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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.47 São Paulo set./dez 2018  Epub 10-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n47.10692 

Dossiê temático

A Reconfiguração do Mandato Político Endereçado à Educação Superior Europeia

The Reconfiguration of the Political Mandate Addressed to European Higher Education

António Manuel Magalhães1 

1Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Twente. Professor na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Portugal. antonio@fpce.up.pt


Resumo

Este artigo analisa as implicações educativas que as mudanças políticas, económicas e sociais das últimas décadas têm vindo a promover na educação superior europeia. A análise da dissolução da narrativa moderna da universidade e da educação superior é convocada para enquadrar o argumento que, no contexto do desenvolvimento do Espaço Europeu do Ensino Superior, o mandato endereçado à educação e às instituições de ensino superior tem vindo a ser reconfigurado pelas articulações entre ‘educação’, ‘investigação’ e ‘inovação’, promovidas pelo ‘triângulo do conhecimento’ difundido pela União Europeia. Com base na análise dessas articulações discursivas nos textos endossados pelos ministros europeus no âmbito do processo de Bolonha, argumenta-se que, sob a hegemonia discursiva da ‘inovação’, é legitimado o mandato produtivista que está a configurar a educação superior europeia. O artigo propõe que seja dada uma maior centralidade à investigação dos impactos que as transformações politicamente induzidas no ensino superior europeu potencialmente (e já de facto) produzem nos seus conceitos e práticas educativas.

Palavras-chave: Educação; Espaço Europeu de Ensino Superior; Inovação; Investigação; Mandato Produtivista

Abstract

This article analyses the educational implications that the political, economic and social policies of the last decades have been promoting in European higher education. The analysis of the dissolution of modern narrative of the university and higher education supports the argument that, in the context of the development of the European Higher Education Area, the mandate addressed to higher education is being reconfigured by the articulations between ‘education’ research ‘and’ innovation promoted by the ‘knowledge triangle’ disseminated by the European Union . Based on the analysis of these articulations in the texts endorsed by the European ministers in the framework of the Bologna process, it is argued that, under hegemony of innovation, the productivist mandate addressed to European higher education is legitimised. The article proposes that greater centrality in the field of educational research is given to the impacts that the transformations politically induced in European higher education potentially (and already de facto) have on its educational concepts and practices.

Keywords: Education; European Higher Education Area; Innovation; Research; Productivist Mandate

Introdução

Este artigo incide sobre as implicações educativas que as mudanças políticas, económicas e sociais têm vindo a promover na educação superior europeia. O mote é dado pela questão que Barnett (1997) colocou: O que é que é superior no ensino superior? Ou: o que é a educação superior? Este foco é tanto mais importante quanto a configuração institucional do ensino superior está a alterar-se profundamente. Até meados do século XX, a ‘educação universitária’ era significado de ensino superior, mas, com a emergência das instituições politécnicas e outras instituições não universitárias, este nível de ensino passou a ser referido como ‘ensino superior’. Mais recentemente, a partir dos anos 1980, sobretudo pela mão da OCDE, a designação de ‘educação terciária’ ganhou terreno.

O que aqui se reclama é que, por parte da investigação, seja dada mais atenção ao impacto que as transformações politicamente induzidas na educação superior potencialmente (e já, de facto) produzem nos seus conceitos e práticas educacionais. No contexto europeu, tem-se vindo a estabelecer uma gramática comum de governação do setor que está a transformar do que falamos e como falamos acerca do processo educativo no ensino superior, dos estudantes, professores, aulas, salas de aula, tempos de ensinar e aprender e das próprias metas e objetivos educativos.

A educação superior tem vindo a ser chamada a desempenhar um papel central na, assim designada, ‘sociedade e economia do conhecimento’, sendo atribuído a este nível de ensino um papel axial no desenvolvimento económico dos países e das regiões. Nesse sentido, tem também vindo a ser uma preocupação crucial a sua governação aos níveis, transnacional, nacional e institucional. Todavia, nessa maré de reconhecimento da sua centralidade, o foco da investigação na área tem vindo a ser colocado, principalmente, nas questões da condução e gestão políticas da massificação dos sistemas e das instituições de ensino superior, em detrimento das suas consequências e dimensões educativas.

Neste artigo, analisa-se o ideal moderno de educação e o mandato educativo endereçado à educação superior que assumia que a exposição dos estudantes ao conhecimento potenciava a sua emancipação como seres humanos e a sua transformação como indivíduos, ao mesmo tempo que provia a sociedade com melhores cidadãos e trabalhadores especializados. A questão da dissolução da narrativa moderna da universidade e da educação superior é, depois, convocada para enquadrar a análise de como, presentemente, no contexto do Espaço Europeu do Ensino Superior (EEES), aquele mandato tem vindo a ser reconfigurado pela ênfase no desenvolvimento de competências, enquanto capacidade de os/as graduados/as convocarem conhecimentos, experiências e atitudes para lidarem com situações sociais em contextos específicos, principalmente profissionais. De facto, as articulações entre educação, investigação e inovação, promovidas pelo ‘triângulo do conhecimento’, difundido pela União Europeia (UE), desafiam a matriz moderna de educação superior.

