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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.45 São Paulo ene./abr 2018  Epub 07-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n45.7959 

Artigos

A interseccional idade nas políticas de ação afirmativa como medida de democratização da educação superior

Intersectionality in affirmative action policies as a democratization measure of higher education

Daniela Auad1 

Ana Luisa Alves Cordeiro2 

1Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG - Brasil auad.daniela@gmail.com

2Doutora em Educação. Pós-doutoranda em Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora, Bolsista PNPD/CAPES, Juiz de Fora, MG - Brasil analuisatri@gmail.com


Resumo

Ao focalizar os processos de democratização da Educação Superior, a interseccionalidade de categorias sociais como raça, classe, gênero e orientação sexual se mostra potente maneira de perceber necessidades estudantis e de formular intervenções nos fatores decisivos de trajetórias acadêmicas, sobretudo se tratando de acesso, permanência e desempenho acadêmico. Ao considerar a interseccionalidade e ao abordar autoras, em um só tempo, atuais e clássicas como Luiza Bairros, Audre Lorde, Heleieth Saffioti e Kimberlé Crenshaw, o objetivo do presente artigo é, a partir de dados de pesquisa, analisar fatores que interferem na permanência de mulheres negras cotistas lésbicas e mulheres negras cotistas bissexuais, assim como refletir sobre o enfrentamento às violências que as afetam física, material e psicologicamente na direção do acesso a bens materiais e simbólicos na universidade e em outras esferas sociais. A metodologia qualitativa foi adotada de modo a agregar dados quantitativos, pesquisa bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Cotas; Educação Superior; Lésbicas e Bissexuais; Mulheres Negras; Políticas de Ação Afirmativa

Abstract

In focusing on the processes of democratization of Higher Education, the intersectionality of social categories - such as race, class, gender and sexual orientation - is a powerful way to perceive student needs and formulate interventions in the decisive factors of academic trajectories, especially in dealing with access, permanence and academic performance. In considering intersectionality and approaching authors, both current and classic, such as Luiza Bairros, Audre Lorde, Heleieth Saffioti and Kimberlé Crenshaw, the objective of this article is, from research data, to analyze factors that interfere in the permanence of lesbian quotartes black women and bisexual quotaters black women as well as reflect on the confrontation with the violence that affects them physically, materially and psychologically towards access to material and symbolic goods in the University and in other social spheres. The qualitative methodology was adopted, in order to add quantitative data, bibliographical and documentary research.

Keyword: Quotas; Higher Education; Lesbians and Bisexuals; Black Women; Affirmative Action Policies

Introdução ao tema ou à pertinente pergunta: “Vocês estão fazendo o seu trabalho?

“Porque sou mulher, porque sou Negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma - uma poeta guerreira Negra fazendo seu trabalho. Pergunto: vocês, estão fazendo o seu?” (Audre Lorde)

A democratização da educação superior - tanto o acesso a ela quanto às maneiras em que se dão permanência e evasão - se relaciona enormemente ao enfrentamento das discriminações nas trajetórias escolares, acadêmicas e profissionais. Ao referir-se especialmente às mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais, o presente artigo, fruto de pesquisa, reflete sobre as trajetórias e cotidianos de estudantes que ocupam um espaço que não foi tradicionalmente pensado para elas. No caso das mulheres negras lésbicas e bissexuais, trata-se de um lócus universitário que se apresenta como um “não-lugar social”, uma vez que, na universidade, não lhes caberia a função de intelectuais, segundo um conjunto de representações que relacionam raça, classe e gênero de modo a privilegiar homens, brancos e ajustados aos padrões reconhecidamente heterossexuais e capitalistas.

