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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.44 São Paulo set./dez 2017  Epub 21-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n44.7698 

Resenhas

Quem manda no mundo?

Régia Vidal dos Santos1 

1Doutoranda em Educação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Professora convidada no Programa de Pós-Graduação em Educação Lato Sensu da UNINOVE. São Paulo, SP - Brasil. regiavs@gmail.com

Quem manda no mundo?. Chomsky, Noam. ., São Paulo: :, Planeta, ,, 2017. ., 400 pp. .


Avram Noam Chomsky nasceu em 1928, na Filadélfia, Pensilvânia. É professor emérito de Linguística e Filosofia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e reconhecido como um dos mais proeminentes intelectuais da atualidade, sendo notória, também, sua posição política de esquerda e sua crítica radical à maneira como os EUA definem e impõem seus interesses dentro e fora de suas fronteiras. Esse cientista e intelectual, que se descreve como um socialista libertário, é autor, no campo da linguística moderna e da política, de vasta obra traduzida no mundo todo.

No livro em referência, Chomsky apresenta um conjunto de problemáticas que se estende de Israel-Palestina, Irã, América Latina, África a organização econômica, “guerra ao terror”, entre tantas outras, para, ao longo de vinte e três capítulos e um posfácio sobre a eleição de Donald Trump e a ascensão dos partidos ultranacionalistas na Europa, discutir a questão de quem comanda o mundo. Com clareza e diversos exemplos, promove a reflexão sobre como os “mestres da humanidade” procedem para realizar essa conquista e exercer essa liderança. Reflete também sobre os tristes resultados desse empenho e sobre as oportunidades e responsabilidades que temos para, quem sabe, sobrepujar o poder dos negócios e a doutrina nacionalista, de modo a manter-nos “vivos e aptos a viver”.

Ao discorrer sobre a responsabilidade dos intelectuais, rememora histórias como a eleição de Jean-Bertrand Aristide, no Haiti, o golpe militar que o depôs, seu sequestro após ser reeleito e a vexatória eleição de 2010-2011 realizada nesse país; o terror e a tortura na Colômbia, sob o pretexto de combate às drogas, e, entre outros terríveis crimes patrocinados pelos Estados Unidos, o 11 de setembro de 1973, que derrubou o governo democrático de Salvador Allende no Chile e resultou na destruição econômica desse país andino provocando, por meio de tortura e sequestro, muito mais mortes que o 11 de setembro que “mudou o mundo”.

Chomsky adverte que, a princípio, a responsabilidade dos intelectuais é de ordem moral, ou seja, cabe-lhes, por serem notoriamente privilegiados, denunciar crimes e contribuir para aplacar seus efeitos danosos. No entanto, nos primeiros relatos presentes neste livro, ilustra a existência de dois tipos de intelectuais: os orientados por causas humanitárias e os tecnocráticos, orientados pela política. Lembra que os últimos, exaltados pelo Estado, justificam ou ignoram as atrocidades oficiais.

As análises realizadas no capítulo “Terroristas procurados no mundo inteiro” apontam para a classificação dos crimes cometidos contra a humanidade em categorias distintas: os cometidos pelos EUA e Israel fazem parte da categoria “premeditados, mas sem intenção específica”; o contrário é classificado como assassinato intencional. No decorrer desse capítulo, é-se instigado a pensar em qual das categorias se encontram os criminosos procurados no mundo inteiro.

Em “Memorandos de tortura e a amnésia histórica”, o autor assinala como os métodos de tortura foram amplamente estudados pela Central Intelligence Agency (CIA) e realizados, por procuração, para os EUA. Além disso, aponta para os gastos astronômicos com a implementação de um “paradigma da tortura” e para o como são justificados, considerando que, diante do sangue derramado e do sofrimento causado, uma elite, que cultiva uma perigosa amnésia histórica, se sente tranquila ao ter assegurada sua concepção de democracia.

No quarto capítulo, recebe destaque a onda de protestos, revoltas e revoluções democráticas no mundo árabe; a destruição do sistema público de educação; a crueldade das políticas migratórias e a onda de racismo que se amplia em tempos de crise econômica. Ao ponderar sobre esse cenário, que se soma à distração promovida pelo consumismo e à cegueira decorrente do ódio dirigido aos vulneráveis, Chomsky deixa a questão: Restará algo a ser contemplado?

