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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.45 São Paulo ene./abr 2018  Epub 07-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n45.7783 

Artigos

Reflexões sobre o Procampo - programa de apoio à formação superior em licenciatura em educação do campo

Reflections on PROCAMPO - support program for higher education in licentiate in field education

Ramofly Bicalho1 

1Doutor em Educação. Docente na Licenciatura em Educação do Campo, no PPGEA - Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola e no PPGEduc - Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares, na UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Campus Seropédica. ramofly@gmail.com


Resumo

O presente texto é fruto das pesquisas realizadas em educação do campo na estreita articulação com os movimentos sociais, numa perspectiva histórica e emancipadora, desenvolvida no Pós-Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nosso objetivo central foi compreender o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) enquanto política pública específica de educação do campo, oriunda das mobilizações dos movimentos sociais. A pesquisa documental foi desenvolvida, predominantemente, em acervos bibliográficos. Entre as fontes de investigação, utilizamos legislações, portarias, decretos e referenciais teóricos sobre educação do campo nos movimentos sociais. Apoiamo-nos numa perspectiva sociológica de investigação e explicação dos processos sociais de participação dos sujeitos camponeses, enquanto seres históricos e culturais. Os resultados mostram que o PROCAMPO contribui para formação político-pedagógica dos educadores nas escolas do campo, respeitando-se os valores da solidariedade e da ética presentes na luta pela terra.

Palavras-chave: Educação do Campo; Escola do Campo; Formação Docente; Movimentos Sociais

Abstract

The present text is the result of the research carried out in rural education in close articulation with social movements, in a historical and emancipatory perspective, developed in the Post-Doctorate in Education of the Federal Fluminense University (UFF). Our main objective was to understand the Program of Support for Higher Education in Licentiate in Field Education - PROCAMPO, as a specific public policy for education in the countryside, arising from the mobilizations of social movements. The documentary research was developed, predominantly, in bibliographic collections. We use research sources, legislation, ordinances, decrees and theoretical references on education of the field in social movements. We support a sociological perspective of investigation and explanation of the social processes of participation of the peasant subjects, as historical and cultural beings. The results show that PROCAMPO contributes to the political-pedagogical formation of educators in rural schools, respecting the values ​​of solidarity and ethics present in the struggle for land.

Keywords: Field Education; School of the Field; Teacher Training; Social Movements

1 Introdução

Importante sinalizar, neste trabalho, a continuidade das nossas reflexões acerca das pesquisas realizadas em educação do campo na sua estreita articulação com os movimentos sociais e demais entidades do campo1, desenvolvidas no Pós-Doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nesse campo de análise, privilegiamos as relações entre educação do campo e formação do educador, por meio do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO), enquanto política pública específica de educação do campo no Brasil. Focalizamos as relações entre as histórias de vida de educadores e educandos no envolvimento com as lutas organizadas pelos movimentos sociais do campo, contribuindo para formação de novos sujeitos sociais numa perspectiva popular e histórica. Acreditamos nessa dimensão educativa e no fazer pedagógico que educadores/as das escolas do campo realizam com base em organização coletiva e no fortalecimento de projetos políticos pedagógicos emancipadores. (FREIRE, 1997)

Nossa intenção com este trabalho é compreender o campo como lugar de resistência e luta pela terra, essencial para repensarmos as políticas públicas educacionais destinadas à infância, aos jovens e adultos do campo. Mostraremos a relevância dos princípios desenvolvidos pelos movimentos sociais no que toca à luta por uma educação do campo, suas bandeiras, projetos, perspectivas e utopias. A formação política dos trabalhadores e a valorização da consciência social são alguns dos desafios. A produção de tal conhecimento nas universidades pode contribuir para reconstrução do passado, escavando memórias, recuperando fontes primárias, ressignificando identidades e histórias vividas pelos sujeitos que se articulam para superar a falta de projetos emancipadores, a opressão e as diversas cercas do analfabetismo e da fome que atingem milhares de homens e mulheres no campo.

