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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.45 São Paulo jan./abr 2018  Epub 07-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n45.8401 

Dossiê temático

O jogo capoeira: uma pedagogia decolonial?

The capoeira game: a decolonial pedagogy?

Albert Alan de Sousa Cordeiro1 

Sônia Maria da Silva Araújo2 

1Doutorando em Educação - PPGED/Universidade Federal do Pará. Professor da Universidade Federal do Amapá. AP. Brasil. albertscordeiro85@gmail.com

2Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará. PA. Brasil. ecosufpa@hotmail.com


Resumo

Neste artigo analisamos as práticas educativas presentes no jogo da capoeira, discutindo como elas se configuram a partir dos princípios de uma pedagogia decolonial, cujos processos formativos se postam contra a lógica de opressão da colonialidade/modernidade. Para tanto, tomamos como objeto de análise o trabalho de um professor de capoeira. Durante cinco meses acompanhamos as aulas desse professor, utilizando a metodologia da observação participante, e entrevistamos seus alunos com base em roteiro semiestruturado. Os resultados demonstraram que o jogo da capoeira, fortemente assentado na cosmogonia africana, que se orienta num sentimento de pertença comunitária, produz processos educativos decoloniais por problematizar o racismo, as diferenças culturais e as desigualdades sociais. Disso resulta a operacionalização de uma pedagogia intercultural em contraposição à matriz colonial de poder e à colonialidade.

Palavras-chave: Capoeira; Decolonialidade; Pedagogia Decolonial

Abstract

In this article, we look into the educational practices present in the game of Capoeira, and discuss the manner in which those practices configure a decolonial pedagogy, materialized in formative processes against the logic of oppression inherent to coloniality/modernity. To that effect, we take as object of analysis the works of a Capoeira teacher. Over five months, we have accompanied this teacher, methodologically employing participant observation, where we also employed semi structured interviews towards his students. Results infer that the game of Capoeira, strongly seated upon an African cosmogony, which constructs a sentiment of community belonging, produces decolonial educational processes as it problematizes racism, cultural differences and social inequalities, which results in operationalization of a intercultural pedagogy which counterpoints the colonial matrix of power and coloniality itself.

Keywords: Capoeira; Decoloniality; Decolonial Pedagogy

Introdução

Neste artigo analisamos as práticas educativas presentes na capoeira e discutimos como elas se configuram numa pedagogia decolonial caracterizada por processos formativos que apontam para a superação da lógica colonialidade/modernidade e dos modos de opressão por ela produzidos.

Após a realização de diferentes trabalhos (CORDEIRO 2012a, 2012b) nos quais buscamos compreender como manifestações da cultura popular são preservadas em processos de mudança, quais saberes carregam e como suas características educativas se manifestam, fomos compreendendo que essas práticas populares transportam consigo toda uma produção cultural/simbólica que historicamente tem servido como forma de resistência à dominação colonial e ao imaginário social que esta deixou de herança.

Como bem nos adverte Walter Mignolo (2007), a decolonialidade teve seu advento com a fundação da modernidade/colonialidade, por meio da resistência dos povos indígenas e afro-caribenhos. Cabe agora construir uma genealogia do pensamento decolonial capaz de recuperar os conhecimentos reproduzidos1, em contraposição à matriz colonial de poder.

Diversas manifestações hoje compreendidas como pertencentes à cultura popular brasileira mobilizam matizes do pensamento decolonial, numa demonstração, especialmente, de resistência das populações negras e indígenas, que ainda hoje expressam uma cosmogonia ancestral contra o fardo da colonialidade. Isso indica a necessidade de uma resistência, no campo da produção intelectual, que vise a decolonialidade, que favoreça a divulgação, o entendimento e a compreensão de saberes contidos nessas práticas culturais; e, no campo da educação, de produção de uma pedagogia que teorize acerca de tais práticas. Uma pedagogia decolonial precisa abranger os modos de educação utilizados historicamente pelos povos colonizados da América, pois

