas de jogos do PNAIC, os vídeos do curso disponíveis on-line e as atividades desenvolvidas com os alunos de uma das autoras durante o curso. Esses disparadores de memória possibilitaram a experiência de (auto)revisitação do espaço formativo do curso, favorecendo a escrita de relatos que se tornaram o material empírico bruto da pesquisa. Frente a esses relatos, iniciou-se um intenso processo de reflexão a respeito dos conhecimentos que foram produzidos e apropriados pela pesquisadora, durante o curso de formação, e que se encontra presente ainda hoje em seu fazer pedagógico. Nesse processo de busca e reflexão foi possível perceber que a proposta de organizar as atividades por sequências didáticas é bastante significativa no trabalho docente realizado cotidianamente em sala de aula. Na pesquisa, foram rememoradas as sequências didáticas desenvolvidas com os estudantes, tanto durante como após o curso de formação, materializando-as em uma escrita narrativa. Tarefa difícil, de (auto)exposição, de (auto)avaliação, de reflexão, de estranhamento, de enfrentamento de resistências, crenças e (in)certezas.

Nesse sentido, no presente artigo, as escritas narrativas produzidas constituíram instrumento de autoformação, mobilizando reflexões que compuseram o processo de construção do fazer docente.

2 A escrita linear: o movimento intermediário do narrar

Para recuperar as experiências vividas no curso de formação foi fundamental ir até os “guardados do guarda-roupa” revisitar materiais do curso do PNAIC de língua portuguesa para professores do primeiro ano do Ensino Fundamental, ocorrido em 2013. Foram utilizados, como materiais mediadores da memória, o portfólio de atividades do Programa: uma pasta preta na qual as pautas dos encontros estavam organizadas, as anotações individuais das compreensões e incompreensões referentes aos encontros de formação e, também, as atividades desenvolvidas com os estudantes do 1º ano, referentes aos conhecimentos dos módulos dos cadernos de formação trabalhados pela formadora.

Outro material revisitado foi o conjunto dos cadernos oficiais de formação do Programa recebido no início do curso. Nesse processo de revisitação, foi possível identificar que as pautas dos encontros traziam outros materiais que foram utilizados no curso de formação, como os vídeos desenvolvidos por pesquisadores do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL), com o objetivo de complementar os cadernos de formação do PNAIC; os livros de literatura infantil que foram lidos pela formadora e que faziam parte do acervo dos materiais enviados às escolas dos municípios que aderiram a essa política de formação de professores; e a caixa de jogos de alfabetização, que foi também desenvolvida pelo CEEL e enviada a essas escolas municipais.

Esses recursos foram fundamentais para a produção de relatos escritos sobre o que significou esse curso de formação continuada. Foram produzidos 20 relatos escritos, um para cada dia do curso, relatos que se tornaram o material empírico bruto da pesquisa. Eram, inicialmente, temporalmente lineares e sequenciais em relação ao que era lembrado dos encontros. Escrever esses relatos foi um movimento intermediário para narrar!

Nesse movimento de rememorar/narrar/refletir as experiências vividas durante o curso de formação do PNAIC, foi possível identificar que, dentre as diversas propostas pedagógicas de alfabetização que os encontros exploraram, a mais significativa foi a sequência didática - uma modalidade de organização do trabalho pedagógico.

3 A redescoberta de si: implicações da escrita narrativa para autoformação docente

Durante o curso de formação, o contato com os autores Schneuwly e Dolz (2004, p. 82) trouxe um olhar importante para o pensar sobre a utilização da sequência didática para o ensino de um gênero textual. Esses autores apontam que a “[…] sequência didática é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito.”

A sequência didática pautando no ensino de gêneros textuais como forma de organização do fazer pedagógico faz todo sentido para o trabalho no ciclo de alfabetização e, à medida que se estreitavam as relações com os escritos de Schneuwly e Dolz (2004), maior encantamento com essa possibilidade acontecia. Pensar na organização do trabalho pedagógico por meio de sequências didáticas, no âmbito da alfabetização, ajudava na concretização de um ensino que contemplasse as mais diversas esferas do ato educativo, isto é, possibilitava aos estudantes a aquisição de conhecimentos socioculturais como a produção de diversos gêneros textuais orais ou escritos e a reflexão sobre o sistema de escrita alfabética, oferecendo condições para que os estudantes e os professores fossem os protagonistas do fazer pedagógico.