Diante dos dados apresentados, é-se levado a aderir à tese desse autor sobre o quanto podemos aprender com a história de um país que perde a hegemonia, mas não perde a ambição; gasta com guerras o bastante para ir à falência e mantém os privilégios de uma minoria, enquanto a maioria chega a enfrentar problemas de sobrevivência.

Das descrições que se seguem, merecem destaque as relacionadas à ascensão econômica da China e da Índia e aos passos auspiciosos da América do Sul em direção à autonomia. Movimentos que se dão em meio à derrocada norte-americana, mas, como Chomsky lembra, não são motivos para comemoração, pois não dissipam duas terríveis ameaças: a guerra nuclear e a catástrofe ambiental.

Na sequência, Chomsky relembra uma data a ser celebrada, deplorada ou ignorada: o milênio da Magna Carta. Entre as considerações que tece acerca da reponsabilidade de todos e de como as comunidades indígenas enfrentam e encabeçam a defesa dos direitos do planeta, enquanto os ocidentais zombam do documento, esse autor lança outra pergunta: Quem vai rir por último?

Ao escrever sobre o direito de dominar, que se esconde atrás de termos defensivos e fundamenta a política dos EUA, em meio a um rico detalhamento dos fatos, arrisca afirmar que uma guerra nuclear ainda não nos dizimou por sorte e, em virtude disso, deixa uma terceira questão: Poremos fim à espécie humana? Em uma tentativa de lançar luz sobre a responsabilidade de cada um e demonstrar como há maneiras de evitar tal fim, assinala o empenho das sociedades indígenas no sentido de estancar o desastre e a triste resposta das sociedades mais ricas e poderosas, que se mantêm sem uma política de restrição ao uso de combustíveis fósseis e sem estabelecer metas de energia renovável.

Sobre os acordos de paz de Oslo, estabelece um contraponto entre a forma como essa questão é apresentada pela grande mídia e o que uma observação que considere as operações realizadas por Israel, ao longo dos últimos vinte anos, e o contexto da negociação podem revelar. Dessa forma, evoca o conceito de “memória viva” enquanto categoria que se transforma em nobre defesa ou ataque ameaçador, de acordo com o interesse de quem comete os atos criminosos.

Acerca das opções relacionadas ao conflito Israel-Palestina, diante da possibilidade de formação de dois Estados, um palestino e outro judaico, ou um único estado para duas nações, Chomsky discorre sobre as cruciais pré-condições norte-americanas e israelenses e considera que poucos avanços serão obtidos enquanto Israel levar adiante seu intento de ficar com tudo o que tenha valor tanto na Cisjordânia quanto nas colinas sírias de Golã.

Nos capítulos intitulados “Atrocidade” e “Acordos de cessar-fogo em que as violações nunca cessam” são apresentadas as formas pelas quais Israel age para atingir seus objetivos e como passou de nação admirada para um país temido e desprezado. Ao mesmo tempo, é destacado o que para os palestinos brutalizados pode parecer um sonho: a possibilidade de punir Israel pelos seus crimes e instigar Washington a respeitar o direito internacional.

Nessa espécie de contra-história dos Estados Unidos, o autor apresenta fatos que elucidam como a ameaça de perder o domínio do sistema global inquieta Washington e o sistema corporativo dessa nação a ponto de a mesma ser considerada, em pesquisas de opinião internacionais, o principal Estado terrorista. Ao discorrer sobre a derrubada dos governos parlamentaristas do Irã e da Guatemala, em 1953 e 1954, os ataques a Cuba, a derrubada do governo democrático de Salvador Allende no Chile, a oposição ao nacionalismo vietnamita no início da década de 1950, a violenta onda de repressão imposta no hemisfério sul da América, a partir do início da década de 1960, Chomsky aponta para a repercussão de tais práticas na atualidade e promove a reflexão sobre como as decisões políticas são tomadas. Nesse sentido, lembra que Obama não desconhecia a assassina guerra terrorista e toda a política empreendida com o objetivo de tolher o desenvolvimento econômico de Cuba, assim como não desconhecia que esse “mundo”, aclamado pelos governantes como apoiadores da conduta dos EUA não corresponde verdadeiramente ao mundo. O mundo, notadamente, prefere o uso de medidas diplomático-jurídicas.

Dentre os muitos eventos que merecem uma profunda investigação, sublinha a “guerra ao terror” e a distinção reiterada pela mídia: por um lado, crimes cometidos contra os EUA e Israel são denominados atrocidades, por outro lado, crimes cometidos por esses atores, ou são esquecidos, ou lembrados como nobre defesa.

