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Eccos Revista Científica

versión impresa ISSN 1517-1949versión On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.49 São Paulo  2019  Epub 17-Ene-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n49.8657 

Artigos

EDUCAÇÃO DOS CORPOS E ESPORTIVIZAÇÃO DA VIDA: RACIONALIDADES ETECNOLOGIAS DA GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL PRESENTES NO SITE EU ATLETA

EDUCATION OF BODIES AND SPORTIVIZATION OF LIFE: RATIONALITIES AND TECHNOLOGIES OF NEOLIBERAL GOVERNMENTALITY PRESENT ON THE ME ATHLETE WEBSITE

Maria Simone Vione Schwengber, Doutora em Educação, Professora1 
http://orcid.org/0000-0002-3583-1408

Rodrigo Saballa de Carvalho, Pós-Doutor em Educação, Professor2 
http://orcid.org/0000-0002-8899-0998

1Doutora em Educação: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Nas Ciências na Universidade Federal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Educação Física na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Departamento de Educação e Humanidades. Ijuí - RS - Brasil

2Pós-Doutor em Educação: Universidade Federal de Pelotas. Professor do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Departamento de Estudos Especializados. Porto Alegre - RS- Brasil


RESUMO

O artigo é decorrente de uma pesquisa que, a partir das contribuições dos estudos foucaultianos sobre governamentalidade, problematiza o processo de invenção do atleta amador de corrida. Toma-se como materialidade investigativa o site Eu Atleta, enquanto artefato difusor de uma pedagogia cultural, pautada em uma racionalidade neoliberal implicada no governamento dos indivíduos. Metodologicamente, a discussão centra-se na análise da racionalidade que fundamenta a existência do site e das tecnologias operadas por ele. Por meio da análise, é possível destacar a incidência marcante de três aspectos: 1) o estabelecimento de uma relação intrínseca entre as tecnologias em funcionamento no site e o governamento dos corpos; 2) a promoção de incentivos para que os usuários do site se tornem ativos em seu próprio gerenciamento; 3) a difusão de discursos de experts da área da saúde para recomendar orientações sobre vida saudável e ratificar a sobreposição entre saúde e prática de exercícios físicos.

Palavras-chave: Governamentalidade; Site; Corpos; Esportivização; Pedagogia cultural.

ABSTRACT

The article is the result of a research that, based on the contributions of the Foucauldian studies on governmentality, discusses the process of invention of the amateur racer. The Me Athlete website is taken as an investigative materiality while a diffusing artifact of a cultural pedagogy, based on a neoliberal rationality implied in the governance of individuals. Methodologically, the discussion focuses on the analysis of the rationality that underlies the existence of the website and the technologies operated by it. Through the analysis, it is possible to highlight the striking incidence of three aspects: 1) the establishment of an intrinsic relationship between the technologies in operation in the website and the governance of bodies; 2) the promotion of incentives for users to become active in their own management; 3) the dissemination of discourses by health experts recommending guidelines on healthy living and ratifying the overlap between health and physical exercise.

Keywords: Governmentality; Website; Bodies; Sportivization; Cultural pedagogy.

1 Introdução

Em tempos de uma nova “razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016), o neoliberalismo1, enquanto “regime de governo tendencialmente em voga, vai procurar reintegrar a população” (FARHI-NETO, 2007, p. 127), por meio da difusão de uma racionalidade econômica pautada em relações de transação e concorrência, por todas as searas da sociedade. Com isso, emerge a necessidade de que sejam produzidos indivíduos capazes de agir sobre seus próprios corpos, mentes e condutas (DEAN, 1999), já que a racionalidade em vigor “tende a ‘fazer o mundo’ por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16) Isso equivale a afirmar que a “arte econômica tornase critério de razoabilidade da conduta” (FARHI-NETO, 2007, p. 127), pois, através do neoliberalismo, opera-se uma “redescrição global do social sob a forma do econômico.” (GORDON, 1991, p. 43) A partir do momento em que a racionalidade econômica passa a ser inscrita nos corpos, produzindo, guiando e afetando a conduta dos indivíduos (FOUCAULT, 2009), entra em jogo uma determinada forma de existência das pessoas. (DARDOT; LAVAL, 2016)

Nessa lógica, com base em um “ethos corporativo-empresarial” (GADELHA, 2017), começam a ser “inteligidas e dirigidas economicamente condutas que tipicamente se colocavam fora do domínio econômico.” (FARHI-NETO, 2007, p. 127) O investimento no capital humano passa a ser o target da política neoliberal. Investir no corpo, na saúde, na carreira, nas relações conjugais, nas relações de trabalho, na educação dos filhos, no aprendizado ao longo da existência etc. tornam-se imperativos para o alcance de uma vida bem-sucedida. Metaforicamente, nesse ínterim, o indivíduo transmuta-se em empresa, assumindo “sua lógica, seu modus operandi, seus valores, princípios, normas, padrões de conduta e procedimentos comuns.” (GADELHA, 2017, p. 128) Isso significa que o indivíduo, enquanto empresa, precisará aperfeiçoar-se interminavelmente, porque, em uma sociedade na qual a competição e a concorrência se configuram como elementos-chave do jogo econômico, sempre haverá o risco de que tal indivíduo se torne obsoleto.