A expressão educação do campo identifica uma reflexão pedagógica que germina das inúmeras práticas educativas desenvolvidas pelos sujeitos que vivem no campo. Consiste numa reflexão que considera o campo como espaço de produção de pedagogias. Trata-se de um projeto que reafirma a finalidade mais expressiva das práticas educativas desenvolvidas no campo. Ela contribui com o desenvolvimento mais pleno do ser humano e sua inserção consciente no contexto social do qual faz parte (CALDART, 2002). A realidade de intensa desumanização que, historicamente, caracteriza a vida da população camponesa, gerou esse movimento em favor da educação básica do campo. Uma realidade que, mesmo marcada por opressões e injustiças, continua reivindicando alterações sociais, profundas e imediatas, no campo brasileiro.

O processo de exclusão social, político e econômico acompanha a história do Brasil desde o seu surgimento, firmada sob caráter elitista. Contudo, a luta dos movimentos sociais pelo direito à educação produziu inúmeras conquistas em favor do desenvolvimento do campo brasileiro. Segundo Caldart (2002), o movimento por uma educação do campo se vincula a outras lutas, em favor de transformações que garantam melhores condições de vida para a população camponesa. Essa conexão se justifica pela impossibilidade de educar o povo sem modificar as condições que o desumaniza.

A formação dos educadores está atrelada à defesa de projetos político-pedagógicos (PPP) emancipadores nas universidades, na centralidade do conflito de ideias e nos valores de uma nova sociedade, considerando suas histórias de vida, memórias, construção coletiva, lutas por reconhecimento identitário e novas formas de coesão social. A formação político-pedagógica pode envolver educadores e educandos das escolas do campo em assentamentos, acampamentos e territórios quilombolas, respeitando-se os aspectos culturais vivenciados pela mística e a luta pela terra, além dos valores da solidariedade e da ética presentes nas atividades da educação do campo. Entendemos que as licenciaturas em educação do campo nas universidades públicas, com suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, formação por área de conhecimento e pedagogia da alternância, podem ressignificar vidas, costumes, conceitos e histórias.

O objetivo principal deste trabalho é mostrar a estreita articulação entre educação do campo e movimentos sociais, considerando a participação dos sujeitos, individuais e coletivos, como seres históricos e culturais. Compreende-se que a formação continuada de educadores e educandos nas universidades públicas pode dialogar com as atividades de ensino, pesquisa e extensão, a partir do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo.(PROCAMPO)

Importante ressaltar que a conquista de tais políticas públicas educacionais é fruto da resistência organizada dos movimentos sociais, sindicatos e demais organizações do campo. Ela resulta das ações dos diversos atores sociais e de suas lutas em favor de universidades e escolas do campo que respeitem a realidade e diversidade das famílias camponesas. Lutas que marcam a ruptura entre educação do campo e educação rural. Muito mais que uma nomenclatura, tal divisão retrata a consciência de processos educativos a serviço dos povos camponeses.

Na construção dos referenciais teórico-metodológicos, privilegiamos a análise documental e os acervos bibliográficos disponíveis nas instituições pesquisadas. Trabalhamos ainda com pareceres, decretos reguladores e documentos próprios da educação do campo produzidos pelos movimentos sociais do campo em parceria com sindicatos, universidades públicas e secretarias municipais de educação. Apoiamo-nos numa perspectiva eminentemente histórica e sociológica de investigação e explicação dos processos sociais de participação dos sujeitos camponeses. Este estudo tem como horizonte o entendimento das relações sociais concretas que determinam a materialização das propostas políticas e pedagógicas em questão. Utilizamos ainda legislações, revistas, jornais, dissertações, teses, livros e artigos em periódicos científicos que discute e procuram demonstrar a relevância da educação do campo, suas bandeiras e sujeitos coletivos.

Nessa conjuntura, é importante conhecer os desafios e as conquistas oriundas do PROCAMPO, compreendendo as tensões estabelecidas na relação entre movimentos sociais camponeses e Estado. O embate entre essas duas categorias resultou em específicas experiências históricas e na contribuição para que as organizações populares direcionem suas formas de lutas, como sujeitos de direitos. Nos últimos anos foram identificadas muitas práticas educativas, em todas as regiões do país, originadas no interior das organizações e movimentos sociais do campo, com o objetivo de garantir a educação básica nas comunidades rurais e também formar quadros dirigentes. Muitas dessas ações, ainda que isoladas, tiveram resultados concretos e serviram para que movimentos sociais e organizações não se inibissem. Pressionado por sujeitos, individuais e coletivos, coube ao Estado reconhecer, ampliar e desenvolver políticas públicas específicas e práticas educativas no campo. Elas representam a capacidade de articulação dos movimentos sociais e apontam a crescente necessidade de garantir projetos populares no campo cuja organização tenha como referência a cultura e o trabalho dos grupos sociais.