Se o pensamento decolonial denota práticas epistêmicas de reconhecimento e transgressão da colonialidade, que se produzem na América Latina e outras regiões colonizadas como resposta à situação de dominação, podemos dizer que a pedagogia decolonial refere-se às teorias-práticas de formação humana que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a lógica opressiva da modernidade/colonialidade, tendo como horizonte a formação de um ser humano e de uma sociedade livres, amorosos, justos e solidários. (MOTA NETO, 2016, p. 318)

Vejamos o caso da capoeira, que como bem considerava o historiador paraense Vicente Salles (2004) é um dos episódios mais sugestivos da cultura popular, pelo qual a/o negra/o escravizada/o, desarmada/o usa o próprio corpo como mecanismo de defesa. A capoeira foi, e continua a ser, um instrumento de luta, um recurso de emancipação das minorias sociais, usado pelas populações negras cativas no Brasil Colonial/Imperial, que conservou, mesmo após a República, altos índices de desigualdade e continua sendo um recurso de emancipação das minorias sociais.

Sob esse entendimento e à luz dos dados coletados, discutiremos como a prática da capoeira e seus processos educativos têm formado sujeitos numa perspectiva decolonial, configurando uma educação antirracista, inclusiva e intercultural. Para isso, analisamos, sob a lupa do referencial teórico dos autores decoloniais, o trabalho de um professor de capoeira conhecido como Chocolate.

Durante cinco meses acompanhamos, no uso da metodologia da observação participante, os trabalhos desenvolvidos com crianças e adolescentes de um município do estado do Pará, Brasil, localizado nas proximidades da capital, Belém, denominado Ananindeua. A coleta de dados se completou com entrevistas feitas ao professor e a seus alunos, baseadas em roteiros semiestruturados.

O artigo está composto de três seções e das Considerações Finais, além desta Introdução. Inicialmente, situamos o debate sobre o sistema-mundo moderno/colonial e suas interfaces com a educação, apresentando a decolonialidade, o paradigma outro, como forma de subversão. Em seguida, abordamos as características educativas da capoeira, demostrando como sua prática constitui uma pedagogia decolonial. Por fim, apresentamos nossas considerações finais.

Colonialidade, modernidade e pedagogia decolonial

Com a inauguração do sistema colonial e a dominação econômica e política das populações do “Novo Mundo” / “América” - que, de acordo com Mignolo (2008, p. 239) “são invenções europeia-cristãs, cujos agentes foram as monarquias e, em seguida, os Estados-nacionais do Atlântico” - institui-se a colonialidade.

Quijano (1992) nos ajuda a compreender esse fenômeno, que se materializa como o padrão colonial de poder, enfatizando o controle da economia pela apropriação das terras e recursos naturais e a exploração do trabalho. O autor também destaca o controle da autoridade, exercido por formas de governo e controle militar. Para ele, tudo isso produziu o eurocentrismo em termos epistêmicos e históricos, resultando na produção de um conhecimento e de uma subjetividade coloniais, chamada pelo autor colonialidade do saber e do ser.

Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação cultural europeia foi sendo constituído o complexo cultural conhecido como racionalidade/modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo. Tal concomitância entre a colonialidade e a elaboração da racionalidade/modernidade não foi, de modo algum, acidental, como o revela o modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional. Na realidade, teve implicações decisivas na constituição do paradigma, associada ao processo de emergência das relações sociais urbanas e capitalistas, as quais, por sua vez, não poderiam ser plenamente explicadas à margem do colonialismo, sobre a América Latina em particular. (QUIJANO, 1992, p. 441)

Na compreensão de Quijano (1992), a cultura europeia passou a ser um modelo cultural universal que conduziu (e ainda conduz) o imaginário das culturas não europeias, impondo a elas uma lógica de representações somente possível sob seu parâmetro.

Outro traço da colonialidade, de acordo com Quijano (2005), pedra angular desse padrão de poder, é a imposição de uma classificação racial/étnica das populações do mundo.