Rememorar/narrar/refletir sobre o fazer pedagógico nos leva a conceber a sala de aula como espaço de autoformação. Segundo Pimenta (2005, p. 29), o espaço educativo possibilita “[…] os professores reelaborarem os saberes iniciais em confronto com suas experiências práticas, cotidianamente vivenciadas nos contextos escolares”.

Ao longo do uso do método de rememoração e de reflexões destacou-se o grande investimento no trabalho com sequências didáticas, durante e depois da realização do curso do PNAIC, observando-se que o forte envolvimento dos estudantes no decorrer do trabalho repercutia na aprendizagem dos diferentes tipos de conteúdos. A primeira sequência didática foi referente ao conto de acumulação: O grande rabanete, da escritora Tatiana Belink, e aconteceu ainda no transcorrer do curso de formação. Já as demais foram desenvolvidas nos anos subsequentes -Branca de Neve com o enfoque no ensino do gênero conto de fadas; e a sequência didática referente às Olimpíadas, que objetivou trabalhar com o ensino do gênero instrucional sob uma abordagem interdisciplinar.

Nessa atividade de narrar e refletir sobre o planejamento das sequências didáticas realizadas, as lembranças remeteram a uma forte preocupação de propor desafios possíveis para todas as crianças, desafios que garantissem o avanço de todos os estudantes na compreensão do sistema notacional de escrita, bem como na apropriação das características principais dos gêneros textuais explorados. Para autores como Silva (2009, p. 47), “[…] isso significa considerar que determinadas capacidades da alfabetização, para serem consolidadas em um dado tempo, precisam ser desenvolvidas por meio da proposição de um repertório variado de situações que serão realizadas”, ou seja, planejar as atividades com os desafios possíveis para cada criança, pois

[…] é preciso considerar as diferenças das aquisições de conhecimentos e experiências dos alunos com a língua escrita. Essas diferenças, comuns em todas as salas de aula, indicarão para o professor quais atividades podem ser realizadas por todos os alunos, pois envolvem habilidades que todos dominam, e quais precisam ser realizadas por meio de orientações específicas para os grupos diferenciados. (op.cit., p. 53)

Então, ao planejar as sequências didáticas, três aspectos mobilizaram as reflexões: o sistema de escrita alfabética, o gênero textual e a heterogeneidade da classe. Assim, o uso de letras móveis em arranjos diversificados de agrupamentos de crianças foi altamente potencializador para promover as discussões/reflexões sobre o sistema de escrita alfabética. Nessa condição, uma criança era a mediadora de outra no processo de aprendizagem do sistema de escrita alfabética, além da mediação do professor.

Valorizar a heterogeneidade elaborando atividades desafiadoras e possíveis para cada criança foi um conhecimento metodológico que, durante o curso do PNAIC, foi revigorado. É possível planejar uma mesma proposta de atividade para a sala inteira, realizando, entretanto, variações para cada grupo de estudantes, pensando nos conhecimentos que esses estudantes já possuem e quais precisam ainda se apropriar para avançar.

No que se refere aos saberes sobre o sistema de escrita alfabético, o trabalho em pequenos grupos favoreceu o desenvolvimento de conteúdos conceituais, pois as crianças refletiam sobre quais letras usar e em que ordem. Da mesma forma, contribuiu para o desenvolvimento de conteúdos atitudinais, pois as crianças iam aprendendo a dialogar e a respeitar a opinião e a vez do outro. Planejar diferentes agrupamentos, tendo como eixo os diferentes saberes sobre o sistema de escrita alfabética, potencializava a produção de conhecimentos. Não se trata aqui de grupos anexados aleatoriamente, mas uma formação planejada de maneira intencional para que as trocas fossem produtivas. Os agrupamentos são ótimas ferramentas para a aprendizagem de conteúdos atitudinais e, pensando que esses conteúdos devem ser ensinados na escola, ao agrupar os estudantes, eles trocam seus conhecimentos acerca das relações pessoais e de civilidade, através de assembleias e debates, tendo também o professor como mediador. Uma dinâmica assim, em sala de aula, oportuniza a formação ética, visando à construção de valores, tanto no que se refere às relações sociais, como também no que se refere à apropriação do conhecimento.