Portanto, considera-se que o sucesso do indivíduo enquanto empreendedor e, sobretudo, empresário de si mesmo (GADELHA, 2009), deverá ser compartilhado, no intuito de que seu exemplo pessoal de disciplina e empenho garanta o efeito de verdade desejado e sirva como inspiração para todos os investidores que ainda não obtiveram o sucesso almejado. É perceptível o apelo social cada vez mais intenso para que as pessoas “exponham suas vidas, se confessem e busquem uma ‘verdade’ sobre elas próprias.” (CAMOZZATO, 2007, p. 14) Assim, modulam seus modos de se comportar e de se relacionar com os outros e consigo mesmas, com base em mecanismos de controle e regulação difusos, como aqueles presentes, por exemplo, nas redes sociais. (HINE, 2012)

Exemplo disso é a proliferação atual de blogs, sites, páginas de Facebook e Instagram com narrativas escritas e imagéticas de indivíduos sedentários acima do peso que transformaram seus corpos - e, de modo correlato, suas vidas - pelo intenso investimento em práticas esportivas, como corridas e caminhadas. Disso decorre o crescente “imperativo da esportivização da vida humana” (GONZÁLEZ, 2008, p. 172), por meio da sobreposição entre esporte e saúde, como se ambos fossem sinônimos (BAGRICHEVSKY; ESTEVÃO; PALMA, 2007). Ou seja, o fenômeno da prática esportiva, segundo uma perspectiva pautada na disputa e no rendimento físico, inscreve as pessoas em uma lógica econômica na qual elas devem desenvolver o “prudencialismo” (O’MALLEY, 1996), a partir da capacidade de saber fazer escolhas saudáveis e sensatas, tendo em vista a potencialização da vida produtiva de seus corpos em uma sociedade concorrencial.

Por todos esses aspectos indicados, cabe destacar que o presente artigo é decorrente de uma pesquisa que, com base nas contribuições dos estudos sobre governamentalidade (GORDON, 1991; DEAN, 1999; SÁNCHEZ; MARTÍNEZ; RICO, 2006; FARHI-NETO, 2007; FOUCAULT, 2008a, 2008b, 2010; GADELHA, 2009, 2017; MILLER; ROSE, 2012; CASTRO-GÓMEZ, 2015; DARDOT; LAVAL, 2016; LAZZARATO, 2017), tem como objetivo investigar o processo de invenção do atleta amador de corrida, por meio da problematização do investimento econômico realizado em seu corpo enquanto capital a ser gerenciado. Para tanto, metodologicamente, toma-se como materialidade investigativa o site Eu Atleta (GLOBO.COM, 2018), enquanto artefato difusor de uma pedagogia cultural2 (STEINBERG, 1997) pautada em uma racionalidade implicada no governamento3 (GORDON, 1991) dos indivíduos, por meio da educação de seus corpos e da esportivização de suas vidas. Com efeito, por intermédio das tecnologias postas em circulação pelo site, ocorre a tentativa de modulação das condutas dos usuários, por uma “ação a distância” (MILLER; ROSE, 2012) que objetiva promover a autorregulação dos indivíduos mediante a liberdade de escolha.

Considerando que “pensamento e intervenção são duas dimensões indissociáveis, a partir das quais se pode caracterizar e analisar governamentalidades” (MILLER; ROSE, 2012, p. 28), a discussão do artigo centra-se na análise da racionalidade econômica de cunho neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016) que fundamenta a existência do site e das tecnologias (CASTRO-GÓMEZ, 2015) operadas enquanto guia de conduta das escolhas dos indivíduos em um “espaço aberto” (id.ib.). A racionalidade analisada diz respeito à emergência da esportivização (GONZÁLEZ, 2008) na cena contemporânea, na qualidade de promotora, difusora e reguladora de uma vida saudável e produtiva no contexto concorrencial do mercado.

Por outro lado, as tecnologias operadas pelo site referem-se às estratégias que objetivam os indivíduos cadastrados por um mapeamento dos dados físicos, preferências pessoais e hábitos cotidianos dos usuários. Concomitantemente aos processos de objetivação, operam também tecnologias de subjetivação, por meio da promoção de uma intensa autoavaliação e uma contínua prestação de contas dos rendimentos obtidos pelos usuários do site. Em suma, o artigo aborda uma problemática do presente, cujo enfoque se centra na discussão da redescrição dos modos de compreender, lidar e experienciar o corpo, no interior “de uma cultura [esportiva] que o inventa, o significa e atribui valores sobre ele, tornando-o alvo” (CAMOZZATO, 2007, p. 63) de investimento econômico.

O artigo está organizado em cinco seções. Após essa seção introdutória, a segunda, intitulada A emergência Homo sportivus no contexto da governamentalidade neoliberal, discute a racionalidade que pauta a educação dos corpos e a esportivização da vida dos usuários do site. O site Eu Atleta e suas tecnologias de governamento é o título da terceira seção, cujo objetivo é uma análise do site e das tecnologias de objetivação postas em funcionamento por ele. Prosseguindo a discussão, na quarta seção, A invenção (EU) do atleta amador: o accountability por meio das histórias de sucesso, discutem-se as tecnologias de subjetivação implicadas na produção do esportista definido pelo programa Eu Atleta. Por fim, na última seção, são apresentadas as considerações finais.

