1 Crianças, educação de infância e direito a brincar: uma relação controversa
No atual panorama socioeducativo, pautado por políticas de orientação neoliberal que sobrevalorizam modos de transmissão pedagógica formais que enfatizam a literacia, a numeracia a ciência e os currículos de coleção, uma das controvérsias que atinge o campo da Educação de Infância (EI) acontece quando ali eclodem tensões e contradições entre o reconhecimento distintivo do brincar e do aprender (SUTTON-SMITH, 1997; BROOKER; BLAISE; EDWARDS, 2014), particularmente quando se procura o lugar sociopedagógico e político que é ocupado pelo brincar das crianças no dia-a-dia das instituições socioeducativas a elas destinadas.
Com efeito, sendo o brincar, na sua imensa variedade e complexidade, umas das maiores realizações da espécie humana, a par da linguagem, da cultura e da tecnologia, e, na verdade, uma condição crucial à sua possibilidade de existência (WHITEBREAD, 2012), assiste-se, no decurso da modernidade, nas sociedades ocidentais, a processos da sua classificação dependentes de condições económicas e estruturas sociais, crenças religiosas e pesquisas científicas, geradores de consequências sociais várias. Uma delas foi a segregação das crianças do mundo produtivo dos adultos, segundo um reconhecimento da sua especificidade, a que se associa a idealização con cetual do tempo da infância como sendo, sobretudo na pequena infância, dedicado à experimentação de si e do mundo pelo brincar (ARIÈS, 1973; BROUGÈRE, 1998). Ou seja, mediante atividades lúdicas autodeterminadas e livremente escolhidas, autotélicas, autogratificantes e prazerosas, fluidas e incertas, altamente imaginativas, mas triviais e economicamente improdutivas. Ao longo do século XX, o brincar não apenas se tornou predicado intrínseco e específico de uma natureza das crianças, fundador e fundamento da instauração da sua alteridade face aos adultos e aos seus mundos, como veio a ganhar estatuto de direito próprio e universal (art.º 31, CDC, 19891), acabando por se tornar a definição das definições da infância e uma das descrições mais dominantes das suas ações sociais (FERREIRA, 2004). Ao mesmo tempo, face à intensificação da institucionalização da pequena infância em creches e jardins de infância (JI), o brincar das crianças constitui-se como uma das ações mais diretamente relacionada com os direitos de provisão da sua educação (art.º 28, CDC, 1989) e os da sua participação (art.º 12, CDC, 1989), complexificando a rede de relações entre o brincar e o aprender na pedagogia, currículo e avaliação na EI.
Ora, a história da EI e suas tradições pedagógicas e curriculares, não obstante diferenças e tensões, mostra como desde a sua génese é sublinhada a importância atribuída à atividade lúdica como meio de educar as crianças (BERGEN, 2014; WOOD, 2014), sendo-lhe associadas as
qualidades do brincar livre que refletem os modos pelos quais (…) conduzem a sua aprendizagem e desenvolvimento através de atividades auto-iniciadas: fazer escolhas e tomar decisões; expressar e perseguir interesses; exercer agência e propriedade [agency and ownership]; gerir-se a si, aos outros e aos materiais (…). O brincar livre é realizado no seu próprio interesse e os objetivos que são formulados pelos jogadores emergem, ou são planeados, dentro do contexto do brincar. (WOOD, 2014, p. 116)
São precisamente estas qualidades do brincar das crianças, muito especialmente o seu potencial para subverter e desafiar a ordem geracional e a ordem institucional - regras, comportamentos, convenções sociais e rotinas pedagógicas -, que, segundo Wood (2014), o tornam difícil de controlar e regular nos contextos educativos. Daí que, “a interface brincar-pedagogia permaneça problemática quando as versões políticas do brincar favorecem os planos e as estruturas adultas.” (WOOD, 2014, p. 116) Por outras palavras, o ponto da discórdia não recai na negação do brincar nem no reconhecimento das suas virtudes e potência na infância e EI, mas antes nos seus sentidos e nos usos que dele são feitos ao nível das políticas, da formação de profissionais e das práticas pedagógicas em curso e em transformação.