Nesse sentido, as sequências didáticas desenvolvidas contribuíram, sobremaneira, para a contextualização de conhecimentos, especialmente nesse caso, os relacionados ao uso da linguagem escrita e ao funcionamento do sistema de escrita alfabética. As sequências didáticas contribuíram para a organização de um trabalho que promoveu “[…] tanto o domínio de capacidades específicas da alfabetização quanto o domínio de conhecimentos e atitudes fundamentais envolvidos nos diversos usos sociais da leitura e da escrita […]” (MACIEL; LÚCIO, 2009, p. 17)

Ao propor que o ensino da técnica de escrita seja valorizado pelas escolas, mas de maneira articulada ao uso social da linguagem escrita, Soares (2004, p. 14) corrobora a relação alfabetização e letramento:

Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita - a alfabetização - e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita - o letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização.

Discutir a respeito do funcionamento do sistema de escrita alfabética, a partir dos textos selecionados para o desenvolvimento de cada sequência didática, possibilitava uma exploração da linguagem escrita impregnada de significação. Tal condição contribuía muito para a inserção dos estudantes do 1º ano no universo do letramento. Durante uma análise de um dos trechos da história O grande rabanete da autora Tatiana Belink, os estudantes envolvidos com a identificação de outras marcas gráficas que não eram letras, perguntaram sobre a vírgula. Narrar essa passagem hoje, trouxe, concretamente, o que Pimenta (2005) já destacou - diante da ausência de conhecimentos fundamentados, recorre-se a saberes provenientes das experiências vividas. Nessa situação especificamente, os saberes mobilizados se relacionavam aos saberes na época de estudante durante a escolarização básica. As lembranças das leituras feitas para nota e a avaliação da professora: “Você não engasgou na leitura, porém não respeitou a vírgula. Quando tiver vírgula, dê uma paradinha para respirar” - ecoaram forte e a reprodução dessas ideias a respeito da vírgula ressurgiu. Luft (1998) é um autor bem crítico em relação a essa concepção de senso comum sobre a vírgula como uma pausa na fala. Comenta que em muitas gramáticas a vírgula corresponde a uma pausa, porém nem toda pausa corresponde a uma vírgula. Nesse sentido, para ele, essa colocação não é apropriada e nada tem a ver com o real uso da vírgula.

Para Nascimento (1998), a nossa escrita é pautada na oralidade. Entretanto, escrita e fala são dois âmbitos distintos da língua portuguesa e a escola deve ensinar as diferenças inerentes a cada um deles. O referido autor fortalece ainda mais a concepção de Luft (1998), ressaltando que o uso da vírgula é um conhecimento específico da linguagem escrita e sua plena compreensão não está exclusivamente relacionada à oralidade.

Destacando, agora, o trabalho relacionado ao gênero textual, cada uma das sequências mencionadas privilegiou um gênero textual oral ou escrito. Na sequência didática referente ao conto de acumulação: O grande rabanete (Tatiana Belink), as crianças foram desafiadas a compreender a estruturação do gênero conto de acumulação. Com a leitura da história, muitas crianças estabeleceram relação com o livro: O caso do bolinho, que já conheciam. Este livro é da mesma autora e as crianças queriam saber se ela sempre escrevia textos com repetição. Esse questionamento, bem como a relação entre as duas histórias não haviam sido previstos. Por isso, o replanejar foi necessário, pensando em estratégias para aproveitar os questionamentos das crianças e ajudá-las a compreender um pouco mais sobre algo que, intuitivamente, percebiam. Fagundes (2016, p. 291) considera “[…] que na prática da profissão existem situações incertas, conflituosas e singulares, que exigem do profissional a criação de situações inéditas e a construção de estratégias de ação para resolvê-las.” Seria esse um exemplo concreto de reflexão-na-ação?

Para solucionar essas situações inéditas das aulas, o professor mobiliza conhecimentos acerca de eventos similares vivenciados por ele ao longo de sua trajetória profissional. Libâneo (1994, p. 179) destaca que “[…] é importante assinalar que a estruturação da aula é um processo que implica criatividade e flexibilidade do professor, isto é, a perspicácia de saber o que fazer frente a situações didáticas específicas, cujo rumo nem sempre é previsível.”