2 A emergência do Homo sportivus no contexto da governamentalidade neoliberal

A governamentalidade neoliberal, entendida como “conjunto de práticas através das quais é possível construir, definir, organizar e instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação aos outros” (FOUCAULT, 2010, p. 149), é constituída por “racionalidades e tecnologias” (MILLER; ROSE, 2012) que generalizam o objeto econômico. Sob esse ponto de vista, é importante esclarecer que a governamentalidade diz respeito ao governamento das condutas e opera desde uma multiplicidade de racionalidades humanamente programadas que visam estruturar e instrumentalizar o eventual campo de possibilidades de ação dos indivíduos (FOUCAULT, 2008a, 2008b).

Especificamente em relação às racionalidades, é possível conceituálas como programas de governo, formas de razão, conjuntos de prescrições calculadas, modos de representar e conhecer os fenômenos, tendo em vista tornar os problemas sociais pensáveis e calculáveis em determinados tempos e espaços (MILLER; ROSE, 2012). Isso indica que “as metas e os objetivos de governo sempre obedecem a uma racionalidade que permite que uns dirijam a conduta dos outros” (CASTRO-GÓMEZ, 2015, p. 12), pois o que se pretende é “uma economia efetiva dos meios de governo.” (SÁNCHEZ; MARTÍNEZ; RICO, 2006, p. 9)

Com base nas considerações apresentadas, é possível dizer que o neoliberalismo é uma racionalidade cuja característica principal é a difusão da concorrência como princípio de conduta e da empresa como referência de subjetivação a ser seguida por todos os participantes do jogo do mercado (DEAN, 1999). Operando no nível das consciências dos indivíduos, a preocupação de tal racionalidade é sobre como definir toda conduta e comportamento humano enquanto objeto de análise econômica (FOUCAULT, 2008a). Isso significa que, para “regular e modular as condutas e subjetividades dos indivíduos, a governamentalidade neoliberal precisa atuar indiretamente, através da manipulação de algumas variáveis ambientais” (GADELHA, 2017, p. 235) que objetivam a produção de sujeitos prudentes (O’MALLEY, 1996). Dentro dessa lógica, o corpo “enquanto marcador social e econômico torna-se central para atestar as posições de sujeito que os indivíduos podem assumir” (CAMOZZATO, 2007, p. 124-125) na qualidade de seres humanos responsáveis e previsíveis. Para tanto, intensifica-se a racionalização econômica da gestão dos corpos, por meio de um produtivo processo de “esportivização da vida” (GONZÁLEZ, 2008). Isso denota que “a forma física e a aparência corporal passam a imperar tanto no âmbito privado quanto público, pois os esportes começam a servir de modelo para a maximização das performances” (SOARES, 2008, p. 80) das pessoas.

A partir do exposto, é possível depreender que o corpo é constituído discursivamente através de inúmeras batalhas travadas para caracterizá-lo, nomeá-lo e defini-lo nas arenas culturais que o constituem (SANT’ANNA, 2002). Sendo assim, pode-se afirmar que é através das disputas pela imposição de significados no plano discursivo que se instituem os corpos a serem valorizados ou desvalorizados, no contexto de uma sociedade na qual a “capitalização de si mesmo” (CASTRO-GÓMEZ, 2015) tem se tornado condição de existência.

Particularmente em relação às discussões apresentadas, um exemplo a ser citado é a centralidade adquirida pela veiculação de imagens de corpos atléticos na mídia contemporânea (CAMOZZATO, 2007). Sem dúvida, é preciso considerar que, no contexto da governamentalidade neoliberal, o corpo é enunciado “como lugar por excelência da exposição da subjetividade de cada um, como o principal alvo dos cuidados que outrora eram destinados à alma.” (SANT’ANNA, 2002, p. 99) Imagens, veiculadas pela mídia, de corpos fortes, esportivos e definidos, têm desempenhado um papel central nos modos como as pessoas enxergam e avaliam seus próprios corpos. Desse modo, a construção discursiva imagética esportiva tornou-se um “reservatório de significações performáticas”, afirmando-se como um sistema de referências convincentes (SOARES, 2008) que desperta a atenção dos espectadores e promove a prática de exercícios físicos. Por conseguinte, o corpo atlético é consumido como imagem desejada e gerenciado como capital (GADELHA, 2009) que precisa de investimento, com dietas balanceadas, exercícios físicos, cirurgias estéticas etc.

Nesse cenário, emerge a figura do Homo sportivus (BENTO, 1998) enquanto expressão das transformações históricas e pedagógicas que se estabeleceram nas relações entre natureza, cultura e técnica, configurando o ser humano a partir dos ideais de perfectibilidade e capacidade de aperfeiçoamento corporal ao longo da vida. Isso porque o apelo estético é justamente a condição da popularidade do Homo sportivus (BENTO, 1998). O esporte, como prática de enaltecimento corporal, como alvo de uma experiência midiática, informa, produz e nutre o imaginário coletivo, potencializando referências de ser atleta e de ter sucesso por meio do investimento no patrimônio corporal. Em outras palavras, o Homo sportivus (BENTO, 1998) torna-se o nexo entre a gestão do corpo como investimento em capital humano e a racionalidade neoliberal (FOUCAULT, 2008a). Parte-se do pressuposto de que todos os indivíduos, independentemente de sua condição econômica, têm “a capacidade de incrementar seu capital humano [neste caso, leia-se corpo enquanto capital], mediante a criação, a inovação e o empreendimento” (CASTRO-GÓMEZ, 2015, p. 18) de si mesmo.

É nessa perspectiva que a importância atribuída à vitalidade dos corpos, nestes novos tempos, se contrapõe ao ofuscamento a que estava submetida no passado. O corpo passa a ser entendido metaforicamente como uma “vitrine do eu” (SANT’ANNA, 2002; CAMOZZATO, 2007), cuja referência fundamental é uma imagem atlética que demanda investimento, esforço e superação para ser produzida. Isto é, vivencia-se uma cultura na qual o corpo, “por ser o que é mais visibilizado e exposto, passa a ser entendido como sendo o próprio indivíduo.” (CAMOZZATO, 2007, p. 75) Assim, a cada dia, desenvolvem-se novas estratégias de governamento das condutas das pessoas, com o intuito de educar em relação a modos considerados adequados de cuidar e potencializar produtivamente os corpos, sejam eles jovens, adultos ou idosos.

Particularmente, pode-se afirmar que é dessa maneira que a “esportivização da vida” (GONZÁLEZ, 2008), como parte da governamentalidade neoliberal (FOUCAULT, 2008a, 2008b), é vivenciada como um modo de produção e manutenção de um corpo produtivo. Tal argumento possibilita pensar em como o site Eu Atleta opera de maneira econômica no governamento dos corpos de seus usuários.

3 O site Eu Atleta e suas tecnologias de governamento

O site Eu Atleta, criado em 2012, tem um amplo alcance nacional e é endereçado a iniciantes em corrida e caminhada, assim como a praticantes de todas as idades. O menu do site é composto por nove seções, assim intituladas: 1) primeira página; 2) loja Eu Atleta; 3) treinos (planilhas); 4) nutrição; 5) saúde; 6) equipamentos; 7) corridas e eventos; 8) minha história; 9) vídeos. A partir das seções, o site fornece informações sobre treinamento e planejamento de percursos de corrida e cálculo do IMC do usuário com base nos dados fornecidos no cadastro, bem como divulga orientações de especialistas (nutricionistas, cardiologistas, fisiologistas, etc.) sobre vida esportiva e os cuidados com a alimentação necessários para um praticante de exercícios físicos. Além disso, divulga equipamentos para a prática de esportes, calendários de eventos esportivos, guia de treinos, vídeos e histórias de vida de pessoas que perderam peso com a prática regular de exercícios físicos, mapeamento de locais livres para a prática de esportes e monitoramento individualizado dos treinos, mediante o uso de um aplicativo de celular.

Para realizar o cadastro no site, o interessado precisa criar uma senha de acesso e preencher uma ficha com seus dados, pois somente dessa maneira poderá usufruir do conteúdo personalizado da plataforma. Inseridos os primeiros dados solicitados, ainda é necessário preencher outra ficha com informações a respeito da condição corporal, como altura, peso e idade do interessado. Após o preenchimento, o usuário recebe uma primeira avaliação antropométrica, na qual é indicado o seu Índice de Massa Corporal. A avaliação é seguida de um alerta, caso o indivíduo esteja acima do peso ideal, ou de um estímulo, caso o peso esteja conforme o código de desempenho estipulado. Desse momento em diante, o site possibilita que o indivíduo crie uma página pessoal e acompanhe seu desempenho corporal/esportivo individual diariamente, ao mesmo tempo que permite o compartilhamento das atividades físicas realizadas e dos rendimentos alcançados.

Os dados corporais físicos do indivíduo cadastrado no site passam a fazer parte de avaliações individuais, pois o usuário inicia a prática de caminhadas ou corridas. Desse modo, as práticas de exercício físico, com base em códigos que mensuram o desempenho individual na comparação com o coletivo, são compartilhadas com toda a comunidade de participantes do programa, tornando o ambiente digital um “confessionário público” (HINE, 2012). Além disso, a mediação pedagógica da comunidade constituída pelos participantes promove um intenso registro das atividades físicas realizadas (quilometragem de corrida/caminhada, tempo de duração, etc.) e, sobretudo, a “mediação pedagógica da experiência de si” (LARROSA, 1994, p. 38-39) do usuário, a partir da qual este passa a se observar, decifrar, interpretar, julgar e narrar (LARROSA, 1994) na plataforma. Isso significa que, na comunidade de usuários do site, existe um ciclo muito bem definido, em que o indivíduo expõe as suas atividades, acompanha e, então, é incentivado a aumentar cada vez mais os seus rendimentos. Ou seja, é necessário investir nos exercícios físicos prescritos para que se possa atingir os resultados corporais almejados.