No decurso da evolução dessas características do poder atual foram se configurando novas identidades societais da colonialidade - índios, negros, azeitonados, amarelos, brancos, mestiços - e as geoculturas do colonialismo como América, África, Extremo Oriente, Próximo Oriente (as suas últimas, mais tarde, Ásia), Ocidente ou Europa (Europa Ocidental, depois). E as relações intersubjetivas correspondentes, nas quais se foram fundindo as experiências do colonialismo e colonialidade com as necessidades do capitalismo, foram se configurando como um novo universo de relações intersubjetivas de dominação sob hegemonia eurocentrada. Esse específico universo é que será depois denominado como a modernidade. (QUIJANO, 2005, p. 85)

Essa classificação social de base racial/étnica justificou a escravização da população das Américas, bem como o sequestro e comercialização da população africana, deslocada para exploração do trabalho escravo nas colônias americanas.

Mignolo (2008) chama de matriz colonial a lógica de funcionamento da colonialidade, que se manifestou de diversas formas ao longo da história, mas que se mantém intacta enquanto ordem reguladora, assim como seus elementos fundamentais como a dispensabilidade da vida humana (a acumulação e a autoridade vêm em primeiro lugar), haja vista que “também é necessário eliminar, de diferentes maneiras e através de várias vias, aqueles que atentam contra a ordem econômica e de autoridade.” (MIGNOLO, 2008, p. 243)

Grosfoguel (2012) denuncia que esse colonialismo faz parte do sistema-mundo, alicerçando hierarquias entre o Norte e o Sul globais, entre metrópole e periferia, entre classes, etnias, gêneros, sexualidades, modelos de espiritualidade, de linguagens, estéticas, e também hierarquias pedagógicas nas quais modelos ocidentais de ensino-aprendizado são postos como superiores aos não ocidentais. Tal superioridade cultural, logo transportada para as práticas e teorias pedagógicas europeias, faz parte do “mito da modernidade” e de sua “falácia desenvolvimentista”, denunciada por Enrique Dussel (2008), porque coloca a Europa como responsável, como exigência moral, por um processo educativo unilinear, que desenvolvesse os chamados primitivos, bárbaros ou rudes.

Com esse perfil monocultural, a pedagogia moderna se impôs sobre a América Latina, invisibilizando os modos de educar das populações locais e promovendo uma dominação cognitiva e epistemológica. A educação passa então a ser um recurso fundamental à hegemonia colonial sobre os povos latino-americanos. É lamentável, mas a institucionalização da educação promovida pelo Estado Moderno foi (e talvez continue sendo em alguns aspectos) um dos meios mais eficientes de internalização da colonialidade do saber e do ser.

Mas as formas de reprodução da colonialidade são demasiadamente complexas e contraditórias. As instituições educativas, ao longo dos séculos, se curvaram aos desígnios metropolitanos, mas não sem resistência. Se era esperado que a escola se tornasse um espaço de mera internalização de valores hegemônicos, ela, no entanto, em certa medida, tem demonstrado ser um espaço de forças políticas populares contra-hegemônicas, que ousam subverter a tentativa de domínio. Essa vitalidade subversiva faz da educação um campo de resistência dos povos da América Latina à dominação imposta pelo norte global. Esses grupos minoritários que dinamizam as relações de poder no espaço escolar há tempos se impõem no sentido de tentar sobreviver - física, simbólica, cultural e epistemologicamente - aos ditames coloniais.

Os grupos que lutam no espaço escolar por representatividade, interculturalidade, liberdade discursiva e inclusão são os/as indígenas, negras e negros, quilombolas, mulheres, trabalhadores e trabalhadoras das classes populares, camponesas (es), minorias religiosas, gays, lésbicas, travestis, transexuais, ou seja, indivíduos e grupos que historicamente são submetidos aos desmandos do colonialismo europeu e da colonialidade ainda fortemente presente, pois, como nos diz Ramon Grosfoguel (2012, p. 343),

A homofobia, o racismo, o sexismo, o heterossexismo, o classismo, o militarismo, o cristianocentrismo, o eurocentrismo são todas ideologias que nascem dos privilégios do novo poder colonial capitalista, masculinizado, branqueado e heterossexualizado.

