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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.46 São Paulo maio/ago 2018  Epub 10-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n46.7832 

Artigos

Que educação é pública? A privatização de um direito

What education is public? The privatization of a law

Raquel Fontes Borghi1 

1Doutora em Educação. Professora do Instituto de Biociências, Unesp/Rio Claro, SP - Brasil raborghi@gmail.com


Resumo

Em seu livro 1984, George Orwell apresenta uma distopia que denuncia as mazelas do totalitarismo e a restrição da liberdade, na figura do ‘Grande Irmão’. Sob essa inspiração, este artigo constitui um ensaio teórico que tem por objetivo discutir o avanço dos processos de privatização no campo da educação e a relação atual entre o público e o privado. A partir das pesquisas realizadas pela autora no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE), desenvolvemos o ensaio em resposta à questão originariamente formulada por Atria (2009) para o contexto chileno, qual seja: Que educação é pública? Como considerações finais, aponta-se que o atual ‘Grande Irmão’ é o Mercado e que os processos de privatização vêm se dando em um contexto de expropriação do direito à educação e colocando em cheque a perspectiva e o ideal de universalidade da educação. A questão ‘Que educação é pública?’ está hoje em disputa.

Palavras-chave: Direito; Educação; Privatização

Abstract

In his book 1984, George Orwell presents a dystopia that denounces the ills of totalitarianism and the restriction of freedom. This article is a essay with the objective of discussing the progress of privatization processes in the field of education and the current relationship between public and private. It is pointed out that the current ‘Big Brother’ is the Market and that the processes of privatization are taking place in a context of expropriation of the right to education and putting in check the perspective and ideal of universality of education.

Keywords: Right; Education; Privatization

Em seu livro 1984, George Orwell apresenta uma distopia que denuncia as mazelas do totalitarismo e a restrição da liberdade. No enredo, o Big Brother - Grande Irmão - é o líder máximo e controla tudo e todos por meio das teletelas que estão espalhadas nos lugares públicos e nos lares, e controlam toda a população. Neste artigo, discutimos o avanço dos processos de privatização no campo da educação e indicamos que o atual ‘Grande Irmão’ é o Mercado, dado que tais processos vêm se dando em um contexto de expropriação do direito à educação e colocam em cheque a perspectiva e o ideal de educação gratuita e de qualidade para todos.

No Brasil, assim como em muitos outros países, a presença do setor privado na educação vem aumentando de modo exponencial. Muitas são as pesquisas que evidenciam tal avanço e mostram os diferentes espaços privatizados e as múltiplas estratégias de privatização, e a apresentação de alguns estudos podem ser exemplificadas.

Ball e Yodell (2007) distinguem duas grandes dimensões do processo, que correspondem a estratégias de privatização endógenas e exógenas: as primeiras referem-se aos processos de privatização na educação pública e são caracterizadas pela importação de ideias, técnicas e práticas do setor privado para tornar o setor público mais parecido com o de negócios; já os processos de privatização exógenos referem-se à privatização da educação pública, com a abertura dos serviços da educação pública para a participação do setor privado.

Borghi et al. (2014) realizaram pesquisa que teve por objetivo identificar e analisar como o poder público municipal vem subsidiando instituições privadas para cobrir a oferta educacional em creches e pré-escolas em municípios do estado de São Paulo. As autoras apontam algumas inovações nesse processo, dentre os quais se destacam: os subsídios a instituições privadas com fins lucrativos; o uso do termo ‘concessão’ para normatizar a relação entre o poder público e a instituição parceira, e a forma per capita de repasse. As autoras concluem que atualmente vem se ampliando e fortalecendo uma efetiva política educacional municipal de atendimento da Educação Infantil via conveniamento com instituições privadas, lucrativas ou não.

