SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue50EDUCATION, CULTURAL CONTEXTS AND CHILDHOOD: DIALOGUES WITH SOUTH AMERICAN PRODUCTIONSTHE USE OF FILMS TO OBTAIN UNDERSTANDINGS ON PEDAGOGICAL PRACTICE IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: TWO METHODOLOGICAL APPROACHES author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.50 São Paulo  2019  Epub Jan 27, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n50.14014 

Dossiê 50 - Educação Infantil e suas Infâncias

TEATRO COM BEBÊS: NARRANDO VIVÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

THEATER WITH BABIES: NARRATING EXPERIENCES IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION

Jader Janer Moreira Lopes, Doutor em Educação, Professor1 
http://orcid.org/0000-0003-3510-8647

Luiz Miguel Pereira, Doutor em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-6666-1627

1Doutor em Educação (PPGE-UFF) Professor do PPGE da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

2Doutor em Educação (PPGE-UFF) Faculdade de Educação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro (FAETERJ)


RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre os estudos contemporâneos no campo da infância, tendo como recorte central a pesquisa com bebês. Conceitualmente, assumimos por bebês o desenho estabelecido nas legislações e na área acadêmica que envolve a primeira infância, ou seja, do nascimento até 36 meses. O trabalho situou-se na interface das vivências dos bebês e suas enunciações, possibilitadas pelas atividades cênicas que assumimos e denominamos como teatro com bebês, que consistiu na oferta de um ambiente pensado para recebê-los, criando uma situação social em que se potencializaram suas atividades criadoras. Metodologicamente, a pesquisa com os bebês foi feita no espaço da educação infantil da Escola Nossa, em Niterói, Rio de Janeiro. Como principais conclusões mencionamos a potência que o teatro com bebês promove quando em interação com os adereços cênicos; suas enunciações enquanto, ao mesmo tempo, atores e plateia a partir da oferta cênica vinculada diretamente ao ato de brincar apresentam acontecimentos irrepetíveis e portadores de vivências que possibilitam seus protagonismos.

Palavras-chave: Estudos da Infância; Pesquisa com Bebês; Teatro com Bebês; Teoria Histórico-Cultural.

ABSTRACT

This paper refers to the contemporary studies of childhood, having as central field the research with infants. Conceptually, we assume for babies the design established in legislation and in the academic area on early childhood, from birth up to 36 months. The paper was situated in the interface of the experiences of the babies and their enunciations made possible by the scenic activities that we assumed and denominated as theater with babies. The theater with babies consisted of offering an environment thought to receive them, creating a social situation in which their creative activities were potentialized. The methodological approach used was the research with babies, in the kindergarten space in a school in the city of Niterói and the research conclusions are linked to the potency that the theater with babies promotes in the interaction with and among the scenic props. The utterances of babies from the scenic offer directly linked to the act of playing promote unrepeatable events and therefore bearers of experiences that enable their protagonism.

Keywords: Childhood Studies; Research with Babies; Theater with Babies; HistoricalCultural Theory.

Introdução

Optamos por estudar os bebês, seus protagonismos, suas enunciações e, ao mesmo tempo, reinventar o teatro, provocar uma ruptura com as formas ocidentalizadas e clássicas de fazer teatro, trazer os bebês para essa conversa, buscando outra possibilidade de trabalhar com o teatro e, dessa vez, com os bebês da Educação Infantil.

Analisando uma possibilidade da origem do teatro, deparamonos com alguns conceitos que viabilizam a participação dos bebês nessa reinvenção, inicialmente o dramaturgo-sacerdote (GASSNER, 1991). Encontramos nessa origem as práticas lúdicas, a imitação, a brincadeira, assim configurando o contexto no qual os bebês estão inseridos. Ao ofertarmos aos bebês um meio esteticamente elaborado, no ambiente escolar e em outros espaços que propiciem esse exercício cênico, eles irão, cada um com seu nível de desenvolvimento, enunciar sua presença no mundo de acordo com seus interesses naquele momento, para o outro e depois para si, ou para si e depois para o outro.

Ritual é outro conceito a que recorremos para viabilizar o teatro com bebês. Para tanto, trazemos Antonin Artaud (2004, p. 75-76), sua poética e sua crítica à mesquinhez da sociedade:

O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em uma religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos, está ligada diretamente aos ritos do teatro que são o próprio exercício e a expressão de uma necessidade mágica espiritual.[…] Nós estamos, agora, no estádio da vida aplicada, onde tudo desapareceu, natureza, magia, imagens, forças, no estado de estagnação em que o homem vive de seu dote, com uma reserva sentimental e moral há um século imutável. Neste estádio o teatro não cria mais mitos.

Somos provocados por essa fala e, a partir dela, propomos, com este trabalho, uma resistência a essa estagnação, tendo os bebês como agentes provocadores desse movimento, dessa reinvenção de um teatro que lhes é negado historicamente. Ao observamos a teatralidade dos bebês, podemos fazer aproximações com os ditirambos, “‘dança de saltos’ ou dança de abandono, acompanhados por movimentos dramáticos e dotados de hinos.” (GASSNER, 1991, p. 13) O princípio da teatralidade ressalta que a palavra não pode dizer tudo e qualquer lugar pode ser um palco. O teatro com bebês se identifica com essa ideia. Falamos com os bebês como um ato de escolha. Portanto, bebês e nomes são fios que tecem nossas palavras e, como num enredo mitológico, toda vida entrelaçada com outras é também uma mitologia, conduzindo-nos para os tortuosos labirintos que uma pesquisa, arquitetonicamente, edifica em torno de todos nós.

Algumas inquietações nos motivaram a fazer esta pesquisa, uma vez que se torna fecundo perguntar se os bebês fazem teatro. Se tivermos a presunção de entendermos teatro, no sentido clássico (PAVIS, 2005), não, os bebês não fazem teatro. Se levarmos também em consideração a arte em seu aspecto racional e de intencionalidade estética, não, os bebês não fazem arte. Assumimos, então, uma posição política segundo a qual os bebês são seres da linguagem, que se forjam a partir dela e produzem cultura. Os bebês carregam uma aparente precariedade que é sua vantagem filogenética, humanizar-se pelo outro e humanizar o outro.

A sobrevivência do bebê humano depende totalmente da solidariedade dos seus semelhantes.[…] Pode-se afirmar, então, que a aparente condição de inferioridade e de prematuridade do bebê humano, em vez de constituir uma perda e um obstáculo ao seu desenvolvimento, representa, pelo contrário, um enorme ganho e um grande meio de desenvolvimento, uma vez que possibilita que possa ser educado, ou seja que pode ser beneficiar-se da experiência cultural da espécie humana para devir um ser humano. (PINO, 2007, p. 43 e 46)

A contribuição de um teatro que favoreça acontecimentos, que possibilite humanizar por outra leitura estética dessa ‘ciência’ de 2.500 anos, permite-nos assumir o protagonismo dos bebês e afirmar que o teatro com bebês é uma possibilidade. Mas, até que idade podemos considerar uma criança bebê? Consideramos bebês as crianças do nascimento até 36 meses completos. Essa idade é adotada pelos pesquisadores do campo de estudos e montagens de teatro para bebês. (PEREIRA, 2014)

Estudar os bebês, seus territórios, suas vivências, suas constantes tentativas de romper com as tipologias impostas em seu tempo e espaço, sobretudo na instituição escolar, é necessário e urgente. Nascemos inconclusos e absolutamente necessitados da presença dos cuidados do outro para que nos tornemos humanos. A oferta de meio e situação social de desenvolvimento em que os bebês estão inseridos produzem vivências que geram desenvolvimento cultural (VIGOTSKI, 2006). Consideramos situação social do desenvolvimento um dos conceitos-chave para vincular à atividade teatro com bebês.

A situação social do desenvolvimento é o ponto e o ponto de partida para todas as mudanças dinâmicas que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada idade. Determina plenamente e por todas as formas e a trajetória que permitem à criança adquirir novas propriedades da personalidade já que a realidade social é a verdadeira fonte de desenvolvimento, a possibilidade que o social se torne individual. (VIGOTSKI, 2006, p. 264 - Tradução dos autores)

Em cada idade, essa situação social do desenvolvimento é revelada a partir da organização do meio e das vivências ofertadas nesse meio para as crianças. A regulação de sua existência social está vinculada à situação social do desenvolvimento.

A vivência, perejivanie (VIGOTSKI, 2010), conceito central da teoria histórico-cultural, promove perspectiva de pesquisa sobre o desenvolvimento social dos bebês. O desenvolvimento é um drama e, no sentido do teatro grego, é transformador, algo que morre. Ao ofertarmos uma atividade cênica para os bebês no espaço da Educação Infantil estamos, portanto, oferecendo uma possibilidade para suas enunciações por meio de suas vivências, numa perspectiva de situação social de desenvolvimento em meio esteticamente pensado para esses encontros. A faixa etária dos bebês, no período das atividades cênicas, variava entre um ano e sete meses e três anos. Aproximamo-nos de outro conceito da teoria histórico-cultural, obschenie, relação da criança/bebê com os adultos próximos, em que criança e adulto se fundem, formam um amálgama, são cúmplices. Essa cumplicidade no teatro com bebês é fundamental.

A lei geral do desenvolvimento sinaliza para a oferta de um meioambiente que propicie as vivências para que ocorra o aprendizado: “[…] primeiro um meio de influência sobre outros, depois sobre si. Neste sentido, todo o desenvolvimento cultural passa por três estágios: em si, para outros, para si.” (VIGOTSKI, 2000, p. 24.) As mediações estão situadas no campo do ‘entre’ pares, tornam-se ‘intra’, para, depois, voltarem a se tornar “entre”, de forma cíclica, de acordo com a lei geral do desenvolvimento. A primeira emancipação dos bebês está relacionada à presença de nós-outro-nós, primeira condição do humano. (LOPES; MELLO, 2017)

Ao pensarmos os bebês, a partir da teoria histórico-cultural, apropriamo-nos das reflexões de um humanismo ético. É na vivência cultural que o ser humano se constitui. Entretanto, se as condições necessárias para o desenvolvimento de uma formação humana não estivem presentes na sociedade, torna-se evidente que estamos fadados à permanência de nefastas desigualdades sociais e presos às recomendações de um projeto político de sociedade excludente, elaborado para a manutenção do status quo daqueles que são os detentores da ordem dominante. A oferta de um teatro que esteja vinculado à brincadeira propicia aos bebês momentos de liberdade para se sentirem à vontade consigo e com os outros que fazem parte do teatro, a partir de seus interesses pelo que é ofertado.

Encontramos, nos estudos bakhtinianos, as aproximações teóricas que dialogaram com esta pesquisa do campo da linguagem. Assumimos fazer uma ciência outra ou heterociência, que nos possibilitou esse encontro da arte com a vida (BAKHTIN, 2010)

O deslocamento para uma verdade (pravda), que é a do mundo da vida, relativa ao acontecimento em si e às percepções que dele fazem os sujeitos envolvidos (GERALDI, 2012), endereçou-nos a uma perspectiva de pesquisa que possibilita fazermos, junto com os bebês, um teatro com eles, olhando para a vida e para a arte de forma enviesada. Para que nos relacionássemos no ato estético, fomos Ser e sendo ao mesmo tempo. Naquele espaço/tempo éramos o mesmo e o diferente. O olhar que vinha do outro, o que enxergávamos no instante e o que a filmadora revelou posteriormente provocaram inúmeros deslocamentos, crises foram iniciadas, eixos de valores que estavam planejados ruíram e quase ficamos aprisionados num espaço/tempo que não dialogava com as enunciações dos bebês. As primeiras palavras que ecoavam, suas enunciações, eram os bebês afirmando para o outro a sua presença no mundo.

Qualquer situação da vida em que se organize uma enunciação, não obstante, pressupõe inevitavelmente protagonistas, os falantes. Chamaremos auditório da enunciação à presença dos participantes da situação. Cada enunciação da vida cotidiana, compreende, além da parte verbal não expressa, também uma parte extra verbal não expressa, mas subentendida - situação e auditório - sem cuja compreensão não é possível entender a própria enunciação. Essa enunciação enquanto unidade significante, elabora e assume uma forma fixa precisamente no processo constituído por uma interação verbal particular, gerada num tipo particular de intercâmbio comunicativo social. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 159 - Grifos no original)

Assim foram os encontros de pesquisa: enquanto as palavras e as enunciações circulavam para todos os presentes, registramo-las. Atribuir sentidos, a partir das observações em vídeos gravados dos encontros de pesquisa, inevitavelmente, nos levaram a fazer escolhas. Assim, de alguma maneira, deformamos, pela escrita, as narrativas. Dentro de um campo semântico, a tradução do que vivenciamos, do que os bebês vivenciaram e aquilo a que assistimos, alguma coisa escapou, ficando, na narrativa, as enunciações de suas vivências e de suas e nossas palavras.

Reiteramos que o teatro com bebês não atende prioritariamente às lógicas de recepção, portanto, sensoriais, que o teatro para bebês adota, tampouco nos referimos ao conceito de ateliê, apontado por Frabetti (2011, apud BARBOSA; FOCHI, 2011, p. 36 e 37) em suas pesquisas em Bolonha-IT:

O ateliê teatral parte, assim, da crença de uma forma plural da criança se comunicar com o mundo, de dizer algo de si num ambiente que lhe convide, sem obrigá-la. Ao permitirmos experiências para expressar seus sentimentos e suas sensações, por meio do próprio corpo, estamos proporcionando o instrumento ideal para que a criança se comunique com o mundo exterior, o qual vai, aos poucos, tornando-se significativo para ela. Tratase de uma reflexão acerca das outras linguagens, e não somente sobre a linguagem oral, comumente valorizada e que marginaliza os bebês, uma vez que eles ainda não a dominam.