As formas de existir de grupos subalternizados, distintas e antagônicas à colonialidade, continuam promovendo mais do que uma cultura de re-existência: elas mostram novas possibilidades de convivência no planeta, pautada em outros arranjos econômicos, políticos, afetivos, pedagógicos que ajudam a minimizar (ou mesmo neutralizar) os arranjos hegemônicos contemporâneos. As experiências mais equilibradas com o ambiente natural e seus recursos, relações sociais mais fraternas e balizadas no respeito e valorização das diferenças, indicam que os resultados da contra-hegemonia podem, inclusive, garantir o alcance mais efetivo dos próprios princípios da modernidade, como a igualdade.

Em contraposição à colonialidade, autores latino-americanos vêm desenvolvendo uma teoria de compreensão da realidade social de países periféricos que recebeu o nome de decolonialidade.2 Essa teoria, marcada por uma tentativa de análise crítica, visa a superação da matriz colonial de poder em todas as instâncias da vida social, desde os modos de produção de conhecimento, passando pelas esferas de tomada de decisão política e busca de uma nova forma de organização econômica. Nas palavras de Mota Neto (2016), a decolonialidade expressa um nível de subversão que abrange não apenas a libertação política de uma nação, mas também todas as relações de poder implicadas na cultura, no conhecimento, na educação, nas mentalidades e na organização socioeconômica. Diz esse pesquisador:

en primer lugar, un cambio de perspectiva y actitud que se encuentra en las prácticas y formas de conocimiento de sujetos colonizados, desde los inicios mismos de la colonización, y, en segundo lugar, un proyecto de transformación sistemática y global de las presuposiciones e implicaciones de modernidad, asumido por una variedad de sujetos en diálogo. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 160)

Como produção cultural e histórica dos povos subalternizados, a decolonialidade representa iniciativas de resistência ao colonialismo e à colonialidade, pois mesmo em condições assimétricas esses povos construíram a resistência decolonial.

O pensamento decolonial, em sua fundação histórico-filosófica, não surge fora, mas sim na exterioridade: ou seja, o pensamento de alguém que foi classificado (a) fora (anthropos, bárbaros, primitivos, inferiores, homossexuais, lésbicas), no processo epistêmico político de definir o que está dentro (humanidade, civilização, desenvolvimento, heterossexual, branco ou branca, cristão ou cristã, europeu ou européia, ou crioulo [a], mestiço[a] de descendência européia na América do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Canadá). (MIGNOLO, 2008, p. 245-256)

Mignolo elenca também inciativas decoloniais em práticas de indivíduos como Gandhi, Dubois, Amilcar Cabral, Frantz Fanon, entre outros, mas ressalta que “a genealogia do pensamento decolonial é planetária e não se limita a indivíduos, mas se incorpora nos movimentos sociais[…].” (MIGNOLO, 2008, p. 258) O autor ressalta as iniciativas do Movimento Sem Terra no Brasil, os zapatistas em Chiapas, os movimentos indígenas e afros na Bolívia, Equador e Colômbia, o Fórum Social Mundial e o Fórum Social das Américas como decoloniais.

Walsh (2014) nos diz que pedagogias decolonias são ações que promovem e provocam fissuras da ordem moderno/colonial, as quais tornam possíveis e dão sustento e força a um modo distinto, inteiramente outro, de estar no e com o mundo.

Arroyo (2014) chama esses distintos modos de educar de “outras pedagogias”, pedagogias edificadas por “outros” sujeitos, que diferem da pedagogia oficial, colonizadora, e que na verdade nascem a partir da resistência das minorias oprimidas. De acordo com esse autor, a pedagogia do colonizador se traduziu aqui na América como uma pedagogia de dominação/subalternização, relacionada ao padrão de poder/saber que oprime, inferioriza, desumaniza, ao destruir culturas, memórias e identidades coletivas.