Sobre as páginas do The New York Times, Chomsky lembra que podem revelar muito sobre a ideologia e a cultura de um país que, ao incitar conflitos sectários, afirma estar agindo em prol da “estabilização”, sendo que qualquer reação ou resistência de outros povos à agressão norte-americana é denominada “desestabilização”.

Chomsky questiona o fato de o Irã ser colocado no papel de maior adepto ao terrorismo e assinala ser o grande crime dos iranianos o apoio dado ao Hezbollah e ao Hamas, instituições que por sua vez ousaram ganhar o voto popular em eleições livres no mundo árabe. Nessa lógica, o Hezbollah cometeu um crime mais hediondo: obrigou Israel a acatar ordens do Conselho de Segurança e recuar na ocupação impetrada, por meio do terror ilegal e da violência no sul do Líbano.

Vale lembrar que, apesar da oposição ao ataque neoliberal ser muitas vezes esmagada assim que o apoio popular se liquefaz, nem sempre a população se mantém acomodada no papel de espectador. A desobediência da população corrobora a máxima de Chomsky acerca da existência de duas superpotências: os EUA e a população mundial. Entretanto, afirmar que quem comanda o mundo é a primeira superpotência - os EUA - é uma resposta que deve ser avaliada, pois até mesmo em uma sociedade como a norte-americana, que se diz democrática, a população é marginalizada. Partindo dessa premissa, Chomsky pondera que, para responder à pergunta título do livro, não se pode ignorar quem são, na atualidade, os “mestres da humanidade” e como eles agem para manter a vil máxima: “Tudo para nós e nada para os outros”, lembrando que os outros são o povo do país de origem e do mundo.

Além disso, considera a necessidade de avaliar o que representa, para os EUA, a ascensão da China ao poder e a guerra global contra o terror. Em outras palavras, ele indaga se as lideranças norte-americanas aceitarão dividir o poder econômico e se estão dispostas a deixar-se guiar pelo bom senso.

Em meio a todos os problemas já mencionados, aos desafios relacionados ao mundo islâmico e ao Leste Europeu, à crise de refugiados e às consequências da devastação do planeta, outra pergunta pode substituir a suscitada pelo título: Quais princípios e valores regem os cidadãos poderosos que disfrutam privilégios e oportunidades graças aos que vieram antes deles?

No posfácio, Chomsky enfatiza que Donald Trump, ao determinar o aumento do uso de combustíveis fósseis, ao se negar a ajudar os países em desenvolvimento que tentam avançar no uso de energia sustentável, ao falar em nome da anulação de regulações e exaltar doutrinas de supremacia branca, revela os valores que regem seus princípios e atos, assim como os do Partido Republicano.

Diante desse cenário, finaliza apontando o quanto é difícil testemunhar a acelerada corrida humana rumo ao penhasco; mas também lembra, com uma certa esperança, da diferença que a mobilização popular e o ativismo podem fazer se devidamente orientados e organizados.

Como se vê, esse ativista político expõe, nessa obra, de forma clara e meticulosamente documentada, como se distribuem os poderes no mundo e como o planeta vem caminhando rumo a uma guerra nuclear e a uma catástrofe ambiental. Mais que denunciar e analisar a conjuntura mundial desde o fim da segunda guerra mundial, Chomsky, nesse texto coerente com sua racionalidade e consciência social, lança luz sobre fatos e responsabilidades que não podem ser ignorados, assim como reitera a força da opinião pública mundial, a única capaz de barrar ou limitar o curso de atrocidades cometidas em razão de um poder arbitrário.

Para finalizar, vale lembrar que o exercício de tentar compreender o passado ajuda a olhar, de forma crítica, os eventos em curso e a reavaliar os princípios tanto de quem manda no mundo quanto de quem é subjugado. Nesse sentido, trata-se de uma obra indispensável, por proporcionar, para além de uma compreensão da política contemporânea, uma revisão de pontos de vista. Como enfatizou Chomsky, esperanças existem e se fizermos o melhor uso delas, quem sabe, os princípios que passarão a reger quem manda no mundo e a todos venham a ser bem distintos dos atuais

Referências

Chomsky, Noam . Quem manda no mundo? São Paulo: Planeta, 2017 [ Links ]

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