Nesse sentido, partindo do princípio de que o espaço da sala de aula é local de tomada de decisão pelo professor, a estratégia metodológica escolhida foi utilizar as dúvidas das crianças como mecanismo mobilizador para promover a compreensão das mesmas. Um conceito que retrata essa ideia - “enfoque profundo” -, que significa uma condição especial conquistada pelas crianças durante as tarefas, foi elaborado por Solé (2004, p. 34), mostrando que elas são capazes de ter grande “[…] intenção de compreender; forte interação com o conteúdo; relação de novas ideias com o conhecimento anterior; relação de conceitos com a experiência cotidiana; relação de dados com conclusões; exame da lógica dos argumentos.” Parece que esse conceito pode se aproximar do que Vigotski denominou de internalização. Nesse sentido, o questionamento feito pelas crianças já demonstrava o início do processo relacionado ao conceito de enfoque profundo, pois elas relacionaram o conteúdo de um trabalho já desenvolvido meses antes, com o livro O caso do bolinho e a nova situação gerada com o livro O grande rabanete. Ao narrar essas experiências, o questionamento é: e se aquela pergunta fosse ignorada? Os alunos teriam sido impedidos de pensar sobre aquilo que estavam intuindo. Talvez pudessem se sentir excluídos do processo, desmotivados, desinteressados.

Nessa passagem, mais uma vez Pimenta (2005) nos ajuda a pensar sobre as decisões pedagógicas tomadas pelos professores, que muitas vezes são influenciadas por experiências anteriores nos casos: das explicações sobre o uso da vírgula, influência de experiências escolares; no caso da discussão sobre o gênero textual dos dois livros de Tatiana Belink, a influência de experiências profissionais anteriores. Nesse sentido, as experiências antigas compõem a prática educativa. Mas, dessa vez, considerando os questionamentos dos estudantes e das relações que fizeram entre as histórias, a estratégia que compunha o repertório das experiências docentes foi a análise de texto bem escrito, na qual se seleciona um trecho do gênero em estudo e o escreve na lousa, juntamente com os estudantes, para realizar uma reflexão e discussão sobre as características do gênero, quanto aos seus aspectos linguístico e estrutural. A lembrança dessa estratégia fez com que trechos de cada uma das histórias fossem escritos na lousa para esclarecer as dúvidas das crianças. E deu certo! Elas demonstraram compreender as características do gênero conto de acumulação, porque ao materializar, por meio da escrita de trechos dos dois livros, foi possível refletir com os alunos tais características.

Essa ação refletida e planejada de última hora foi de extrema importância para que os estudantes se sentissem os protagonistas do processo, em que suas opiniões e dúvidas foram consideradas para serem esclarecidas e repensadas (ZABALA, 1998). Além disso, concretizaram uma ideia que apenas intuíram. Será que é assim que as zonas de desenvolvimento proximal vão tornando-se desenvolvimento real? O conceito de zona de desenvolvimento proximal (ou zona de desenvolvimento imediato) é muito promissor para o contexto da sala de aula. Para Vigotski (2007), tal conceito refere-se a funções psicológicas que ainda não estão desenvolvidas plenamente e, por isso, se traduzem em ações que os estudantes fazem em colaboração, seja de um adulto ou de uma criança mais experiente. Observou que tais ações já são mais elaboradas que o seu desenvolvimento real, que se refere “[…] ao nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados […]” (VIGOTSKI, 2007, p. 95), ou seja, um conjunto de habilidades já desenvolvidas que possibilitam que a criança realize com autonomia algumas atividades, sem o auxílio de adultos e ou de crianças mais velhas. Assim, “[…] a zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário.” (VIGOTSKI, 2007, p. 98)

