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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.49 São Paulo  2019  Epub Jan 17, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n49.13341 

Dossiê 49 - Universidade, Ciência e Tecnologia e Mobilização do Conhecimento

O ESPAÇO MAKER EM UNIVERSIDADES: POSSIBILIDADES E LIMITES

THE MAKERSPACE IN UNIVERSITIES: POSSIBILITIES AND LIMITS

Ivanise Monfredini, Doutora em Educação: História e Filosofia, Professora do Programa de Pós-graduação em Educação1 
http://orcid.org/0000-0001-8492-9826

Renato Frosch, Doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação2 
http://orcid.org/0000-0003-2655-6544

1Doutora em Educação: História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos. Santos- SP - Brasil

2Doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos. Santos - SP - Brasil.


RESUMO

O texto se desenvolve como um ensaio elaborado a partir de pesquisa exploratória sobre a produção do conhecimento em laboratórios de fabricação digital instalados em universidades e compreendidos a partir dos pressupostos da cultura maker, da mobilização do conhecimento e do neoliberalismo. O objetivo é analisar criticamente os espaços maker considerando o seu aspecto político, que é tensionado pelo acirramento das contradições do neoliberalismo que restringe os espaços públicos. O estudo, de caráter qualitativo, teve como base a análise de informações públicas sobre a implantação de laboratórios de fabricação digital em universidades brasileiras; visitas a alguns desses laboratórios; entrevistas com participantes desses laboratórios; experiência pessoal de um dos autores na implantação laboratórios de fabricação digital e, finalmente, análise de referências bibliográficas sobre cultura maker, mobilização do conhecimento, laboratórios de fabricação digital e neoliberalismo. A dinâmica de cooperação entre indivíduos e o modo próprio de gestão do conhecimento nos espaços maker apontam para a hipótese de que esse modo de produção do conhecimento produz conhecimento aberto, público e democrático, processos vinculados, no caso, ao uso público de recursos tecnológicos. Na perspectiva da mobilização do conhecimento as análises apontam para possibilidades que vão além dos aspectos curriculares do ensino superior, indicando uma via de aplicação da cultura maker na produção de conhecimentos que remete à relação da universidade com a sociedade. Porém, tais possibilidades enfrentam os limites impostos pelo neoliberalismo que restringem a esfera pública, a democracia e a política, perspectivas presentes na proposta maker.

Palavras-chave Espaço Maker; Mobilização do Conhecimento; Neoliberalismo; Universidade.

ABSTRACT

The text develops as an essay elaborated from an exploratory research on the production of knowledge in digital manufacturing laboratories installed in universities and understood from the assumptions of culture maker, the mobilization of knowledge and neoliberalism. The objective is to analyze critically the makerspaces considering their political aspect, which is strained by the intensification of contradictions in neoliberalism that restricts public spaces. The qualitative study was based on the analysis of public information on the implementation of digital manufacturing laboratories in Brazilian universities, visits to some of these laboratories, interviews with participants of these laboratories, personal experience of one of the authors, in the implantation of a laboratory of manufacturing maker and, finally, analysis of bibliographical references on culture maker, knowledge mobilization, digital manufacturing laboratories and neoliberalism. The dynamics of cooperation between individuals and the own way of knowledge management in the maker spaces, points to the hypothesis that this mode of production of knowledge produces open, public and democratic knowledge, processes linked, in this case, to the public use of technological resources. From the perspective of the mobilization of knowledge the analyzes point to possibilities that go beyond the curricular aspects in higher education, indicating a way of applying the maker philosophy in the production of knowledge, which refers to the relationship between the university and society. However, such possibilities must face the limits imposed by neoliberalism, that restricts the public sphere, democracy and politics, perspectives present in the proposal maker.

Key words Makerspace; Mobilization of Knowledge; Neoliberalism; University.

Introdução

O texto a seguir se desenvolve como um ensaio elaborado a partir de pesquisa exploratória sobre a produção do conhecimento em laboratórios de fabricação digital instalados em universidades e compreendidos a partir dos pressupostos da chamada cultura maker.

A essência das ações da cultura maker é permeada pela constituição de grupos de sujeitos atuando em diferentes áreas do conhecimento ligados principalmente às ciências e a tecnologia, que se organizam local, regional ou mundialmente de modo estruturado ou não, com o objetivo de suportar e integrar ordenadamente o desenvolvimento de projetos, necessariamente com algum amparo digital, nas mais diferentes especialidades, envolvendo desde soluções para produção artesanal não-seriada voltadas ao bem-estar doméstico, até complexos protótipos para determinado atendimento ou inovação de processo, como por exemplo, o biomédico, realizado com amparo dos fundamentos da terapia ocupacional.

A expressão abreviada Fab Lab vem do inglês fabrication laboratory, que em tradução livre pode ser entendida como laboratório de fabricação, no caso, um laboratório de fabricação digital, chamados neste texto de espaços maker. Gershenfeld (2005) utiliza a nomenclatura fabricação personalizada para caracterizar e conceituar a fabricação digital, por entender que está estritamente conectada com a personalização livre de determinado produto ou processo. O pesquisador não se restringe ao fato de esses laboratórios possibilitarem a fabricação de estruturas tridimensionais, mas a lógica de integração de projetos makers como um todo, possibilitando uma visão sistêmica que inclui o desenvolvimento de processo colaborativo, a gestão do conhecimento, as contribuições para a formação de indivíduos e, sobretudo, a tensão inaugurada quando comparada aos modelos de produção tradicionais, que desde a revolução industrial são caracterizados pela produção ou pelos processos seriados em que um proprietário detém o conhecimento, o que tem levado a situações como objetivar patentes ou inovações para a obsolescência programada.