O debate acerca da educação do campo deve, portanto, procurar entender a complexidade do campo brasileiro, constituída por paisagens, lutas, organicidade, histórias, memórias, identidades e modos de vida. Nesse contexto, as políticas públicas permitem reafirmar esse espaço e legitimar as lutas que dali advêm. São, portanto, necessárias para consolidação de um projeto popular de país.

Assim, que concepção de formação para cidadania se espera da educação do campo? Qual o papel das universidades públicas para os estudantes do campo? Que saberes e aprendizagens são por eles valorizados? Qual a relação existente entre saberes teóricos e práticos da cultura? Que contribuições a educação do campo apresenta para o fortalecimento dos movimentos sociais e a pedagogia da alternância? Com tantas questões, entendemos que é essencial a atuação crítica dos movimentos sociais, cobrando do poder público ações de fortalecimento da educação pública no campo. O ambiente coletivo nos movimentos sociais pode cumprir com a emancipação humana e libertadora do campo, por onde ecoarão as vozes daqueles que, em nome da ética, do respeito às diferenças e da igualdade foram, historicamente, silenciados.

2 Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO)

O Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) foi criado pelo Ministério da Educação no ano de 2007, por iniciativa da então Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Para desenvolvermos reflexões acerca dos resultados produzidos pelo PROCAMPO, em nível nacional, é importante considerar o desenvolvimento das lutas por reforma agrária, em seus diferentes contextos e correlações de força, compreendendo que na questão agrária está contido o movimento maior das lutas de classe na sociedade capitalista.

Ele surge por meio de parcerias com as instituições públicas de ensino superior e objetiva oferecer as condições necessárias de execução e fortalecimento das Licenciaturas em Educação do Campo, além de viabilizar a criação e implementação desses cursos regulares nas instituições públicas de ensino superior de todo o país. Integra ensino, pesquisa e extensão, valorizando temáticas que sejam significativas para autonomia e reconhecimento das populações campesinas. Tem como princípio promover a formação de educadores/as por área de conhecimento, rompendo com os saberes fragmentados e disciplinares, como ocorre na maioria das instituições de ensino superior brasileiras, para atuarem nas escolas do campo nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio.

A aprovação do PROCAMPO surge do reconhecimento e da necessidade de formação inicial dos educadores/as que atuam nas escolas do campo. Contribuiu para fortalecer os debates acerca das políticas públicas educacionais e enfrentar questões que, geralmente, não são discutidas e aprofundadas pelo governo brasileiro. Como verificado na história do país, a política educacional até então destinada ao campo considerava esse espaço a extensão da cidade, de modo que instituição escolar, currículos, histórias, identidades e memórias dos educadores foram constantemente desconsiderados - a produção dos saberes partia dos grandes centros urbanos para o campo.

O Programa foi implantado, inicialmente, como experiência piloto nas universidades federais de Minas Gerais (UFMG), da Bahia (UFBA), de Sergipe (UFS) e de Brasília (UnB). Para elaboração do projeto pedagógico inicial participaram, além dos representantes das universidades, os movimentos sociais, enriquecidos com as discussões da militância política de cada estado federativo, visto que a proposta da pedagogia da alternância representava um enorme desafio. Para Antunes-Rocha (2010), a formação articulada entre Tempo Escola (TE ) e Tempo Comunidade (TC) mostra possibilidades de diálogo entre temporalidades e espacialidades, e favorece a superação de um dos mais significativos desafios da formação dos educadores do campo: as condições do processo formativo em diálogo com a cultura, lazer, religião e trabalho.