Nas outras sequências didáticas, os gêneros textuais explorados para o estudo sistemático foram: contos de fadas, texto de divulgação científica e texto instrucional. Na sequência didática em que o gênero conto de fadas foi explorado, as etapas descritas por Schneuwly e Dolz (2004) foram seguidas no planejamento, a saber: apresentação do gênero; produção escrita inicial; módulos de atividades planejadas para a exploração de especificidades do gênero em questão; produção escrita final. Na etapa de apresentação do gênero, as crianças produziram coletivamente a reescrita do conto de fadas da Branca de Neve, para ser lida, depois, para as demais salas do 1º ano da escola. Os estudantes se envolveram muito no trabalho, produziram coletivamente a reescrita do conto de fadas da Branca de Neve e participaram do momento de revisão de texto. Durante o processo de revisão, as crianças identificaram, rapidamente, a presença de informações confusas no texto. Por meio de questionamentos o grupo foi pensando sobre o melhor jeito de explicar e reescrever. O fato de as crianças saberem que o texto produzido por elas seria lido para outros alunos fez com que se preocupassem com o como dizer/escrever para melhor compreensão dos leitores. Geraldi (2003, p. 65) destaca que as crianças devem ser submetidas a momentos de reflexão sobre a escrita produzida, com o intuito de rever as informações escritas e avaliar o melhor jeito de escrevê-las, tomando como base a compreensão de que o texto deverá ser lido por outras pessoas, pois “[…] afinal qual é a graça em escrever um texto que não será lido por ninguém ou que será lido por apenas uma pessoa?”

Ao término do processo de reescrita e revisão do texto, as próprias crianças sugeriram que a reescrita do conto Branca de Neve fizesse parte do “Sarau de Leitura”, para que os outros estudantes da escola pudessem ouvir. O Sarau era um projeto que existia na escola naquela época, em que as crianças escolhiam uma sala, segundo a história que desejavam ouvir. Os professores faziam um cartaz com a sinopse do livro e também com as informações catalográficas: nome do autor, nome da história, editora e ano de publicação. Esse cartaz ficava exposto na porta de cada sala para que as crianças pudessem escolher a história que gostariam de ouvir. Um projeto bastante interessante que estava dando muito certo na escola, tanto que as crianças se sentiram motivadas em participar como autoras.

Na sequência didática referente às olimpíadas, o gênero central foi o instrucional. As crianças elegeram o futebol como esporte que gostariam de aprender mais. No entanto, muitos estudantes relataram que não possuíam bola em casa. Assim, a primeira proposta foi fazer, na aula de artes, bolas de meia. Em seguida os estudantes fizessem a escrita do texto instrucional, em duplas, sobre como se faz a bola de meia. Dessa vez, ao invés de iniciar com a escrita coletiva do texto na lousa, por se tratar de uma sala de 2º ano do Ensino Fundamental e as crianças demonstrarem um bom repertório sobre o conhecimento do sistema de escrita alfabética, a proposta foi a escrita, em duplas, de um texto instrucional, ensinando a fazer a bola de meia. Realizar uma proposta como essa em dupla, em que eles deveriam ouvir a opinião do outro, foi muito difícil no começo! Eles estavam acostumados com a individualidade nas tarefas. Nesse tipo de proposta, as duplas de estudantes recebiam apenas uma folha. Mesmo com recorrentes explicações de que eles fariam juntos, um escreveria e o outro ditaria a escrita, cerca de 70% da sala questionava: “Prô, você não deu a minha folhinha!”. Negociar as ideias, argumentar e decidir o que seria escrito não eram procedimentos que fluíam tranquilamente. Era comum ouvir: “Faz você sozinho, você não é ‘sabichão’?” Era preciso insistir nesse modo de trabalho, pois o que faltava às crianças era repertório para o trabalho em grupo, e a certeza era que desistir não seria o caminho a escolher!

Ao propor uma escrita em duplas, a aposta era em uma maior autonomia das crianças para a escrita desse gênero textual, pois elas já haviam tido muito contato com textos instrucionais. Mesmo considerando que essa seria a produção inicial e que poderia apresentar problemas de normatividade e discursividade, a expectativa era de que algumas características do gênero tivessem sido internalizadas pelas crianças. Entretanto, nenhuma das produções realizadas apresentou as características próprias de um texto instrucional. Teberosky (2003) nos ajudou a refletir que não basta ler para as crianças textos de um determinado gênero; a leitura por si só não garante que as crianças se apropriem do gênero.