A lógica propiciada pelos espaços maker confronta esse modelo de produção de objetos iguais, de produção intencionalmente seriada. A fabricação digital pode produzir protótipos e outros desenvolvimentos; pode induzir soluções não comerciais para atendimento de algum pequeno grupo de sujeitos ou de um ator social específico. Essa possibilidade de produção única, em um espaço público como os Fab Labs em universidades, base da pesquisa, podem indicar novas possibilidades, tanto da perspectiva da criação de conhecimento quanto da fabricação.

Na obra de Rifkin (2011), a ‘terceira revolução industrial’ é colocada como a última fase da grande saga industrial e a primeira da era colaborativa emergente. A era industrial refletida na ‘segunda revolução industrial’ traz consigo a disciplina e o trabalho árduo baseado em um sistema verticalizado e na importância do capital financeiro e da propriedade privada. Já a ‘terceira revolução industrial’ propõe maior afinidade com a criatividade: ao invés de um sistema totalmente vertical, propõe-se uma estrutura horizontal e colaborativa, o capital social passa a ter mais importância que o capital financeiro e as relações são cada vez mais deslocadas de uma propriedade privada baseada em objetos para uma participação coletiva em espaços abertos de domínio público.

E é nesse contexto que as propostas implantadas nos espaços maker se colocam. Espaços colaborativos e com uso das tecnologias em rede notadamente iniciados nas faculdades de tecnologia estadunidenses, como o Center for Bits and Atoms, do Massachusetts Institute of Technology (MIT) ou a rede de Fab Labs em capitais europeias.

Esse ensaio tem como objetivo analisar criticamente os espaços maker a partir das ideias de mobilização do conhecimento (NAIDORF; PERROTA, 2015), considerando, especialmente, seu aspecto político, que é tensionado pela sua produção num cenário de acirramento das contradições neoliberais (LAVAL; DARDOT, 2016) que restringem os espaços públicos. O tema foi desenvolvido a partir de estudo exploratório de caráter qualitativo que teve como base a análise de informações públicas sobre a implementação de laboratórios de fabricação aberta em universidades brasileiras, visitas a alguns desses laboratórios, entrevistas com 12 (doze) participantes desses laboratórios - entre professores, estudantes e usuários espontâneos -, experiência pessoal de um dos autores na implantação de laboratórios maker e, finalmente, análise de referências bibliográficas sobre cultura maker, universidade e neoliberalismo em Pierre Dardot e Christian Laval (2016 e 2017).

A dinâmica de cooperação entre indivíduos e o modo próprio de gestão do conhecimento nos espaços maker apontam para a hipótese de que esse modo de produção do conhecimento e de fabricação baseado nos princípios registrados no Manifesto Maker, quando apoiado de forma estruturada, produz conhecimento aberto, público e democrático. Para tanto, os espaços devem ser regidos pelos dez pilares do Manifesto, documento criado internacionalmente pela comunidade maker com intuito de disseminar e atualizar as propostas do movimento colaborativo, com uso de tecnologia, a favor da criação e divulgação de conhecimentos em código aberto, inicialmente caracterizados pela sigla FLOSS (free/libre and opensource software). O atual Manifesto e seus elementos estruturantes foram divulgados por Hatch (2017) e traduzidos livremente com os seguintes temas: faça, compartilhe, presenteie, aprenda, equipe-se, divirta-se, participe, apoie, mude, permita-se errar.

Os temas relacionados aos códigos abertos, criados em colaboração, são extremamente potentes quando abordados sob a ótica da cultura maker, incluindo, assim, possibilidades de mobilização e democratização do conhecimento. O conceito de mobilização do conhecimento tem subsidiado a discussão sobre a produção de conhecimentos nas universidades. Surge no Canadá, como indicam Naidorf e Perrota (2015), trazido pelo Social Sciences and Humanities Research Council (SSHRC) e foi incorporado à avaliação dos impactos das pesquisas nas áreas das ciências sociais e humanas. Dessa perspectiva, para que haja a mobilização do conhecimento é necessário que ele seja útil, multidirecionado e deve mover-se entre os diversos atores sociais, os diversos setores acadêmicos, sociais, públicos e privados, de maneira dinâmica.

Dessa perspectiva, os espaços makers podem ser considerados mobilizadores do conhecimento pois visam a produção aberta, compartilhada, que não fica recluso na universidade nem envolve apenas os acadêmicos, pressupondo a participação de parcelas da população que estão fora da universidade. No entanto, o conceito de mobilização do conhecimento não pode ser compreendido apenas dessa perspectiva, de seu movimento, como processo que ocorre naturalmente, pois esse processo é político, envolve disputas de poder. Naidorf e Perrota (2015) problematizaram e ampliaram o conceito agregando a contribuição de cientistas como Varsavsky, que propõe a politização da ciência considerando a politização dos cientistas, os principais atores que produzem ciência. Varsavsky, segundo Naidorf e Perrota (2015), utiliza o conceito para propor uma consciência da ciência como bem público que seja produzida para resolver necessidades sociais, o que implica também considerar o conhecimento científico na relação com outros saberes.