Em 2008/2009, por meio de editais, o Programa alcança 32 Instituições de Ensino Superior (IES), com a oferta de apenas uma única turma. Em 2010, os movimentos sociais conquistam o Decreto 7352/2010, que institui o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) como elemento da Política Nacional de Educação do Campo. Em 2012, publica-se o Edital de Seleção n.2 / 2012, pelo qual foram selecionadas 42 instituições de ensino superior para implementação de cursos permanentes de Licenciatura em Educação do Campo. Cada instituição obteve 18 códigos de vagas, sendo 15 para docentes e 3 para técnicos administrativos. Essa é uma conjuntura em curso, com forte movimento de produção de conhecimento. Foram contratados por concurso aproximadamente 600 docentes de nível superior para atuar nas Licenciaturas em Educação do Campo, diversos grupos de pesquisa reconhecidos pelo CNPq., conclusão de inúmeras teses, dissertações e monografias sobre as Licenciaturas em Educação do Campo, criação de cursos de especialização a partir das áreas de conhecimento, além do projeto Residência Agrária. Essas conquistas influenciam a luta por outras políticas públicas de construção de alojamentos para cursos em alternância, formação continuada para egressos, ampliação do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, além de outros cursos superiores em alternância. Com toda essa expansão, consignamos nos quadros 1 e 2, respectivamente, as vagas ofertadas e ocupadas, por região, nas Licenciaturas em Educação do Campo até o ano de 2015.

Fonte: (MOLINA, 2016).

Quadro 1: Número de vagas ofertadas até 2015 

Fonte: (MOLINA, 2016).

Quadro 2: Número de vagas ocupadas até 2015 

Reiteramos que os cursos de Licenciatura em Educação do Campo têm como objeto formar docentes, por área de conhecimento. Lecionarão nas escolas do campo da educação básica nos anos finais do ensino fundamental e médio, com ênfase na gestão de processos educativos escolares e comunitários, na construção da organização escolar e do trabalho pedagógico. Os educadores atuarão para além da docência, posto que a matriz curricular proposta desenvolve estratégias multidisciplinares de trabalho docente, organizando-se a partir de quatro áreas do conhecimento: Artes, Literatura e Linguagens; Ciências Humanas e Sociais; Ciências da Natureza e Matemática, e Ciências Agrárias. A Licenciatura em Educação do Campo, ao priorizar as dimensões da docência por área de conhecimento e a gestão de processos educativos escolares e comunitários, tem a intenção de promover e cultivar uma formação, teórica e prática, que oportunize aos educandos o domínio dos conteúdos da área articulados às lógicas de funcionamento e função social das escolas do campo, estabelecendo estreita relação com a comunidade do entorno.

A organização curricular da Licenciatura em Educação do Campo prevê etapas presenciais, ofertadas em alternância, entre Tempo Escola (TE) e Tempo Comunidade (TC), com intensa articulação entre os aspectos educacionais e a realidade específica das populações camponesas, considerando, entre outros aspectos, o acesso e a permanência dos professores em exercício nas escolas do campo. Tem ainda a intenção de evitar que o ingresso dos estudantes na educação superior signifique deixar de viver no campo. As Licenciaturas em Educação do Campo incorporam, na organização curricular, as tensões e contradições presentes na produção material da vida dos educandos, assim como contribuem com as transformações dos modos de produção do conhecimento, sempre tendo como objeto de reflexão as questões vivenciadas no Tempo Comunidade.

Entendemos que o PROCAMPO, enquanto política de formação de educadores, conquistada pelos movimentos sociais camponeses, colabora com o acúmulo de forças e as experiências de recuperação e ampliação das práticas cotidianas de formação sóciohistórica e emancipadora, desse modo sendo capaz de anunciar a formação de novas gerações de sujeitos, individuais e coletivos, numa perspectiva humanista e crítica.

A formação docente por área de conhecimento utiliza a pedagogia da alternância, para atender aos anseios de educadores, educandos e movimentos sociais. Tem como intencionalidade a promoção de estratégias que contribuam para superar a fragmentação do conhecimento, promovendo ações docentes articuladas às transformações das escolas do campo. Privilegia o compromisso com a emancipação dos povos camponeses, criando alternativas de organização do trabalho escolar enquanto prática social. Essa formação pode contribuir com as transformações que a rede escolar tanto necessita, atendendo aos desejos e anseios, entre outros, dos movimentos sociais de luta pela terra. Nesse sentido, o educador do campo é mais que um agente educativo. Ele é componente essencial na transformação da sociedade. Os educadores do campo devem compreender a relevância do seu papel na elaboração de alternativas para organizar o trabalho escolar, enquanto prática social. Segundo Caldart (2002, p. 36):

Por isso defendemos com tanta insistência a necessidade de política e projetos de formação das educadoras e dos educadores do campo. Também porque sabemos que boa parte deste ideário que estamos construindo é algo novo em nossa própria cultura. E que há uma nova identidade de educador que pode ser cultivada desde este movimento por uma educação do campo.