Entendemos que a gênese da decolonialidade precisa ser estendida às práticas sociais/culturais das populações oprimidas e excluídas que foram sendo produzidas ao longo do processo colonial. A capoeira, manifestação que será analisada daqui por diante, é um exemplo seminal de pedagogia decolonial.

A pedagogia decolonial da roda da capoeira

Descrevemos a partir deste ponto o trabalho desenvolvido pelo professor de capoeira Chocolate. Gratuitamente, ele ensina o jogo a meninos e meninas do Paar e Curuçambá, comunidades periféricas do município de Ananindeua, região metropolitana de Belém.3

Durante cinco meses observamos os treinos do professor com seus alunos: rodas e apresentações públicas. Pudemos perceber que em meio à ginga, à mandinga, aos rabos de arraia, ao som do berimbau, Chocolate orienta as crianças, as aconselha, fala sobre o respeito aos pais e às demais pessoas, assim como sobre a importância do estudo e da escola. A capoeira de Chocolate representa, para muitos meninos e meninas daquelas comunidades, alijados de direitos fundamentais por fatores associados à matriz colonial de poder, a primeira experiência escolar. Essas práticas desenvolvidas pelo professor demonstram que processos educativos por ele articulados podem configurar uma pedagogia decolonial, antirracista, antipatriarcal e anticapitalista.

Conforme Dias (2012), a atribuição de um apelido na capoeira, prática aplicada na turma do Professor Chocolate, tem como objetivo camuflar a identidade do capoeirista, pois na época em que a capoeiragem era proibida pelo código penal ocultar a identidade era uma forma de evitar a perseguição por parte das autoridades.

Nos dias de hoje essa tradição se manteve, no entanto, ressignificada, afirmando a dinâmica da cultura, atribuindo novos sentidos, reelaborando seus significados […]os apelidos geralmente ressaltam alguma característica mais marcante do sujeito, ou alguma habilidade por ele demonstrada, num tom lúdico, por vezes carregado de muita malícia, evidenciando a astúcia, a manhã, e a vivacidade colocadas pelos sujeitos na roda de capoeira. (DIAS, 2012, p. 33)

Na roda, aos pés do berimbau, não existe sexo, etnia ou origem social; o que há são pessoas e jogadores imersos, sintonizados na bateria de instrumentos rítmicos, todos concentrados na energia imanente do cantar do coro, acompanhado ou não das palmas de outros capoeiras que observam o jogo ávidos pela sua vez de jogar. Vejamos o que diz a aluna Ioiô sobre o significado da roda:

Isso representa que todos nós somos iguais. Tira a nivelação. Continua tendo respeito, mas tira o nível. “Eu sou melhor!” “Eu sou superior!” Todo mundo está sentado, com bunda no chão. Não é assim que acontece na roda de capoeira? Aquilo favorece. E muitas pessoas, muitos componentes, naquele momento de roda de conversa traz indagações internas. Algum problema que não seja de uma ordem muito grave, alguns conflitos que estão acontecendo e as vezes alguns colegas mesmo podem resolver e isso é importante. O círculo é importante, o círculo entra na cultura de muitos (informação verbal)4.

Silva (2008) afirma que a capoeira, como um instrumento educativo, traz à tona potencialidades do indivíduo. Porém, esse processo não pode ser compreendido sob o viés individualista, haja vista que a capoeira só se manifesta no jogo, o que implica, no mínimo, a relação entre duas pessoas.

Independente de ser praticada na rua ou na academia, observa-se que o espaço de capacitação e do jogo são previamente estabelecidos pela demarcação de um círculo. Mesmo quando o capoeirista treina sozinho, esse espaço é determinado, seja de forma concreta, com um círculo riscado no chão, seja na imaginação. Portanto, o estabelecimento do círculo ou do espaço da roda ou simplesmente da roda, como é geralmente chamado na capoeira, promove a atitude inicial do capoeirista. Da criação do espaço onde ocorrem as criações do capoeirista e da própria capoeira, pode-se dizer que nascem a capoeira e o capoeirista. (SILVA, 2008, p. 23)

De acordo com Huizinga (2008), todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea. Para a capoeira, a roda é esse campo.