Adrião et al. (2009) trazem outro exemplo de privatização em artigo que trata da tendência de crescimento das parcerias, pela via dos contratos entre municípios paulistas e empresas privadas da área educacional, na aquisição de sistemas apostilados de ensino. As autoras entendem que essa compra representa mais do que a simples aquisição de materiais didáticos, dado constituir estratégia por meio da qual o setor privado amplia seu mercado ao incidir sobre o espaço público, na mesma medida em que o setor público transfere parcela de suas responsabilidades com a educação à iniciativa privada. Em estudo mais recente, Adrião et al. (2016, p.128) alertam para as consequências desse processo de mercantilização ao direito à educação:

Grupos empresariais e conglomerados econômicos têm buscado outras formas de lucrar com a educação que não exclusivamente com a oferta direta do ensino (matrículas em escolas privadas), colocando em risco os paradigmas de direitos humanos educacionais, que são substituídos pela lógica de mercado baseada no custo × benefício e na visão dos estudantes como mercadorias - commodities.

Um exemplo de gestão privada de escolas públicas é apontado por Goulart e Borghi (2016) quando analisam a proposta de contratação de organizações sociais para a gestão de escolas públicas no estado de Goiás.

Chaves e Amaral (2015), em estudo que analisa criticamente as políticas de expansão da educação superior no Brasil, apontam as novas configurações institucionais e de mercado delas resultantes, com a criação de redes de empresas por meio da compra e (ou) fusão de instituições de ensino superior privadas no país, por empresas nacionais e transnacionais de ensino superior, e pela abertura de capital em bolsas de valores, conformando a formação de oligopólios educacionais no setor.

Muitos outros casos e estratégias poderiam ser aqui apresentados, mas o fato é que temos presenciado, no Brasil, um movimento de reconfiguração do público e do privado em um processo marcado pelo avanço do setor privado na educação, em processos de privatização endógenos e exógenos.

Tal avanço do setor privado na educação pode ser compreendido no movimento de crise e expansão capitalista, como defendem Silva Junior e Sguissardi (2001, p. 101):

o entendimento do público e do privado no capitalismo e de seu movimento somente se pode dar com a compreensão do movimento do capital e das crises do capitalismo, que instalam novos modos de conformação do público e do privado, que redesenham as relações entre o estado e a sociedade e reconfiguram as instituições da sociedade civil e do estado.

Nesse mesmo contexto de crise e expansão capitalista, Harvey (2011, p. 32) expõe:

Numa tentativa desesperada de encontrar mais locais para colocar o excedente de capital, uma vasta onda de privatização varreu o mundo, tendo sido realizada sob a alegação dogmática de que empresas estatais são ineficientes e relaxadas por definição, e a única maneira de melhorar seu desempenho é passá-las ao setor privado.

Esse autor afirma que, no âmbito do processo de reconfiguração do desenvolvimento capitalista, como desde a década de 1970 o capitalismo global não tem gerado crescimento, a consolidação do poder de classe teve que apelar com muito mais força para a ‘acumulação por desapossamento’. Nesse sentido, uma estratégia tem sido a conversão em mercadoria de um ativo de propriedade comum, estabelecendo-se um processo de crescente mercantilização da educação. Para o autor, a “acumulação por despossessão” continua a desempenhar um papel na reunião do poder do dinheiro inicial, tanto com meios legais quanto ilegais. Harvey (op.cit., p. 48) afirma que “os meios legais incluem a privatização do que antes era considerado como recurso de propriedade comum (como a água e a educação).”

É assim que podemos pensar na expropriação do direito à educação, por meio de sua transformação em mercadoria, como estratégia de valorização do capital em áreas antes intocadas, porque públicas e estatais. O que era direito de todos e dever do Estado, passa a ser mercadoria e investimento individual - é a privatização de um direito.

Com o mesmo olhar sobre os processos de privatização no movimento de reconfiguração capitalista, o economista César Benjamim (2008, p.1) resume as três tendências apontadas por Marx à época da consolidação da sociedade capitalista de então:

ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; […] Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria.

Nesse movimento de expropriação do direito à educação e sua transformação em mercadoria é que afirmamos que o Big Brother atual, o nosso ‘Grande Irmão’ é o mercado. A mercantilização da educação vem se dando por expropriação de um direito e colocando em xeque o ideal de uma escola pública, gratuita e de qualidade para todos!

Cabe ressaltar que, nesse processo, o capital não prescinde dos fundos públicos para a sua reprodução, como nos aponta Santos (2004, p. 3):

O capital repudia o Estado na gestão das políticas educacionais, mas não no seu financiamento, papel que é exigido direta - por meio da transferência de recursos públicos para o “mercado educador” - ou indiretamente, por meio de retorno fiscal dos “investimentos” do capital em educação.