A formação dos educadores/as do campo pode significar a garantia de práticas coerentes com os valores e princípios defendidos pela educação do campo. Ela reconhece as relações sociais que ali se estabelecem e apontam o território campesino, não como extensão da cidade, mas como espaço de valorização das formas de vida, desejos e trajetórias dos sujeitos, individuais e coletivos. Tal formação não pode ser analisada somente na perspectiva de valorização dos saberes da comunidade: é preciso compreendê-la, especialmente, na dimensão da autonomia e organização de uma outra sociedade, que enfrente as inúmeras formas de opressão presentes no campo brasileiro. Nesse sentido, as demandas que se fazem presentes nas escolas do campo necessitam de educadores/as cuja formação lhes possibilite entender a conjuntura atual da realidade camponesa. Um campo pressionado pelo modelo econômico excludente e que exige dos seu sujeitos coletivos, educadores e lideranças dos movimentos sociais uma intensa capacidade de resistência. Esse é mais um dos objetivos do PROCAMPO na defesa da educação do campo.

Por outro lado, como compreender as principais contradições da atual política de expansão da educação superior no Brasil? Democratização ou massificação mercantil? Inserida nas transformações mundiais decorrentes da crise estrutural do capital nas últimas décadas, a educação superior passou por profundas mudanças nesse período histórico, pelas quais a educação superior se converte em novo nicho de acumulação do capital e se constituem grandes conglomerados educacionais na forma de empresas de capital aberto que materializam formas de mercantilização da educação superior.

Ocorre ainda uma altíssima incorporação de novas tecnologias nos processos produtivos que demanda novo tipo de mão de obra, descortinando uma das contradições do capital: como elevar níveis de escolaridade da classe trabalhadora, sem elevar os níveis de consciência e compreensão da contradição fundante do sistema? O principal desafio: a centralidade do conhecimento nessa nova fase de mundialização do capital impõe desafios à luta pela manutenção da educação superior como direito e bem público social. A mesma luta que a educação do campo desenvolve contra o agronegócio, que trata o “alimento como commoditie”, a educação superior tem nas “privadas-mercantis”, que tratam a educação como mercadoria (MOLINA, 2016). Os desafios enfrentados acerca da transformação da educação superior em mercadoria somam-se à resistência, precarização e aligeiramento das políticas de formação docente no nível superior decorrentes das exigências atuais de formação do trabalhador geradas pelos novos processos produtivos vigentes e por estratégias de gestão e organização do trabalho que, por sua vez, impõem novas demandas à educação e à formação de seus profissionais. As políticas de expansão das universidades, por exemplo, têm adotado práticas que precarizam a qualidade da formação humana, se considerarmos o conceito de qualidade no sentido contra-hegemônico, ou seja, a habilidade de formar pessoas capazes de pensar criticamente a produção do conhecimento. (MOLINA, 2016)

Apesar dos riscos políticos e sociais da expansão, compreendemos que os princípios originários do Movimento da Educação do Campo e sua intrínseca vinculação com a luta de classes possui elementos que podem contribuir na promoção da formação crítica e transformadora dos sujeitos. A partir das próprias concepções originárias do Movimento da Educação do Campo, não há sentido formar um educador do campo que não seja capaz de compreender as contradições e os processos de acumulação de capital no campo, pois dependendo do nível de correlação das forças sociais em cada formação social concreta, ao invés de formar educadores como intelectuais estratégicos na disseminação da nova pedagogia da hegemonia (NEVES, 2013), forma educadores do campo formuladores e disseminadores da contra-hegemonia, capazes de compreender e promover a necessária articulação entre as escolas do campo e as lutas para superação dos pilares que sustentam a estrutura da sociedade capitalista (MOLINA, 2016). A natureza da formação do educador e sua prática profissional, portanto, são decisivas para alimentar a coesão social ou fomentar a crítica do status quo (NEVES, 2013).