Tal como não há diferença formal entre o jogo e o culto, do mesmo modo o “lugar sagrado” não pode ser formalmente distinguido do terreno de jogo. A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial. (HUIZINGA, 2008, p. 11)

A roda promove processos pedagógicos bem peculiares. Comecemos pela musicalidade. No período de realização da pesquisa ouvíamos nas rodas incontáveis canções que expressam a memória ancestral que a capoeira ainda carrega, tornando presente às novas gerações os horrores sofridos pela população escravizada no período colonial: “Navio Negreiro / tumba flutuante / terra-mãe distante / dor e desespero […]”; “Corta cana / Corta cana, nego velho / Corta cana no canavial […]”; “Senzala, barracão de dor / Senzala, onde negro é sofredor”.

Observamos que o que geralmente é cantado nas rodas de capoeira contém conhecimentos históricos relacionados à ancestralidade africana, à escravização, às lutas por liberdade, e chegam a problematizar os discursos oficiais, aqueles que por vezes estão expressos, inclusive, nos currículos escolares. Tomemos como exemplo uma das ladainhas cantadas nas rodas:

A história nos engana /diz tudo pelo contrário / Até diz que a abolição aconteceu no mês de maio / A prova dessa mentira é que da miséria eu não saio / Viva vinte de novembro / Momento pra se lembrar / Não vejo em treze de maio nada pra comemorar / Muitos anos se passaram e o negro sempre a lutar / Zumbi é nosso herói / De Palmares foi senhor / Pela causa do homem negro foi ele quem mais lutou / E apesar de toda luta Negro não se libertou.

Nas cantigas de capoeira a resistência quilombola é ressaltada e seus personagens históricos como Zumbi, Dandara e Ganga Zumba são reverenciados: “[…] vivia no quilombo o valente rei Zumbi / guerreiro de muitas lutas / por seu povo sofredor / foi general de batalha / sem patente militar / inteligência e coragem não podiam lhe faltar […]

Uma canção em especial chamou nossa atenção ao longo do trabalho, por narrar as condições em que se deu a assinatura da Lei Áurea, após a qual os ex-escravos não puderam contar com nenhuma política de inclusão social. Nos versos da canção diz-se que os negros foram condicionados a formar “as grandes periferias”, e a “vagar pelos portos e mercados, feiras e ferrovias”; “Sem dinheiro pra gastar /às vezes sem ter um pão / negro ia vadiar na capoeira, meu irmão […] Mas o passado escravo fez do negro inferior / sem condições de viver / marginal ele virou […]

Percebemos na cantiga uma análise crítica das condições sociais e econômicas degradantes da população negra no Brasil, o que é uma realidade ainda presente no país. Os índices educacionais, de desemprego, de mortalidade e de pobreza entre a população negra indicam as exclusões às quais se encontra submetida.

Outro aspecto relacionado às canções da capoeira diz respeito ao empoderamento que elas promovem. Despontam nessas canções homenagens a personalidades negras e à cultura afro-brasileira, o que corrobora a superação da colonialidade do ser e reforça a resistência: “Às vezes me chamam de negro / pensando que vão me humilhar / mas o que eles não sabem / é que só me faz relembrar / que eu venho daquela raça / que lutou pra se libertar […]

Uma característica fundamental da educação da capoeira é o seu repasse de saberes totalmente alicerçado na oralidade, o que remete à sua construção histórica balizada na cosmogonia africana, adquirida com a população negra que viveu o cativeiro no Brasil-Colônia.

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimonos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. (HAMPATE BÂ, 2010, 167)

Os sujeitos da pesquisa ressaltam essa característica, e em seus depoimentos afirmaram seu potencial educativo. Foi interessante perceber que nos diálogos presentes nas “rodas de conversa” que fazem parte da rotina da capoeira o professor Chocolate procurava trazer à tona questões que, num primeiro momento, não estariam associadas ao universo da capoeira.