A clássica obra A Mulher na Sociedade de Classes, da socióloga Heleieth Saffioti, nos dá, de modo pioneiro, chaves para entender esse fenômeno que pode ocorrer com as alunas cotistas. Com primeira edição em 1969, a obra emblemática expressa as reflexões de Saffioti acerca do modo de produção capitalista e à maneira como a mulher, nesse modelo de sociedade, está confinada aos padrões domésticos e em dupla desvantagem. A autora assevera que há uma subvalorização da capacidade das mulheres e uma inserção periférica ou marginal delas no sistema de produção. No ideário da autora, o capitalismo não criou a inferiorização social das mulheres, mas se aproveita do imenso contingente feminino acirrando a disputa e aprofundando as desigualdades entre os sexos (SAFFIOTI, 2013). Complementamos que, para além disso - e, se se desejar adotar o olhar construcionista de Joan Scott (1990), anteriormente a isso -, há o acirramento das desigualdades entre os gêneros masculino e feminino, fazendo com que se amplie a leitura das situações para além dos homens e das mulheres como sujeitos, mas se amplifique para as representações sociais, de modo a potencializar análises que incluam a população de mulheres dos segmentos correspondentes às lésbicas, às bissexuais e às transexuais.

Essa leitura e apropriação da obra de Saffioti, que vai além do sexo dos sujeitos e considera gênero, foi realizada em variados textos da autora e fez com que a socióloga utilizasse a expressão “sistema sexo gênero”, apropriada por ela a partir da obra de Gayle Rubin. Muito conhecida pelo texto de abordagem marcadamente lésbica feminista, intitulado Tráfico de mulheres: notas para uma economia política do sexo, a autora nos permite, por exemplo, descontruir a relação automática que se faz entre ‘tráfico’ de pessoas e prostituição. Dentre variadas contribuições, Rubin explora a adoção do conceito de gênero entre lésbicas como forma de forçar e testar os limites da interseção entre gênero e sexualidade (MOSCHKOVICH, 2012). É a esta autora da qual partem vigorosos subsídios intelectuais que Saffioti atribui a sistematização do sistema sexo/gênero, ao colocar gênero como um conceito que é potente tanto para entender as desigualdades e opressões quanto para enfrentá-las, sendo essas duas ações diferentes entre si, uma vez que a análise não contem em si o desejo e a intencionalidade de enfrentamento.

O presente artigo busca não apenas trazer análise, mas, com isso, também subsidiar maneiras de enfrentar os fenômenos relacionados à temática constituída por Mulheres Negras, Educação Superior e Políticas de Ação Afirmativa.

Na direção de contribuir para o desenvolvimento dessa análise, cumpre destacar o que as pesquisadoras Daniela Auad e Cláudia Lahni consideram no artigo Diversidade, direito à comunicação e alquimia das categorias sociais: da anorexia do slogan ao apetite da democracia (2013), no qual as autoras analisam os pares que produzem e são produzidos pelas oposições binárias hierarquizadas, que resultam em desigualdades educacionais, e consideram:

Negritude e branquitude, juventude e velhice, riqueza e pobreza, heterossexualidade e homossexualidade são pares comumente utilizados para revelar, produzir e para analisar os fenômenos sociais, ao lado dos e em conjunto aos arranjos de gênero também polarizados entre masculino e feminino. Relacionadas a essas combinações, um vasto conjunto de ideias e representações cria percepções binárias e naturalizadas, as quais serão utilizadas para “organizar” os sujeitos de modo a reforçar diferenças hierarquizadas, em uma desigual escala de valores. Essas dinâmicas e processos tornam as mulheres sujeitas a específicas vulnerabilidades, as quais correspondem a um conjunto de fatores cuja interação amplia ou reduz o risco ou a proteção de uma pessoa ou de uma população em relação a uma determinada doença, condição ou dano. Assim, ser menina adolescente, negra, homossexual e moradora da periferia são identidades exemplares de como as vulnerabilidades podem se somar e corresponder a obstáculos ao pleno desenvolvimento de um grupo populacional, causando, em última análise, e a longo prazo, um dano imenso à construção de uma sociedade que se pretende igualitária e democrática. (AUAD; LAHNI, 2013, p. 3)

Expressões dessas assertivas são trazidas pelas autoras a partir de dados recentes sobre as mulheres em variadas searas. Em 2012, o Brasil registrava a taxa média de desemprego de 5,5%, a mais baixa da história. Essas boas notícias atestavam aumento dos empregos com carteira assinada e maiores rendimentos de trabalhadores e trabalhadoras. Apesar desse desenvolvimento, uma análise mais detida sobre os números no mercado de trabalho também revelaria desigualdades. Segundo o IBGE, uma mulher branca, com 11 anos de estudo ou mais, ganha algo em torno de R$ 2,2 mil; uma mulher negra, com a mesma escolaridade, ganha 59% do rendimento recebido pela branca. Além disso, as mulheres continuam ganhando menos que os homens. Na comparação do IBGE, enquanto as mulheres ganham em média R$ 1.489,01, os homens recebem R$ 2.048,34. Mesmo sendo “mais baratas” para os empregadores, menos da metade das mulheres tem empregos, em comparação com quase quatro quintos dos homens, conforme informa o Banco Mundial.

