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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.46 São Paulo maio/ago 2018  Epub 10-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n46.8915 

Resenhas

O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930, de Lilia Moritz Schwarcz São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

José Eustáquio Romão1 

Fernando Vinicius Gonçalves Frias2 

1Diretor e Professor do PPGE-Uninove.

2Mestrando em Educação do PPGE-Uninove.

O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. Schwarcz, Lilia Moritz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


Primeiramente cabe indagar por que formular uma resenha de uma obra cuja primeira edição é de 1993 e que já está na 15a. reimpressão. É que, hoje, o difuso racismo nacional é cada vez mais denunciado e sua discussão perpassa todos os segmentos da sociedade brasileira. O tema vem ganhando, inclusive, prestígio acadêmico e emerge como temática nos nichos produtores de conhecimento, cobrando estudos mais profundos, que vão ao cerne de sua gênese e evolução histórico-social. Nesse aspecto, o livro de Schwarcz, responde perfeitamente a essa demanda porque ela trata dos fundamentos das origens desse racismo difuso na sociedade brasileira. Demonstra que, travestido inicialmente de ciência positivista, em que, por meio de princípios deterministas, se tentou naturalizar relações histórico-sociais, na verdade revelam um racismo explícito resultante de um modo de produção defendido pelos intelectuais orgânicos das elites nacionais e que era estruturalmente comprometido com as desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais, porque baseado na mais cruel reificação de seres humanos. E quando esse modo de produção, o Escravismo Moderno - denominado por Jacob Gorender 1 como ‘Escravismo Colonial’ - foi substituído pelo capitalismo, também com tendência estrutural para a desigualdade, mas cujo processo de acumulação dependia da libertação formal dos agentes produtivos (escravos), disfarçou-se em liberalismo, mas conservou as pautas ideológicas da dominação autocrática.

Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo, a professora Lilia Moritz Schwarcz, com seus aguçados olhos de antropóloga, vem dissecando a identidade do Brasil e a alma dos brasileiros com suas premiadas obras, como As barbas do imperador: D. Pedro II - um monarca nos trópicos (1998) e O sol do Brasil (2008), contempladas, respectivamente com o prêmio Jabuti Não Ficção e com o Jabuti Biografia. Além desses títulos, compartilhou com Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa a autoria de A longa viagem da biblioteca dos reis (2002) e, com Heloísa Murgel Starling, em 2015, co-escreveu e publicou Brasil: uma biografia. Em 2017, deu ao lume o volumoso Lima Barreto: triste visionário, a partir de uma pesquisa monumental, consumada numa escrita rigorosa e elegante que acrescenta a Lilia mais um título em sua carreira de historiadora e antropóloga: a de uma das mais importantes biógrafas brasileiras.

Neste O espetáculo das raças, resultante de sua tese de doutorado, defendida na universidade em que trabalha, a autora reconstitui não apenas a afirmação da identidade profissional de médicos e de advogados brasileiros, mas também suas pretensões hegemônicas, ao longo das três últimas décadas do século XIX e das três primeiras do século XX, embalados pela teoria darwinista, especialmente na sua versão spenceriana, e pelas concepções racistas tão em voga na época. Ao longo de seis eruditos capítulos e de algumas considerações finais, Lilia disseca a estrutura e o funcionamento das instituições produtoras de conhecimento no Brasil da época: os museus, os institutos históricos e geográficos e as faculdades de direito e de medicina.

Analisa, primeiramente, o Museu Real, mais tarde, Museu Nacional, do Rio de Janeiro, passando para o exame do Museu Paulista, hoje Museu do Ipiranga, e chegando ao Museu Emilio Goeldi, instalado em Belém do Pará. Debruça-se, em seguida, sobre os institutos, iniciando pelo Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, passando pelo Instituto Archeologico e Geographico de Pernambuco e chegando ao Instituto Histórico e Geographico de São Paulo. Aborda, a seguir, a Faculdade de Direito de Recife e a Academia de Direito de São Paulo para, finalmente, estudar escolas de medicina da Bahia e a do Rio de Janeiros, com suas respectivas revistas científicas, Gazeta Médica da Bahia e Brazil Medico.

Ao longo da obra, vamos percebendo como juristas e médicos disputaram a hegemonia intelectual do país - sem, evidentemente, deixarem de disputar o controle dos aparelhos de Estado -, não importando o preço a ser pago pela população brasileira, mormente por seus segmentos mais deserdados pela sorte. É que a corrida pelo poder se assentava na legitimação ‘científica’, objetivada por medidas autoritárias e violentas, todas elas assentadas no referencial teórico do racismo. Traduzido como ‘higienismo’, que buscava limpeza material e espiritual da população brasileira, expurgada e ‘purificada’ de seus componentes ‘deficientes’ e ‘degenerados’, ele alvejava reiteradamente os segmentos mais pobres e mais discriminados da população brasileira. Em outras palavras, os intelectuais egressos ou membros dessas instituições deram fundamentos ‘científicos’ às justificativas raciais que deveriam sustentar hierarquias sociais consolidadas pela exploração econômica. A lei e o remédio eram as ferramentas de que lançavam mão os médicos e os juristas, não apenas para obter pessoalmente altos rendimentos e prestígio social, como também para empalmar o controle do projeto de nação.