Diante disso, o recurso metodológico de escrever na lousa um texto instrucional, com o objetivo de realizar uma análise sobre as especificidades desse gênero, foi a opção feita. Algumas crianças, por estarem acostumadas a escrever textos sempre começando com “Era uma vez”, questionaram: “Esse texto não começa com era uma vez?!”, evidenciando, portanto, que desconheciam outras possibilidades de se iniciar um texto escrito. Para essas crianças, qualquer texto deveria começar com “Era uma vez”. Desafio dado: desconstruir essa visão de que todos os textos se iniciam dessa forma. Essas crianças precisavam conhecer diferentes tipos de textos, “[…] refletindo sobre as relações entre suas características composicionais e suas funções […].” (MACIEL; LÚCIO, 2009, p. 25)

Para realizarmos a revisão textual coletiva, foi escolhida uma das produções que apresentava problemas de discursividade e textualidade - uma produção que iniciava com “Era uma vez”. As crianças, logo de início, evidenciaram que “Era uma vez” é usado para conto e não para texto instrucional. Elas observaram, também, embora não tivessem dito com essas palavras, que esse tipo de discurso não era o adequado a esse tipo de texto. Segundo elas, o texto instrucional é como se estivéssemos “mandando” alguém fazer algo. Outras crianças observaram que o texto instrucional tem divisões: nome do que se vai fazer, materiais necessários, modo de fazer. E assim o texto foi revisto!

Segundo Vigotski (1996), a aprendizagem precede o desenvolvimento, ou seja, é o processo de aprendizagem que vai gerando desenvolvimento. Mas o autor deixar claro que essa aprendizagem é sempre mediada pelos signos e, de maneira muito importante, pelas outras pessoas. Nesse sentido, discutir coletivamente ou organizar a sala em pequenos grupos, conforme a proximidade do nível de aprendizagem, criam-se muitas zonas de desenvolvimento proximal que estabelecem relação com a bagagem de conhecimento que cada criança traz e, durante as trocas de conhecimentos entre estudantes/estudantes e estudantes/professor, esses conhecimentos que antes faziam parte da zona de desenvolvimento proximal passam a compor, processualmente, o desenvolvimento real, e a zona de desenvolvimento proximal se amplia para a apropriação de novos conhecimentos.

Assumir essa concepção sobre as relações entre ensinar e aprender significa privilegiar a troca de ideias entre todos os envolvidos na ação docente - professor e estudantes -, com o intuito de ampliar a zona de desenvolvimento proximal dos estudantes, visto que não existe fim no processo educativo. Nesse aspecto, alunos e professor aprendem. Nessa relação dialógica (professor-aluno) há produção de conhecimentos profissionais, a partir da observação de que nem todas as práticas e ou intervenções planejadas são eficazes, pois, às vezes, as crianças redirecionam a forma de olhar, para algo que não havia sido previsto. Nesse sentido, as crianças atuam na zona de desenvolvimento proximal do professor, fazendo-o pensar em outras formas de se trabalhar, visando acolher os questionamentos das crianças para fazê-las se sentirem parte do processo.

Tardif (2002, p. 30) nos ajuda a compreender que o professor constrói conhecimentos em sua prática pedagógica, mas, na ação docente, ele faz uso de outros saberes para constituir seu ato de ensinar, ou seja, o professor faz uso de “[…] um saber plural, formado por uma amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais.” Segundo Tardif (2002), os saberes são de cunho científico, advindo das ciências da educação; disciplinares, que se preocupam com apenas uma área do conhecimento; curriculares, correspondentes aos objetivos e metodologia para o trabalho em sala; e, por fim, os saberes da experiência, originados das relações professor-aluno. Portanto, deparamos constantemente com situações em aula em que as crianças, de certa maneira, colocam em “xeque” nossos conhecimentos (científicos disciplinares, curriculares e da experiência), fazendo-nos refletir e buscar caminhos teórico-metodológicos sobre como reorganizar a prática.

As sequências didáticas rememoradas aqui apontam para o trabalho sistemático sobre os conteúdos conceituais e procedimentais da língua portuguesa, tendo os conteúdos atitudinais como os saberes que atuam transversalmente sobre dois primeiros conteúdos (conceituais e procedimentais). Nesse sentido, tais sequências sempre exploraram a reflexão sobre o sistema de escrita alfabética, a análise estrutural e linguística de gêneros textuais e também sobre a questão da heterogeneidade, partindo sempre do levantamento dos conhecimentos prévios das crianças e possibilitando a construção de formas de se relacionar em sala de aula. A proposta de trabalho organizada por meio de sequência didática, além de abranger a possibilidade para a exploração dos conteúdos referentes à língua portuguesa, traz segurança para o planejamento da prática educativa.