O objetivo é o de contribuir para a discussão das consequências destas tendências, que configuram um mandato produtivista para a educação superior. Orientado por esta pretensão, argumento a necessidade de dar maior centralidade à dimensão educacional nas agendas de investigação em educação.

A ideia moderna de educação superior

Claudius Gellert (1993) identificou os três modelos dominantes de educação superior na Europa: o do Conhecimento, correspondente à ideia humboldtiana de universidade (o ‘modelo da investigação’), o Profissional, muito referenciado às grandes écoles francesas (o ‘modelo da formação’) e concentrado, sobretudo, na produção de quadros para o aparelho de estado; e o da Personalidade, ligado à tradição de Oxbridge de formação dos indivíduos através de uma educação liberal (o ‘modelo da personalidade’). O primeiro, historicamente identificado com a Alemanha, assumia a criação e transmissão do conhecimento como sendo a tarefa central da universidade; o segundo colocava maior ênfase na aquisição de capacidades profissionais na missão das instituições de ensino superior. Este modelo encontra-se ligado ao sistema de ensino superior francês. O terceiro, o anglo-saxónico, concentrava-se na formação do ‘carácter’ dos estudantes. Contudo, quer enquanto instituições científicas, profissionais ou instituições culturais, estes três modelos são narrativamente unificados, na medida em que partilham a celebração do Conhecimento, da Razão e da crítica como processos educativos (MAGALHÃES, 2004; 2006). As narrativas newmaniana, humdoltiana e napoleónica são, de facto, as mais influentes fundadoras e legitimadoras da educação superior na Europa, partilhando, para além das suas diferenças, o paradigma sociocultural da modernidade.

John H. Newman, em 1852, nos seus Discourses on the Scope and Nature of the University Education, apresentou a sua perspetiva sobre a educação universitária: i) a universidade deve fornecer uma educação liberal, entendendo por isso a procura do conhecimento como um fim em si mesmo; ii) a educação superior não deve ser em si mesma útil, mas, antes, assumir a forma da aquisição filosófica do conhecimento; e que iii) ela não se deve basear numa conceção de conhecimento ou de trabalho fragmentados, devendo a universidade ensinar “todos os ramos do conhecimento.” (NEWMAN, 1973, p. 145)

Há dois séculos atrás, na Grã-Bretanha, Cambridge e Oxford (e as universidades escocesas de Edimburgo, Glasgow e Aberdeen) eram instituições de elite, recebendo, no seu conjunto, cerca de cinco mil estudantes. A ideia de educação universitária de Newman baseava-se no desiderato do um “alargamento intelectual”, “numa expansão da mente” (op.cit., p. 118), com vista à “formação do carácter” (op.cit., 105) e não à articulação imediata e utilitarista da formação, designadamente com o desenvolvimento nacional. É importante sublinhar que a indústria, à época, se baseava essencialmente no trabalho e não, primariamente, no conhecimento.

A ideia de universidade de Humboldt enfatizava a qualidade da experiência do estudante através da sua imersão numa atmosfera marcada pela procura do conhecimento. Na epistemologia idealista de Humboldt, o conhecimento é o produto de um diálogo entre as mentes, não havendo, por isso, uma diferença substancial entre professores e estudantes. Estavam ambos unidos pela Lernfreiheit - liberdade de aprender -, pois a produção do conhecimento era assumida como um empreendimento comum. A ideia humboldtiana de universidade expressa uma centração na ciência moderna e na sua institucionalização, liberta da religião, da igreja, da autoridade do Estado e das pressões sociais e económicas. Ao mesmo tempo, assumia que era interesse do Estado assegurar a Lernfreiheit e a Lehrfreiheit - liberdade de aprender e de ensinar - à universidade, dado que a ciência fornecia a força unificadora de que o Estado necessitava para se legitimar a si próprio, simultaneamente, como suprema instituição nacional e como, nas palavras de Humboldt, “Estado de cultura”. Bastaria, disse ele, em 1810, ver a ciência como algo impossível de conquistar totalmente para que todas as instituições nacionais e a universidade convergissem. (HUMBOLDT, 1995)

Talvez a ideia humboldtiana seja mais marcada pela Aufklärung, dado que situa a própria essência dos objetivos das instituições de ensino superior e das funções nacionais destas no interior do processo do desenvolvimento científico. Todavia, as ideias de universidade de Newman e de Humboldt partilham a matriz moderna do cultivo do conhecimento como um fim em si mesmo e uma conceção unitária desse mesmo conhecimento, que a educação superior deveria construir e desenvolver com o objetivo de alcançar a ‘verdade’, para além da diversidade das disciplinas e das divisões das faculdades.

O modelo napoleónico de universidade, para além do escopo racionalista ‘iluminador’, representa com clareza o projeto de modernização política, marcado pelo generalizado controlo estatal, desde os mais simples atos administrativos até aos conteúdos dos programas e dos cursos, procurando “proteger o setor modernizador da sociedade contra as pressões, pretensões e exigências especiais de interesses instalados e privilégios herdados.” (NEAVE; VAN VUGHT, 1991, p. 271)

O desenvolvimento dos modelos newmaniano, humboldtiano e napoleónico, em diferentes contextos nacionais, deu origem a diferentes tipos de instituições e de sistemas de ensino superior, mas partilham assunções acerca da educação superior e das suas instituições. São faces da metanarrativa da modernidade, construídas a partir dos pilares da emancipação e da regulação, a que se refere Santos (1994). As referidas ideias de universidade e de educação superior são simultaneamente ideias e ideologia. Enquanto ideias, é surpreendente o seu grau de consenso “em torno de temas recorrentes, como conhecimento, verdade, razão, totalidade, diálogo e crítica.” (BARNETT, 1994: 23) Enquanto ideologia, no sentido de evidências partilhadas, encontramos, como diz J. Habermas (1993, p. 45) , “[…] a ideia da unidade da ciência e da compreensão crítica (Aufklärung) […]”

Os sistemas de ensino superior são acontecimentos modernos, primeiro na medida em que as suas narrativas legitimadoras articulam a própria metanarrativa da modernidade. Depois, porque, enquanto sistemas, produzem os recursos para a construção e consolidação do Estado-Nação moderno. Os sistemas de ensino superior, quer em condições de grande autonomia, como na Grã-Bretanha, quer em condições de estrita regulação pelo governo, como em França, foram funcionais em relação às necessidades da construção e consolidação dos Estados-Nação modernos.

Razão/Ciência e Estado convergiram, legitimando-se e justificando-se mutuamente com base na hegemonia da metanarrativa da modernidade. A procura do conhecimento e da verdade imbricou-se com a regulação estatal, como se o princípio do Estado fosse, por si mesmo, subsumido a uma lógica racionalizadora (SANTOS, 1994). É neste contexto que a educação começou a ser pensada dentro do quadro das culturas nacionais, tornando-se mesmo no mecanismo privilegiado da afirmação e consolidação da identidade nacional. Segundo Clark e Youn (1976, p. 3):

Sucessivamente, em diversos países do continente, construir uma nação significava enquadrar o ensino superior num departamento público. Aconteceu quer a completa nacionalização do ensino superior, na qual quase todas as unidades foram colocadas sob a tutela de um ou mais ministérios do governo nacional, como, por exemplo, no caso da França depois de Napoleão, ou da Itália depois da unificação, quer o completo enquadramento por parte do governo ao nível mais baixo, como na Alemanha, onde as universidades estão integradas no âmbito de um ministério de um governo do ‘Land’.

A formação de indivíduos, cidadãos e profissionais, principalmente aqueles que apoiavam o aparelho do Estado, estava estritamente ligada à ideia de educação superior. Ensinar, aprender, estudantes, professores, aulas etc. estavam unidos tanto pela narrativa do conhecimento moderno quanto pela consolidação do Estado-Nação, ou seja, o conhecimento deveria ser procurado sem interferências, como condição para a afirmação da cultura e da ciência ‘nacionais’ (MAGALHÃES, 2004). Professores e estudantes reuniam-se em anfiteatros e laboratórios e viviam em campi no âmbito de uma relação educacional mediada pela função ‘iluminadora’ do conhecimento.

É evidente, contudo, e sublinhe-se, que havia uma profunda ligação entre essas instituições orientadas para a produção e disseminação do conhecimento e as suas características sociológicas de elite. (BARNETT, 1997)

A dissolução narrativa da educação superior

As universidades sempre foram habitadas por uma pluralidade de discursos - o tecnológico, o liberal, o crítico, o experiencial, o profissional, o humanístico etc. Contudo, a narrativa moderna fornecia uma ampla base de consenso e, por isso, os ingredientes ideacionais e ideológicos para a identidade da educação superior. A questão é que hoje esse consenso está a fragmentar-se, num processo que veicula, além da pluralidade de discursos dentro e sobre o ensino superior, um discurso central e específico, agregando sentidos em torno de uma nova, ou novas, identidade(s) da educação superior. Este discurso tem vindo a assumir grande visibilidade nas narrativas empreendedoras/empresarialistas e do mercado da educação superior. Como diz Harker (1995, p. 38),

A dissolução da grande metanarrativa legitimadora da Razão resultou na subjugação das universidades ao princípio da performatividade. Aparentemente, o setor universitário tem de reconquistar a sua autonomia ou arrisca-se a permanecer indefinidamente cativo da política económica. Se as universidades não conseguirem restaurar rapidamente a sua autonomia tradicional, a era da universidade como instituição liberal poderá ter chegado ao fim.

A razão principal para a crescente centralidade das narrativas empreendedoras /empresarialistas e do mercado é que elas declaram, sob a forma do pragmatismo, a inevitabilidade e urgência da sua realização. Primeiro, assumindo que o empreendedorismo/empresarialismo é a ‘melhor maneira’ de lidar com a educação superior de massas e de a gerir ao nível do sistema e das instituições; em segundo lugar, o mercado, as suas leis e a fragmentação e pluralização das sociedades surgem como a realidade incontornável a que as instituições do ensino superior devem responder, reconcetualizando-se enquanto organizações, assim como as suas formas de administração e gestão.

Há, assim, um paradigma emergente fortemente marcado pelas pressões da massificação e da relevância social e económica deste nível de ensino. Este paradigma é, ao mesmo tempo, causa e sintoma da crise de identidade do ensino superior que, na análise de investigadores como Cowen (1996), está a ser ‘atenuado’, ou como na de Barnett (1996), está a ser ‘dissolvido’, ou mesmo a ‘desaparecer’, como diz Rothblatt (1995).

Cowen, fala da ‘atenuação’ da universidade ao nível do espaço, referindo-se à sua dimensão internacional e à sua conexão com a economia; ao nível financeiro, dada a crescente clientelização dos estudantes e das suas famílias; ao nível pedagógico, pela massificação do ensino superior e pela transformação dos/as professores/as com ‘desenhadores de instrução’ (COWEN: 251); e ao nível da qualidade, pelo facto de os académicos estarem a ser tendencialmente substituídos por técnicos especializados na formulação de juízos de valor acerca das atividades levadas a cabo nas instituições de ensino superior. Barnett, por seu turno, diz que a universidade se está a dissolver como unidade institucional e centro do Conhecimento por excelência, isto é, as instituições estão a dissolver-se em segmentos organizacionais e o Conhecimento em conhecimentos (BARNETT, 2000, p. 18). Rothblatt fala do ‘desaparecimento da universidade’, no sentido em que as fronteiras desta estariam a diluir-se, à medida que as funções da universidade são crescentemente simuladas por outras organizações, como, por exemplo, a atribuição de graus (que podem já ser atribuídos por empresas), a investigação (que pode ser - e é - levada a cabo em laboratórios não universitários) etc. Mas a erosão das linhas de demarcação tradicionais está também a ocorrer dentro das universidades:

Reitores e presidentes [são] agora ‘gestores do campus’. Diretores (e diretoras) de departamento são agora ‘chefes’ (escapando a designação à questão de género). Novos estilos de gestão coexistem (desconfortavelmente?) com formas mais antigas de governo académico, colegial ou senatorial. Métodos empresariais de aumento do capital e de promoção da investigação da universidade [estão] a ser importados e elogiados. […] (ROTHBLATT, 1995, p. 31-32)

Santos (1994) resume bem ao falar da tripla crise da universidade: crise de legitimidade, i.e., da falência dos objetivos coletivamente assumidos em relação à universidade; crise institucional, referente ao pôr em causa a sua especificidade organizativa; e crise de hegemonia, referente ao questionamento da exclusividade dos conhecimentos que a universidade produz e transmite.

Estes desenvolvimentos, contudo, acontecem no mesmo passo em que é atribuída uma centralidade sem precedentes à educação superior ao nível público e individual, e na discussão sobre as escolhas políticas com que o ensino superior de massas se confronta: por um lado, no que diz respeito à sua relação com a economia e desenvolvimento social, e, por outro lado, no que se refere à relação entre massificação e democratização, isto é, à necessidade de fornecer educação superior de qualidade a amplos setores da sociedade.

A reconfiguração do mandato endereçado à educação superior na Europa no quadro da sociedade e economia do conhecimento

Nas últimas décadas, estas questões têm vindo a ser tratadas, de uma forma mais ou menos articulada, por instituições transnacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o Banco Mundial e a UE, que, pelo seu poder de influência, estão a transformar a face da educação. A educação superior tem vindo a ser crescentemente configurada por mandatos políticos que promovem a regulação pelo mercado, a competitividade, o empreendedorismo e a reconfiguração de instituições de ensino superior como organizações do tipo das do mercado, incluindo os seus modos de governação.

O quadro da Estratégia de Lisboa incorporou o processo de Bolonha na agenda da UE para a modernização do ensino superior, considerando que as instituições têm de se adaptar e ajustar às mudanças profundas relacionadas com a crescente procura de educação superior, com a internacionalização da educação e da investigação, com a necessidade de promover uma cooperação eficaz e estreita entre universidades e indústria, com a proliferação dos lugares onde o conhecimento é produzido, com a reorganização do conhecimento e com o surgimento e fortalecimento de novas expectativas das partes interessadas na educação superior. A Comissão Europeia assume que “A modernização é necessária para enfrentar os desafios da globalização e para desenvolver as competências e a capacidade da mão-de-obra europeia para ser inovadora.” (EUROPEAN COMMISSION, 2007, p. 1) Nesse sentido, apontou três áreas de “possíveis reformas”: curricular, governação e financiamento. Uma renovação curricular profunda, com maior diferenciação de programas, de critérios de admissão e dos processos de ensino/aprendizagem necessária para lidar com a diversidade das/os estudantes, para melhorar a mobilidade, o reconhecimento e a empregabilidade. Por último, mas não menos importante, a reforma curricular deverá encorajar a excelência e aumentar a atratividade da educação superior europeia.

Nas raízes do processo de Bolonha está um importante vetor político que promove a articulação entre educação e inovação, cujo significado tem vindo a ser discursivamente associado, na retórica política da UE, ao ideograma da ‘sociedade do conhecimento’. Em 1997, a noção de ‘Europa do Conhecimento’ foi introduzida pela Comissão Europeia na apresentação da Agenda 2000 para “fazer das ‘políticas baseadas no conhecimento’ (inovação, investigação, educação e formação), um dos quatro pilares fundamentais das políticas internas da UE [e] aumentar o nível de conhecimento e habilidades de todos os cidadãos da Europa, a fim de promover o emprego.” (EUROPEAN COMMISSION, 1997, p. 1)

Em 1999, a Declaração de Bolonha (1999) considerou que o grau atribuído após o primeiro ciclo também deveria ser relevante para o mercado de trabalho europeu como nível apropriado de qualificação. Assume-se que, no âmbito da ‘sociedade do conhecimento’, a necessidade de satisfazer as exigências do mercado de trabalho requer o desenvolvimento de competências e habilidades que o ensino superior deverá incorporar como objetivo educativo. Em 2003, esta preocupação foi claramente direcionada para a necessidade de desenvolver uma cooperação eficaz e mais estreita entre universidades e indústria, no sentido de promover a inovação, novas empresas e, mais genericamente, a transferência e disseminação de conhecimento (EUROPEAN COMMISSION, 2003). Em 2005, os ministros afirmaram que “como o ensino superior está situado na encruzilhada da investigação, educação e inovação, é também a chave para a competitividade da Europa.” (BERGEN COMMUNIQUÉ, 2005, p. 5)

A educação superior e o ‘triângulo do conhecimento’: educação, investigação e inovação

Com certeza inspirada na Tripla Hélice de Etzkowitz (1993), referente à relação universidade-indústria-governo, a metáfora do triângulo do conhecimento proposta pela Comissão Europeia, a partir de 1997, tem vindo a dar centralidade às necessidades da ‘sociedade do conhecimento’ e a salientar as relações entre educação, investigação e inovação, sublinhando a prevalência da inovação na sua articulação com os outros dois vértices. Enquanto a Tripla Hélice tem vindo a enquadrar a reconfiguração da ‘terceira missão’ das universidades, o ‘triângulo do conhecimento’ enfatiza o papel da inovação na configuração da relação entre a ‘primeira’ e a ‘segunda’ missões da universidade - a educação e a investigação.

Os elementos estruturantes da ideia de inovação referem-se ao papel do conhecimento para o desenvolvimento económico e social, à disseminação do conhecimento e à potenciação de seu impacto com base na cooperação internacional. Inovação remete, assim, para o impacto dos sistemas de ensino superior no desenvolvimento económico, na melhoria da competitividade dos sistemas regionais e na geração, pela educação superior, de competências e habilidades para esse fim.

Partindo da perspetiva teórico-metodológica da análise do discurso de Laclau e Mouffe (1985), os conceitos de articulação, significante flutuante e ponto nodal permitem construir o argumento de que na ideia de Europa do Conhecimento a investigação, a educação e a inovação são fortemente articuladas num discurso sobre o que deve ser a educação superior. Os autores chamam articulação a “qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal forma que sua identidade é modificada como resultado da prática articulatória.” (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 105) Os pontos nodais referem-se a um momento de cristalização dentro de um discurso específico, pelo que os significados de investigação, educação e inovação devem ser procurados na análise do discurso sobre a educação superior europeia. O termo significante flutuante refere-se “à luta […] entre os discursos para fixar o significado de signos importantes.” (PHILLIPS; JØRGENSEN, 2004, p. 28) Um ponto nodal pode aparecer como um ‘significante vazio’, isto é, como “um significante ‘puro’, que dá unidade e identidade à nossa experiência da própria realidade histórica.” (ŽIŽEK, 1989: 97). Esses significantes ganham força quando os discursos investem na fixação do seu significado, transformando ‘significantes vazios’ em ‘significantes flutuantes’. Significantes ‘vazios’ ou ‘puros’ representam valores consensuais, subjetivos ou ideais, por exemplo, a empregabilidade é desejada e desejável porque capacita os sujeitos para encontrar e permanecer no emprego.

Assim, com base nos textos políticos endossados pelos ministros europeus no âmbito do processo de Bolonha, o objetivo, aqui, é o de mostrar como as relações discursivas entre educação, investigação e inovação permitem analisar (e questionar) a reconfiguração da educação superior. Ao examinar as práticas articulatórias desenvolvidas nos referidos textos da UE procura-se mostrar como é que esses discursos estão a configurar a educação superior europeia.

Enquanto a articulação entre investigação e educação assenta na indissociabilidade da investigação e do ensino, a ênfase na articulação de ambas com a inovação - que envolve o relacionamento com a indústria, com o tecido económico e a formação de uma força de trabalho qualificada - penetra e reconfigura tanto a transferência quanto a disseminação do conhecimento, mudando o foco educacional para competências e habilidades orientadas para o desenvolvimento económico.

Fonte: Autor.

Figura 1: O triângulo do conhecimento e a reconfiguração da educação e investigação 

Nos desenvolvimentos de Bolonha, o que estrutura as articulações entre vértices do triângulo é a centralidade atribuída à inovação. Principalmente após a reunião de Bergen (2005), a inovação tornou-se estreitamente articulada com a educação e a investigação. Enquanto no Comunicado de Berlim (2003) o objetivo de preservar a riqueza cultural e a diversidade linguística da Europa estava relacionado com a promoção do “potencial de inovação e desenvolvimento social e económico através do reforço da cooperação entre instituições europeias de ensino superior” (BERLIN COMMUNIQUÉ, 2003, p. 2), o de Bergen (2005) articulou claramente a inovação e a educação, assumindo que “é necessário tempo para otimizar o impacto das mudanças estruturais nos currículos e, assim, garantir a introdução dos processos inovadores de ensino e aprendizagem de que a Europa necessita.” (BERGEN COMMUNIQUÉ, 2005, p.1) Trouxe-se, deste modo, a necessidade de fortalecer a ligação entre investigação e inovação, refletindo a influência e os pressupostos políticos associados à criação do Espaço Europeu de Investigação (EEI) para promover a livre circulação de investigadores, conhecimentos e tecnologias, uma vez que “o desenvolvimento económico e social dependerá essencialmente do conhecimento nas suas diferentes formas, na produção, aquisição e uso do conhecimento.” (EUROPEAN COMMISSION, 2000, p. 5) As prioridades do EEI são, de facto, a promoção de sistemas nacionais de investigação mais eficazes, a otimização da cooperação e concorrência transnacionais, um mercado de trabalho aberto para investigadores, a igualdade de género e o aumento da circulação, acesso e transferência de conhecimento. (EUROPEAN COMMISSION, 2012)

A relação entre investigação e educação é matricial na educação superior (BARNETT, 1994) e o processo de Bolonha reconhece que esta relação está no cerne da missão e das atividades do ensino superior (BOLOGNA DECLARATION, 1999). No entanto, o desenvolvimento de Bolonha alimenta-se e é alimentado pelo papel variável atribuído ao conhecimento e, consequentemente, à educação. O discurso da UE é moldado pela necessidade de aumentar a criação, transmissão e disseminação de conhecimento, assumido como fator central da produção e impulsionado pelo propósito da “aplicação desse conhecimento e informação à geração de conhecimento e processamento de informação/dispositivos de comunicação, num feedback cumulativo entre a inovação e seus usos.” (CASTELLS, 2000: 32)

O foco na inovação, por um lado, reconfigura a educação como formação/training, no sentido de esta desenvolver competências e habilidades transferíveis para atender às necessidades do mercado de trabalho (BERGEN COMMUNIQUÉ, 2005); por outro lado, incentiva a criação e o desenvolvimento da investigação em articulação com a inovação (LONDON COMMUNIQUÉ, 2007). A educação superior é mandatada para garantir um vínculo forte entre investigação e ensino e aprendizagem, devendo os seus graduados combinar competências e habilidades transversais, multidisciplinares e de inovação com conhecimentos atualizados específicos, de modo a poder responder às necessidades da sociedade e do mercado de trabalho (BUCHAREST COMMUNIQUÉ, 2012). Em Yerevan, em 2015, os ministros da educação sublinharam explicitamente que essa ligação entre educação e investigação deve ser mediada pela preocupação com a inovação: “Promoveremos um vínculo mais forte entre ensino, aprendizagem e investigação em todos os níveis de educação e ofereceremos incentivos às instituições, professores e aos estudantes para que intensifiquem atividades que desenvolvam criatividade, inovação e empreendedorismo.” (YEREVAN COMMUNIQUÉ, 2015, p. 2)

A articulação entre educação e investigação surge, assim, como um fator-chave, dada “a importância da investigação e da formação de investigadores para manter e melhorar a qualidade e aumentar a competitividade e atratividade do EEES.” (BERGEN COMMUNIQUÉ, 2005, p. 3) Na ligação entre competitividade e atratividade da oferta de educação na Europa, a inovação surge como central no perfil dos trabalhadores formados no ensino superior. Desde a reunião de Bergen que do processo de Bolonha se espera o fortalecimento dos laços entre a educação superior e a investigação como base da perspetiva que vê na educação superior o meio “para o desenvolvimento económico e cultural das nossas sociedades e para a coesão social.” (BERGEN COMMUNIQUÉ, 2005, p. 3)

A articulação entre investigação e inovação é fundamental nos discursos que apontam ‘A União da Inovação’ como o principal motor do crescimento económico para a Europa (EUROPEAN COMMISSION, 2010a). A inovação surge, de facto, como um ponto nodal da agenda da UE, claramente refletido na estratégia para 2020. Assim, as políticas públicas da UE centram-se no objetivo da criação de “condições e acesso ao financiamento para investigação e inovação, para garantir que ideias inovadoras sejam transformadas em produtos e serviços que criem crescimento e empregos.” (EUROPEAN COMMISSION, 2010a, p. 6) Os ministros da educação da UE enfatizaram a necessidade de melhorar a “cooperação entre empregadores, estudantes e instituições de ensino superior, especialmente no desenvolvimento de programas que ajudem a aumentar o potencial de inovação, empreendedorismo e investigação dos graduados.” (BUCHAREST COMMUNIQUÉ, 2012, p. 2)

Esta centralidade da inovação está na base da radicalização dos discursos sobre a mudança da investigação básica para a aplicada. Mais do que enfatizar a mudança do Modo 1 para o Modo 2 na produção de conhecimento (GIBBONS ET AL., 1997), a inovação, atuando como um ponto nodal, concentra-se na transferência de conhecimento “indo além da investigação tecnológica e sua aplicações.” (EUROPEAN COMMISSION, 2010a, p. 32) A ênfase muda da investigação per se para investigação+inovação, mediada pela transferência de conhecimento. Consequentemente, no âmbito de Bolonha, “os programas de estudo devem refletir as mudanças nas prioridades de investigação e as disciplinas emergentes, devendo a investigação sustentar o ensino e a aprendizagem.” (BUCHAREST COMMUNIQUÉ, 2012: 2)

Esta perspetiva política terá, e já tem, consequências importantes, por exemplo, nos programas de doutoramento e de formação doutoral, no quadro da promoção do “estatuto, perspetivas de carreira e financiamento para investigadores em início de carreira” como “pré-requisitos essenciais para atingir os objetivos da Europa de reforçar a capacidade de investigação e melhorar a qualidade e a competitividade do ensino superior europeu.” (LONDON COMMUNIQUÉ, 2007: 4-5)

A articulação entre educação e inovação é visível na abordagem da difusão do conhecimento, impulsionada pela reforma curricular preconizada pela Comissão Europeia. Como já se disse, em 2007 (EUROPEAN COMMISSION, 2007), o documento da Comissão Europeia, De Bergen a Londres: A contribuição da Comissão Europeia para o Processo de Bolonha, deixou claro que as reformas curriculares deveriam permitir a aprendizagem baseada em competências e percursos de aprendizagem flexíveis e mobilidade. A posição nodal da inovação no triângulo do conhecimento interfere na natureza dos processos de ensino e aprendizagem e na fixação do significado da disseminação do conhecimento, apontada como quintessencial para a criação de uma força de trabalho ‘inovadora’. Os ministros, em Londres, exortaram as “instituições a desenvolver parcerias e cooperação com os empregadores no processo contínuo de inovação curricular baseado em resultados de aprendizagem.” (LONDON COMMUNIQUÉ, 2007, p. 6) O que se traduz na centralidade das questões “como acordos de acesso transparente, procedimentos de supervisão e avaliação, desenvolvimento de habilidades transferíveis e formas de aumentar a empregabilidade.” (LONDON COMMUNIQUÉ, 2007: 5) A empregabilidade é concebida como o potencial para participar na economia do conhecimento e, assim, perspetivada em termos de competências e habilidades adequadas.

Discursivamente, a ênfase nas competências e habilidades para a inovação reflete um mandato dirigido aos sistemas educativos para estes desenvolverem a “combinação certa” dessas competências e habilidades (EUROPEAN COMMISSION, 2010b; OECD, Innovation Policy Platform). Enquanto o relatório do Grupo de Peritos sobre Novas Competências para Novos Empregos (EUROPEAN COMMISSION, 2010b), preparado para a Comissão Europeia, enfatiza que a educação e a formação “devem ser sustentadas por competências transversais, especialmente competências digitais e empresariais, para incentivar a iniciativa e não a mera reprodução do conhecimento recebido, para melhor se adaptar às necessidades dos estudantes e dos empregadores” (EUROPEAN COMMISSION, 2010b: 7), a Plataforma de Políticas de Inovação (Innovation Policy Platform - PPI), desenvolvida pela OCDE e pelo Banco Mundial, sublinha a necessidade de “reequilibrar a ênfase entre o conhecimento de conteúdo e outras habilidades, como criatividade, comunicação, trabalho em equipa […]” (https://www.innovationpolicyplatform.org/content/skills-innovation) Segundo a PPI, a aquisição de habilidades de inovação deve basear-se em (i) disciplinas que equipem os/as estudantes com habilidades relevantes para a inovação: habilidades técnicas, habilidades de raciocínio e criatividade e habilidades comportamentais e sociais; (ii) pedagogias ativas baseadas na aprendizagem baseada em problemas, aprendizagem cooperativa, aprendizagem metacognitiva, porventura sustentadas na tecnologia da informação e comunicação e em abordagens interdisciplinares centradas no design thinking para promover habilidades para a inovação; (iii) novos instrumentos de avaliação com foco em competências, e não nos conhecimentos per se, e (iv) mobilidade internacional de estudantes, corpo docente, programas e instituições como meio para promover habilidades para inovação na economia globalizada.

Envoi

A articulação entre os conceitos de investigação, educação e inovação, sob a hegemonia deste último, contribuiu para naturalizar o mandato produtivista dirigido à educação e à investigação no ensino superior europeu. A inovação surge como um vetor político que está a configurar políticas e práticas educativas no ensino superior.

A articulação entre educação e inovação, no âmbito do EEES, assume que a função da educação superior é a de equipar “os estudantes com os conhecimentos, habilidades e competências de que necessitam no local de trabalho e que os empregadores exigem; e garantir que as pessoas tenham mais oportunidades de manter ou renovar essas habilidades e atributos ao longo de suas vidas profissionais.” (WORKING GROUP ON EMPLOYABILITY, 2009, p. 5) No entanto, é de notar que este mandato vela o facto de, em muitos contextos nacionais, o tecido económico não estar preparado para absorver graduados altamente qualificados, como é reconhecido pelos representantes dos estudantes europeus (EUROPEAN STUDENT UNION - ESU): “as taxas de sobrequalificação são mais influenciadas pelas estruturas do mercado de trabalho e pela falta de inovação nos negócios e na indústria do que pelo número crescente de estudantes.” (ESU, 2015) Não obstante, em 2015, a Comissão Europeia sublinhou, na sua análise anual do crescimento (EUROPEAN COMMISSION, 2015), que, embora a UE seja um grande produtor de competências e de conhecimento, os seus sistemas de educação e formação não têm um desempenho tão bom quanto deveriam a nível internacional. Cerca de 20% da população em idade ativa possui apenas competências básicas, como alfabetização ou numeracia, e 39% das empresas têm dificuldade em encontrar pessoal com as competências necessárias. (EUROPEAN COMMISSION, 2015)

A educação e o ‘superior’ do ensino superior no contexto da massificação são enquadrados pela competição económica e pela necessidade de atender às mudanças nas exigências sociais e do mercado de trabalho. A centralidade do conhecimento no ideal moderno de educação superior está a mudar para competências e resultados de aprendizagem enquanto cerne, objetivos e metas educativos. Nos discursos e práticas de implementação do processo de Bolonha, o papel formativo do conhecimento está a ser substituído pelo potencial de o mobilizar para atuar individual e socialmente, particularmente no mundo do trabalho. No mercado de trabalho, as competências e as qualificações, definidas como resultados de aprendizagem, são consideradas a base da ‘empregabilidade’ e uma gramática para a sua utilização pelos agentes externos ao ensino superior, nomeadamente os empregadores.

Terão estas abordagens da formação superior o potencial educacional previsto por muitos educadores (e.g., John Dewey, Paulo Freire, Ivan Illich) para lidar com as necessidades das sociedades pós-industriais e com as formas emergentes de cidadania? Terão o potencial de promover flexibilidade de percursos de formação como resposta aos desafios da massificação? Tudo parece depender de como os riscos do mandato produtivista são contrabalançados aos níveis político e educacional. De facto, a ênfase excessiva na aplicabilidade do conhecimento pode corresponder a uma tendência para negligenciar o papel formativo que os diferentes tipos de conhecimento em si possuem e potencialmente confinar a missão educacional e as estratégias da educação superior a papéis vocacionais e económicos.

Nybom (2012, p. 179) escreveu que “os sistemas de ensino superior europeus passaram por um processo de grande desorientação histórica, e isso foi causado pela confluência de várias forças culturais e intelectuais, bem como políticas e económicas.” No entanto, o impacto educacional desse novo ambiente e transformações não surge como central nas agendas de pesquisa. Desde meados dos anos 1990, a investigação na área tem privilegiado questões como a internacionalização das instituições, a mobilidade, a influência mútua dos sistemas de ensino superior, a transferência de conhecimentos, as políticas nacionais e supranacionais, a governação, a prestação de contas e responsabilização, a avaliação da qualidade e o processo de Bolonha (KEHM; TEICHLER, 2007). Não negando a importância dessas questões, a dimensão educativa não deve ser negligenciada, pois o processo de educação permanece no centro das instituições de ensino superior. Não se trata, também, de negar o potencial de empregabilidade e a relevância económica da formação superior, mas de reivindicar a especificidade do educativo no ensino superior.

Surge, assim, esta reclamação de recentração da investigação na educação no âmbito do ensino superior. Este artigo visa contribuir para o pensar, desenhar e desenvolver estratégias reflexivas e inspirar vigilância crítica em relação aos diferentes discursos, tensões e dilemas com que a educação superior na Europa, e para além dela, se confronta.

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Recebido: 08 de Outubro de 2018; Aceito: 12 de Novembro de 2018

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