Enfrentar a controvérsia requer então confrontar as mudanças e desafios que nos últimos 20 anos se têm vindo a colocar a determinados posicionamentos pedagógicos acerca do “brincar, suscetíveis de apoiar e mobilizar as crianças para ‘formas’ de aprendizagem.” (EDWARDS, BROOKER, BLAISE, 2014) Assim sendo, os ‘como’ brincar e aprender são entendidos e promovidos no campo da EI, no aqui e agora, são inseparáveis dos ‘como’ são localizados global e localmente na política educativa e nas micropolíticas do quotidiano em que se jogam o ensinar e o aprender, o currículo e a pedagogia, a formação e as práticas, e as infâncias. O brincar das crianças nos contextos da EI intersecta fatores socioculturais e forças políticas, mais do que apenas algo pertencendo ao domínio individual ou do(s) grupo(s) de pares. Posto isto, pode dizer-se que mudanças de política educativa protagonizadas pelo Estado, e em que se inscreve a prescrição ou a formulação de orientações curriculares para as crianças pequenas - em Portugal, as OCEPE (1997, 2016) -, têm revelado a prevalência de aprendizagens formais e a aquisição de competências escolares, por vezes mediante o que é designado por atividades lúdico-pedagógicas, em que o brincar das crianças, convertido em objeto de investimento para ensinar conteúdos académicos, e mediador de métodos de ensino didáticos, se torna crescentemente residual para aumentar o tempo para ‘aprender’. (RYAN; NORTHEY-BERG, 2014)
A estandardização e generalização destes processos de ‘escolificação’ (GARNIER, 2009, 2016), mais ou menos explícitos, têm vindo a ser perspetivadas como medidas essenciais para assegurarem percursos escolares bem-sucedidos, pautados na endurance e num espírito empreendedor para virem a enfrentar os desafios de um mundo de trabalho flexível e incerto (FERREIRA; TOMÁS, 2018). Imprimem, assim, no presente, uma orientação futurística que reinscreve a teoria do capital humano na EI, “ao mesmo tempo que isso também serve como tecnologia de antecipação, com as suas análises de custos e benefícios que pro curam trazer alguns aspetos [futuro] que virá e evitar outros.” (ROSE; ABI-RACHED, 2013 apud MILLEI, 2015, p. 50 - grifos no original) Em tais políticas, a conceção de que o brincar é culturalmente mediado, socialmente situado e usado pelas crianças como texto e contexto para afirmarem identidades políticas é arrasado em prol da sua instrumentalização e formas de governamentalidade da EI. Trata-se, de acordo com Foucault (2014, p. 111-112), do
conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, ainda que complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por forma maior de saber a economia política, por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Segundo, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e desde muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros: soberania, disciplina, e que, por uma parte, levou ao desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], ao desenvolvimento de toda uma série de saberes.
Simultaneamente, erguem-se vozes contrárias que questionam tais intentos do brincar no currículo da EI, fazendo a desconstrução crítica daquele paradigma e postando-se pela defesa e revalorização de práticas pedagógicas em que as crianças e seus mundos de vida assumem centralidade, em que o brincar, como direito e expressão cultural infantil, é reconhecido como contexto de aprendizagens informais holísticas, essenciais à sua formação pessoal, social, cultural, ética e de práticas de participação essenciais à construção e vivências da cidadania. (GARNIER, 2009, 2016; FERREIRA; TOMÁS, 2018)
Neste panorama controverso das relações EI, currículo, pedagogia e brincar, os/as educadores/as e futuros/as educadores/as são ou virão a ser, por dever de ofício, atores diretamente implicados na definição dos propósitos do brincar a dinamizar e desenvolver aquando da implementação das orientações curriculares, bem como dos critérios e opções necessários à organização de condições e recursos para tal. Porém, pouco se sabe acerca destes/as profissionais quando o assunto é a sua formação pedagógica relativa ao brincar e ao brincar das crianças. Que lugar e que funções tem o brincar das crianças na creche e no jardim de infância (JI)? Em que medida e até que ponto as crianças dispõem de espaços-tempos para brincarem e são estimuladas a fazê-lo nestes contextos? Que papéis assumem os/as adultos/as e como se posicionam face ao brincar e ao brincar das crianças no decurso das suas práticas pedagógicas?, são algumas das questões a perseguir quando se pretende apurar as conceções de brincar, de criança, de educação e de educador/a prevalecentes. Tais preocupações encontram fundamento no acervo de conhecimentos produzidos pelos Estudos da Infância acerca dos processos socioeducativos na EI e seus contextos institucionais, o que tem chamado a atenção para o carácter socialmente construído da infância e advertido que os modos como o mundo adulto e os/as adultos/as conceptualizam a infância e as crianças interfere quer nos modos como as perspetiva e projeta, quer como se relaciona com elas, acarretando consequências para as suas experiências de vida. (FERREIRA; ROCHA, 2016)
Neste sentido, percecionar qual a importância atribuída ao brincar nas políticas educativas para a EI, particularmente nas OCEPE (19972, 20163), torna-se um ponto de partida e um contexto de referência para, seguidamente, prestar atenção e perscrutar alguns dos seus reflexos no culminar do percurso académico de formação de profissionais da EI, aquando da Prática de Ensino Supervisionada (PES), a realização de um estágio em contexto profissional que implica a observação e a intervenção das/os futuros/as profissionais, e a elaboração de um relatório a defender em provas públicas. (Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de maio)
Entrecruzando os contributos dos Estudos da Infância com os das Ciências da Educação analisam-se as políticas educativas para a EI (19972017) e os relatórios da PES4 dos mestrados profissionalizantes para a docência com crianças até 6 anos, em instituições de ensino públicas e privadas (2014-2017), visando, no primeiro caso, i) identificar a presença do brincar nas OCEPE (1997, 2016), e suas conceções; no segundo caso, i) mapear os relatórios dedicados ao brincar em contextos de creche e JI; ii) analisar e problematizar as conceções do brincar que são privilegiadas e, por consequência, as de criança, de educação e de educador/a, nas ló gicas e sentidos atribuídos pelas estudantes por relação com a sua prática pedagógica. Advogando a EI como promotora da cidadania das crianças, reivindica-se o brincar como direito de participação delas e como base empírica imprescindível para fundamentar práticas pedagógicas contrahegemónicas mais equitativas e justas.
2 Fontes e processo metodológico
Entendendo a produção legislativa para a EI (os diplomas que enquadram e regulamentam a formação de educadores/as de infância entre 1986 e 2014) e a produção académica (os relatórios da PES) como fontes primárias derivadas de um trabalho de racionalização, tanto político quanto científico, materializado numa documentação da realidade infantil e educativa relevante, e com implicações concretas nas suas oportunidades e experiências da/na infância, é nosso objetivo conhecer qual a importância atribuída ao brincar - em que medida, até que ponto e com que sentidos tem sido reconhecido o direito a brincar das crianças pequenas em Portugal. Com isso, busca-se apreender o estatuto das crianças nas instituições socioeducativas que lhe são destinadas - creche e JI.
Assim, a pesquisa de fontes primárias nacionais direcionou-se primeiramente para as políticas educativas relativas à EI, dando particular atenção às OCEPE, na medida em que sendo um documento de charneira entre as orientações emanadas do Estado e a sua concretização nos contextos educativos, constitui uma dupla referência tanto na formação de educadoras/es de infância quanto na construção de uma profissionalidade que se experimenta nas práticas pedagógicas enquanto estagiárias e se consolidará no exercício como profissionais. A análise destes documentos legais, facultando o enquadramento da EI nas suas principais finalidades e eixos estruturantes de ação, procura interrogar e compreender o lugar e a importância atribuídos ao brincar e às suas conceções.
Em segundo lugar, direcionou-se para a pesquisa de relatórios da PES, esse material empírico relevante (AFONSO, 2005), arena de conceções e narrativas, que necessita ser desocultado e analisado, e que, entre 2014-2017, elegeram o brincar como objeto de estudo e de intervenção pedagógica, visando: i) identificar, sistematizar e dar a conhecer o conjunto de relatórios, que se encontram institucionalmente dispersos; ii) apurar a sua quantidade e variação temporal, segundo o subsistema, universidade e politécnico, de acordo com a natureza jurídica, instituições públicas e privadas e o contexto de investigação; iii) identificar as metodologias e contextos da EI privilegiados; iv) analisar a pluralidade de problemáticas em torno do brincar e as conceções de educação, de educador/a e de criança que subentendem; v) identificar os contributos de relatórios que focaram as perspetivas das crianças.
No caso dos relatórios PES, a opção metodológica pela pesquisa documental online tomou como primeira fonte da informação o Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP), neles buscando os mestrados que profissionalizam para a docência com crianças até 12 anos5 realizados entre 2014 e 2017. A sua deteção usou como palavras de busca, no título, ‘brincar’, ‘brincadeiras’, ‘brinquedos’, ‘culturas infantis’, ‘jogo’, ‘lúdico’, ‘recreio’, ‘tempo livre’, ‘participação’, ‘préescolar’, ‘educação de infância’ e ocorreu entre 3 de dezembro de 2018 e 29 de março de 2019.
Todas as informações descritivas e substantivas6 dos 917 relatórios identificados foram organizadas numa base de dados e, depois, sujeitas a uma abordagem analítica mista (CRESWELL, 2014). A análise estatística dos descritores recolhidos - para apreender a sua relevância relativa e desenvolvimento ao longo do período em estudo - usou o software IBMSPSS Statistics versão 24 (Chicago, IL, EUA) e o nível de significância foi estabelecido p<0,05. Foram realizadas estatísticas descritivas, incluindo frequências e percentagens para a totalidade da amostra e por curso de mestrado. A análise de conteúdo qualitativa visou identificar a tematização do brincar e surpreender as conceções de criança, de educação e de educador/a subjacentes às lógicas e sentidos atribuídos pelas estudantes por relação com a sua prática pedagógica, tendo procedido mediante a categorização e codificação das unidades de registo contidas nos títulos, e sendo as inferências aferidas com base nas palavras-chave e resumos.
Para o presente texto, selecionou-se um corpus específico de análise aplicando critérios de inclusão aos contextos de EI referidos nos relatórios PES, obtendo um total de 60 (65,93%) dos 91 identificados.
3 As políticas educativas e a formação de futuros/as profissionais da educação de infância
3.1 As OCEPE (1997, 2016) - entre as crianças e o/a educador/a, onde está o brincar?
Em Portugal, os anos 90 marcam uma transição paradigmática no campo de educação, associada sobretudo ao papel do Estado na definição e desenvolvimento da Educação Pré-Escolar (EPE). É neste período, que Vilarinho (2001) denomina revitalização (1995/97), que é publicada a LeiQuadro da EPE (Lei n.º 5/97, de 10 de fevereiro) e, na sequência disso, são aprovadas as primeiras OCEPE (Despacho n.º 5220/97, de 4 de agosto). Estas foram objeto de uma revisão recente - Despacho n.º 9180/2016, de 19 de julho -, o que expressa que algo está a mudar na sociedade, havendo novas demandas que se colocam à educação das crianças pequenas. (FERREIRA; TOMÁS, 2018)
As OCEPE, documento que explicita valores, princípios e finalidades comuns para uma mesma educação às crianças, define, ao mesmo tempo, os conteúdos e práticas de referência para a ação pedagógica dos/ as educadores/as de infância. Neste enquadramento, nas OCEPE de 1997, o brincar está quase ausente (cf. Figura 1): a única referência explícita insere-se na área de conteúdo Conhecimento do Mundo. Em contrapartida, e como retradução do brincar que as crianças fazem das realidades pessoais e sociais (CORSARO, 1997), encontra-se uma referência clara à Expressão Dramática, perspetivada como uma forma de linguagem, a par de outras como a motora, plástica ou musical, com especial enfoque no corpo e na relação com os objetos. Neste entendimento do que poderá ser o brincar das crianças, mais do que a valorização das suas ações sociais e dos conteúdos das aprendizagens que informalmente realizam, o foco parece ser deslocado para um/a educador/a omnipresente, como alguém com a missão de ampliar e intervir para complexificar as ações das crianças. Trata-se, portanto, de uma visão do brincar preocupada com o nível das aprendizagens e do desenvolvimento da criança, sobretudo o cognitivo, tutelados pelo/a educador/a. Pode então dizer-se que, nas OCEPE de 1997, o pendor educativo do que é preconizado para as crianças pequenas pontua a necessidade de estas adquirirem determinadas aprendizagens, segundo um padrão de desenvolvimento progressivo, que deixa subentender uma conceção de criança como sujeito em desenvolvimento e do brincar como instrumento ao serviço do ensinar.

Fonte: OCEPE (1997; 2016).
Figura 1 Brincar nas OCEPE (1997, 2016) - relações com /a educador/a e o currículo da EPE
Ao contrário, na revisão das OCEPE, em 2016, o brincar tornase explícito, com mais de 20 referências ao longo do documento. Agora, o papel do/a educador/a, embora reitere dimensões relativas ao ambiente educativo já expressas anteriormente, sugere mais abertura e atenção às crianças nas suas escolhas, processos e relações preferenciais, do mesmo modo que sublinha tanto uma atitude de observação e envolvimento adulto sem interferir nas suas iniciativas, como uma dinâmica de interação em que se articulem as iniciativas das crianças e as propostas do/a educador/a, promovendo relações inter e intrageracionais.
Tais mudanças parecem ficar a dever-se à existência de um novo quadro teórico e ideológico, para além da perspetiva dominante da Psicologia do Desenvolvimento, que aponta para uma conceção das crianças como atores sociais, produtoras de culturas e sujeitos de direitos, incluindo o do brincar (cf. Figura 1). O brincar surge então disseminado em vários domínios das OCEPE; um reconhecimento explícito de que, no entanto, coabita com uma conceção igualmente inequívoca do brincar como meio para aprender. Tal não invalida a presença de uma visão das aprendizagens que - agora sublinhando uma visão construtivista e holística, integrando diferentes saberes, físicos e mentais - redobram e reinventam sentidos produzidos por crianças competentes e situadas numa rede de relações sociais.
Ora, se se considerar que na visão holística da educação da criança os seus conceitos de mundo e de conhecimento se compartilham mutuamente e são tratados como estando desenvolvidos e equivalentes, não se confundindo com um amontoado avulso de informações; e que, enquanto adultos/as-educadores/as não precisamos de concordar mas de os respeitar (cf. KLUS-STANSK, 2009), para, a partir disso, se co-construir um entendimento comum, será esta proposição teórica que estará em causa aquando da implementação das OCEPE na prática quotidiana, pois dela - brincar e aprender - depende a interpretação que o/a educador/a fizer. É essa mesma questão que se coloca na formação de educadores/as, ou seja, muito da sua formação inicial dependerá das conceções e práticas aprendidas teoricamente nas suas escolas de formação; muito dependerá dos/as profissionais e dos contextos em que realizarem o(s) seu(s) estágio(s).
3.2 A formação de educadores/as de infância em Portugal
A discussão sobre formação de educadores/as de infância, não sendo um tema recente ou inovador nas Ciências da Educação, continua a configurar-se como importante face às intensas e aceleradas transições paradigmáticas que têm afetado o campo da EI, particularmente as que se fizeram sentir a partir do início dos anos 90, por via adesão ao Processo de Bolonha8, quando se assiste a um processo de redefinição de funções e trajetórias destes/as profissionais.
Uma breve recensão cronológica dos diplomas que enquadram e regulamentam a formação de educadores/as de infância entre 1986 e 2014 (cf. Figura 2), em Portugal, possibilita revelar a natureza das questões percecionadas e incluídas nas agendas políticas, sendo os anos de 2007 e 2014 dois marcos fundamentais pela exigência, num primeiro momento, de uma formação superior, com percursos, tempos e planos de formação diversificados; e, num segundo momento, para as sucessivas alterações a essa formação, que decorrem de compromissos, de pressões internacionais e de opções políticas dos sucessivos governos relativamente à educação, em geral, e à formação de docentes, em particular. (TOMÁS; GONÇALVES, 2018)
No que diz respeito à PES, Tomás e Gonçalves (2018) destacam três características visíveis: i) discursivas: pela valorização desta componente de formação, mais explícita em 2007, face à exigência da elaboração do Relatório e sua defesa pública (art.º 17 e art.º 20, respetivamente), numa aproximação dos mestrados de natureza profissionalizante aos mestrados de natureza pós-profissionalizantes; ii) organizacionais: alteração da duração e os pesos das componentes de formação, sobretudo as que estão associadas à área da docência e das didáticas específicas; iii) concetuais: são estabelecidos um conjunto de regras e de princípios em que se sublinha o detalhe e algumas alterações das atividades da PES, do primeiro para o segundo documento. Ou seja, assiste-se a uma reconfiguração das funções profissionais em que qualidades críticas e reflexivas, essenciais para a formação de profissionais transformadores, implicados na mudança social, parecem recuar para dar lugar a uma versão do/a profissional de tipo transmissivo e com pendor tecnicista, preocupado/a com as aprendizagens mais escolarizadas e não com a educação holística da criança. Não obstante, num e no outro caso a observação das práticas previamente à intervenção é um requisito da formação.
Finalmente, poder-se-ia acrescentar uma quarta caraterística - o estranho lugar da creche na formação: os mestrados designam-se de pré-escolar, o que não incluiria a creche, palavra que nunca surge, aliás, nos dois decretos, mas em muitos mestrados a PES realiza-se na creche, como se verá.