Nessas rodas de conversa às vezes ele trazia questões de alguns dos membros que estava com problema, dizia que todos nós tínhamos que dar apoio, tinha que ajudar. Às vezes era questão de estudo, alguns colegas que tinham dificuldade de frequentar a escola, escola básica, escola fundamental. Então, quem pudesse ajudar no ensino, “por favor, se habilite!” Era muito importante que todos ajudassem nas tarefas de casa, tarefas de casa que eu digo, tarefas domésticas, como fazer a faxina da casa, lavar louça (informação verbal).5

As rodas de conversa versavam sobre diversos aspectos da vida cotidiana, disseminando o cuidado com o colega capoeira, o respeito ao próximo e às famílias, mostrando que as características de um bom capoeira se estendem para além da roda, alcançando todas as relações sociais que ele edifica.

O depoimento acima evidencia que o sentimento de pertença a uma comunidade não se restringe aos momentos de treinos ou jogos, estende-se pela vida cotidiana; os capoeiras constituem uma família disposta a se auxiliar mutuamente nas mais distintas ocasiões. O respeito e a solidariedade são disseminados como elementos que devem ser aprendidos, desenvolvidos, tanto quanto a perícia técnica nos movimentos do jogo. É novamente Ioiô quem pontua:

Ele fazia trabalho social. Trabalhos que ele fazia com crianças muitas vezes era trabalho social. Ensinando a importância do respeito, incentivando que aquelas crianças fossem estudar, que era muito importante, obedecer aos pais, obedecer aos mais velhos, obedecer os mais fragilizados, obedecer no sentido de respeitar, sempre ter o respeito com o próximo. Ele acreditou e sempre acreditou que capoeira seria um meio que traria crianças e jovens pra mostrar a importância. Porque muitas vezes crianças e jovens é criado num meio que não propicia a motivação pra estudar, pra crescer. Que isso é muito importante nos jovens. Por que estudar? Estudar só pra poder ganhar dinheiro mais na frente? Também. Mas estudar pra crescer, pra crescer intelectualmente, pra buscar o conhecimento, porque conhecimento ajuda o individuo a traçar seu objetivo da vida (informação verbal)6.

O respeito trazido por Ioiô em sua entrevista pode ser interpretado como sendo uma das grandes características da capoeira. Todos os entrevistados salientaram esse elemento como uma das dimensões mais significativas dos trabalhos realizados.

A prática da capoeira possibilita a ressignificação das histórias de vida. Chocolate, de acordo com os entrevistados, sempre procurou incentivar todos os sujeitos a investirem em suas qualificações educacionais e profissionais. No trabalho com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, nos bairros do Paar e Curuçambá, no município de Ananindeua, refletia sobre as dificuldades do cotidiano utilizando correlações com as difíceis histórias de vida por que passaram diversos famosos capoeiras. Sobre isso, bem diz Abib (2004, p. 137):

A Capoeira garante aos seus praticantes recursos para criticar a sociedade, tida como contraditória, excludente e autoritária. O que se aprende durante o jogo da Capoeira se torna um aprendizado social, a partir do momento em que o aluno passa a conceber analogias entre a roda da capoeira e a ‘roda da vida’.

Finalizando, todas essas características que constituem os processos educativos da capoeira e que foram elencadas até aqui como musicalidade, oralidade e sentimento de pertença comunitária constituem uma espécie de memória coletiva da capoeira, na qual passado e presente encontram relação e estabelecem conexão com a memória de grandes mestres do passado como Pastinha, Bimba, Traíra, Aberrê, Waldemar, Cobra-Verde, assim como com as novas gerações de capoeiras, fazendo da experiência de trabalho do professor Chocolate um micro-espaço onde as relações sociais são distintas da realidade circundante.