Assim, ao considerar esse universo de larga desvantagem das mulheres, aprofundada desigualdade entre os gêneros e necessária consideração das interseccionalidades entre as categorias, analisamos no presente artigo elementos que interferem na permanência de mulheres negras cotistas lésbicas e negras bissexuais no enfrentamento às violências que as afetam fisica, psicologicamente e do ponto de vista do acesso a bens materiais e simbólicos na universidade e sociedade. É um trabalho que se vincula à pesquisa de pós-doutorado em educação em andamento e aos debates realizados no Coletivo Feminista e Grupo de Pesquisa composto por mulheres heterossexuais, lésbicas e bissexuais, fundado e em funcionamento no interior de uma universidade federal.

Políticas de Ação Afirmativa e a potência das interseccionalidades

A implementação das políticas de ação afirmativa na educação superior brasileira ultrapassou mais de uma década de percurso histórico. As primeiras experiências de implementação, na modalidade cotas raciais para negras/os e indígenas, se iniciam nos anos 2002 e 2003 com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade do Estado da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade de Brasília, entre outras.

Em 2012, no governo da então presidenta Dilma Rousseff (2011-2016/Interrompido), houve a aprovação da Lei nº 12.711/2012 que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e instituições de ensino técnico de nível médio. Esse processo continuou com a aprovação da Lei nº 12.990/2014, que dispõe sobre a reserva de vagas para negras/os em concursos públicos federais, e com a Portaria Normativa nº 13/2016, dispondo sobre as ações afirmativas na pós-graduação. (CORDEIRO, 2017)

No contexto internacional, a implementação das políticas de ação afirmativa em nosso país acompanhou as indicações que o Relatório de Durban (2001) trouxe e do qual o Brasil é signatário. A III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Durban, na África do Sul, em 2001, indicou aos Estados que implementassem ações afirmativas como estratégias de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia, intolerância correlata, entre elas a violência sexual e de gênero.

No contexto nacional, acompanhou-se uma série de pressões sociais vindas de grande parte do movimento negro e do movimento de mulheres negras para que as desigualdades históricas fossem enfrentadas por meio de ações preventivas, reparadoras, compensatórias e de curto prazo, especialmente as cotas.

Nessa conjuntura, apresentamos uma pesquisa de abordagem qualitativa que agrega dados quantitativos, com autoras/es que fazem a interface educação, gênero e relações étnico-raciais. O procedimento metodológico adota pesquisa bibliográfica e documental e são considerados textos que abordam, em suas análises, o Feminismo Negro e o Feminismo Lésbico.

Cumpre destacar que a terminologia LGBT é aqui utilizada a partir das conferências nacionais LGBTs, significando ‘lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros’. A LGBTfobia seria, portanto, a aversão e o ódio dirigidos à população LGBT. Para expressar tal fenômeno e seus efeitos nefastos, trazemos mapa de dados divulgado no site homofobiamata emitido recentemente, em setembro de 2017. Há de se relembrar o quanto esse tipo de fenômeno ainda é subnotificado e, portanto, o mapa abaixo traz uma referência que pode estar distante e pode ser muito menor do que os números que seriam coletados se a LGBTfobia fosse objeto de coleta de dados a partir do reconhecimento de sua criminalização em lei, a exemplo do racismo.

Fonte: Grupo Gay da Bahia. Disponível em: <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/10/mapa1111.png>. Acesso em: 30 set. 2017.