Partindo desse panorama, o site Eu Atleta foi definido como materialidade investigativa pelo fato de ser um artefato cultural difusor de uma “pedagogia cultural” (STEINBERG, 1997), implicada na educação dos corpos e na “esportivização da vida” (GONZÁLEZ, 2008). É um artefato do tempo presente, inscrito no âmbito da difusão de uma racionalidade neoliberal, nomeada por Dardot e Laval (2016) como uma nova ‘razão do mundo’. Isso porque o intuito da proposta do site é fazer com que os usuários “cultivem autonomamente o desejo de ‘viver melhor’ e ‘progredir’, mediante a aposta de liberdade econômica - produção e consumo.” (CASTRO-GÓMEZ, 2015, p. 12) Para tanto, a saúde é disseminada como um desejo virtual a ser consumido.

Assim, reafirmando a noção simbólica de saúde conquistada (BAGRICHEVSKY; ESTEVÃO; PALMA, 2007), a proposição difundida pelo site é que, com investimento no corpo, por meio de atividades esportivas, se pode alcançar uma vida saudável. Em outras palavras, aposta-se na esportivização da vida, no intuito de que os usuários sejam prudentes, evitem riscos de saúde e “capitalizem a si mesmos” (CASTRO-GÓMEZ, 2015), por meio da concorrência com os demais usuários da comunidade. Como se pode perceber, o site coloca em funcionamento “tecnologias de governamento” (MILLER; ROSE, 2012; CASTRO-GÓMEZ, 2015) de dimensão estratégica que não determinam as condutas dos usuários da plataforma, mas as conduzem na direção almejada. Trata-se de um governamento sobre a “molecularidade do corpo” (CASTRO-GÓMEZ, 2015), cuja meta principal é a promoção da autorregulação dos indivíduos. No âmbito do site, a “liberdade de escolha” (O’MALLEY, 1996) é fundamental, pois “parece que é impossível conceber um sujeito que não seja ativo, calculista, à espreita das melhores oportunidades.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 223)

Tendo em vista que o site não opera um adestramento dos corpos, e sim uma “gestão das mentes” (GORDON, 1991; DARDOT; LAVAL, 2016), a partir de sua análise foi possível destacar a incidência marcante de três aspectos: 1) o estabelecimento de uma relação intrínseca entre as tecnologias (MILLER; ROSE, 2012; CASTRO-GÓMEZ, 2015) postas em funcionamento e o governamento dos corpos; 2) a intensa promoção de incentivos para que os usuários do site se tornem “sujeitos ativos de seu próprio gerenciamento” (DEAN, 1999); e 3) a difusão de discursos de experts da área da saúde para recomendar orientações sobre vida saudável e ratificar a “sobreposição entre saúde e prática de exercícios físicos.” (BRAGRICHVSKY; ESTEVÃO; PALMA, 2007; ORTEGA, 2008)

Em relação ao primeiro aspecto, é possível destacar que o site, ao solicitar informações sobre os usuários, como peso, altura, alimentação e hábitos de vida, os tem como objetivo, ratificando a máxima de que é preciso “conhecer para melhor governar” (FOUCAULT, 2008a, 2008b). Isso indica que, com os dados obtidos nas respostas correspondentes aos questionamentos apresentados no sistema, são produzidos conhecimentos a respeito do grupo.

Paralelamente à produção de conhecimentos sobre os usuários, também se pode observar os modos como esses, enquanto indivíduos, são interpelados a assumir a condução de suas próprias ações e a de seus parceiros. Note-se que os próprios usuários controlam a quilometragem de suas caminhadas/corridas, a alimentação e os seus progressos, conforme dados e orientações fornecidos pelo site. Posicionados como “empreendedores de si mesmos” (GADELHA, 2009, 2017), os usuários não são obrigados a seguir as orientações constantes no site, mas acabam seduzidos pelos discursos dos especialistas e pelos relatos de sucesso dos participantes antigos. Ratificando o argumento, Dean (1999, p. 65) afirma que “o exercício de autoridade pressupõe a existência de um livre sujeito de desejos, necessidades, direitos, interesses e escolha.” Isso porque a sujeição é condição para a liberdade (FOUCAULT, 2010). Para que o indivíduo possa agir livremente, precisa ser disciplinado, conformado e guiado para o exercício prudente e responsável de sua liberdade em um sistema de dominação (DEAN, 1999). Por isso, “governar não significa obrigar que os outros se comportem de certo modo, mas sim conseguir que a conduta desejada seja vista pelos governados como proveniente de sua liberdade.” (CASTRO-GÓMEZ, 2015, p. 13)

Nesse sentido, efetiva-se uma “liberdade regulada” (MILLER; ROSE, 2012), na qual é promovida uma competição do usuário consigo mesmo, já que ele é incitado a enfrentar a si mesmo e a sempre superar novos desafios. Perder cada vez mais peso, aumentar a quilometragem de caminhada/corrida e alimentar-se melhor são metas perseguidas por todos os participantes do programa.

Adicionando-se aos aspectos anteriores, o terceiro elemento em destaque na análise do site é a difusão da expertise de profissionais da saúde. O especialista - médico, nutricionista, personal trainer -, baseado em conhecimentos chancelados pela ciência, atua como mentor dos usuários, apresentando evidências sobre a importância de que sejam seguidas as orientações propostas para que se obtenha o máximo de resultados no menor tempo possível. Desse modo, as informações constantes no site reforçam o imaginário social, associando “diretamente a saúde como sinônimo de práticas esportivas, ou de uma estética esportiva” (ORTEGA, 2008, p. 41). Em resumo, o site coloca a vida corporal/esportiva em discurso, permitindo que o usuário se reconheça e afirme: “Eu sou atleta”.

4 A invenção (EU) do atleta amador: o accountability por meio das histórias de sucesso

Após quebrar cadeira por excesso de peso, carioca emagrece 25kg com dieta e corrida; Recuperado de acidente na piscina, estudante começa a correr e perde 46kg; Corrida, spinning, musculação: carioca afasta maus hábitos e emagrece 36kg; Sem frituras e cerveja, carioca elimina 25kg e dá exemplo ao filho na corrida; Advogado se exercita com ajuda de aplicativo e seca 27kg em seis meses; Estudante troca vida sedentária pela corrida, ganha fôlego e elimina 37kg; Gordinha na adolescência, bancária afasta depressão ao emagrecer 31kg; (GLOBO.COM, 2018, manchetes da seção Histórias de Vida)

A partir da leitura das manchetes, pode-se afirmar que iniciativa, competitividade, flexibilidade e responsabilização do indivíduo (SÁNCHEZ; MARTÍNEZ; RICO, 2016) se configuram como elementos constituintes da “fórmula do sucesso” em uma sociedade neoliberal. Em um mundo orientado pela economia geral do mercado, o usuário do site Eu Atleta não é um objeto, mas um indivíduo ativo, o qual, por meio de uma série de tecnologias (MILLER; ROSE, 2012), é interpelado “a tomar a si como um capital, a entreter-se consigo, com suas ‘performances’ e com as dos Outros, em uma relação na qual ele se narra e se reconhece com os Outros.” (GADELHA, 2009, p. 149)

As tecnologias em operação atuam como “táticas soft de sedução frente a repressão, de criação de necessidades no lugar de inculcação de prescrições e de publicidade frente a autoridade” (SÁNCHEZ; MARTÍNEZ; RICO, 2016, p. 9), possibilitando que o usuário se governe baseado em uma “racionalização técnica de sua relação consigo mesmo.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 350) É “através da persuasão inerente às suas verdades, das ansiedades estimuladas por suas normas e pelas imagens de vida” (ROSE, 1998, p. 32-43) ofertadas que as tecnologias promovem a invenção do EU Atleta. Dito de outro modo, tais tecnologias vinculam “diretamente a maneira como um homem ‘é governado’ à maneira como ele próprio se governa.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 332-333)

Conforme vem sendo discutido, as tecnologias em funcionamento na plataforma, em princípio, objetivam e tornam inteiramente calculáveis os novos participantes por meio do mapeamento de seus respectivos hábitos de vida. A partir dessa inscrição dos usuários no contexto de uma gramática própria, ratificando o caráter discursivo da governamentalidade neoliberal (FOUCAULT, 2010), inicia-se um intenso processo de subjetivação implicado na invenção de novos, persistentes e exitosos atletas amadores.

Para tanto, as tecnologias colocam em ação recursos de “exercitação, individualização e condução” (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 38), derivadas de práticas de autoajuda muito presentes em livros, programas de auditório, reality shows, etc. Conforme argumenta Dean (1999, p. 12), os recursos citados procuram “lidar com escolhas, desejos, aspirações, necessidades, vontades e estilos dos indivíduos”, tendo em vista seu governamento. Ora, é sempre bom lembrar que, a partir desse processo, é definida uma “nova ética, isto é, certa disposição interior, certo ethos que deve ser encarnado com um trabalho de vigilância sobre si mesmo e que os procedimentos de avaliação se encarregam de verificar.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 332) Constitui-se, desse modo, uma comunidade de risco cujos participantes (enquanto indivíduos considerados sedentários e/ou com sobrepeso) são estimulados a se tornarem prudentes (O’MALLEY, 1996). A título de exemplo, é importante destacar a seção Histórias de Vida como uma tecnologia presente no site em análise. A seção em questão, na qualidade de “vitrine de narrativas exemplares”, é marcada por uma prestação de contas (um accountability) (GADELHA, 2017) dos antigos usuários sobre os êxitos obtidos em relação à saúde e à vida social com a prática de corrida e/ou caminhada. Esse tipo de relação que o usuário do site estabelece consigo mesmo, a partir da narração de suas conquistas na “vitrine” da plataforma, institui um domínio de si, como poderá ser acompanhado nos excertos das narrativas apresentados a seguir.

Antes de entrar na comunidade Eu Atleta, a minha vida era triste. Pesava 128 kg. Comecei a engordar no fim da minha adolescência e início da fase adulta. Com isso, sofri preconceito e como consequência não gostava de sair para me divertir. Eu tinha vergonha e com a comunidade Eu Atleta fui me inserindo e buscando força para me superar. Eu encontrei apoio na comunidade do site Eu Atleta. Com a ajuda do Eu Atleta e de meus novos amigos dessa comunidade, comecei a caminhar, a correr na esteira, e, depois, no parque. O site Eu Atleta me incentivou a fazer a primeira prova de corrida na rua. Agradeço as orientações do site, por encontrar apoio, e compartilho minha superação. (Excerto da História de Vida A4 - GLOBO.COM, 2018)

O sentimento de alcançar o objetivo, de ser maratonista e magro é fantástico. O meu conselho é: faça uma ótima alimentação e pratique caminhadas e mais caminhadas, seis dias na semana. A corrida de rua nascerá naturalmente. A alegria, a determinação e a força interna são fundamentais. (Excerto da História de Vida B - GLOBO.COM, 2018)

Aprendi que a base de tudo é a força de vontade, não adianta você tentar algo se não tiver um foco. Quando chegamos ao nosso objetivo, nós vemos que valeu muito a pena. Sim, é difícil resistir a algumas coisas quando estamos em uma dieta, mas temos que ter um objetivo. Pode ter certeza de que quando você começar a ver os resultados, você vai sentir que valeu a pena ter feito todo esse esforço! (Excerto da História de Vida C - GLOBO.COM, 2018)

Para aqueles que têm em mente uma melhor qualidade de vida, você também consegue! Coloque objetivos em sua vida e corra atrás. Assim que os atingir, volte a se desafiar. Eu acredito que todos têm a capacidade de ser e fazer o que quiser, basta acreditar, ter persistência e fé. A dificuldade existe, sim, e nos resta erguer a cabeça e a enfrentar - finalizou. (Excerto da História de Vida D - GLOBO.COM, 2018)

Se eu fosse me guiar pelo que falavam ao meu respeito, não chegaria a lugar algum, já teria desistido faz tempo. Na adolescência recebi muitas críticas, as pessoas riam pelo fato de eu não ter muito jeito e acabei abandonando a corrida de rua. E agora não foi diferente. Me chamam de maluca porque acordo cedo para correr, perco meus domingos indo para as corridas. Só que hoje amadureci, não me deixo abater pelas críticas. Essa é a minha vida que escolhi. Minha vida, minhas escolhas. Não me conformo de ter deixando chegar ao ponto que cheguei, mas também não me envergonho. O importante é não ficar parado, é buscar qualidade de vida - afirmou. (Excerto da História de Vida E - GLOBO.COM, 2018)

As narrativas compartilhadas evidenciam o slogan neoliberal de que “a chave [do sucesso] é o indivíduo” (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 281), promovendo a criação de laços com os novos usuários, com a constituição de uma comunidade de pessoas dispostas a enfrentar o desafio de se tornarem empreendedoras de si mesmas. (GADELHA, 2009) Como se pode perceber nos excertos, a consciência é progressivamente fabricada, a partir da construção e reconstrução de operações narrativas (LARROSA, 1994). É assim que os usuários mais experientes, através de suas histórias de sucesso, “constroem um sentido de quem eles são para si mesmos e para os outros.” (LARROSA, 1994, p. 70) Com a exteriorização das conquistas realizadas no compartilhamento de narrativas escritas, ratifica-se a máxima neoliberal de que o indivíduo é exclusivamente responsável pelo seu sucesso. É, então, nesse contexto que se opera a produção da consciência de si do participante do programa, enquanto “especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330-331) e empreendedor da própria saúde.

Com efeito, o exercício narrativo possibilita conhecer a verdade sobre cada participante que confessa - e é levado a confessar - suas faltas, desejos, conquistas, comportamentos, aptidões e desempenhos, a partir de um contínuo accountability (GADELHA, 2017) existencial. A estratégia de compartilhamento de narrativas de sucesso obtidas por pessoas comuns (que podem ser eu, você ou qualquer outro cidadão que enfrenta problemas com o sobrepeso) garante o efeito de verdade esperado pelo programa divulgado no site. Nesse sentido, o propósito das tecnologias em funcionamento é que cada usuário “reconheça a si mesmo como sujeito, como individualidade capaz de transformar-se, de desaprender condutas adquiridas para, finalmente, conseguir algo que seja reconhecido e aceito como sucesso.” (MARÍN-DÍAZ, 2012, p. 38)

Nesse caso, como se pode perceber, é preciso incitar os usuários do site para que “capitalizem a si mesmos” (CASTRO-GÓMEZ, 2010), por meio do desenvolvimento e da potencialização de suas “fontes de ‘recursos ativos imateriais’, como autoestima, responsabilidade, autonomia e competência.” (CASTRO-GÓMEZ, 2010, p. 247) Isso porque “a racionalidade neoliberal impele o indivíduo a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330-331) Portanto, em uma sociedade pautada em relações de transações e concorrência, já não basta apenas se tornar um atleta amador, mas é necessário ser o melhor e, por conseguinte, um exemplo a ser narrado.