Como pano de fundo desse ambiente comunitário se encontra a memória coletiva da capoeira. Construída historicamente, ela introduz os sujeitos numa comunidade que possui uma longa genealogia, da qual estes se orgulham de fazer parte, tornando-os herdeiros dos grandes mestres e conhecedores dos grandes feitos desses homens e mulheres em prol da capoeira. A honra é tamanha que não poderia haver outro sentimento regendo as relações interpessoais - a fraternidade.

O mestre e os capoeiras mais antigos são responsáveis pela perpetuação dessa memória coletiva, o elo entre o passado e as novas gerações, o que denota o quão importante é a ancestralidade para essa manifestação da cultura popular e a oralidade como sua forma principal de repasse.

De acordo com Walsh (2009), a memória coletiva tem sido e ainda é o espaço onde o pedagógico e o decolonial estão entrelaçados na prática, pois a memória coletiva é a reafirmação do que a tradição nos ensina, do que o antepassado ensina, já que é apenas memória coletiva porque é conhecimento coletivizado.

Considerações finais

Compreendemos que os processos educativos da capoeira são completamente distintos e antagônicos à matriz colonial de poder: são pedagogias decoloniais que constroem outras formas de ser gente e agente do planeta, pois nascem da resistência dos nossos antepassados a esse padrão que, mesmo ao término do colonialismo, ainda se impõe pela colonialidade.

A memória coletiva e a ancestralidade presentes na cultura popular são elementos que têm permitido que a cosmogonia ancestral (que, sabemos, se encontra em constante diálogo e transformação como qualquer elemento da cultura) dos grupos subalternos, de negros e indígenas chegue até nós, expressando sua histórica resistência.

Discutir a capoeira e as manifestações culturais de matriz africana no Brasil na contemporaneidade promove, epistemologicamente, em nós a necessidade de questionar o imperialismo do norte, que tenta impor sua cultura e um modelo de produção de conhecimentos às zonas periféricas. Trazer a Capoeira para o campo da educação é uma iniciativa que visa assegurar que a educação do Brasil seja, de fato, brasileira, e não um bojo de importações teórico-metodológicas que ainda carregam fortes ranços de colonialidade.

A Educação, pensada nesta perspectiva, contribui para práticas socioeducacionais ética, epistemológica e politicamente comprometidas com os saberes dos diversos grupos sociais, principalmente aqueles que são marcados historicamente pela exclusão social ocasionada pelas posturas dominantes frente à situação dos grupos ditos dominados.

A relevância desta pesquisa se encontra na possibilidade de gerar indicativos para pensar práticas educativas que valorizem os saberes das populações excluídas, suas linguagens e códigos, seus valores, tendo em vista sua emancipação.

Referências

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Notas

1 Diferentemente de Bourdieu, entendemos, como Raymond William (1992), que a reprodução cultural pode ser um tipo eficiente dentro dos próprios processos de conhecimento. No caso específico da capoeira, sua insistência em permanecer no contexto de práticas sociais populares indica uma relação ainda necessária com a vida social, mas reconhecendo que ela se reproduz em ação, isto é, transformando-se na interação com sistemas outros que ligam os sujeitos sociais, constituindo-se em uma re-seleção operacional da tradição: a reprodução em ação.

2 Uma descrição detalhada sobre a gênese e desenvolvimento do pensamento decolonial pode ser encontrada no artigo de Ballestrin (2013).

3 É o segundo município mais populoso do estado do Pará e o quarto da Região Norte do Brasil. Sua população é estimada é de 516.057 habitantes, segundo dados do IBGE (2017). Ananindeua é marcado por índices elevadíssimos de violência urbana.

4 Fala da aluna Ioiô, proferida durante a entrevista com ela realizada no período da coleta de dados da pesquisa.

5 Fala da aluna Ioiô, proferida durante a entrevista com ela realizada no período da coleta de dados da pesquisa.

6 Fala da aluna Ioiô, proferida durante a entrevista com ela realizada no período da coleta de dados da pesquisa.

Recebido: 27 de Fevereiro de 2018; Aceito: 20 de Março de 2018

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