A reflexão sobre a mobilização do conhecimento exige problematizar possíveis vertentes de realização dos processos de produção de conhecimento científico, considerando a relação da universidade com o extramuros universitário. Essa relação não se dá de forma natural e espontânea -a relação entre o conhecimento científico e o popular é política. Como se realiza essa relação no caso dos espaços maker das universidades? A resposta a essa questão pressupõe pensar esses espaços de uma perspectiva política, como a própria produção do conhecimento.

O conhecimento, como resultado do processo de trabalho humano, reflete um tipo de representação da realidade que pode ser tanto uma representação científica, originada do conhecimento científico, quanto outra representação reflexiva, originadas dos saberes. O conhecimento pressupõe uma autoconsciência por parte do sujeito que o possui, acerca dos seus saberes, comuns e distintivos, que, no entanto, são apropriados espontaneamente nas vivências cotidianas - de trabalho, de convivência, religiosas e culturais. Porém, o saber é um conhecimento não sistematizado, cuja criação segue a direção dada pela curiosidade intelectual, individual e coletiva. Como sugere Pinto (1979, p.29): “no nível do saber o homem organiza o conhecimento em formas preliminares, surgidas para atender as necessidades práticas imediatas, porém não alcança o plano da organização metódica.”

De modo diferente, a ciência alcança o plano do método, que implica identificar não apenas a essência do ser que se busca entender, mas as relações entre as leis que o regem, a fim de produzir intervenções precisas. O saber também visa mudar a realidade, mas não de forma sistematizada. O conhecimento científico, como é proposto por Álvaro Vieira Pinto (1979), também é político. Para o autor, o mimetismo de ideias, concepções e métodos não condizem com a natureza do trabalho científico, que, ao contrário, exige autonomia. No livro Ciência e Existência Álvaro Vieira Pinto aponta que o fazer ciência mimeticamente (consciência alienada do trabalhador das ciências) é possível, mesmo realizando o tipo mais elevado de conhecimento - o científico. Nesse caso, é uma ciência incapaz de criar conhecimentos em que o cientista apenas consome, reproduzindo de maneira ingênua as hierarquias internacionais, pouco ou nada contribuindo para o desenvolvimento dos países periféricos. Esses cientistas alienados se mantêm reféns de ideias, “E nisso precisamente consiste o aspecto principal da alienação cultural.” (PINTO,1979, p.53)

Para o autor, a consciência científica alienada, ingênua, corresponde a um nível de conhecimento intermediário entre o saber e a ciência, uma vez que não integra nem se produz dialeticamente, incluindo as contradições. Ou seja, conhecimento, saber, ciência, método, metodologia são sínteses histórico-sociais. O conhecimento científico pressupõe a criação de novas realidades, que precisam ser pensadas a partir daquela em que se situa o cientista que o produz. Aqui se evidencia o compromisso social e político da produção do conhecimento e, portanto, a disputa em torno dele, especialmente no contexto em curso, como veremos abaixo.

Assim, neste ensaio se inquire sobre as possibilidades que poderiam se realizar nos laboratórios de fabricação digital maker nas universidades considerando as contradições que permeiam a produção do conhecimento, especialmente as tendências restritivas impostas pela sociabilidade neoliberal. Para iniciar, tratamos da cultura maker, apresentando suas bases históricas no campo tecnológico. Na sequência, apresentamos alguns espaços makers em universidades brasileiras. Para encerrar, os autores colocam em discussão as possibilidades propiciadas por esse meio de produção não seriada, fundamentado na colaboração e em práticas tecnológicas abertas, considerando o contexto no qual elas ocorrem: na chamada sociedade do conhecimento, na era da razão neoliberal (LAVAL; DARDOT, 2016), contexto que, entre outros processos, imprime restrições à esfera da política.

1 A cultura maker

A cultura maker está alinhada com as ideias defendidas por Castells (2000) no que se refere ao estabelecimento de condições que propiciam a formação de agrupamentos de sujeitos e de talentos para reconhecer e definir um ou vários problemas e, sobretudo, resolvê-los tecnologicamente. Castells (2000, p. 55) defende que

[…] a maior parte das pessoas aprende usando e, assim, permanecem dentro dos limites da tecnologia. A interatividade dos sistemas de inovação tecnológica e sua dependência de certos ambientes propícios para troca de ideias, problemas e soluções são aspectos importantíssimos que podem ser estendidos da experiência de revoluções (industriais) passadas para a atual (revolução digital) […]

Para esse autor, a Revolução Tecnológica em andamento aponta para um modelo adequado ao nosso tempo, caracterizado por inovações, dentre elas a possibilidade da construção de redes sociais compartilhadas, constituídas por conexões múltiplas e não sequenciais, o que permite, por parte do usuário, a produção simultânea e colaborativa de informação e conhecimento no ciberespaço. São muitas as possibilidades de desenvolvimento de projetos nos espaços maker, sobretudo quando os participantes possuem acesso ao local e aos equipamentos de modo público. É salutar apresentar os conceitos e premissas dessa forma de desenvolvimento de projetos para o ensino e, em consequência, das dinâmicas de funcionamento desses espaços que colocam em discussão as oportunidades de exploração de produção e divulgação de conhecimentos abertos à sociedade. Os processos estão alinhados com princípios da era digital (colaboração, compartilhamento, rede, open design, co-design e outros), acrescidos de práticas alternativas de produção como: fabricação digital, processos de produção fundamentados em rede, DiY(do it yourself) aplicada ao processo de manufatura.