A ‘ditadura sanitária’, como ilustra bem a vacinação obrigatória de Oswaldo Cruz - que provocou a reação da Revolta da Vacina no Governo Rodrigues Alves (1910-1914) -, e a ‘autocracia jurídica’ das duras leis inspiradas em um conservadorismo mal conciliado com liberalismo, são demonstrados com profundidade pela autora ao longo de quase 400 páginas desta importante obra histórica. Médicos auto-referenciados como ‘curadores de raças’ e advogados travestidos de estadistas ditavam as normas - não propunham pactos, ainda que se auto proclamassem liberais - do projeto de nação, que entendiam como constituída por ‘uma raça em formação’ e com graves defeitos de origem (negros e índios), ameaçada em suas perspectivas por causa da miscigenação. Por isso, a eugenia é recorrente em seus escritos ‘científicos’. Os médicos viam a sociedade brasileira como um “imenso hospital” (p. 300); os advogados, apegados ao naturalismo evolucionista, como é o caso de Sílvio Romero, tentavam naturalizar relações histórico-sociais resultantes de uma estrutura comprometida com a desigualdade e com a opressão da imensa maioria da população brasileira.

Alguns desses intelectuais aninhavam-se claramente no intimismo à sombra do poder2, desviando-se das causas histórico-sociais dos problemas de uma população massacrada pela opressão e pela exploração e dando satisfação à própria consciência com preocupações secundárias ou sedutoras por sua suposta defesa de interesses mais gerais, como foi o caso de Gilberto Freyre, com sua ‘democracia racial’ e, mais recentemente, de Fernando Henrique Cardoso, com sua Teoria da Dependência. A primeira ‘amacia’ a cultura do racismo entranhado nos vários segmentos da sociedade brasileira; a segunda esconde a luta de classes tanto nos países dominados quanto nos dominantes com uma suposta luta ‘inter-nacional’, quando, na verdade, as elites de uns se aliam com as elites dos outros para explorarem conjuntamente as populações oprimidas dos dois tipos de nação.

Em suma, Lilia demonstra que os intelectuais brasileiros mais bem remunerados e de maior prestígio à época tentaram “justificar por meio da raça, estruturas sociais consolidadas”, ou seja, tentavam “transformar diferenças sociais em barreiras biológicas fundamentais” (p. 316). Tanto os ‘“homens da medicina’, que viam na mistura das raças o nosso maior veneno e se responsabilizavam pela descoberta do antídoto”, […] quanto os ‘homens da lei’ que, embora defendessem um Estado Liberal, temiam os efeitos da ‘mestiçagem acelerada’ […] composta por tantas raças desiguais, e talvez pouco preparada para o exercício da cidadania.” (p. 321) Curiosamente, tentando manter as pautas da desigualdade mais odiosa, acabaram por formular uma espécie de ‘liberalismo arrependido’, traduzido em um discurso culpado, mas efetivamente revelando o elitismo e o racismo.

Como conclui Lilia Moritz Schwarcz, “raça permanece, porém, como tema central no pensamento social brasileiro” (p. 325) do período e, mesmo transitando para tempos mais democráticos, ainda alimentará, por exemplo, o conceito de democracia racial de Gilberto Freyre.

Lamentavelmente, tais referenciais ainda inspiram nossas elites, que não conseguem esconder uma espécie de racismo envergonhado.

Referências

COUTINHO, Carlos Nélson et al. Realismo e anti-realismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. [ Links ]

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978 (Coleção Ensaios, n.º 29). [ Links ]

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Socialismo e democracia no marxismo de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012). Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 88, São Paulo, 2013, disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452013000100002, consultado em 10 de maio de 2018. [ Links ]

Notas

1Alertado para a inadequação do título, o próprio mestre Gorender a reconheceu, mas ele já estava consagrado na obra em que o atribuiu ao modo de produção que descobriu e que genialmente analisou em O Escravismo Colonial. (São Paulo: Ática, 1978)

2Conceito desenvolvido por Lukàcs e aplicado tão claramente ao caso brasileiro por Carlos Nélson Coutinho (1974), de saudosa memória e que tanta falta tem feito no Brasil contemporâneo, para exorcizar os envergonhados proclamadores de posições progressistas e que não vão ao cerne dos problemas mais graves que marcam a cotidianidade do hoje. “Lukács também aproximou esse conceito dos problemas da cultura e da intelectualidade, ao dar operacionalidade à ideia de ‘intimismo à sombra do poder’, com o que destacava o imenso poder de atração exercido sobre os intelectuais pelos núcleos do poder de Estado, principal ‘agente’ de modernização.” (NOGUEIRA, 2013, p . 12).

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