Figura 1: Mapa das Mortes de LGBT no Brasil 

Ainda na perspectiva do mapeamento dos dados, importa asseverar que a sociedade brasileira é marcada por um capitalismo caracteristicamente machista, racista e heteronormativo, estes como elementos estruturantes em nosso país. O documento Os Jovens do Brasil - Mapa da Violência 2014 (WAISELFISZ, 2014) denuncia a articulação entre homicídios e a cor da pele das vítimas, morrendo 79,9% mais jovens negros que brancos entre 2002 e 2012. Mas engana-se quem pensa que essa articulação diz respeito apenas aos jovens negros. Os dados do Mapa da Violência 2015 - Homicídios de Mulheres no Brasil (WAISELFISZ, 2015) aponta que, no período de 2003 a 2013, para uma queda de 9,8% nos homicídios de mulheres brancas houve um aumento de 54,2% nos homicídios de mulheres negras. Esses dados têm uma relação direta com a educação superior, visto que a faixa etária mais afetada por essa violência, seja dos jovens negros seja das mulheres negras, é a de 18 a 30 anos, ou seja, abrange a idade adequada ao ingresso na educação superior (18 a 24 anos).

Há ainda outras violências que afetam as mulheres negras, e que são tão perversas quanto as relatadas acima. São violências atuantes como mecanismos de interdição na trajetória de vida dessas mulheres, em especial na educação e no mercado de trabalho. São interdições que operam articulando preconceito contra as negras (raça), pobres (classe), mulheres (gênero), não heterossexuais (orientação sexual) e não cisnormativas (identidade de gênero), dentre outras, como as questões de intolerância religiosa, geração, regionalidades e/ou territorialidades. Dessa forma, o preconceito é entendido como aversão a determinadas pessoas por conta da diversidade de elementos que conformam suas identidades e que se materializam em ações discriminatórias e violações de direitos humanos.

O Brasil desponta crescentemente em crimes de homo/transfobia, como traz o Relatório da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans e Intersexuais (ILGA, 2017) e o Relatório Anual de Assassinatos de Homossexuais no Brasil realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB, 2014). Em 2014, foram documentadas 326 mortes de gays, travestis, lésbicas e bissexuais, a maioria na faixa etária de 19 a 30 anos (28%), seguida de 31 a 40 anos (23%), sendo que apesar de os dados terem recorte racial os quantitativos de ‘não informado’ ainda são altos nesse quesito. Como é possível notar, os dados do Mapa acima, de 2017, já são maiores, se considerarmos que este artigo não contempla o ano inteiro referido. Uma hipótese para essa comparação seria a de que as notificações aumentaram, mesmo ainda sendo pequenas e ainda ocorrendo a subnotificação.

Ao considerar os dados, as políticas de ação afirmativa podem ser um instrumento de enfrentamento às desigualdades e violências que afetam as mulheres negras lésbicas e negras bissexuais, sobretudo se as compreendemos de modo ampliado, como postula Joaquim Barbosa Gomes (2005, p. 51):

[…] políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade.

As cotas, uma modalidade de ação afirmativa, são entendidas a partir de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes (2006, p. 191-192) como “a prática de estabelecer uma proporção ou número de vagas para estudantes em instituições educativas e para trabalhadores no mercado de trabalho a partir de critérios sociais.” Assim, quando destacamos as políticas de ação afirmativa interseccionais, reforçamos essa dimensão ampliada das ações afirmativas para além da questão racial e social, dizendo respeito também às questões de gênero e orientação sexual.

Um exemplo dessa intersecção nas políticas de ação afirmativa é o que já ocorre na Universidade Federal da Bahia, que, por meio da Resolução nº 01, de 11 de janeiro de 2017, aprovou a adoção de cotas no ingresso da pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) para negras/os (pretas/os e pardas/os), indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e pessoas trans (transexuais, transgêneros e travestis).

A interseccionalidade compreendida a partir do Feminismo Negro é, como aponta Kimberlé Crenshaw (2002), a articulação de dois ou mais fatores de subordinação (racismo, patriarcalismo, opressão de classe, entre outros). Claudia Pons Cardoso (2012, p. 324) destaca que “o feminismo negro é construído a partir de realidades concretas, resultado de experiências vividas cotidianamente pelas mulheres negras no enfrentamento das situações provocadas pelo racismo, sexismo e heterossexismo.”