Na visão de Gramsci (1978), os professores formuladores e, na sua maioria, disseminadores da hegemonia burguesa nas sociedades capitalistas contemporâneas passam a ocupar, cada vez mais, papel político significativo nas agendas dos organismos internacionais e governos nacionais. A capilaridade da sua atuação contribui decisivamente para difusão de práticas culturais incorporadoras de um novo padrão de sociabilidade em todo o tecido social. (MOLINA, 2016)

Essa política de formação de educadores do campo compreende a necessidade de construir estratégias que sejam capazes de oportunizar ao docente em formação os fundamentos filosóficos, sociológicos, políticos, econômicos e antropológicos capazes de localizar os resultados de sua ação educativa, a partir das tensões e contradições que permeiam as relações sociais no território rural, com ênfase nos desafios impostos à permanência dos sujeitos camponeses neste território. Nesse sentido, é essencial formar educadores comprometidos com o desenvolvimento educacional, cultural, social e econômico dos povos camponeses, para atuação prioritária nas escolas do campo; para promover a gestão de processos educativos escolares e não escolares no campo; para comprometer-se com a educação pública e gratuita atenta aos problemas estruturais que afetam tais escolas; para atentar às questões educacionais oriundas do campo, seus movimentos e projetos educativos, com base nos princípios agroecológicos, visando a sustentabilidade.

Considerando os aspectos apresentados acima, entendemos a necessidade de reafirmar e consolidar currículos, metodologias, espaços educativos e processos de formação de educadores que se apropriem dos instrumentos da Pedagogia da Alternância. Estudos voltados para prática em sala de aula (SILVA, 2006) propõem novas formas de atuação do professor. Ele passa, de transmissor do conhecimento, a agente estimulador e incentivador, desenvolvendo práticas reflexivas e emancipadoras do conhecimento. Por fim, entendemos que, ao alternar períodos na escola e na vivência de sua comunidade, o jovem constrói conhecimentos no diálogo entre o saber cotidiano, a prática, o trabalho passado de geração a geração e o saber escolarizado. Essa relação pode possibilitar a apropriação de saberes historicamente defendidos e o acesso às técnicas cientificamente comprovadas. Assim, a Pedagogia da Alternância pode contribuir com a formação dos jovens da seguinte maneira: desenvolvendo a reflexão crítica e a responsabilidade individual e coletiva; fortalecendo as famílias do campo, na busca de envolvimento dos sujeitos, individuais e coletivos, na direção de um mundo mais solidário, justo, humano e ético. (PINHO, 2008; SILVA, 2008; BEGNAMI, 2013)

Considerações finais

A sociedade brasileira construiu no seu imaginário uma estreita e injusta ligação do campo como lugar do atraso, contribuindo para omissão do Estado em relação às políticas públicas de educação e demais direitos dos povos camponeses. É consensual, na sociedade brasileira, que a exclusão do direito à terra e à educação contribuem para elevadas distorções sociais e aumento exagerado da violência. Com tantos problemas, até onde vai o direito de ir e vir nas escolas do campo?

Esses desafios precisam ser enfrentados por políticas públicas, educadores, educandos e movimentos sociais. Entendemos que a educação do campo emancipadora estabelece estreita relação com os valores da dignidade humana, confiança, solidariedade, compreensão coletiva e valorização das histórias de vida dos sujeitos camponeses, incorporando espaços há tempos silenciados. Ela dialoga com a educação popular, os movimentos sociais e a pedagogia da alternância, além da segurança alimentar, desenvolvimento sustentável, agricultura familiar, orgânica e agroecológica. São campos do saber que se aproximam e devem ser explorados por educadores e educandos nas escolas do campo, nas comunidades e ambientes familiares.

Importante ainda é romper com as inúmeras dificuldades no processo de implementação das políticas públicas de educação do campo, dentre elas: as escolas multisseriadas com ausência de docentes e pessoal de apoio, infraestrutura precária, estradas intransitáveis, transportes inadequados e o enorme descaso das secretarias municipais e estaduais no provimento da organicidade da educação do campo. Ainda é possível constatar cursos aligeirados, formação de educadores e educandos preocupados apenas com a lógica do mercado, conteudistas e superficiais, currículos tradicionais e improvisados, péssimo acesso e permanência dos jovens e adultos nas escolas do campo, evasão escolar e espaço físico com inadequada infraestrutura para o bom funcionamento das escolas.

Mesmo com tantos avanços na legislação voltada à educação do campo, vale destacar que a realidade das escolas continua ainda muito precária. Notamos que o desrespeito às identidades dos sujeitos do campo nos meios de comunicação, imprensa, instituições públicas e privadas da sociedade brasileira contribuem com provocações, humilhações e destruição da autoestima. O campo brasileiro é uma incerteza. Faltam escolas, transporte escolar intra-campo, condições de acesso e escoamento da produção; verificam-se altos índices de contaminação pelo uso intensivo de agrotóxicos, a concentração de terras, a utilização de sementes transgênicas e o avanço do agronegócio, em detrimento da semente crioula e da valorização da agricultura familiar.

Apesar do retrato atual, as políticas públicas educacionais podem atender aos anseios do campo, considerando o diálogo com as diversas esferas de gestão do Estado, movimentos e organizações sociais do campo brasileiro. Pode ainda contribuir para a consolidação dos diferentes saberes oriundos das escolas do campo, favorecendo a diversidade étnico-cultural, o reconhecimento do direito à diferença, a construção de bases epistemológicas que busquem a superação da dicotomia campo-cidade, além das articulações políticas, sociais e culturais presente na diversidade dos movimentos sociais. Rompe-se com a construção equivocada de estereótipos acerca dos sujeitos, individuais e coletivos, do campo. A mudança de paradigmas na educação do campo é essencial. Prescinde de novos olhares, fundamentação teórico-prática e recriação do sujeito histórico.

As universidades públicas do país, secretarias municipais e estaduais de educação têm condições de construir, coletivamente, projetos emancipadores que elevem a autoestima, criticidade e autonomia de educadores e educandos. Obviamente, essas questões não estão desvinculadas da capacidade de mobilização social e política que os sujeitos do campo constroem no seu íntimo. O reconhecimento identitário e as histórias de vida dos atores devem ser fortalecidos com as novas conquistas e a capacidade de propor, questionar, dialogar e refletir sobre as relações de poder instituídas por saberes historicamente estabelecidos. Quando ação e reflexão são organizadas com o objetivo de transformar a realidade dos sujeitos camponeses, a práxis libertadora contribui na consolidação dos resultados do PROCAMPO enquanto política pública.

O respeito pelos saberes do campo orientou toda organização deste texto, zelando pela flexibilidade e possibilidades de revisão das atividades propostas, num projeto coerente com a realidade de vida das pessoas. Finalizamos com alguns questionamentos: Qual a real possibilidade de implementação, em nível nacional, das políticas públicas de educação do campo? Quais as relações políticas, sociais e pedagógicas possíveis, a despeito das negações e adversidades historicamente acumuladas, acerca da educação popular? Que práticas de leituras e escritas circulam nas escolas do campo? Que usos e funções elas possuem? É possível ir além dos espaços tradicionais e conservadores da escola regular? Educadores e educandos se mostram preocupados e flexíveis no trabalho com o novo? Contribuem na transformação dos educandos em agentes e sujeitos da história? Ou atuam, apenas, como meros participantes? Como enfrentar tantas questões?

Vale salientar que a produção do conhecimento pautada nos dados coletados e nas observações efetuadas não são isentas de valores. A construção crítica e coerente do saber não é neutra. Esperamos, dessa forma, estimular a produção de leituras e reflexões que contemplem a formação de educadores do campo. Nesse processo de construção histórica prevaleceu o respeito às diferenças e a valorização da identidade cultural dos povos camponeses e das propostas em defesa de uma educação inclusiva, questionadora e democrática, presentes em diversas experiências de educação popular vinculadas à luta pela terra.

Por fim, importante registrar nossa defesa de políticas públicas que contribuam na formação de educadores para as escolas do campo brasileiras. Assim, sugerimos aos leitores a continuidade desses estudos com o objetivo de compreender a relevância de tais políticas no fortalecimento das relações com os movimentos sociais.

Referências

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Nota

1 MST - Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; CPT - Comissão Pastoral da Terra; FETAG - Federação dos Trabalhadores na Agricultura; MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores; MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens; MMC - Movimento de Mulheres Camponesas; Escolas Família Agrícolas; Comunidades Quilombolas; Caiçaras; Ribeirinhos; Pescadores; Movimentos Indígenas, Via Campesina, entre outras entidades e representações.

Recebido: 31 de Agosto de 2017; Aceito: 08 de Janeiro de 2018

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