Um dos mais significativos e emblemáticos exemplos da comunidade maker quanto a essas possibilidades de desenvolvimento de tecnologia com colaboração em rede foi conduzido e apresentada por Linus Torvalds, o criador do sistema operacional Linux. Em sua autobiografia, o autor finlandês expõe que “o projeto não pertence a ninguém e pertence a todos. Ao abri-lo a todos, há um aperfeiçoamento rápido e contínuo. Com equipes de colaboradores trabalhando em paralelo, os resultados podem acontecer muito mais depressa e com muito mais sucesso do que se estivessem sendo conduzidos a portas fechadas.” (TORVALDS; DIAMOND, 2001, p. 261) Segundo Neves (2014), Linus não abriu o processo de criação e desenvolvimento do sistema operacional por não ter competidores; ao contrário, abriu para obter vantagem com relação a eles. A mais importante característica do sistema Linux não era técnica, mas sociológica. Até o desenvolvimento do sistema todos acreditavam que qualquer software tão complexo como um sistema operacional deveria ser desenvolvido de uma forma cuidadosamente coordenada por um grupo relativamente pequeno e fortemente unido de pessoas. Mas Linus preferiu fazer de uma maneira diferente: desde o começo trabalhou com uma grande quantidade de voluntários coordenados somente pela internet. A qualidade era mantida não por normas rígidas ou autocracia, mas por uma simples estratégia de liberar informações todas as semanas e receber retornos de centenas de usuários dentro de dias, criando uma espécie de seleção natural sobre as modificações introduzidas pelos desenvolvedores. Para o espanto de todos, funcionou muito bem.

O padrão de trabalho colaborativo e horizontalizado proposto e praticado por Linus, após suas várias tentativas e o sucesso obtido aproximadamente no final do século XX, foi um exemplo para outros projetos além da área da produção de softwares e contaminou positivamente outras áreas de criação e processos de serviços, indústria, educação, entre outros. Esses desenvolvimentos de softwares livres propulsionaram um conjunto de outros movimentos ligados ao licenciamento de produtos científicos, acadêmicos e culturais, gerando as licenças abertas como a General Public License (GPL), o Copyleft e o Creative Commons. Esse conjunto de ações concomitantes foi fortalecendo uma cultura de compartilhamento, cultura fundamental para a educação e para o impulso dos espaços maker

2 Os espaços maker nas universidades

Da perspectiva das universidades, muitas vezes a criação dos laboratórios de fabricação digital traz a possibilidade de retomar a liderança acadêmica na formação, tanto de coletivos (se o desenho de criação dos laboratórios prevê atividades de ensino e extensão) quanto de indivíduos, visando no caso a formação profissional. Indivíduos e coletivos podem interagir de forma intensa nesse labirinto de possibilidades. Mas a leitura de Pretto (2010) sugere possibilidades mais amplas contidas nessa interação e troca entre sujeitos e entre produtos culturais, por meio da recombinagem, da remixagem, da nova produção e do diálogo permanente com o instituído, que podem produzir novos produtos, novas culturas e novos conhecimentos.

Em tese, essa evolução tecnológica dos últimos anos possibilita e exige pedagogias e estratégias universitárias que desenvolvam sistemicamente a (con)vivência entre os diferentes sujeitos, interpenetrando intramuros e extra muros universitários, o local, o regional e o mundial, o passado, o presente e o futuro, as identidades, as igualdades e as diferenças, uma vez que se interpenetram os conhecimentos científicos e os saberes tradicionais. Em tal processo de convivência, o que se busca é não apenas a sua consideração como elemento inicial e ilustrador dos processos de aprendizado, mas a apropriação que transforma teoria em experiência.

Nesse movimento, o estadunidense Neil Gershenfeld, quando diretor do Center of Bits and Atoms (CBA) do MIT, motivado pela necessidade de resolver problemas de ordem tecnológica cada vez mais multidisciplinares e de modo mais rápido, criou a disciplina chamada How to make (almost) everything, que numa tradução livre significa ‘como fazer (quase) todas as coisas’. Essa forma de construção e transmissão de conhecimento foi o elemento definitivo para os primeiros passos do que atualmente se identifica como conceitos da cultura e dos espaços maker, em processo permanente de desenvolvimento. Vale destacar que o CBA é uma iniciativa interdisciplinar do MIT que explora a fronteira entre ciência da computação e ciência física. O CBA estuda genericamente como transformar dados em coisas e coisas em dados; gerencia instalações, executa programas de investigação e supervisiona estudantes em pesquisas; trabalha com patrocinadores, cria startups e faz divulgação pública de pesquisas realizadas.

O mesmo Gershenfeld (2005), em sua obra FAB: The coming revolution on your desktop - from personal computers to personal fabrication, comenta sobre esse modelo colaborativo, utilizado e inaugurado de modo sistêmico por Linus e aplicado no MIT, realçando a existência de familiaridade entre o que já vem sendo realizado no universo do software e o que pode ser feito no campo da fabricação digital e na produção de hardwares e softwares. Comparativamente aos modelos de produção tradicionais, o grande salto é que esse modelo aberto e colaborativo propicia, de maneira geral, um empowerment (que vai além do que sugere a expressão em português, empoderamento) criativo e de produção própria de conhecimento pelos indivíduos, possibilitando que sejam produtores ativos de ideias e acionando a possibilidade de chegarem mais longe do que poderiam individualmente.

