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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.44 São Paulo set./dez 2017  Epub 21-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n44.7638 

Resenhas

L’ordine del tempo

Ana Maria Haddad Baptista.1 

1Mestra e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Pós-doutoramento em História da Ciência pela Universidade de Lisboa e PUC/SP. Pesquisadora e professora dos programas em Educação stricto sensu e do curso de Letras da Universidade Nove de Julho. professoraanahb@gmail.com

L’ordine del tempo. Rovelli, Carlo. Milão: 2017. 205 pp.


Carlo Rovelli é um físico e cosmólogo que se distingue não somente por pesquisas em suas áreas mais específicas, mas, sobretudo, como poucos, dialoga com a Filosofia, a História, a Sociologia e a Literatura. Um dos objetos centrais de seus trabalhos em andamento estão relacionados com o tempo, com vários livros de sua autoria já traduzidos para mais de quarenta línguas.

Leciona, atualmente, na Universidade de Aix-Marseille (França), onde dá continuidade a uma série de pesquisas em que busca realizar o velho sonho, desde Einstein, de conciliar a Teoria da Relatividade com a mecânica quântica, um dos pontos de maior discordância entre os físicos. Lembremos que a área da Física é aquela que objetivamente (para o bem ou para o mal) estrutura o que se denomina de ‘real’.

Qual é a proposta do livro em questão? Uma profunda revisão em relação a conceitos que envolvem o tempo e suas mais variadas dimensões. O livro se divide em três partes distintas. Na primeira parte, intitulada O tempo desintegrado, o autor faz reflexões a respeito de temporalidade em uma linguagem que oscila entre o técnico e diversas imagens (não verbais), para dar maior exatidão aos conceitos que pretende abordar ao longo do texto. O foco principal dessa parte é a discussão sobre a percepção superficial que, geralmente, se faz do tempo. Rovelli alerta que a maioria quase absoluta das pessoas não percebe, por exemplo, que numa montanha de grande altitude o tempo corre mais depressa do que numa planície.

O autor em questão lembra, a nós leitores, que a partir da Relatividade a humanidade, assim como as ciências, tiveram que repensar todas as implicações de temporalidades. O que isso significa? Que as dimensões de passado, presente e futuro sofreram profundas alterações. Na verdade, não há um presente universal como se acreditou até antes da Relatividade, ou seja, não há um tempo e um espaço absolutos (concepções de Newton). Hoje se sabe que muitas das estrelas que contemplamos no céu já morreram há milhões de anos; ou, se o sol explodisse neste exato momento, só saberíamos, de fato, oito minutos e meio depois do ocorrido. Como já advertiu Bachelard, a Relatividade, entre outras ´descobertas’, implicou uma reviravolta epistemológica muito grande. Não existe um tempo universalmente absoluto. Não há simultaneidade no universo.

Um dos pontos admiráveis desta obra, como um todo, é o diálogo fecundo, em especial com a Filosofia e a Literatura. Nessa perspectiva, por meio de um poema de Rilke, Rovelli faz algumas reflexões sobre o tempo que incentivam os leitores no prosseguimento da leitura. Nas palavras do autor: “Passato e futuro sono diversi. Cause precedono effetti. Il dolore segue la ferita, non la anticipa. Il bicchieri si rompe in mille pezzi non riformano il bicchieri. Il passato nom possiano cambiarlo; possiano avere rimpianti, rimorsi, ricordi di felicità. Il futuro invece è incertezza, desiderio, inquietudine, spazio aperto, forse destino. Possiamo viverlo, scegliergo, perché ancora non è; tutto vi é possibile.” (p.27)

Nessa medida, o físico adverte que o passado não pode ser mudado. Podemos, claro, recordar nossas felicidades, ter remorsos e tantos outros sentimentos. No entanto, mudá-lo jamais. E o futuro? Na realidade possui um grande grau de indeterminação. Lembremos que na área da Física existem os cientistas que possuem uma concepção determinista do universo e outros que são claramente indeterministas. Ao longo do livro Rovelli mostra lucidamente que acredita num universo indeterminado. Isso significa que, por mais que o futuro esteja ancorado no presente, há fatores objetivos que podem causar surpresas e fatos surpreendentes, não previstos.