4 Considerações finais

No exercício de refletir sobre o vivido, instaura-se um processo de redescoberta profissional. Escrever narrativamente, refletindo o processo formativo é como montar um quebra-cabeça. Presente, passado e futuro se entrelaçam com a professora que se está hoje. Ao escrever nos apoderamos de argumentos teóricos para sustentar práticas e crenças, mas também, nesse mesmo movimento de escrita-reflexão, surge um forte apelo à desconstrução de práticas e de crenças.

A consolidação da pesquisa autobiográfica como investigação científica da própria prática pode constituir importante avanço para o campo da formação de professores, pensando a ética no desenvolvimento da profissão, gerando compromisso com uma educação para o empoderamento de professores e de alunos

Referências

FAGUNDES, T. B. Os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo: perspectiva do trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.1, n. 65, abr./jun, p. 281-298, 2016. [ Links ]

GERALDI, J. W. Práticas de sala de aula .In: GERALDI, J. W . (Org.). O texto em sala de aula. 3. ed. São Paulo: ABDR, 2003. p. 57-79. [ Links ]

LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994. [ Links ]

LUFT, C. P. A vírgula. Considerações sobre seu ensino e seu emprego. 2. ed. São Paulo: Ática,1998. [ Links ]

MACIEL, F. I. P.; LÚCIO, I. S. Os conceitos de alfabetização e letramento e os desafios da articulação entre teoria e prática. In: CASTANHEIRA, M. L.; MACIEL, F. I. P. ; MARTINS, R. M. F. (Org.). Alfabetização e letramento na sala de aula. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. [ Links ]

NASCIMENTO, M. A Alfabetização como objeto de estudo: uma perspectiva processual. In: ROJO, R. (Org.). Alfabetização e letramento: perspectivas linguísticas. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 33-60. [ Links ]

PASSEGI, M. C.; SOUZA, E. C.; VICENTINI, P. P. Entre a vida e a formação: pesquisa (auto) biográfica, docência e profissionalização. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 369-386, abr. 2011. [ Links ]

PEREIRA, J. A. As escritas das memórias do PEC: usos e sentidos atribuídos pelo professor orientador. 2010, 120 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-14062010-133942/pt-br.php . Acesso em: 17 jan. 2017. [ Links ]

PIMENTA, S. G. Saberes pedagógicos e atividade docente. 4. ed. São Paulo: Cortez , 2005. [ Links ]

SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras , 2004. [ Links ]

SILVA, C. S. R. O planejamento das práticas escolares de alfabetização e letramento. In: CASTANHEIRA, M. L. ; MACIEL, F. I. P. ; MARTINS, R. M. F . (Org.). Alfabetização e letramento na sala de aula. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]

SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 8-17, jan./fev./mar. 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf . Acesso em: 9 set. 2014. [ Links ]

SOLÉ, I. Disponibilidade para a aprendizagem e sentido. In: COLL, C.; MARTÍN, E.; MAURI, T.; MIRAS, M.; ONURUBIA, J.; SOLÉ, I .; ZABALA, A. (Org.). O construtivismo na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Ática , 2004. p. 29 - 56. [ Links ]

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. [ Links ]

TEBEROSKY, A. Compor texto. In: TEBEROSKY, A .; TOCHINSKY, L. Além da alfabetização. 4. ed. São Paulo: Ática , 2003. p. 85 - 116. [ Links ]

VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor. 1996.t. III. [ Links ]

VIGOTSKI, L. S . A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. [ Links ]

ZABALA, A . A prática educativa: como ensinar. São Paulo: Artmed, 1998 [ Links ]

Para referenciar este texto

JESUS, D. C. C.; TASSONI, E. C. M. Escritas de mim: narrativas e a autoformação docente. EccoS, São Paulo, n. 44, p. 225-240. set./dez. 2017

Recebido: 15 de Maio de 2017; Aceito: 20 de Setembro de 2017

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons