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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.48 São Paulo jan./mar 2019  Epub 29-Jun-2019

https://doi.org/10.5585/eccos.n48.11538 

Dossiê temático

Tensões entre as pedagogias sócio-emancipadora e tradicional: um estudo do sistema socioeducativo com adolescentes privados de liberdade

Tensions between socio-emancipator and traditional pedagogies: a study of the socio-educative study with adolescents deprived of freedom

1Pós-doutorado em Educação Intercultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor e pesquisador no PPGEDU da Universidade de Passo Fundo. Rio Grande do Sul - RS - Brasil. telmomarcon@gmail.com

2Mestra em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora no Centro de Ensino Médio Integrado da Universidade de Passo Fundo. Rio Grande do Sul - RS - Brasil. lisiane.mella@upf.br

3Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor na Universidade de Passo Fundo. Rio Grande do Sul RS Brasil -. tascheto@upf.br


Resumo:

Este artigo é resultante de pesquisa bibliográfica e empírica e objetiva problematizar as tensões entre as pedagogias socioemancipadora e tradicional no espaço de atendimento socioeducativo com adolescentes privados de liberdade. Tem como base empírica pesquisa realizada, por meio de entrevistas semi-estruturadas, com agentes socioeducativos que atuam no Centro de Assistência Socioeducativa (CASE), localizado ao norte do estado do Rio Grande do Sul, que atende em torno de 70 adolescentes. Do conjunto amplo de questões tratadas pela pesquisa o presente artigo incide sobre o modo tenso como as duas pedagogias referidas convivem no cotidiano dos agentes que atuam na instituição quando se trata de ressocialização. Essa tensão, além de refletir perspectivas políticas e pedagógicas distintas, tem implicações importantes no sentido da formação para a cidadania e a efetiva inserção dos adolescentes em novas relações sociais. Buscando dar conta dessa problemática, o texto propõe uma problematização de caráter mais geral sobre o tema, traz elementos para compreensão das orientações teóricas dos agentes socioeducativos das duas perspectivas pedagógicas e as problematiza à luz da Lei do SINASE e do campo teórico da Pedagogia Social. Na conclusão, afirma-se a tese de que somente uma pedagogia social emancipadora tem potencial para ressocializar adolescentes infratores e criar as condições para uma reinserção social democrática e cidadã.

Palavras-chave: Educação Democrática; Educação Opressora; Emancipação; Lei do SINASE; Pedagogia Social

Abstract:

This paper is the result of bibliographic and empirical research and aims to problematize the tensions between socio-emancipator and traditional pedagogies in the space of socio-educational care with adolescents deprived of freedom. Its empirical basement is a research made by means of semi-structured interviews, with socio-educative agents acting in the Center of Socio Educative Assistance (CASE) located in the north of the state of Rio Grande do Sul, which takes care of near 70 adolescents. From the wide set of questions treated by the research, this article focuses on the tense way in which both mentioned pedagogies coexist in the daily life of agents acting in the institution when dealing with re-socialization. This tension, besides reflecting distinct pedagogic and political perspectives, has important implications regarding the formation for citizenship and the effective insertion of adolescents in new social relations. Aiming to deal with this problematic, the text proposes a more general problematization about the theme, bringing elements to understand the theoretical orientations of socio-educational agents of both pedagogical perspectives and problematizes them in light of the Law of SINASE and of the theoretical field of the Social Pedagogy. In conclusion, the thesis that only an emancipating social pedagogy has potential to re-socialize infracting adolescents and to create the conditions for a democratic and citizen social reintegration is affirmed.

Keywords: Democratic Education; Oppressing Education; Emancipation; Law of SINASE; Social Pedagogy

Introdução

Intensos debates travados ao longo da história sobre distintas perspectivas pedagógicas resultaram na construção de um conjunto expressivo de tradições que ancoraram seus fundamentos em diferentes ideais de pessoa humana e de sociedade. Dentre essas tradições pedagógicas, duas serão objeto de consideração neste texto: a socioemancipadora e a tradicional. Ambas pugnam por valores que se conflitam, adotam procedimentos políticos distintos e apresentam resultados diferentes. Elas adentram as práticas educativas em diversos espaços institucionais: família, escola, grupos sociais, presídios, centros de atendimento socioeducativo, entre outros.

O artigo busca responder às seguintes questões de pesquisa: Que razões levam agentes socioeducativos a optarem por uma ou outra orientação pedagógica? Por que persiste a crença de que a imposição de regras disciplinares mais rigorosas e de castigos físicos constitui alternativa para a mudança de comportamentos envolvendo, neste caso, adolescentes em conflito com a lei? Que argumentos antropológicos e pedagógicos justificam práticas repressivas?

A pedagogia socioemancipadora parte da compreensão de que o ser humano se constitui nas relações concretas que estabelece com os demais. Nessas relações, que são conflitivas e contraditórias, é que se constitui como sujeito (ELIAS, 1994). Não há indivíduo emancipado sem assumir a condição de sujeito, perspectiva intensamente discutida por Freire (1981) e por Dewey (1979), entre outros. A tese fundamental que os autores defendem é que o ser humano tem potencialidades e condições de assumir-se como sujeito, mas não isoladamente, e sim nas relações com os demais e com o mundo: “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” (FREIRE, 1981, p. 79) Essa perspectiva confronta-se com a pedagogia tradicional que, por sua vez, parte de uma compreensão dualista de natureza humana (CHARLOT, 1979). O corpo configura-se, então, como um obstáculo ao desenvolvimento do espírito e daí decorre a necessidade de ser disciplinado e controlado por agentes externos. Essa tradição pedagógica herda, em parte, uma influência platônica do corpo como limitador do desenvolvimento espiritual, tese que influenciou fortemente a cultura ocidental e continua muito presente.

Na pedagogia jesuítica, o castigo corporal era aceito naturalmente e constava explicitamente do Ratio Studiorum (FRANCA, 1952), documento que detalha centenas de procedimentos e normas envolvendo as relações educador-educando. Nas Regras dos alunos externos da Companhia, o tópico sete registra que, caso não sejam eficientes os avisos aos educandos em relação ao estudo e à disciplina, os professores recorrerão “ao corretor para puni-los.” Aos indisciplinados que recusarem o castigo ou “não derem esperança de emenda ou incomodaremos colegas e com o seu exemplo lhes forem prejudiciais, saibam que serão despedidos dos nossos colégios.” (FRANCA, 1952, p. 48) Nas normas constantes de As regras comuns aos professores das classes inferiores o método jesuítico estabelece, no tópico 39, o “Cuidado da disciplina”, aos que não obedecerem às regras restam os “castigos físicos”. O tópico 40 define procedimentos relativos ao “modo de castigar” e conclui: “ao Prefeito deixe os castigos mais severos ou menos costumados, sobretudo por faltas cometidas fora da aula, como a ele remeta os que se recusam aceitar os castigos físicos, principalmente se forem mais crescidos.” (FRANCA, 1952, p. 34) O castigo é, portanto, um meio aceito explicitamente na pedagogia jesuítica visando ao cumprimento das normas.

Além da influência pedagógica jesuítica, temos no Brasil uma longa experiência escravocrata que trabalhou intensamente o castigo como procedimento necessário para a correção de práticas consideradas inadequadas, caso dos escravos. Nessa perspectiva, a literatura é farta e não há necessidade de retomá-la aqui. Cabe ressaltar, no entanto, a ideia de que o castigo corporal é parte constitutiva da nossa história, em grande parte naturalizada, ademais de permanecer como cultura incrustada nas instituições e nas práticas sociais, como bem analisam Souza (2015; 2016; 2017; 2018); Fernandes (1978); Silva (2017); Chauí (2004; 2007), entre outros. É da estrutura escravocrata que herdamos uma cultura autoritária para a qual o castigo físico é concebido como procedimento educativo, naturalizado e necessário.

Como afirma Gargarella (2016, p. 11), o castigo deveria ser a última ratio nas sociedades contemporâneas, mas vem se tornando a primeira. O autor aponta para um conjunto de desafios, entre os quais o de como pensar as questões penais num contexto de crescentes desigualdades sociais e numa perspectiva democrática e republicana do direito. Ele parte da tese que “el castigo constituye una actividad muy difícil de justificar, particularmente en situaciones de fuerte y inexcusable desigualdad, y por esso requiere de nosostros una aproximación, antes que cumplaciente, crítica.” (2016, p. 11) Essa postura crítica tem de estar fundamentada em argumentos que justifiquem porque a prática do castigo corporal não é educativa e muito menos emancipadora. No entanto, ela vem sendo aceita e naturalizada especialmente em espaços de reclusão. Procurando evidenciar como as perspectivas pedagógicas socioemancipadora e tradicional convivem de modo tenso numa experiência de atendimento socioeducativo, serão destacadas, neste estudo, falas de agentes entrevistados que ajudam a evidenciar as implicações e consequências dessas posturas: de um lado, a valorização do adolescente e a crença nas possibilidades de mudança de comportamento e de ressocialização; de outro, posturas autoritárias que desacreditam no diálogo como força propulsora da convivência humana, a defesa do uso de castigos e a aplicação de regras rígidas.

Perspectivas pedagógicas na socioeducação: entre a repressão e a emancipação

Os elementos aqui delimitados emergiram na pesquisa qualitativa realizada com trabalhadores da socioeducação, num CASE situado ao norte do Rio Grande do Sul, no contexto dos parâmetros previstos na Lei 12.594/12, a chamada Lei do SINASE (BRASIL, 2012). Nessa lei, há uma compreensão educativa em relação ao adolescente em perspectiva dialógico-emancipadora. No entanto, na instituição convivem agentes que partilham pressupostos pedagógicos emancipadores, mas também os que não concordam com as mudanças propostas pela lei do SINASE e continuam defendendo uma pedagogia autoritária, repressiva e disciplinadora como alternativa para a ressocialização de adolescentes. O papel de cada agente socioeducativo enquanto educador é fundamental no cotidiano das unidades socioeducativas, considerando que a sua atuação deve, conforme os documentos legais, pautar-se na ressignificação da trajetória do adolescente que cometeu ato infracional e na sua ressocialização.

Participaram da pesquisa trabalhadores da socioeducação, incluindo gestores, membros da equipe técnica e agentes socioeducadores. As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas no início de 2017 e as identidades dos respondentes foram preservadas, conforme estabelecido no projeto de pesquisa aprovado pelo comitê de ética. Quando citadas suas falas apontamos como referência geral a indicação participante (P), seguido de um número.

A delimitação temática do presente artigo leva em consideração as diferentes compreensões pedagógicas dos entrevistados. Toda perspectiva pedagógica implica visões de mundo que resulta em diferentes modelos de intervenção, no caso, o socioemancipador e o tradicional-autoritário. Embora o SINASE estabeleça uma série de parâmetros em defesa de um modelo emancipador, as entrevistas evidenciam que as duas perspectivas pedagógicas continuam presentes e convivem de modo conflitivo no cotidiano da instituição.

Fica evidente, nas falas, que os parâmetros balizadores de uma pedagogia repressiva fundamentam-se na disciplina e na punição, condição para a significação do trabalho. Isso se dá pela mediação de regras claras e fixas, norteadoras das ações dos agentes, que funcionam, portanto, como uma ferramenta objetiva de trabalho. Essa perspectiva fica evidente na fala de uma entrevistada que atua na socioeducação há mais de dez anos:

Quando eu entrei aqui, a gente não chamava a atenção dos guris, não precisava dizer Fulano ó, para de dizer palavrão, tem Dona aqui. Não precisava chamar, porque eles sabiam que não podiam dizer palavrão. Essa liberdade que eles (adolescentes) têm de falar do que querem, como querem não pode acontecer. Porque antes quando um piá falava um palavrão, ele já levava uma medida: já vai ficar de 241, que é sem sair do setor, sem jogar bola, mas tem o momento no pátio, tem toda a assistência, mas não pode sair. Agora, não se pode mais fazer isso, entendeu?2 (P4)

Essa fala ressalta que há um conflito explícito entre modelos pedagógicos distintos: enquanto um oferece um lugar de fala ao adolescente, o outro arrebata essa possibilidade pelo uso de um poder autoritário, historicamente legitimado pela instituição, que inclui a punição disciplinar direta aos atos caracterizados como indisciplina.

Caberia aqui pensar nos critérios utilizados para validar um ato que se diz indisciplinar, na medida em que esse conceito, assim como toda a criação cultural, não é estático, uniforme, tampouco universal, mas se relaciona com um conjunto de valores e expectativas que variam ao longo da história, entre as diferentes culturas e até na mesma sociedade, nas diversas classes sociais, nas diferentes instituições e até mesmo dentro de uma mesma camada social (REGO, 1999). Portanto, evidencia-se aí uma visão de mundo pautada em uma perspectiva pedagógica que utiliza a repressão como princípio educativo.

Esse ponto de vista é destacado também na fala de outra entrevistada que, do mesmo modo, atua na socioeducação há mais de dez anos:

A gente tinha um código de regras bem extenso, bem detalhado, apreendia tudo, desde advertência escrita, advertência oral, faltas leves, faltas médias, faltas graves. Nós tínhamos assim ó: adolescente se recusou a atender uma solicitação da monitoria, tá restrito; se recusou a lavar o material da janta, tá restrito por 24 horas, sabe? (P7)

O código de regras devidamente sistematizado e organizado com base num regramento disciplinar faz alusão à máquina de Kafka (1996), analisada na sequência, inscrevendo no sujeito as suas culpas e punições, com base em posturas autoritárias que incluem o medo, a cobrança e a rigidez. Por fim, temos a anulação da existência do outro, já que, nesses padrões de conduta, a atitude esperada por parte dos adolescentes é de docilidade, obediência e receptividade à imposição das regras. A fala de outra entrevistada reforça esse aspecto:

Eles têm que entender que eles não podem gostar de tá aqui, eles têm que odiar pra eles não cometerem de novo o que eles cometeram lá fora. Não pode ser aqui o oba, oba, eba, eba que nem eles gostam, acho que tem que ser mais cobrado, rigoroso. Eu por mim eles não acordavam vinte pras nove da manhã, mas sim às sete horas quando inicia o plantão. Eles têm que ter regras, ter esse medinho de tá aqui. E eles não têm… Tem piá que não quer sair daqui de dentro. Já aconteceu de piá pedir pra ficar aqui pelas facilidades que eles têm, da vida boa que eles têm aqui. Eles chamam aqui de creche, por quê? Porque eles têm muitos benefícios, muitas regalias e pouca obrigação. (P2)

Esse tipo de narrativa reforça a lógica que prima pela imposição de padrões de cima para baixo e de fora para dentro, havendo uma grande distância entre o trabalhador que impõe regras e castigos e os adolescentes que sofrem as suas consequências. Condutas de cunho autoritário exigem métodos rígidos de repressão e de opressão, sendo aplicadas essencialmente em razão do poder de um sobre o outro. Portanto, o método para promover certo tipo de aprendizado torna-se totalmente estranho às capacidades dos adolescentes em significá-las por meio de experiências que possam ser consideradas educativas.

Na tentativa de conceber uma nova filosofia da educação baseada em experiências democráticas, Dewey (1979) afirma que é muito mais difícil gerir espaços educativos baseados em uma nova ordem de conceitos do que conduzir a gestão de espaços que seguem velhos caminhos, visto que uma nova configuração de gestão corresponde a criar também novas práticas, abandonando a tradição e o costume. Expresso em outros termos, é sempre desafiador criar condições para a emergência de novas experiências.

Outra entrevistada expôs o conflito latente que permeia as relações entre os trabalhadores da instituição e os adolescentes: uma concepção pedagógica autoritária que conflita com uma nova forma de compreender os processos socioeducativos, ou seja, de um modelo pedagógico tradicional-repressivo para um modelo emancipatório que reconhece os adolescentes como sujeitos. A sua fala evidencia essa tensão:

A gente demorou muito pra conseguir sair dessa discussão, porque os agentes achavam que como o adolescente cometeu um ato de indisciplina, ele teria que ter uma punição severa e aí ele ia ter os mesmos direitos que os outros? Eles não conseguiam compreender. E a gente, não vou negar, também tava acostumado com aquele molde ali e pensava: ué, complicado né, pro guri como é que fica isso na cabeça dele? Eu fiz uma coisa e a consequência foi ‘a’ e eu esperava que fosse ‘b’. Foi difícil pra gente conseguir reverter isso. O guri dizia que não dava nada e ficava aquela coisa: como a gente vai dar isso como direito? E se ele fizer bagunça, ele vai ter direito? Se é direito, é direito, não tem porque tirar porque ele fez bagunça. Então até a gente conseguir dizer: não, tu tá perdendo sim, é um fato negativo que vai pro teu relatório, o juiz fica sabendo, demorou… E nisso as relações vão se desgastando, as reuniões de equipe sempre tensas, atrapalha o trabalho. (P5)

Essa trabalhadora questiona as práticas e os métodos repressivos tradicionalmente utilizados no cotidiano da instituição e, ao mesmo tempo, evidencia as novas perspectivas pedagógicas lançadas pela Lei do SINASE. O seu discurso mostra uma familiaridade com os princípios legais e, concomitantemente, as tensões e conflitos entre diferentes pedagogias e as dificuldades para equacionar esses problemas entre os agentes. Esse conflito também é evidenciado por outra entrevistada, que foi percebendo as mudanças pedagógicas e descobrindo novos métodos de trabalho com os adolescentes:

Quando a lei entrou, foi um pavor. Foi logo que acabou a FEBEM3, daí veio o nosso concurso pra socioeducador. Nós éramos agentes e daí foi vindo o SINASE e a gente foi lendo aquilo e ‘meu Deus’, como é que nós ia implantar aquilo ali? Como é que nós vamos agir com os adolescentes, que não seja impondo a força? Então, antigamente era bem claro: fez isso, punição dessa. Fez aquilo, é isso. Nós éramos que nem aquela coisa que tem no cavalo. Era assim: tu fez isso é 48, tu fez isso é 72. Então as regras eram aqui dentro como lei. O SINASE não. Ele tem um retorno: Bah, tu fez isso, ah quem sabe uma conversa? Tem um remanejo, sabe? Mas como nós pessoas que fomos treinadas pra fazer aquilo ali, íamos mudar o nosso comportamento? E sabe que foi acontecendo… Aí nós descobrimos que o nosso maior poder é a palavra. (P1)

Essa trabalhadora sinaliza, assim, que a legislação trouxe uma nova perspectiva pedagógica para atuar com o adolescente nesse tipo de situação legal, com base em outros pressupostos que não fosse a repressão. No entanto, reconhece que esse trabalho não é nada simples e exige novas posturas, novos valores e um trabalho de escuta e participação do adolescente no processo educativo, com vistas à emancipação. Outra entrevistada lembra a importância da lei para garantir o lugar de fala dos adolescentes:

Os adolescentes não aceitavam o que era colocado, mas respeitavam porque não tinham outra alternativa. Então, isso não é respeito, é medo. Antes da lei, isso era permitido. São situações que eu não vivi, mas eu ouvi muito. O adolescente era oprimido porque não tinha outra alternativa. Então, a lei veio pra garantir a integridade e os direitos deles, de falar, de se expressar. (P8)

Sendo assim, as perspectivas pedagógicas emancipadoras potencializadas pelo SINASE passaram a considerar a possibilidade de construção de novas experiências educativas para trabalhar com os adolescentes. Isso implica, como observa Freire (1981), a passagem da condição de objeto para a de sujeito. De uma pedagogia apassivadora (bancária) passa-se para uma pedagogia libertadora, passagem exige muito empenho de todos os envolvidos.

Outro entrevistado destaca as mudanças ocorridas na legislação e a importância de garantir um atendimento qualificado, abrindo possibilidades para a ressignificação da trajetória infracional:

A lei é essencial pra garantir o mínimo, né. Garantir o mínimo do atendimento, mostrar que aquela lógica da masmorra não se cria, que nem os piá dizem. Não faz sentido mais hoje em dia e que é possível tu fazer um negócio diferente: tu privar da liberdade, mas não privar das outras coisas, direitos humanos e tal. Até pra oferecer uma experiência diferente do que aquela que só vai revoltar mais o cara pra sair depois pra liberdade de novo né. Ainda mais um adolescente né, por isso todo o respeito à condição de pessoa em desenvolvimento que já tá no ECA. (P9)

Essa fala permite levantar várias questões, entre as quais a da experiência vivenciada pelo adolescente. O passado não justifica o presente, mas ajuda a compreender muitas manifestações e comportamentos. Como fica o adolescente que não teve experiências propositivas em sua infância, que sofreu todo tipo de abuso (sexual, psicológico, físico), bem como a privação de habitação adequada, ambiente afetivo, alimentação nutritiva, que não teve experiências construtivas na escola? As pesquisas condensadas na obra A ralé brasileira: quem é como vive, organizada por Jessé Souza (2016), ajudam a compreender mais profundamente as implicações das privações educativas cidadãs na reprodução da violência em múltiplos espaços. Como ficam os adolescentes que viveram sistematicamente experiências de violência em suas infâncias e agora, reclusos, continuam sendo violentados?

A pesquisa ajudou também a revelar que é possível alcançar resultados positivos a partir de uma pedagogia emancipatória que considera o adolescente como partícipe de processos educativos e se vê incluído em iniciativas e reconhecido em seus desejos e propósitos. Há vários relatos de entrevistados que ajudam a compreender melhor essa perspectiva. Um primeiro descreve as dificuldades dos adolescentes de ter acesso aos materiais considerados perigosos, porque podem ser usados para machucar. Uma entrevistada faz uma descrição longa, mas densa, que será aqui reproduzida:

Me diz, porque que ele (adolescente) não pode ter um lápis? Se eu vou recolher o lápis, qual o problema? Eu deixo o guri… Não é o meu trabalho educativo? Eu já fiz até artesanato. Eu fui proibida de fazer artesanato com os guris. Por quê? Pra mim, é trabalho educativo, o guri tá nervoso, tá agitado, tudo isso… Dá uma coisa pro guri fazer… Agora, fico podada. De vez em quando, vou confessar, eu fujo das regras. Eu dou lápis pros guris desenhar. Pra mim, isso é um trabalho socioeducativo. Poxa vida, tô agitado, quero escrever uma carta pra mim mãe, pro meu pai, lá sei eu pra quem… quero desenhar, quero extravasar, tô num lugar fechado… O que é o trabalho socioeducativo? É deixar ele enjaulado sem nada pra fazer, pensando um monte de bobagem? Ou será que é ceder um lápis pra ele? Eu sou limitada, mas eu faço de qualquer forma, mesmo sabendo que eu não poderia. Eu acho que o meu princípio é socioeducativo, não punitivo. Então, eu vou lá, dou lápis, deixo fazer… ajudo a escrever carta, ajudo a desenhar. As regras são importantes, mas descumprir as regras também, de uma maneira que não prejudique ninguém. Flexibilidade, não diria descumprir regras, mas ter flexibilidade, carinho, isso me satisfaz bastante e isso é o que mais me alegra no trabalho. (P12)

Um segundo depoimento revela a gratidão de um adolescente que foi bem tratado e reconhecido como sujeito no espaço do CASE. Ele destaca a importância de ter encontrado pessoas que o ajudaram a ressocializar-se, a conseguir emprego, a estabelecer novas relações sociais e afetivas. Um entrevistado narra um encontro que teve na rua com um ex-interno do CASE e recebeu o seu carinho e reconhecimento. A respeito fez o seguinte relato:

Esses dias eu recebi um elogio, encontrei um adolescente na rua e ele falou ‘nossa, tu era o melhor. Seu de lá, tu é legal, tu sempre era atencioso, conversava com a gente, conversava comigo né, e espero que tu continue assim. Agora to trabalhando, arrumei uma namorada’. Eles vão contando a vida deles… Então, pra gente, é gratificante, é um privilégio ouvir do adolescente, que passou pelos nossos cuidados aqui, que ele mudou de vida, que tá conseguindo algo, algo melhor do que quando ele tava na rua, antes da socioeducação. E também tu receber um elogio, um carinho, isso me satisfaz bastante e isso é o que mais me alegra no trabalho. (P6)

Relatos como esse salientam a importância da construção de relações que permitem ao adolescente ter referências positivas. Costa (2001) ajuda pensar na dimensão do cuidado quando se acredita no adolescente em situação de dificuldade pessoal e social. A postura do educador social exige algumas atitudes básicas como conhecer as trajetórias, as vivências, os valores, as violências sofridas, os sonhos e as utopias e o que os adolescentes têm em comum que é próprio da idade, e não apenas destacar o que os distingue e separa. Outro depoimento de um entrevistado evidencia o potencial socioeducativo:

Eu acho que hoje tu tem que ter mais uma aproximação, mais um diálogo com o adolescente. Então, tu acaba criando um vínculo e isso ajuda na socioeducação, porque tu conhece toda a história do adolescente, ele acaba se abrindo melhor pra ti, então não é só mais um adolescente, ou um número. Tu conhece a história, tu sabe o nome dele, tu sabe o que ele é, o que ele passou, o que tá acontecendo (…). Muitas vezes, tu consegue levar o adolescente pra uma conversa, tu consegue dialogar bem com ele, tu consegue mandar o recado pra ele, ele consegue entender. Então, o avanço é a aproximação. A partir daí, a gente se torna agente socioeducador, que antes era só monitor, né (…). Eles vêm com raiva, incomodados, mas aí tu conversa, tenta, tu puxa ali, puxa aqui: vem cá, vamo conversa e tal. Esse é o grande diferencial do socioeducador. Eu já fui muito criticado sobre isso, por eu ser (…). Eu sou realmente brincalhão, próximo dos adolescentes, e os antigos, eles veem isso como se eu tivesse jogando o jogo dos adolescentes, quando na verdade tô me aproximando. (P3)

Essa fala traduz as dificuldades de um trabalho socioeducativo emancipador, mas, ao mesmo tempo, ressalta as potencialidades emancipadoras que pode ter. Para tanto, o ato de despertar o querer ser no adolescente por meio de experiências educativas positivas está intimamente conectado com a constituição de espaços intersubjetivos entre trabalhador-adolescente. Tal relação considera que “nosso estar-no-mundo primordial é um estar-no-mundo-com outros” (BIESTA, 2013, p.76), ou seja, a relação entre o eu e o outro corresponde a uma relação ética de infinita responsabilidade pelo outro, aspectos identificados na pesquisa, contrapondo-se à perspectiva tradicional da socioeducação. Como pontua Dewey (1971), é também tarefa do educador a criação de condições para facilitar o processo de construção da autonomia do educando a partir de experiências significativas. Uma das atitudes mais importantes a ser formada é o desejo de continuar a buscar, de apreciar a vida e retirar de experiências passadas as lições que se escondem em todas elas.

O contexto de cerceamento da liberdade tem características próprias em relação aos demais espaços educativos e, por isso, tem de ser compreendido em suas particularidades. O objetivo de fundo tem de ser o de educar para a convivência respeitosa e cidadã. Isso não significa que as relações de autoridade desapareçam. Ao contrário, como assinala Dewey, a autoridade tem de ser construída e consensuada entre os envolvidos e não meramente delegada externamente pelo poder outorgado por uma determinada instituição.

Conflito de pedagogias: máquinas de socioeducação

Que razões justificam a reprodução de pedagogias autoritárias no âmbito de instituições que têm uma função educativa de (re) socialização? O conto Na Colônia Penal, de Franz Kafka (1996), permanece, no mínimo, perturbador nos dias de hoje, especialmente no contexto de instituições com funções de reclusão, sejam presídios ou centros de atendimentos a adolescentes em conflito com a lei. A inusitada engenhoca criada pelo escritor de Praga, nos estertores do século passado, parece alertar como uma sirene para o que a história recente não deixa esquecer em termos de vigilância e punição. Uma máquina que inscreve, no corpo de apenados, as suas culpas e punições. Uma máquina que grava o mandamento infringido como uma tatuagem singular, experimentando a sua punição na própria carne (KAFKA, 1996). Essa imagem perturbadora de Kafka que antecipou, de forma sangrenta, muitos exemplos do breve século XX, como define Hobsbawm (1995), tornou-se emblemática dos grandes acontecimentos que marcaram o mundo. Dos campos de concentração aos inúmeros crimes de guerra, das ditaduras e seus métodos de tortura, das violações genocidas de populações inteiras, seja em nome de valores humanitários ou de revoluções sociais, a máquina de Kafka ressoou por dentro, transversaliza todo o século XX e estende-se ao século atual.

Menos ruidoso que esses acontecimentos, certo paradigma punitivista e disciplinar também vem operando nas instituições, bem como fora delas, acompanhado por um arcabouço de ‘princípios morais’, códigos jurídicos e ferramentas pedagógicas, modelos de inscrição socioeducativos inscritos nos corpos e nas populações. Foucault (2009), assim como a estranha máquina de punição de Kafka, coloca em primeiro plano, no emblemático curso “Segurança, Território e População”, a questão da punição e da vigilância, mediada pela segurança. Foucault desenvolve essa problemática de forma original, definindo-a como uma importante dimensão da modernidade. O que entendemos por segurança? Em busca dessa questão primeira, o filósofo francês utiliza um conjunto de exemplos modulados em três tempos e em três mecanismos: a) legal ou jurídico; b) disciplinar; c) dispositivo de segurança. A sua deambulação histórica por dentro desses três mecanismos permite perceber uma linha sucessória, uma linha temporal que nasce com uma lei penal simples na forma de proibições do tipo “não matarás, não roubarás” (FOUCALT, 2009, p.6), acoplada a um conjunto de punições como prisão, enforcamento, desterro ou multa. Uma segunda modulação passa por um conjunto de técnicas de vigilância e controle, “impondo ao culpado toda uma série de exercícios, de trabalhos, trabalhos de transformação na forma, simplesmente, do que se chama de técnicas penitenciárias.” (op. cit., p.7). E, finalmente, uma terceira modulação, que atua numa perspectiva preventiva, organizando uma série de dados que permitem prever, controlar e manipular estatísticas sobre o crime e roubos considerados aceitáveis dentro de um determinado limite, peculiar a cada época e lugar.

Do sistema penal arcaico às técnicas ultramodernas de controle da sociedade pós-fordista, passando pelos esquadrinhamentos disciplinares, temos um esquema histórico complexo que, no entanto, não pode ser reduzido a um olhar linear. Não há a era do legal, a era do disciplinar, a era da segurança. Os mecanismos de segurança não tomam o lugar dos mecanismos disciplinares, os quais tomaram lugar dos mecanismos jurídico-legais. Temos uma série de edifícios complexos nos quais o que mudar é o dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, disciplinares e os de segurança. O que importa não é a identificação de uma linha sucessória de técnicas punitivas, mas o acoplamento de diferentes mecanismos e a correlação de forças dominantes entre eles em um determinado período histórico. Isso nos coloca a questão de como diferentes modelos pedagógicos convivem nas instituições socioeducativas, disparando chispas entre os paradigmas, de forma a exercer uma correlação de forças por dentro do que podemos chamar do conflito de pedagogias. Como essas práxis são cotejadas no cotidiano, chocando visões de mundo e de sujeitos, reverberando ações e pedagogias agônicas?

Com base nas reflexões de Foucault de que “a segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina” (2009, p. 14), não seria o SINASE uma maneira de movimentar de modo diferente, sob outra dominante, as velhas estruturas da lei e da disciplina, abrindo espaço para pedagogias emancipatórias?

Segundo Bauman (2013), vivemos na era do pós-panóptico. Uma era que não pode ser mais explicada pelas características da imobilização dos prisioneiros à mercê dos observadores. Ele cunha a expressão ‘vigilância líquida’ para evidenciar toda uma rede de mudanças nos mecanismos de controle que caracterizam a nossa época (BAUMAN, 2013). Para o pensador polonês, a arquitetura da vigilância contemporânea é muito mais do tipo dickiana, ao estilo de uma novela futurista como no conto Minority Report (DICK, 2012), do que do tipo semicircular recheado de blocos de cela do modelo panóptico. São formas de vigilância mais sutis, diluídas no cotidiano de modo eletrônico e na administração dos dados. São técnicas voltadas para o futuro que trabalham com raciocínios estatísticos e de planejamento, capazes de prever e dimensionar o potencial de inseguridade de cada meio e sujeito.

Caberia perguntar: como esses mecanismos de controle coabitam e disputam lugares nas diferentes pedagogias em curso nas instituições socioeducativas, modulando a sobreposição de tempos que vão da máquina kafkiana de punições aos dispositivos de vigilância líquida de Bauman e Dick, passando pelas técnicas disciplinares de Foucault? Nossa hipótese é que essas pedagogias não só convivem, como estão em conflito, vivendo tensamente no âmbito da aplicação da Lei do SINASE.

Em consonância com Gohn (2010), a Pedagogia Social pode ser dividida em dois grandes campos, apesar de diferentes abordagens. O primeiro, em relação ao mundo do trabalho e da geração de emprego e renda; o segundo, relacionado aos processos de socialização do indivíduo, sobretudo aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. Ambos os campos possuem razões humanitárias e fundamentos filosóficos que são justificados em perspectivas emancipatórias de educação.

O que pretendemos fundamentar neste artigo é que coexistem tensões entre diferentes pedagogias nos espaços de socioeducação. A Pedagogia Social ancora-se na tradição que afirma o potencial de educabilidade humana, operando na contracorrente de práticas pedagógicas autoritárias e reconhecendo o sujeito como um ser aberto, capaz de recriação e de reescrita da sua própria história (CALIMAN, 2008). Com isso, reconhecemos que existem processos de formação que extrapolam o campo da formação escolar, mas que, como esse, necessitam ser trabalhados na perspectiva da emancipação do sujeito em suas diferentes nuances e matizes. Sem perder de vista que toda a pedagogia traz consigo uma perspectiva de sociedade e de sujeito, é imprescindível pensar a Pedagogia Social enquanto espaço socioeducativo que faz as suas opções filosóficas e políticas em defesa do cidadão e da democracia.

Mesmo com os avanços do SINASE em termos de uma concepção pedagógica emancipadora, não deixam de coexistir outras pedagogias, assim como a memória arquitetônica de uma cidade onde habitam edificações e espaços de diferentes épocas. Porém, é necessário pensar práticas pedagógicas que enfrentem concepções punitivistas e disciplinares tradicionais e, em contrapartida, ofereçam espaços socioeducativos que reconheçam os adolescentes como sujeitos de direito. As experiências em construção devem constituir alternativas coerentes com a mudança de paradigma que representa o novo sistema de socioeducação.

Considerações finais

Nessas considerações finais, é possível retomar a discussão de Gargarela (2016) a respeito do sentido de castigar o outro. Por que persistem, no tempo, pedagogias que insistem no castigo físico como única alternativa para a tomada de consciência sobre eventos que tenham sido praticados e causado mal a outrem? Como pondera o autor, o castigo deveria ser o último recurso, mas tem sido o primeiro a ser usado. Em que justificativas ou pressupostos a pedagogia do medo e da repressão ampara-se para sustentar a ideia de que a repressão é uma alternativa educativa?

As falas dos entrevistados evidenciam as tensões vivenciadas no âmbito da instituição CASE, responsável pela ressocialização de adolescentes em conflito com a lei. De um lado, temos agentes socioeducadores que insistem na necessidade de regras claras, rigorosas e disciplinadoras, condição para mudar de hábitos e comportamentos de adolescentes que cometeram atos infracionais; de outro, agentes que buscam alternativas pedagógicas para ressocializar adolescentes, porque acreditam que esses sujeitos vivem em contextos pouco favoráveis à construção de experiências cidadãs, democráticas e afetivamente positivas.

As pesquisas e as reflexões sobre as trajetórias de vida de adolescentes em conflito com a lei são fartas. A questão que persiste, ainda, é como enfrentar esses problemas de modo propositivo. Muitos adolescentes que afrontam as normas e as legislações tiveram experiências socializadoras precárias. Oriundos de contextos sociais excludentes, com poucos estímulos construtivos, tendem a reproduzir práticas de violência a que foram submetidos. Daí a necessidade de pedagogias emancipadoras que possibilitem experiências indutoras de cidadania.

O controle e a censura não vão além do que está estabelecido. Atuam em defesa de parâmetros previamente definidos. Somente a abertura para a realização de experiências pedagógicas propositivas é possível projetar práticas emancipadoras. Os adolescentes precisam vivenciar contextos provocadores de novas aventuras pedagógicas, como aponta Charlot (2002). Essas aventuras pedagógicas implicam a abertura de novos horizontes que desafiem os adolescentes a perceberem que o mundo vai além do que o senso comum projeta.

Paulo Freire é, certamente, uma das grandes referências educativas emancipadoras. Em nenhum momento ele disse que a pedagogia do oprimido é o caminho mais simples. Ao contrário, todo processo emancipador envolve diferentes sujeitos que devem estar dispostos a dialogar e abertos às mudanças. Sem essa predisposição, não há qualquer perspectiva de avanços políticos e pedagógicos na ressocialização de adolescentes em conflitos com a Lei.

Não existem respostas e fórmulas simples para educar no contexto do CASE. No entanto, é evidente que somente uma perspectiva emancipadora, que reconhece o adolescente como sujeito, é capaz de produzir cidadania e experiências de socialização efetivas. As pedagogias centradas em ameaças e no medo não contribuem para uma formação democrática, capazes de reconhecer o sujeito em suas potencialidades de ressocialização

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Notas

1O número 24 diz respeito à quantidade de horas que o adolescente deveria ficar recluso no Atendimento Especial (AE) em razão do descumprimento de uma regra. Incluía o seu afastamento do convívio com os demais e tinha o objetivo de propiciar-lhe atenção específica, focal, nas suas necessidades momentâneas, impeditivas do atendimento coletivo, conforme documentos legais

2Optamos por manter a transcrição das falas dos entrevistados assim como ela foram expressas

3A Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) foi criada em 1976, no governo do General Ernesto Geisel, e encerrou suas atividades em 2002

Para referenciar este texto: MARCON, T.; MELLA, L. L.; SILVA, M. T. Tensões entre as pedagogias sócio-emancipadora e tradicional: um estudo do sistema socioeducativo com adolescentes privados de liberdade. EccoS - Revista Científica, São Paulo, n. 48, p. 95-114. jan./mar. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.5585/EccoS.n48.11538>.

Recebido: 05 de Fevereiro de 2019; Aceito: 11 de Março de 2019

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