4 Os relatórios da PES (Portugal, 2014-2017) - onde está o brincar?
4.1 Dados de enquadramento geral
Os 91 relatórios PES identificados nos 4 anos que medeiam entre 2014-2017 encontram-se desigualmente distribuídos: 9 (9,9%) em 2014; 33 (36,3%) em 2015; 23 (25,3%) em 2016, e 26 (28,6%) em 2017, evidenciando, a partir de 2015, um interesse das/os estudantes estagiárias/os pela temática do brincar, que se mantém nos anos seguintes.
Maioritariamente oriundos de instituições do ensino superior públicas (44;73,3%), os relatórios PES relativos ao brincar realizaram-se, sobretudo, no âmbito do Mestrado em Educação Pré-Escolar (59; 64,8%%), seguindo-se o Mestrado em Educação Pré-Escolar e 1º Ciclo do Ensino Básico (29; 31,9%) e, residualmente, o Mestrado do 1º e 2º Ciclos do Ensino Básico, apenas com 3 (3,3%). Em cada um dos casos, destaca-se um maior volume de ocorrências no subsistema Politécnico (50; 83,3%).
Nos 4 anos em análise9, o ano 2015 regista o maior número de relatórios (36,3%), sendo que no total de 91 deles os contextos socioeducativos e escolares tendem a privilegiar o JI (31,9%), a Creche e JI (18,7%) ou o 1º CEB (12,1%), em detrimento do JI e 1ºCEB (9,9%), creche (6,6%) e 1º e 2º CEB (1,1%). (cf. Tabela 1)
Tabela 1 Relatórios PES e o brincar (2014 -2017). Distribuição por ano e contexto de investigação
Ano do Relatório | Total - n (%) | Creche | Contexto da investigação | Sem inf. | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
JI | Creche eJI | JIe 1°CEB | 1°CEB | l°e 2°CEB | ||||
2014 | 9 (9.9) | I (11,1) | 2 (22,2) | 2 (22,2) | 0 (0,0) | I (11,1) | 0 (0,0) | 3 (33,3%) |
2015 | 33 (36,3) | 3 (9,I) | II (33,3) | 8 (24,2) | 2 (6,1) | 3 (9,I) | 0 (0,0) | 6 (18,2%) |
2016 | 23 (25,3) | I (4,3) | 7 (30.4) | 5 (2I,7) | 3 (I3,0) | 2 (8,7%) | I (4,3) | 4 (I7,4) |
2017 | 26 (28,6) | I (3,8) | 9 (34,6) | 2 (7,7) | 4 (I5,4) | 5 (I9.2) | 0 (0,0) | 5 (I9,2) |
Total | 91 (100) | 6 (6,6) | 29 (3I,9) | I7 (18,7) | 9 (9,9) | II (I2,1) | I (1,1) | 18 (19,8) |
Fonte: Relatórios PES (2014-2017). Elaboração própria.
De seguida, a análise centra-se nos relatórios PES desenvolvidos em contextos de EI. Relativamente aos relatórios realizados no Mestrado em Educação Pré-Escolar e 1º Ciclo do Ensino Básico foram considerados somente aqueles em que a investigação foi realizada em JI. Trata-se não só de uma opção teórica como estatística, uma vez que o número de relatórios sobre o brincar no 1º e 2 º CEB são residuais.
4.2 Relatórios PES e o brincar: contextos de educação de infância (2014-2017)
4.2.1 Dados de enquadramento
Foca-se agora a atenção na análise mais detalhada dos relatórios PES acerca do brincar nos mestrados que profissionalizam para a docência com crianças até 6 anos, considerando exclusivamente a investigação realizada em creche e JI.
Os contextos socioeducativos e escolares a que se reportam os 60 relatórios PES, no decurso dos 4 anos em análise, tendem a privilegiar tanto a investigação realizada em JI (45%) quanto em creche e JI (45,0%), em detrimento apenas da creche (10,0%). O ano 2015 regista o maior número de relatórios (40,0%). (cf. Tabela 2)
Tabela 2 Relatórios PES sobre o brincar na EI (2014 -2017): distribuição por ano e contexto de investigação
Ano do Relatório | Total n (%) | Contexto da investigação | ||
---|---|---|---|---|
Creche | JI | Creche e JI | ||
2014 | 5 (8.3) | I (20,0) | 2 (4O.O) | 2 (40,0) |
2015 | 24 (40) | 3 (I2,5) | 3 (33,3) | II (45,8) |
2016 | 16 (26,7) | I (6,3) | 6 (37,5) | 7(43,8) |
2017 | I5 (25,0) | I (6,7) | 2 (I3,3) | 8 (53.3) |
Total | 60 (100) | 6 (10,0) | 27 (45,0) | 27 (45.o) |
Fonte: Relatórios PES sobre o brincar na EI (2014 -2017). Elaboração própria.
4.2.2 Contextos de Educação de Infância e o brincar - que problematização?
A análise dos títulos, palavras-chave e resumos ao longo do período de análise nos 60 relatórios que se referem ao brincar, e segundo as lógicas e os sentidos atribuídos pelas estudantes por relação com a sua prática pedagógica, aponta para dois ângulos distintos e desiguais de olharem o brincar: a maioria deles dedica-se à Problematização do brincar na relação educador/a e criança(s) pelas estudantes (83,30%), inserindo-o no âmbito de uma dada intencionalidade da intervenção pedagógica, em detrimento da Problematização do brincar das crianças pelas estudantes (16,70%). (cf. Figura 3)

Fonte: Relatórios PES. Elaboração própria.
Figura 3 Distribuição dos relatórios PES, em função da problematização das estudantes
A problematização do brincar na relação educador/a e criança(s) pelas estudantes
A problematização do brincar na relação educador/a e criança(s) pelas estudantes é perspetivada, de um lado, por uma supervisibilidade do brincar promover a aprendizagem de… (30%), sobretudo em 2015 e 2017 (7R nos dois anos); seguido do brincar promover o desenvolvimento de… (27,7%) e da ação do/a educador na brincadeira (25%), sobretudo em 2015 (8R) e 2016 (4R); de outro lado, por uma invisibilidade do brincar no que se refere às relações entre os contextos de EI e as famílias: brincar na ação do/a educador e das famílias assume um valor residual (1,7%), em 2015.
A problematização do brincar promover a aprendizagem de… focaliza-se no seu entendimento como ferramenta ou estratégia pedagógica necessária para realizar aprendizagens significativas (6): Espaço exterior como promotor de aprendizagens: brincar e aprender (R18, 2015); O brincar como meio de aprendizagem no jardim-de-infância (29R,2015); ou suscitar a motivação (2) para aprender: O lúdico como motivação para a aprendizagem (R58; 2017); conteúdos propedêuticos da escrita e matemática (9): Brincar com a escrita na Educação Pré-Escolar e no 1.º Ciclo do Ensino Básico (R51, 2017); As aprendizagens através do lúdico: a linguagem e a matemática na educação pré-escolar e no 1º Ciclo do Ensino Básico (R60, 2017) ou iniciação às TIC: Brincar com as tecnologias de informação e comunicação: investigar e refletir sobre as práticas em educação pré-escolar e 1º ciclo do ensino básico (R44, 2016), entre outros. Neste panorama, apenas dois relatórios parecem reconhecer as aprendizagens inerentes ao próprio brincar como um valor em si, por exemplo: Comportamentos de brincadeira observáveis em contexto de interior e exterior no jardim de infância (R40, 2016).
Por seu turno, o brincar promover o desenvolvimento de… enfatiza a sua importância relativamente a um desenvolvimento global: Como é que o brincar no exterior pode contribuir para o desenvolvimento harmonioso das crianças da Sala Verde? (R35, 2016); Envolvendo-me na natureza posso brincar, aprender e crescer? - Um estudo sobre a Importância do espaço exterior no Jardim de Infância (R41, 2016); “O objeto como elemento do jogo simbólico de crianças em contexto de jardim de infância (R52, 2017)”, mas em que se destaca o seu contributo para o Desenvolvimento Pessoal e Social (6): “Brincar faz-me feliz: a importância do brincar no desenvolvimento da criança” (R7, 2015); “Brincar: um assunto muito sério”. De como o Brincar Constitui um Comportamento de Consolidação de Conhecimento e Desenvolvimento do Eu, do Outro e do Mundo (R26, 2015).
A ação do/a educador/a na brincadeira detém-se na compreensão das conceções das educadoras sobre o brincar (6): Brincar na educação de infância: conceções e intencionalidade educativa dos/as educadores/as de infância (R46, 2016); O brincar espontâneo em contexto de creche e jardim de infância (R47, 2017), a que se segue a sua intervenção pedagógica ao nível da organização de espaços promotores da brincadeira (4): A organização do espaço, do tempo, dos materiais e do brincar na creche e no jardim - de - infância (R33, 2016); Brincar sem teto. A importância do espaço exterior na creche e no jardim de infância (R34, 2016), bem como a sua ação pedagógica na mediação das aprendizagens quando intervém no brincar (3): O papel do educador de infância no brincar da criança (R10, 2015); Brincar e aprender: um olhar sobre a prática de uma educadora de infância em formação (R31, 2016) e se envolve em interações nas brincadeiras com as crianças (2): O brincador: a interação adulto-criança no momento da brincadeira (R2, 2014); O educador de infância também “brinca”? (R3, 2014)
A problematização do brincar das crianças pelas estudantes
Os 10 relatórios PES identificados desdobram-se em duas grandes preocupações: conhecer as conceções e as preferências das crianças relativamente ao brincar bem como as suas práticas.
Assim, no primeiro caso, destaca-se o conhecer as preferências das crianças acerca do brincar (4R): As conceções das crianças sobre o brincar: relatório final (R21, 2015); Brincar “é coisa boa”: a voz de crianças em idade pré-escolar” (R23, 2015); Espaços de brincar: as escolhas das crianças (R38, 2016), e O jogo nos espaços exterior e interior em jardim de infância: um estudo de caso (R50, 2017). No segundo caso, práticas do brincar entre crianças: A importância do brincar na relação inter-pares (R27, 2015); Brincar a quê, com quem, onde e quando numa sala de JI. Análise das vivências e das opiniões das crianças (R36, 2016); Refletir e agir em contexto de Educação Pré-Escolar - Brincar em Creche (R55, 2017); e O recreio escolar como local de interação entre crianças (R57, 2017). Por fim, as conceções das crianças sobre o brincar: A brincadeira e o género em jardim-de-infância” (R11, 2015) e Brincadeiras entre as crianças no jardim de infância. (R12, 2015)
Em suma, quando então se interroga “onde está o brincar?” nos relatórios PES relativos aos contextos da EI (2014 -2017) e se procura identificar as dimensões problematizadas nas relações educador/as-crianças e entre crianças é possível sistematizá-las e sintetizá-las conforme se observa na Tabela 4.
Tabela 4 Onde está o brincar nos relatórios PES na EI (2014 -2017)? - dimensões problematizadas nas relações educador/as-crianças e entre crianças e suas dimensões (síntese)
Problematizaçâo das estudantes face: | à relação educador/a e criança(s) | à relação entre crianças | Total | |
---|---|---|---|---|
Onde está o brincar? – dimensões problematizadas | Ação do/a educador/a e das famílias | I (I,7) | I (1,7) | |
Ação do/a educador/a na brincadeira | 15 (2.5,0) | 15 (25,0) | ||
Promover a aprendizagem de... | 18 (30,0) | 18 (30,0) | ||
Promover o desenvolvimento de... | 16 (26,7) | 16 (27,7) | ||
Conceções das crianças | 2 (3,3) | 2 (3,3) | ||
Preferências das crianças | 4 (6,7) | 4 (6,7) | ||
Práticas do brincar entre crianças | 4 (6,7) | 4 (6,7) | ||
Total n (%) | 50 (83,3) | IO (16,7) | 60 (100) |
Fonte: Relatórios PES na EI (2014 -2017). Elaboração própria.
4.3 Entre brincar e brincar para aprender: que conceções de criança, educação e educador/a?
A análise e problematização das conceções do brincar privilegiadas nas lógicas e sentidos atribuídos pelas estudantes por relação com a sua prática pedagógica (cf. Tabela 4) permitem inferir conceções de educação, de educador/a e de criança.
Com efeito, as 7 dimensões problematizadas (4.2.2.), quando consideradas à luz da controvérsia brincar versus aprender, são passíveis de serem reconfiguradas em 4 grandes conceções acerca do brincar: (i) o brincar como recurso lúdico-pedagógico ao serviço do ensino de conteúdos, assumam eles um caráter transversal ou específico (literacia, matemática, TIC); (ii) o brincar como desenvolvimento global e harmonioso (pessoal e social, cognitivo, motor) informado por uma visão cristalizada na Psicologia do Desenvolvimento; (iii) a intencionalidade educativa relativa ao brincar nas suas facetas mais indiretas (organização de espaços promotores da brincadeira) ou diretas (intervenção pedagógicas das educadoras nas brincadeiras das crianças); (iv) o brincar das crianças pelas crianças - as conceções, preferências e práticas -, para conhecer e informar as decisões e as práticas pedagógicas. (cf. Tabela 5)
Tabela 5 Onde está o brincar nos relatórios PES na EI (2014 -2017)? - dimensões problematizadas versus conceções de brincar, educador/a e de criança (síntese)
Problematização das estudantes | Conceções de | ||||
---|---|---|---|---|---|
relação educador/a e criança(s) | Dimensões do brincar | Brincar | Educação e Educador/a | Criança | |
Ação do/a educador/a e das famílias | o brincar = recurso lúdico-pedagógico ao serviço do ensino de conteúdos | o desenvolvimento do currículo + intencionalidade pedagógica = os/ as educadores/as como gestores/as do currículo | crianças como alunas préescolares | ||
Promover a aprendizagem de... | |||||
Ação do/a educador/a na brincadeira | 0 brincar como dependente da intencionalidade educativa nas suas facetas diretas/ indiretas | ||||
Promover o desenvolvimento de... | o brincar = promotor do desenvolvimento global e harmonioso | Psicologia como referência para a prática pedagógica = uma visão do/a educador/a “guardião” da norma | criança em desenvolvimento | ||
relação entre crianças | Conceções das crianças | o brincar das crianças pelas = conhecer crianças + informar decisões e práticas pedagógicas | centralidade das ações das crianças e dos seus mundos sociais e culturais + pedagogia da infância = co-construção de uma educação situada, participativa e inclusiva pelo/a educador/a e crianças | crianças como crianças no presente | |
Preferências das crianças | |||||
Práticas do brincar entre crianças |
Fonte: Relatórios PES na EI (2014 -2017). Elaboração própria.
Seguindo a análise com vista a percecionar as conceções de educação e de educadores/as poderia ser afirmado que, enquanto as dimensões (i) e (iii) já referidas (cf. Tabela 5) parecem subentender preocupações dos/as profissionais e das estudantes orientadas para o desenvolvimento do currículo e para uma ação pedagógica consonante, intencional, ambas reforçando o papel dos/as educadores de infância como gestores/as do currículo (OCEPE, 1997, 2016), a (ii) parece espelhar as referências teóricas da Psicologia, cujos padrões de desenvolvimento orientarão tanto a escolha dos recursos pedagógicos como a avaliação das crianças, denotando uma visão do/a educador/a como “guardião” da norma, esforçado por a reproduzir e aferir.
Estas perspetivas do brincar e dos/as educadores/as contrastam com a última dimensão que se enquadra no que Moss (2019) denomina narrativas alternativas na EI. Ou seja, uma visão crítica sobre a EI e um aparente consenso em redor de alguns dos seus conceitos-chave, como se fossem a única forma de pensar a educação das crianças pequenas: intencionalidade educativa, desenvolvimento, qualidade, atividades lúdico-pedagógicas, cuidar-educar e brincar. A alternativa afirma a centralidade das ações das crianças e dos seus mundos sociais e culturais para informarem uma pedagogia da infância (ROCHA; LESSA; BUSS-SIMÃO, 2016), em que o/a educador/a com as crianças, co-constroem uma educação situada, participativa e inclusiva. (cf. Tabela 5)
Finalmente, as conceções de criança inferidas a partir das dimensões do brincar (i) e (iii) apontam para a presença das crianças como alunas pré-escolares; a (ii) da criança em desenvolvimento e iv) das crianças como crianças no presente. (cf. Tabela 5)
5 Entre o direito a brincar e o brincar para ensinar nas políticas e na formação de profissionais da educação de infância - considerações finais
A reflexão sobre a controvérsia entre brincar e aprender permite desvelar algumas contradições, tensões e ambiguidades no interior da EI. Vejamos algumas delas. A primeira, de natureza discursiva. Por um lado, encontramos defensores/as das crianças como sujeitos competentes e sujeitos de direitos e da EI como contexto educativo de cidadania; por outro, na égide das políticas neoliberais, encontramos defensores/as da prestação de contas e de uma precoce valorização e promoção do desenvolvimento de competências pré-escolares das crianças e na EI. A segunda, de natureza sociopedagógica. Por um lado, uma história da EI e a defesa politico-educativa de uma especificidade da EI por relação a outros níveis educativos. Por outro lado, as OCEPE, especialmente as de 2016, documento-chave da EI, referencial comum do trabalho educativo dos/as educadores/as, são ambíguas e contraditórias entre conceções e valores defensores do brincar, entre outros, e determinadas orientações escolarizantes para a prática pedagógica (FERREIRA; TOMÁS, 2018). Uma terceira, de natureza concetual. Por um lado, saindo umas largas centenas de recém formadas/os mestres em EI das instituições de ensino superior em Portugal por ano, é surpreendente o baixo volume de relatórios PES dedicados a investigar, refletir e intervir sobre o brincar em creche e/ou JI. Por outro lado, mesmo nos 60 relatórios PES que tematizaram o Brincar, entre 2014-2017, a análise mostra claramente a prevalência da problematização do brincar na relação educador/a e criança(s) face à problematização do brincar das crianças. (cf. Tabela 3 e 4.2.2)
A maior densidade e robustez dos 50 relatórios PES que problematizam o brincar na relação educador/a e criança(s) pelas estudantes é assumida, grosso modo, uma visão tecnicista, instrumental e utilitarista do brincar. No fundo, plasmam e projetam uma visão do brincar como “bom brincar” porque pode ser usado como estratégia pedagógica útil para otimizar a aquisição de determinados conteúdos; porque promove o desenvolvimento da criança, sobretudo cognitivo; porque mascara pedagogias transmissivas sob a capa de pedagogia “amiga das crianças” e participativa; porque anula a dimensão lúdica do brincar em formas de disciplinação e governo da infância; porque serve determinados propósitos sociais e educativos. Subjaz a estes fins o papel central do/a adulto/a naqueles contextos, isto é, as estudantes parecem assumir o pressuposto que a “boa” ação pedagógica dos/as educadores/as de infância nas brincadeiras das crianças é a que se orienta em prol das aprendizagens úteis e necessárias às etapas seguintes do percurso escolar e de vida. O foco não são as crianças no presente, mas no futuro, e por isso o antecipam retirando tempo ao brincar na infância. Brincar ganha então foros de privilégio e não de direito em uso! Até mesmo o interesse das estudantes - que parece emergir a partir de 2015 - em pesquisar o brincar no espaço exterior, vulgo recreio (8 relatórios PES), é centrado no desenvolvimento e na aprendizagem. O tempo livre infantil, o lazer das crianças, a frugalidade dos espaços, o tempo para estar com os/as amigos/as e a rutura com uma determinada rotina parecem não ser reconhecidos como pertinentes pelas estudantes na sua reflexão.
Com menor expressão, no total dos relatórios analisados, apenas os 10 que consideraram a ação das crianças na brincadeira como dimensão fundamental para informar a prática assumem uma narrativa que contrasta com a visão dominante: valorizam os saberes prévios das crianças e as relações entre pares, nomeadamente os conflitos, as questões de género e a dimensão lúdica da ação coletiva quando brincam. Aqui, o papel do/a educador/a apresenta-o/a como alguém atento/a, sensível e interessado/a em conhecer, a partir da “fonte-crianças”, os seus mundos sociais e culturais, por possibilitarem refletir sobre a sua ação, capacitando-o/a a interpretar a diversidade de aprendizagens que as crianças fazem em contexto, e a traduzi-las em recursos, propostas e práticas situadas e desafiantes, suscetíveis de ampliarem os seus reportórios sociais, culturais, artísticos, éticos e políticos.
Por fim, dada a invisibilidade e o pouco interesse na reflexão da valorização do brincar, não será demais continuar a defender o pressuposto que o brincar é um direito das crianças, não um privilégio. Assim sendo, também não será demais lembrar a especificação da relação entre direitos de participação e a EI no âmbito do Comité dos Direitos das Crianças (2005), quando afirma claramente: “a criança não é apenas objeto de práticas benevolentes, é um titular de direitos; o objectivo da educação é empoderá-las nas suas capacidades através de estratégias centradas nas crianças e amigáveis, e com oportunidades para exercerem os seus direitos e estes incluem, entre outros, tempo, espaço para o brincar social, exploração e aprendizagem”, já que o brincar social é entendido como uma das características mais distintivas da infância. O comentário 17 ao artigo 31 da UNESCO (2013) vai mais longe quando, ao afirmar uma conceção lúdica do jogo, adverte que a educação pré-escolar rígida e formal “que não permite brincar pode ser desagradável para as crianças e prejudicar o seu desenvolvimento.”