O processo é simples e sua base é a seguinte: alguém disponibiliza eletronicamente uma parte de código, projeto ou determinada modelagem eletrônica; em seguida, começa a ser melhorado por alguém que pode estar do outro lado do mundo, ou mesmo na sala ao lado do laboratório; passo seguinte, será aperfeiçoado por outra pessoa, trazendo a esse código uma complexidade que dificilmente seria obtida se desenvolvido por uma só pessoa. Nesse contexto, é oportuna a discussão proposta por Neves (2014) que compara o modelo praticado pelo CBA com a ideia de processo “adequado ao nosso tempo” proposto por Manuel Castells. A questão fundamental é que ainda estamos em um entre-períodos no qual a produção, geração e acumulação de riqueza têm como base de sustentação os modelos tradicionais voltados para produção de bens tangíveis e somente artificialismos relacionados aos bens intangíveis. Neves (2014) considera que o atual modelo de produção de bens intangíveis passa a alimentar uma herança do processo de industrialização clássico, do que criar novas oportunidades no mundo virtual e no contexto da produção colaborativa em redes.

Nesse cenário de produção digital, em que as propostas maker se colocam muito mais como provocações aos modelos tradicionais de produção, chega ao Brasil o primeiro espaço maker em universidade, estruturado a partir dos Fab Labs do CBA-MIT, em 2011, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), à época com objetivos diferentes das propostas atuais de prototipação e democratização de conhecimentos. Na sequência, muitas instituições criaram laboratórios de fabricação digital. Do cenário pesquisado nas 6 instituições, uma delas implantou 4 (quatro) espaços maker em diferentes campi, entendendo essa prática como um diferencial de inovação curricular e potente meio de propulsão de projetos de extensão. Um caso vizinho ao da FAU, no mesmo campus, é o InovaLab aprovado e vinculado à Escola Politécnica da USP desde 2012. Atualmente, a maciça maioria das instituições acadêmicas optam por seguir a via independente da implantação de espaços maker, como o InovaLab.

Um dos casos mais interessantes da formatação, desenvolvimento e da própria preparação de um laboratório de fabricação digital em âmbito universitário foi o espaço maker da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Bernardo do Campo, intitulado LabLivre. A equipe comandada pelo professor Sérgio Amadeu da Silveira optou pela construção do laboratório em uma proposta fundamentalmente maker. O Laboratório de Tecnologias Livres nasce a partir da plataforma wikihouse.cc. Essa plataforma é um movimento estruturado, de origem europeia, que integra arquitetos e outros sujeitos para a criação de código aberto que reinvente habitações populares. Segundo Wikihouse (2018) as bases do movimento são: (1) colocar as soluções de design para a construção de casas de baixo custo, baixo consumo de energia e alto desempenho nas mãos de todos os cidadãos e empresas da Terra; (2) usar a digitalização para tornar mais fácil para as indústrias existentes projetar, investir, fabricar e montar casas melhores, mais sustentáveis e mais acessíveis a mais pessoas; (3) desenvolver uma nova indústria de habitação distribuída, que inclua muitos cidadãos, comunidades e pequenas empresas a desenvolverem casas e bairros para si próprios, reduzindo a nossa dependência de sistemas de habitação de massa pesada, endividados. Na prática, o grupo de pessoas está colaborando entre si e divulgando eletronicamente códigos de produção de corte de casas, assim como Linus desenvolveu as bases conceituais do Linux.

A equipe da UFABC teve a participação de professores, estudantes e comunidade maker local. O projeto baseou-se no modelo do wikihouse para adaptação do novo espaço, chamado wikilab. Todo o projeto tem código aberto e pode ser replicado ou aperfeiçoado. Dadas as dificuldades financeiras de investimento público para construção do novo espaço em universidade federal foi levantado um financiamento coletivo do tipo crowdfunding em 2017 e, a partir disso, o corte e montagem das placas de madeira foram realizados com acompanhamento da comunidade envolvida. A evolução da implantação do wikilab pode ser visualizada em www.wikilab.blog.br. O wikilab implantado é utilizado atualmente como espaço maker, laboratório acadêmico e espaço aberto para todos que queiram transformar um projeto em realidade, usando tecnologias livres. A edificação é a primeira wikihouse do Brasil, neste formato.

O caso evidenciado na UFABC aponta para possibilidades que vão muito além dos aspectos curriculares do ensino superior. Uma via bastante interessante de aplicação da cultura maker relaciona-se às novas maneiras de se entender e conduzir a produção de conhecimentos, que remete à relação da universidade com a sociedade, na perspectiva acima apontada da mobilização do conhecimento. O tripé do ensino superior - ensino, pesquisa e extensão -, no âmbito das universidades brasileiras, apresenta-se como uma das maiores possibilidades de estruturação de produção, apropriação e gestão do conhecimento científico na perspectiva maker. No entanto, o pilar da extensão, na ótica da pesquisa realizada, se apresentou como o mais frágil deles, uma vez que foram identificadas a falta de investimentos institucionais específicos para esse objetivo e para a estruturação e desenvolvimentos do que foi planejado.

3 Os espaços maker na educação superior: algumas provocações

Desde 2014, com o interesse das universidades implantarem os espaços maker, um dos autores deste texto tem acompanhado e observado de maneira investigativa a evolução desses espaços, sob os aspectos curricular e institucional e, sobretudo, político. Nessa trajetória, foram visitados aproximadamente 10 (dez) espaços maker em unidades acadêmicas de 3 (três) estados, vinculados a 6 (seis) diferentes instituições, sendo 4 (quatro) privadas e 2 (duas) públicas, além de 15 (quinze) espaços de laboratórios públicos ou terceiro setor em situação de rede. Foram realizadas 12 (doze) entrevistas semi-estruturadas com estudantes, professores e usuários espontâneos dos espaços, estes últimos indivíduos que não possuíam, no momento da entrevista, qualquer tipo de vínculo com a instituição gestora do espaço maker.

A primeira impressão é que apenas os cursos superiores que têm alguma relação com conhecimentos de desenho, abstração projetiva e modelagem digital apresentariam maior possibilidade de sucesso na introdução de metodologias e propostas maker no ensino, além da aceitação e do desenvolvimento científico dos próprios alunos, professores e sujeitos que não possuem vínculos diretos com a universidade. Nesse contexto, apontase naturalmente para os cursos de Arquitetura e Urbanismo, Engenharias, Design, entre outros, para instalação das propostas makers. No início da década de 2010 essa perspectiva foi uma verdade. O que se observa a partir da segunda metade desta década é uma penetração além dos cursos citados.

Vale destacar que a criação, mais notadamente no começo do século XXI, e a comercialização mais difundida dos equipamentos de hardware que compõem um laboratório maker (cortadoras, fresadoras e impressoras) aproximaram as universidades desses laboratórios, pensados como apoio somente às suas atividades curriculares. As práticas docentes foram, de alguma forma, se ajustando. Primeiro a um modelo híbrido, configurado pelas tarefas manuais executadas anteriormente e por outras, eletrônicas, seguindo pouco a pouco para um modelo praticamente todo digital: da concepção da ideia, passando pela modelagem, produção e prototipação digital até o compartilhamento de informações. Mais recentemente, temse percebido a tendência à utilização dos espaços maker por todas as áreas do conhecimento, extrapolando-se o uso apenas daqueles cursos citados acima, que têm relações mais próximas a modelagem tecnológica. Os equipamentos principais que são especificados em um espaço maker são: cortadoras a laser, router CNC, plotter de vinil, impressoras 3d, scanners de mão, kits de eletrônica arduíno, dentre outros equipamentos.

Os espaços abordados neste trabalho e ambientes similares estão em franca expansão, principalmente nos modelos acadêmicos que buscam novas formas de se vincularem e suprirem soluções para demandas sociais. Permite-se enxergar, assim, a existência de novas alternativas e novos conceitos da mobilização do conhecimento que podem, de modo disruptivo, criar vínculos com os sistemas existentes, proporcionando possível mescla com os limites mercantilizadores também existentes. Porém, as observações realizadas e que têm como base a visita aos espaços maker universitários permitem afirmar que no Brasil prevalece a criação desses espaços com objetivos de ensino, em detrimento das possibilidades reais de articulação da universidade com a sociedade.

Evidencia-se a necessidade de permanente formação e acompanhamento das aprendizagens dos estudantes e demais participantes da comunidade que tiveram oportunidade de se relacionar com os aspectos aqui propostos, no intuito de realizar ajustes e adequações nas propostas implantadas e em construção. Desta forma, percebe-se que a implantação superficial de espaços maker pelas universidades públicas e privadas, ou seja, a implantação mais operativa, aquela que possui viés predominantemente curricular, abrange apenas níveis de conhecimento que não atendem às expectativas citadas anteriormente, que uma vez implantadas de modo mais amplo contribuiriam para a participação e formação de não universitários, ampliando o compromisso político da produção do conhecimento.

Como resultado prático desta pesquisa realizada por um dos autores, foi construído um esquema metodológico para apoio à formação e implantação de espaços maker universitários, considerando marcos curriculares que atinjam, além dos próprios aspectos curriculares, também o âmbito do compromisso social. A análise aqui apresentada instiga a reflexão acerca da mobilização de conhecimentos em base democrática, pela via tecnológica aberta nos espaços maker. A aplicação do referido método em uma unidade acadêmica privada aponta para possíveis alterações de planos pedagógicos de curso no longo prazo, além de se abrirem a práticas de extensão baseadas nos aspectos relacionados ao desenvolvimento curricular regular. A implantação e manutenção de práticas de extensão associadas ao espaço maker exigiu o enfrentamento à cultura institucional por meio de capacitação docente e participação e engajamento discentes. No primeiro semestre de 2018 foi observado, nesta análise quantitativa, um aumento de 35% de projetos de extensão, comparado ao semestre anterior, na referida unidade acadêmica com participação cidadã e vínculos com demandas sociais da comunidade local.

Nesse contexto, Monfredini (2016) nos ajuda a aprofundar reflexão ao questionar se é possível, então, sobretudo na lógica das instituições privadas de ensino superior, estabelecer relações institucionais democráticas (estudantes, docentes, funcionários) e com a população externa a partir dos espaços maker? A pesquisa permite afirmar que, sobretudo sob o neoliberalismo, a mera construção de laboratórios de fabricação digital, mesmo que voltados à produção de conhecimento aberto, não garantem a realização mais ampla dos aspectos políticos - democrático e participativo - da produção do conhecimento, conforme aqui discutida. Sua realização exige o aporte de conceitos específicos, como dos espaços maker, que nos auxiliem a problematizar e identificar possíveis vertentes de realização de processos de produção científica e formação de sujeitos, considerando a relação da universidade com o extra muros universitário. Mas exige, principalmente, um projeto forte por parte da instituição que se oriente por objetivos para além do diferencial mercadológico, tendência que infelizmente não prevalece diante da força do mercado.

A abertura e disseminação da cultura maker, que é o plano de fundo desta investigação, possibilita a busca e a provocação práticas que apontem para uma sociedade mais democrática, tolerante e justa dentro das instituições universitárias. A compreensão dos limites concretos a sua realização exige uma análise mais aprofundada da proposta maker, a partir do conceito de mobilização do conhecimento, considerando a dinâmica relação entre poder e conhecimento e desconstruindo qualquer consideração estática acerca de sua distribuição. Mobilização do conhecimento propõe, ao contrário, o dinamismo gerado na relação universidade e não universitários, para sua produção, apropriação e uso, e uma perspectiva política que envolve a disputa de conhecimentos.

Dessa perspectiva, e considerando a tecnologia desses laboratórios, que é a base da produção dos conhecimentos, Silveira (2005) destaca que softwares são linguagens essenciais de uma sociedade em rede cuja gramática não conhecemos; mesmo assim, podemos utilizá-los. Seus desenvolvedores, aqueles que escrevem seus códigos-fonte, têm um poder social de relevância crescente. Definem nos códigos-fonte as possibilidades de comunicação, o ‘como podemos dizer’ e, em alguns casos, ‘o que podemos dizer’. O autor sugere uma discussão bastante importante para reflexão no âmbito deste trabalho quando destaca que há mais de uma década atrás que o movimento colaborativo de desenvolvimento e uso de software esteve presente em todo o mundo e contaminou outras áreas da produção simbólica e cultural. O Creative Commons é um exemplo dessa irradiação contrária ao atual modelo hegemônico de propriedade de bens intangíveis, inspirado pelo movimento do software livre, que avançou para a produção de outros bens culturais, tais como a música, a literatura e as artes.

Nesse cenário, cabe enfatizar que, seja nas grandes empresas de tecnologia ou nas empresas de manufatura, existe uma fissura importante em relação ao modelo colaborativo. Silveira (2005) aponta que algumas destas grandes empresas de softwares captaram a tendência de crescimento do compartilhamento do conhecimento e avaliaram sua expansão como passível de se tornar predominante. Passaram, então, a buscar oportunidades econômicas nos serviços e não somente na exploração da propriedade. Ao mesmo tempo, mantendo-se no modelo hegemônico, passaram a se envolver no apoio ao desenvolvimento de soluções abertas na comunidade de software livre. As observações de Silveira (2005) indicam os limites à realização das potencialidades democráticas, coletivas e públicas se contrapondo à privatização desse conhecimento público disperso na sociedade, vale dizer, desses saberes. Essa contradição explicita os limites da chamada sociedade do conhecimento.

Nesse sentido, vale citar a crítica de Laval e Dardot (2017) a essas proposições idealistas, incluindo a chamada sociedade do conhecimento e as perspectivas do conhecimento aberto, pois elas permitem identificar a contradição que permeia as práticas de produção de conhecimento, tanto nos laboratórios de fabricação digital makers quanto nas universidades. A partir das proposições de Negri e Hardt, que enxergaram na ampliação e difusão dos processos relatados acima o nascimento de uma nova sociedade fundamentada no trabalho intelectual e que, em tese, se desenvolveria de maneira livre e difusa, Laval e Dardot (2017, p.212) avaliam que ela é “diretamente produtora de comum, que é explorada pelo capital como se fosse ‘uma dádiva da natureza.’” Como indica a crítica desses autores, nessas perspectivas está contida a ideia de liberação do trabalhador da subsunção real ao capital, uma vez que o trabalho intelectual permitiria esse ‘escape’ do controle que o capital industrial exercia sobre o corpo do trabalhador. Essas proposições foram vítimas da ilusão de que a “autonomia” do trabalhador intelectual, conquistada pela sua liberação ‘física’ do controle direto, permitiria a reconquista do autocontrole total sobre o processo de trabalho e produção. No entanto, como eles mesmo apontam (LAVAL; DARDOT, 2017, p.214), o trabalho intelectual não é livre, ao contrário “é cada vez mais constrangido pela pressão do mercado e pelas técnicas de poder, que medem seu rendimento com formas diversas de avaliação.”

Laval e Dardot (2017) apontam dois erros nessas proposições. O primeiro está em considerar que a intelectualidade difusa situada fora das empresas (os saberes) não está dentro da esfera de ação e influência do capitalismo, desconsiderando relações cada vez mais evidentes entre, por exemplo, educação e mercado, além dos efeitos da indústria cultural. O segundo erro consiste na ilusão de que o trabalho, cada vez mais determinado pelas funções financeiras e especulativas e cuja organização é deixada ao assalariado, levaria a uma maior autonomia intelectual e subjetiva. A esse respeito, a crítica é clara: “[…] A principal crítica que lhe pode ser feita é a de que subestima o enquadramento e o comando do trabalho pelas novas formas de governamentalidade neoliberal nas empresas e confunde a autonomia operária com as novas formas de poder por meio das quais o capital molda o processo do trabalho cognitivo e as subjetividades.” (LAVAL; DARDOT, 2017, p. 213) Acrescentam que as “prescrições da subjetividade” em curso precisam ser reconhecidas pelo que são, “isto é, as novas formas de subsunção do trabalho ao capital que passam pela orientação flexível e indireta das condutas.” (Id. ib) E é justamente pela “necessidade de extrair valor dos recursos intelectuais e psíquicos que o capital desenvolve técnicas mais ‘psicológicas’ de controle”, que as empresas “tentam codificar o saber vernáculo, explorar os saberes difusos e, sobretudo, reformular o conhecimento e a linguagem, organizando e dirigindo ao mesmo tempo a ‘cooperação-competição’ dos assalariados para obter deles produtividade máxima.” (op.cit., p. 214)

Não é possível, então, que os laboratórios de fabricação digital makers se desenvolvessem sem realizarem a contradição posta pelo tempo uma vez que, a criação aberta e coletiva e o uso democrático do conhecimento ficam limitados pela sua apropriação privada. É nesse sentido que se pode entender o processo, apontado acima por Silveira (2005), de aproximação das grandes empresas à forma de produção de conhecimento ‘aberta’. Essa ‘nova’ modalidade do ser, pelo conhecimento, também é determinada contraditoriamente pelo capital, e é dessa perspectiva que se pode entender os limites e as possibilidades dos FabLabs: da lógica do mercado.

A nova razão do mundo, o neoliberalismo, cria outro problema que também impacta diretamente a realização do conhecimento da perspectiva política democrática proposta nos fundamentos makers. Trata-se da (im) possibilidade da política que impõe condições limitadoras às relações mais democráticas. Como apontam Laval e Dardot (2016) sobre a relação entre neoliberalismo e política, o primeiro tem como consequência a criação de uma nova era em termos políticos: a era pós-democrática. Um tempo que prescinde da democracia, tendo em vista a forma como está estruturado esse sistema, em torno de forças e poderes - “oligarquias burocráticas e políticas, multinacionais, atores financeiros e grandes organismos econômicos internacionais” (DARDOT; LAVAL. 2016, p.8) - que se apoiam em escala mundial, impedindo espaços de manobras políticas.

O impedimento à democracia resulta também do processo de subjetivação neoliberal, do sofrimento psíquico ao qual estão submetidos os indivíduos, do isolamento social e da polarização entre os poucos bem sucedidos e os ‘perdedores’, que desistem. Essa polarização mina a solidariedade e a cidadania. Como se referem Dardot e Laval (2016), é inevitável pensar num confronto ao ‘sistema’ neoliberal - implícito no conceito maker, que pressupõe a produção de conhecimentos e objetos não privados. Essas condições de formação individual neoliberal também trazem dificuldades para a institucionalização maker nos laboratórios de fabricação digital criados nas universidades.

O princípio do governo neoliberal é governar o menos possível, colocando os próprios governados para governarem-se no sentido desejado. Os dispositivos promovem cada indivíduo como governante de si mesmo. Nos termos de Dardot e Laval (2016, p.17), o neoliberalismo é “uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados.” O mercado é o lugar de formação do sujeito neoliberal, o que implica auto-regulação conforme as regras econômicas da concorrência. Os dispositivos implementados pelos Estados para formação do indivíduo neoliberal envolveu desde as descentralizações e a consequente valorização da ‘participação’, como a valorização dos conhecimentos práticos, que capacitam para a ação; o aprendizado pelas descobertas; o gerencialismo, o empreendedorismo, a avaliação e a auto avaliação. O homem-empresa está no constante movimento de melhorar sua performance, seus resultados. É impelido à autonomia, ao dinamismo, à flexibilidade e à mudança constantes. Dessa perspectiva, a proposta maker pode ir ao encontro e não se contrapor às formas tradicionais de produção de conhecimento e coisas, servindo aos propósitos de captura de saberes e conhecimentos pelo capital privado.

O Estado, nada mínimo, exerce papel fundamental na proteção ao mercado, por meio da garantia de um ‘Estado de direito’ cujo modelo são as sociedades de direito privado, como sugerem Dardot e Laval (2016). Em tal situação, o governo não representa mais a vontade coletiva (como em Locke); não se submete mais à vontade do povo, já que o modelo de sua ação se encontra na esfera privada lucrativa, as empresas. Pode, portanto, prescindir da democracia. Nas palavras de Dardot e Laval (2016, p.239), “a ação pública deve visar, acima de tudo, à instauração de condições favoráveis à ação dos indivíduos, orientação que tende a dissolver o Estado no conjunto dos produtores de bens públicos’.”

Todos esses processos esgarçam o espaço da política, como tradicionalmente é compreendida. Sob a nova razão do mundo, o neoliberalismo, as possibilidades de a cultura maker contribuir para a instituição de espaços democráticos dentro das universidades precisa ser problematizada, especialmente porque também essas instituições são permeadas pelo neoliberalismo.

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Recebido: 27 de Março de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2019

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