Encerra a primeira parte do livro questionando o que realmente significa o presente. Em que medida, já que não existe um tempo universal, podemos considerar a presentidade. E a partir de tal consideração transporta os leitores para concepções importantes de tempo articuladas por Aristóteles, que, sabe-se, tinha uma visão de tempo ligada ao movimento dos astros. Recorda, inclusive, conceitos basilares das ciências do século XIX que ajudaram a construir a apreensão mais geral que temos de dimensões de temporalidade.

Uma das maiores dificuldades que cientistas e filósofos enfrentam quando tentam captar o tempo conceitualmente é ter que reconhecer que ele não existe enquanto entidade autônoma. O relógio, como afirmou Heidegger, é uma apreensão indireta do tempo. Não é o tempo. Alguma coisa passa. Movimenta-se. Tudo se transforma, envelhece, e também nessa direção o tempo continua a ser uma apreensão indireta.

A segunda parte do livro em referência é intitulado Mundo sem tempo, o que remete ao conceito de um mundo atemporal, sem a presença de dimensões de temporalidades estabelecidas. Nessta parte do livro o físico italiano foca, essencialmente, o tempo enquanto fluir. Chama a atenção para uma espécie de linha temporal, mas em que “non esiste um presente globale oggettivo” ( p. 95). Esboça uma hipótese (central em seus trabalhos anteriores e de pesquisador) em que presente, passado e futuro são igualmente reais e existentes, o que o físico denomina de presente estendido. Presente, passado e futuro tecem uma estrutura temporal do mundo. Coexistência das três dimensões. E mais uma vez adverte que a Relatividade evidencia que não há uma instantaneidade absoluta. Os ritmos de temporalidade estabelecidos (e ainda hoje cada vez mais verificados empiricamente) pela concepção relativística demonstram que o tempo depende de campos gravitacionais que abrangem, inclusive, o observador.

A terceira e última parte de L’ordine del tempo enfatiza, principalmente, a discordância entre a Relatividade e a gravidade quântica. Tal fato significa, segundo Rovelli, o quanto as ciências desconhecem muitos elementos que são fundamentais para a estruturação do universo. Recorda o quanto Agostinho, em suas famosas reflexões a respeito do tempo e da memória, foram importantes para questões de temporalidade. O físico italiano dialoga também com Kant, e observa que o filósofo alemão, em sua época, mostra uma perspectiva de tempo revolucionária ao se contrapor a conceitos elaborados por Platão e Aristóteles, visto que nega o tempo enquanto categoria exterior ao homem e ligada ao movimento dos astros. Adverte que Kant concebe o tempo enquanto uma dimensão subjetiva, dimensão na qual estaríamos mergulhados em sua interioridade. Seres interiores ao tempo. A negação de um tempo objetivo.

O físico italiano finaliza a obra deixando inúmeras questões em aberto. Entre elas, afirma que estamos engatinhando em termos de construção científica. Há muito a ser construído e pensado em relação à complexa urdidura temporal a qual estamos submetidos.

Diante do exposto, recomendamos a obra em referência a todos que buscam um repertório abrangente e que vá muito além de uma especialização (muitas vezes isolada e fragmentada). Rovelli nos ensina, entre outras coisas, que a Filosofia, a História, a Literatura e a Física possuem uma ligação mais íntima do que se possa imaginar. Assim como recorda que os grandes pensadores da humanidade, tão presentes nas tessituras atuais de nosso pensamento, possuíam uma sólida formação diversificada, e não somente em suas áreas específicas. O próprio autor é o grande exemplo

Referências

Rovelli,Carlo . L’ordine del tempo Milão, 2017 [ Links ]

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