Importante salientar que esse processo não é finalístico nem imutável. Concordando com Harvey (2011) quando afirma que o neoliberalismo é um projeto de classe que surge nos anos 1970 para restaurar e consolidar o poder da classe capitalista e que as crises são momentos propícios de reconfiguração do desenvolvimento do capitalismo, também cabe considerar que esse não é um processo irreversível, mas sim permeado por lutas, embates e tensões.

A reconfiguração do público e do privado - que educação é pública?

São diversas as formas com que o ‘Grande Irmão’ - o Mercado - adentra o campo educacional. Santos (2012, p.20) lança luz sobre a abrangência da atuação privada na educação:

Todo o processo de produção pedagógica é submetido à lógica do mercado: gestão escolar, relações ensino aprendizagem, conteúdos programáticos, princípios pedagógicos do currículo e avaliação dos resultados. O sentido e as finalidades da educação incorporam a mercadorização já no âmbito da produção.

À medida que avançam e se ampliam as formas de atuação privada na educação, a separação entre público e privado vai sendo dificultada e não sem interesses. O Banco Mundial, por exemplo, em documento intitulado Estratégia 2020 para a educação, lançado em 2011, propõe como uma das estratégias prioritárias para a educação o fortalecimento dos sistemas educacionais de modo que passem a abranger todas as iniciativas educacionais, formais e informais, públicas e privadas. A justificativa para um sistema educacional tão abrangente é o aproveitamento de todas as formas e possibilidades de aprendizagem. Um sistema educacional assim constituído pode contribuir interessadamente para naturalizar um setor educacional privatizado.

No Brasil, a reforma do Estado proposta pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), nos anos 1990, evidencia tal processo quando propõe um setor denominado público não-estatal. A proposta, configurada no Plano Diretor para a Reforma e Administração do Estado (PDRAE), apresenta três estratégias para alterar o modus operandi do Estado: a primeira, privatização, é definida como a transferência por venda, para o setor privado, da propriedade de dado setor público com vistas a transformá-lo em uma instituição de e para o Mercado; a segunda, denominada terceirização, corresponde ao processo de transferência, para o setor privado, da operação de serviços caracterizados como auxiliares ou de apoio às atividades desenvolvidas pelo Estado; a terceira estratégia é a publicização, que por sua vez consistiria na transferência para o setor público não-estatal dos serviços sociais e científicos que hoje o Estado presta. (BRASIL, 1995)

Em defesa de um setor público não-estatal, o ex-ministro Bresser Pereira, retomando os elementos do PDRAE, sugere quatro categorias para os tipos de propriedade: propriedade estatal; propriedade pública não-estatal; propriedade corporativa e propriedade privada. Para o autor, ser ou não estatal não é a origem da dicotomia entre o público e o privado. Para ele, a distinção entre a propriedade pública e a privada se dá em razão dos objetivos da organização:

se o objetivo for o lucro, trata-se de uma organização privada; se for o interesse público, trata-se de uma organização pública; se for a defesa dos interesses de grupos, trata-se de uma organização corporativa. (BRESSER PEREIRA, 2008, p. 395)

Silva Junior e Sguissardi (2001), em uma perspectiva crítica ao ‘novo’ setor público não-estatal, afirmam que a redefinição das esferas pública e privada possibilita a identificação, de fundo ideológico liberal, de uma suposta existência de outros espaços intermediários entre o público e o privado. Concordamos com Sader (2003) quando afirma que o deslocamento da dicotomia público/privado para a dicotomia Estado/Mercado facilita a utilização de argumentos anti-estatais, para justificar os benefícios do mercado e a privatização e para diferenciar os termos publicização e privatização.

Não compartilhamos a conceituação do PDRAE de privatização como transferência de propriedade para o mercado e de publicização como transferência para o setor publico não-estatal. Concordamos com Di Pietro (2009, p.1) quando define que a privatização deve ser “entendida em sentido amplo, de modo a abranger todos os institutos de que o Estado vem lançando mão para diminuir o seu aparelhamento administrativo, o seu quadro de pessoal, o regime jurídico administrativo a que se sujeita.”

Legalmente, no Brasil, a separação entre instituições públicas e privadas educacionais está definida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, que promove tal distinção da seguinte maneira:

Art. 19. As instituições de ensino dos diferentes níveis classificam-se nas seguintes categorias administrativas:

I - públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público;

II - privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.

É possível afirmar, a partir da LDB, que a distinção legal se dá considerando a propriedade, o financiamento e a administração/gestão das instituições. No entanto, a diversidade atual indica uma configuração muito mais complexa: há escolas de propriedade pública e com gestão privada; há escolas privadas não lucrativas com financiamento público; é possível também falar em escolas privadas lucrativas que recebem financiamento público e operam com acesso limitado, como é o caso do Programa Pró-Creche de Araras que limita o acesso a famílias utilizando o critério da renda (COSTA, 2014); há escolas públicas que são induzidas a captar recursos privados; temos também escolas públicas em que toda a organização do trabalho pedagógico é assumida por sistemas de ensino privados. (ADRIÃO et al. 2009; GARCIA et al., 2014)

O agenciamento empresarial que vem influenciando fortemente a definição de conteúdos curriculares e fins educacionais por meio de uma agenda corporativa é outro exemplo. Também é possível falar em escolas públicas com fins privados se considerarmos a intensificação da relação escola/trabalho na perspectiva da Pedagogia do Mercado (SANTOS, 2012) e muitas outras configurações que revelam a nebulosa relação entre público e privado na educação atual.

Mesmo iniciativas da sociedade civil com finalidades variadas aos poucos vão se convertendo ao mercado educacional. As citações abaixo, acerca das escolas charters americanas, evidenciam esse processo:

Originalmente, as escolas charters foram concebidas como uma forma de melhorar a educação pública. Com o tempo, porém, o movimento tem se tornado um empreendimento para fazer dinheiro. (KRISTEN BURAS apud FREITAS, 2016, p. 2)

E ainda:

Ao longo da última década, o movimento das escolas charters transformou-se de um esforço pequeno baseado na comunidade, para promover a educação alternativa, em um impulso nacional para privatizar as escolas públicas impulsionadas pelas fundações de livre mercado e grandes empresas de gestão da educação. Esta transformação abriu a porta para os buscadores de lucro procurando uma maneira de ganhar dinheiro com fundos públicos. (id.ib.)

Um grande exemplo da atual relação nebulosa entre público e privado no Brasil é apontado por Adrião et al. (2009) e Borghi et al. (2014). Em suas pesquisas as autoras identificaram que muitos municípios que subsidiam instituições privadas para a oferta da educação infantil contabilizam tais matrículas como públicas no Censo Escolar pelo fato de que elas são financiadas com recursos públicos e oferecem atendimento gratuito.

A partir do contexto de avanço da privatização da educação acima descrito, temos aqui uma questão - que educação é pública?

Atria (2009) faz esse questionamento ao apresentar a discussão que vinha sendo realizada no Chile no contexto da discussão do Projeto de Lei de fortalecimento da educação pública. Ele identifica grupos que defendem que as instituições privadas, subsidiadas com recursos públicos, devam ser consideradas ‘educação pública’. Seriam elas integrantes da educação pública? O que é educação pública? A educação pública é exclusivamente a educação estatal? O que define substantivamente a educação pública? A propriedade? O financiamento? Os fins? Após passar por várias dessas linhas de argumentação desse debate, o autor afirma que a ideia de que a educação pública inclui tanto os estabelecimentos estatais quanto os subvencionados é incoerente, uma vez que para ele, é pública a educação que é oferecida por estabelecimentos que têm o dever (correlativo do direito à educação dos cidadãos) de admitir e garantir a educação para todos. Assim, defende que o sentido ou finalidade de um sistema de educação pública é garantir a cada cidadão a educação como direito e, nesse contexto, somente os estabelecimentos estatais podem ser denominados públicos, posto que, ante o estabelecimento privado o individuo não concorre como cidadão que exerce seu direito, mas como parte contratante, em uma relação própria do contrato de mercado.

Ésta es la obligación del Estado: garantizar a cada ciudadano, individualmente, la educación que requiere. La existência de estabelecimentos particulares subvencionados no es suficiente garantia del derecho a la educacion, precisamente porque descansa em la ideia de que el sostenedor puede poner condiciones al ingreso. (ATRIA, 2009, p. 58)

Tem-se, então, que a ideia de educação como direito e acesso indiscriminado é que define a educação pública. A pergunta e a reflexão são urgentes se considerarmos a política pública educacional como um processo marcado por lutas, embates, contradições e conflitos. Este é mais um momento de luta para os defensores de uma educação como direito - pública, gratuita, de qualidade, para todos.

Por uma educação pública e estatal - direito de todos

Qual a essência da educação pública que nos possibilita enfrentar a luta contra o ‘Grande Irmão-Mercado’? A educação é um bem público e deve ter finalidades públicas. Daí ser um direito. Educação como fim privado ou como investimento individual, é mercadoria, e não direito. A ‘educação-mercadoria’ naturaliza a oferta diferenciada de educação e põe fim à perspectiva de uma educação de qualidade para todos. Nesse sentido, a educação mercadoria é um mal coletivo. No mercado, a qualidade se conforma a diferentes públicos e possibilidades de pagamento; enquanto bem público e direito de todos, numa perspectiva de universalidade, a educação não pode estar no âmbito privado de mercado. Conforme nos alerta Klebis (2010, p. 15),

As reformas educacionais impostas pelo modelo neoliberal estão focadas nas demandas do mercado, reduzindo amiúde os direitos e oportunidades de uma grande parcela da população. Subjacente a este modelo está a ideia de que as competências necessárias para galgar um melhor status no ‘mercado de trabalho’ é responsabilidade exclusiva da vontade de cada indivíduo.

Arendt (2000), com seu texto A crise da educação, é uma autora que nos ajuda a pensar a educação como bem público e com fins públicos, ao apontar as condições que imprimem um significado público à educação. Para ela, a essência da educação é a natalidade. Seres humanos nascem no mundo, esse complexo conjunto de tradições históricas e realizações materiais e simbólicas nas quais os novos devem ser iniciados para delas participar e por elas se constituírem como um novo ser num mundo preexistente. Nessa perspectiva, a educação é o ato de acolher e iniciar os jovens no mundo, tornando-os aptos a dominar, apreciar e também a transformar as tradições públicas que formam a nossa herança simbólica comum. Para a autora, a educação é, pois, um bem público, um direito dos novos ao acesso a este mundo, mas também um dever e responsabilidade de todos pela continuidade e transformação deste mundo.

No entanto, conforme Carvalho (2008), ao identificarmos a qualidade da educação - exclusiva ou centralmente - com a possibilidade de ascensão econômica individual, corre-se o risco de conceber a função pública da educação como administração de interesses privados e econômicos dos indivíduos, e educar deixa de ser a formação para o mundo público e passa a ser um investimento privado. Não se trata mais da iniciação a um mundo comum que transcende a nossa existência individual: “à medida que se concebem o valor e a qualidade da educação com base em seu alegado impacto econômico na vida privada do individuo, perde-se seu significado ético-político, ou seja, seu sentido público.” (CARVALHO, 2008, p. 412)

Para Montaño (2002), os processos atuais de privatização têm como fim a retirada e esvaziamento da dimensão do direito universal do cidadão quanto às políticas sociais e nova e abundante demanda lucrativa para o setor empresarial. Na mesma direção, também são válidas as formulações de Santos (2004), para quem a educação concebida como mercadoria trabalha na lógica da exclusão e reduz o humano à sua disponibilidade laboral.

Este é um momento de luta e muitos embates entre privatistas e defensores de uma educação pública e universal como direito. Também é preciso lutar contra processos de privatização endógenos, que levam para o interior da escola pública a agenda corporativa e a lógica competitiva e individualista, numa concepção de mundo operacional ao capital.

Somente a escola pública, gratuita, laica e de qualidade para todos pode permitir a educação como bem público. Terminamos com o autor da pergunta Que educação é pública?:

la categoria de “educacion pública” se identifica com la de “educacion provista por estabeleciminetos de propriedade del Estado” […] sólo ante los estabelecimentos del Estado el individuo concurre como ciudadano que ejerce su derecho. (ATRIA, 2009, p. 61)

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Recebido: 14 de Setembro de 2017; Aceito: 17 de Janeiro de 2018

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