5 Considerações finais

Em uma época predominantemente mobilizada pelo uso de redes sociais que apresentam uma configuração complexa (HINE, 2012), este artigo contribui para colocar sob suspeição as racionalidades e tecnologias (MILLER; ROSE, 2012) que operam na educação dos corpos dos usuários do site Eu Atleta. Considerando tais aspectos, a leitura do artigo ratifica o argumento de Miller e Rose (2012) de que vivemos em uma sociedade marcada pela vontade de governar, na qual “a figura do ‘cidadão’ investido de uma responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem empreendedor.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 381)

Isso indica que o neoliberalismo se faz presente em quase todos os aspectos da vida social (FARHI-NETO, 2007), pois é econômico, cultural e político (FOUCAULT, 2008a, 2008b). Diante dessa lógica, governa-se “através de escolhas reguladas de agentes autônomos, por meio da intensificação e da ação sobre a fidelidade dos mesmos.” (MILLER; ROSE, 2012, p. 257) Como se pode notar, as tecnologias em funcionamento no site não atuam por coerção, “mas sim através das normas e atrações exercidas pelas imagens de vida e do eu que ofertam.” (SANCHEZ; MARTÍNEZ; RICO, 2006, p. 9)

E é nesse contexto que cabe reafirmar que o site Eu Atleta é um artefato difusor de uma pedagogia cultural (STEINBERG, 1997), pautada em uma racionalidade implicada na educação dos corpos e na esportivização da vida (GONZÁLEZ, 2008) de seus usuários mediante uma governamentalidade neoliberal (FOUCAULT, 2010). Assentado em um imperativo de eficácia (DARDOT; LAVAL, 2016), o site, com suas tecnologias, opera na promoção contínua da liberdade de seus usuários, tendo em vista que estes constituam “comunidades micromorais” (MILLER; ROSE, 2012) e que, desse modo, se tornem “atletas” amadores prudentes, responsáveis e autorregulados. Em outras palavras, trata-se de um “governamento sobre a molecularidade dos corpos” (CASTRO-GÓMEZ, 2015, p. 11) dos usuários da plataforma, já que eles são livres para realizar suas escolhas, dentro do campo de possibilidades ofertadas pelo programa.

Com isso, as práticas de corridas e caminhadas passam ser vistas como escolhas de “indivíduos prudentes” (O’MALLEY, 1996), que se preocupam com os riscos gerados pela manutenção de uma vida sedentária. Assim, há que se compreender que a questão, aqui, não passa por uma crítica aos benefícios ou não das atividades físicas na vida das pessoas, mas pelo modo como a noção de indivíduo prudente (O’MALLEY, 1996) e ativamente responsável é produzida a partir de um “nexo moral de identificações e fidelidades” (MILLER; ROSE, 2012, p. 225) que operam na invenção de um Eu Atleta.

Sem dúvida, é preciso considerar que as tecnologias de governamento “são existenciais, pois através delas, os indivíduos e coletivos se subjetivam, adquirem uma experiência concreta no mundo” (CASTRO-GÓMEZ, 2015, p. 13), já que elas têm como meta a autorregulação dos indivíduos. Em outras palavras, o objetivo é conseguir que os governados coincidam os seus próprios desejos, decisões, esperanças, necessidades e estilos de vida com os objetivos governamentais fixados de antemão (CASTROGÓMEZ, 2015, p. 13). Dessa forma, as tecnologias de governamento do site se pautam em verdades vinculadas a uma racionalidade neoliberal que ratifica a necessidade de que o indivíduo se governe com base em uma “racionalização técnica de sua relação consigo mesmo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 350), já que, sob tal perspectiva, a defesa é que a “chave [do sucesso] é o indivíduo.” (MARIN-DÍAZ, 2012)

Cabe inferir que talvez o desafio mais urgente é que compreendamos, enquanto seres humanos que vivem o tempo presente, que “para operar o mundo (por contraste a ser ‘operado’ por ele) é preciso entender como o mundo opera.” (BAUMAN, 2001, p. 242) Ou seja, é necessário que nos livremos “de um sistema de normas instaurado por meio de todo um trabalho de interiorização” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 396), seja pelo site analisado ou por outros artefatos difusores de “pedagogias culturais” (STEINBERG, 1997) que nos ensinam modos de ser, viver e conviver consigo e com os outros.

Para tanto, deve-se ousadamente traçar outros fins para a forma como nos conduzimos e somos conduzidos (MARIN-DÍAZ, 2012), produzindo modos de vida que nos possibilitem compreender que é a partir daquilo “que temos em comum” (DARDOT; LAVAL, 2016), e não da concorrência, que podemos constituir modos de vida menos fascistas. Afinal, não precisamos estar fadados a um “accountability existencial” (GADELHA, 2017) pelo resto de nossas vidas.

Notas

1 Dardot e Laval (2016, p. 17) definem o neoliberalismo como sendo “um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um modo de governo dos homens segundo o princípio universal de concorrência.”

2 “O termo pedagogia cultural refere-se à ideia de que a educação ocorre numa variedade de locais sociais, incluindo a escola, mas não se limitando a ela. Locais pedagógicos são aqueles onde o poder se organiza e se exercita, tais como bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames, sites, livros, esportes etc.” (STEINBERG, 1997, p. 101-102)

3 É importante esclarecer que, no decorrer do artigo, será utilizado o termo governamento, ao invés de governo, nos casos em que estiver sendo abordada a ação de governar. (VEIGA-NETO, 2002)

4 Em relação aos aspectos éticos da pesquisa, é importante esclarecer, a partir de Hine (2012), que as postagens de sites, blogs e redes sociais são consideradas materiais de domínio público.

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Recebido: 09 de Março de 2018; Aceito: 15 de Maio de 2019

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