Por outro lado, Luiza Bairros (1995, p. 461) já destacava que precisamos

[…] dar expressão a diferentes formas da experiência de ser negro (vivida através do gênero) e de ser mulher (vivida através da raça) o que torna supérflua discussões a respeito de qual seria a prioridade do movimento de mulheres negras, a luta contra o sexismo ou contra o racismo? Já que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de vista da reflexão e ação políticas uma não existe sem a outra.

A essas dimensões acrescentamos outras que perfazem a experiência das mulheres, como a orientação sexual. Assim, Jurema Werneck (2010, p. 77) nos lembra como é possível, no interior dessas articulações, o reconhecimento de que “[…] estamos diante de diferentes agentes históricas e políticas - as mulheres negras - intensas como toda diversidade.” Diante desse conjunto de categorias em ação, constituintes dos sujeitos, é importante ainda rememorar o que assinala Audre Lorde (2009): não há hierarquias de opressão. E a essa assertiva complementamos: todas as opressões em intersecção devem ser consideradas na construção da democracia. Afinal, se as identidades se constroem no entrelaçar das categorias sociais e as discriminações também, as soluções de enfrentamento destas e de fortalecimento daquelas devem considerar a interseccionalidade de gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero, dentre outras categorias e elementos.

Tanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/BRASIL, 1996) quanto o Plano Nacional de Educação referente a 2014-2024 (BRASIL, 2014) não expressam diretamente a preocupação com questões relativas a orientação sexual. O mesmo não ocorre com a questão étnico-racial. Na LDBEN, já nos princípios e fins da Educação Nacional, no Art. 3º, dispõe-se que: “I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; […] XII - consideração com a diversidade étnico-racial.” Porém, no capítulo que trata da Educação Superior, não figura uma única menção ou preocupação com as questões étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual.

O PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014), na meta 12, que trata da elevação da taxa bruta de matrícula na educação superior, expressa, no item 12.1, a preocupação com a redução das desigualdades étnico-raciais, bem como com o acesso e a permanência na educação superior, sobretudo quando se trata de estudantes oriundas/os da escola pública, afrodescendentes, indígenas e de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. O documento, no item 12.9, propõe “ampliar a participação proporcional de grupos historicamente desfavorecidos na educação superior, inclusive mediante a adoção de políticas afirmativas, na forma da lei.” Ainda no que tange à Educação Superior, o PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014), na Meta 14, ao prever a elevação gradual do número de matrículas na pós-graduação stricto sensu, estabelece, no item 14.5: “implementar ações para reduzir as desigualdades étnico-raciais e regionais e para favorecer o acesso das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas a programas de mestrado e doutorado.”

Assim, nota-se silenciamento em relação à orientação sexual, como já havia no anterior PNE 2010-2020. A não referência à orientação sexual expressa a invisibilidade em torno disso e uma desconsideração em relação à necessidade de enfrentamento dessas questões na educação brasileira. Tal desconsideração se traduz, dentre variados fenômenos, em banalização das mortes expressas nos mapas anteriormente expostos e remonta à invisibilização da população LGBT no que se refere ao mínimo necessário para angariar e manter direitos, o que afeta diretamente o acesso e a permanência dessa população na escola e na universidade.

Mulheres negras cotistas lésbicas e mulheres negras cotistas bissexuais

As cotas raciais na educação superior, para ingresso na graduação e, agora, progressivamente sendo expandidas para pós-graduação como uma exemplar medida ainda não universalizada, têm possibilitado o maior ingresso de mulheres negras. Com essa conjuntura, consequentemente, o número também de mulheres negras lésbicas e bissexuais aumentará nas universidades, em todos os níveis e modalidades de ensino. Essas mulheres adentram a universidade, um espaço culturalmente elitizado, com uma produção de conhecimento pautada pelos e nos homens, brancos, heterossexuais, cristãos, de classe média alta, adultos, do meio urbano e sem qualquer marca que os coloquem na condição de pessoa com deficiência. Muito distantes desse padrão considerado de excelência ‘de saída’, a trajetória acadêmica das mulheres negras que o presente artigo focaliza é uma constante resistência ao que está posto hegemonicamente, estremecendo essa ordem compulsória racista e heteronormativa.

O acesso à educação superior ultrapassa, portanto, a etapa do ingresso e é compreendido na perspectiva da consideração de outras dimensões como permanência, qualidade da formação e modo de conclusão nesse nível de ensino (SILVA, 2011, p. 14). Os fatores de permanência envolvem não somente questões socioeconômicas, já que muitos/as estudantes são oriundos/as de grupos em situação de vulnerabilidade social. Há de se considerar, ao pensar em permanência nas questões pedagógicas e culturais (CORDEIRO; CORDEIRO; MULLER, 2016, p. 132), que tais fatores impactam o desempenho acadêmico, que também é afetado por processos discriminatórios, os quais muitas vezes interrompem trajetórias acadêmicas e profissionais.

As intelectuais negras enfrentam, no espaço de produção de conhecimento, um discurso que lhes diz, cotidianamente e de variadas formas, que ali não é o lugar delas enquanto intelectuais. Por essa razão, é importante destacar que, no presente artigo, consideramos o conceito de intelectual a partir de Bell Hooks (2005, p. 468): “[…] alguém que lida com ideias transgredindo fronteiras discursivas porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-lo. […] intelectual é alguém que lida com ideias em sua vital relação com uma cultura política mais ampla.”

Dessa maneira, as mulheres negras lésbicas são afetadas por desvantagens em consequência das discriminações de raça (ser negra), de gênero (ser mulher), de classe social (ser pobre), de moradia (residir em favelas ou áreas rurais afastadas), de idade (ser jovem ou idosa), podendo somar ainda a presença de alguma deficiência, entre outras características que podem colocá-las em condição de vulnerabilidade. A interseccionalidade possibilita, assim, enfrentar de maneira mais precisa a articulação entre as facetas que constituem tanto os sujeitos quanto as opressões que os cercam e as alternativas de medidas de enfrentamento a essas opressões. Se há, por um lado, a articulação de categorias na análise da constituição das identidades, e, por outro lado, na produção de desigualdades e injustiças sociais, também há a potente combinação das mesmas categorias de análise quando do enfrentamento da problemática tematizada na pesquisa em tela. Essa atuação concomitante dos fatores discriminatórios potencializa e legitima outras violações de direitos ou ainda a criação e manutenção de privilégios (SANTOS, 2009). Mas, por outro lado, essa atuação em combinatória potencializa o enfrentamento às desigualdades.

Ao considerar essas complexas dinâmicas, incluímos as mulheres negras bissexuais que, ao se relacionarem com outras mulheres na vivência de suas lesbianidades e bissexualidades, são afetadas pelas específicas manifestações de homofobia contra mulheres não heterossexuais, manifestações essas também nomeadas como bifobia e lesbofobia.

Sandra Marcelino (2016), ao entrevistar quatro ativistas negras lésbicas do Rio de Janeiro, apontou que a partir das experiências dessas mulheres o espaço da universidade emergiu como um lócus organizativo, formativo e de negociações políticas. Segundo a autora, “A vida universitária foi um alicerce importante para a tomada de consciência crítica e compreensão da dinâmica social e política em relação à questão racial e à identidade negra.” (op.cit., p. 118-119) Para várias dessas mulheres, a universidade se tornou um divisor de águas. A autora destaca que para algumas de suas entrevistadas a orientação sexual pode gerar uma maior opressão associada ainda à função da performance corporal. Para outro grupo de entrevistadas, “a cor que não pode ser camuflada”, que as coloca em lugares de subordinação de todo modo.

Essa afirmação coletada em campo mostra que o racismo pode ser estruturante da lesbofobia e da bifobia, sobretudo quando se pensa que o silenciamento e apagamento da própria lesbianidade e bissexualidade são tanto manifestações de homofobia internalizada quanto expressões de estratégias de sobrevivência em terrenos de disputa e violências simbólica e física. O antigo e sempre presente questionamento emerge: “além de preta ainda é sapatão?”, ou seja, lesbofobia e racismo se articulam. A negra, ao expor sua orientação sexual, depara-se com um feixe de ódios e aversões, e a declaração da orientação sexual pode ser lida sob a égide da intolerância e, assim, ser interpretada como “uma escolha ou um pedido para ser agredida.” (MARCELINO, 2016, p. 123, grifos da autora)

Considerar a interseccionalidade nas políticas de ações afirmativas permite, portanto, visibilizar a orientação sexual que constitui as mulheres negras cotistas, entendendo aqui a heterossexualidade também como orientação sexual e, ademais, considerando como ser lésbica ou bissexual as afeta por outros e diferentes processos discriminatórios, articulados ao racismo e machismo.

Considerações finais

As assertivas consideradas ao longo do presente texto constituem parte do desafio da educação superior brasileira: democratizar mecanismos de acesso e permanência. Esse debate não deve ser confundido com a expansão da oferta de educação superior, uma vez que não basta expandir as vagas no setor privado e vagas ficarem ociosas. Da mesma maneira, não é solução aumentar as vagas no setor público e as mesmas continuarem sendo ocupadas pela elite privilegiada. O atual contexto da educação superior exige ações de democratização, sobretudo em uma perspectiva de desprivatização, garantindo direitos às pessoas historicamente alijadas dos processos educacionais (RISTOFF, 2008). A igualdade no acesso precisa ser compreendida como algo integrante da qualidade da instituição e, nesse sentido, aqui estamos nos referindo ao ingresso das negras lésbicas e bissexuais como uma maneira de reinventar a noção de excelência da universidade e da produção de conhecimento. O padrão de conhecimento construído é, ainda hoje, predominantemente eurocêntrico, sexista e heteronormativo, legitimando uma sociedade historicamente elitizada e meritocrática, o que vai de encontro às políticas afirmativas. A presença das mulheres negras lésbicas e bissexuais quebra silêncios, reinventa o espaço, inaugura temáticas e as maneiras de conhecer, pois:

[…] a mulher negra lésbica questiona com sua própria existência discursos como os que foram construídos durante séculos em torno das mulheres, das negras e das lésbicas. A negra lésbica subverte o feminino, rompe com a heteronormatividade e transgride o espaço destinado à mulher negra em uma sociedade racista. (MARCELINO, 2016, p. 123)

Ao serem resistência institucionalizada, as negras, como aponta Lélia Gonzalez (1982), enfrentam a “divisão racial do espaço”, espaço que constantemente diz a elas que a universidade não é seu lugar, seja como discentes seja como docentes. Repetidamente e de múltiplas maneiras, é dito a elas que não lhes cabe a função social de intelectuais, como apontam também as análises da intelectual negra estadunidense Hooks (2005).

A resistência torna-se assim, para algumas mulheres negras lésbicas e mulheres negras bissexuais na universidade, uma postura de vida, um ato político de enfrentamento às violações de direitos às quais estão vulneráveis em razão das discriminações que, em perversa combinatória, articulam raça, gênero, classe social e orientação sexual.

A presença de intelectuais negras lésbicas e bissexuais no espaço universitário representa resistência aos padrões estabelecidos, um caminho legítimo de construção de uma sociedade democrática e plural para todas as pessoas, e não apenas para as mulheres negras lésbicas e bissexuais. No conhecimento por elas produzido podem ser ensaiadas com primor e excelência, em um só tempo, outras e novas maneiras de conhecer a negritude, a diversidade sexual e a universidade. Nessa direção, a Administração Superior, em suas várias searas de gestão, seria convocada a implementar ações afirmativas que previnam as discriminações, promovam a sensibilidade de toda a comunidade acadêmica e suscitem mudança de práticas, políticas e atitudes. Esse dialogar com corações e mentes, a partir de políticas afirmativas, seria uma maneira, senão a melhor maneira, de a universidade se reinventar.

Recusar-se a participar desse processo, seria extinguir vicejantes possibilidades de democratização não apenas no tocante às mulheres negras lésbicas e às mulheres negras bissexuais, mas no que se refere a toda a sociedade.

Referências

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Recebido: 03 de Outubro de 2017; Aceito: 08 de Janeiro de 2018

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