Os autores ainda chamam a atenção para o fato de que “Frabetti chama de ateliê, e não laboratório, o trabalho feito com a criança para distinguir do trabalho feito com o professor.” (id.ib.) Apesar das semelhanças, a pesquisa reitera a perspectiva da enunciação dos bebês num espaço de sala da educação infantil cenicamente organizado para recebê-los e estabelecer a relação com a narrativa que se desenvolve, tendo por princípio a possibilidade de brincar com os adereços e cenários ofertados. É importante afirmar que o teatro com bebês é um movimento que possibilita uma perspectiva estética na formação de professores e também de conquista de espaço, no campo da arte, na Educação Infantil.

A pesquisa com bebês foi o recorte metodológico que apoiou nosso trabalho. Recorremos à literatura existente para a execução do planejamento de entrada no campo e na descrição das atividades, costurando uma possível metodologia em pesquisa com bebês. Inicialmente, atender às exigências do aceite na documentação para a entrada no campo e, a seguir, a vivência com os bebês enquanto uma possibilidade potente de aceitação da presença do pesquisador no campo. É importante que as crianças estejam familiarizadas com o ambiente pedagógico para a entrada do pesquisador. Ao chegar àquele espaço, é preciso exercitar a escuta e o diálogo a partir das demandas que vão surgindo, tanto das crianças quanto da equipe de profissionais. Ser aceito pelas crianças é também se inserir em suas rotinas. A aceitação depende da forma de relação estabelecida. Brincar, participar do lanche, ficar agachado, sentado ou deitado no chão para se relacionar pode provocar sorrisos e alegrias na relação.

A inspiração na pesquisa qualitativa consistiu em assumirmos a descrição a partir de imagens de vídeos produzidas durantes as atividades de teatro com bebês. As narrativas foram realizadas a partir das filmagens das atividades. A pesquisa ‘com’ também embasou a investigação com bebês. Aderir à pesquisa ‘com’ é assumir o reconhecimento do outro em sua humanidade, reconhecer que o outro tem algo e vai contribuir para o diálogo.

Como outra inspiração de pesquisa, aquela que favoreça acontecimentos, o teatro com bebês configura-se como um campo profícuo, uma vez que carrega em si o novo para eles, propiciando a produção de espantos, na acepção platônica. A singularidade do inesperado é uma das particularidades do teatro com bebês. Isso não significa que “o novo não está no que se diz, mas no ressurgimento do já dito que se renova, que é outro e que vive porque se repete.” (GERALDI, 2015, p. 81) Isso ocorre mesmo que, em alguns casos, essas curiosidades sejam recebidas de maneiras diferentes por cada um. Outras vezes, o signo do objeto passa a ter a conotação de pertencimento. Daí, a enunciação muitas vezes proferida “É meu!” e, logo depois, aquilo que parecera tão caro é abandonado para perseguir outra curiosidade.

A repetição é uma das características encontradas na pesquisa e toda vez que ela ocorre é nova, é um acontecimento para quem está vivenciando e para quem está observando. A pesquisa foi pensada no contexto de investigação em que os bebês são entendidos como seres sociais, capazes de comunicação desde o nascimento. São, portanto, seres forjados na linguagem, seres de cultura, de histórias e geografias que se enunciam e protagonizam seus enredos na relação com os seus pares e cuidadores. O teatro com bebês oportuniza, por meio da produção dessas vivências, possibilidades de seus encontros com os objetos, com a brincadeira e com o outro que vão provocar o desenvolvimento de sua humanidade.

Foram seis encontros-teatro com bebês realizados na Escola Nossa entre maio e agosto de 2017. O tempo destinado para cada atividade foi inspirado no tempo do teatro para bebês, num encontro com as crianças entre 20 e 30 minutos. Ao escrever aqui as narrativas, optamos por diferenciar as falas dos bebês, que estão em negrito, das do pesquisador, que estão em itálico. Neste artigo, fazemos a transcrição do terceiro encontro, realizado em 29 de junho de 2017, quinta-feira, ocorrido entre 15h30min e 16h10min.

Cronotopia da pesquisa

As enunciações humanas narradas nesse contexto, suas relações sociais, afetivas, espirituais e corporais podem ser produzidas também em cronotopos específicos, dada a condição individual dos sujeitos e de suas vivências. Estamos dialogando com o cronotopo, conceito oriundo dos estudos bakhtinianos que revela possibilidades de narrativas no gênero tese e também nas reflexões do cronotopo real.

A interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo, que significa “espaço-tempo” […] Nele é importante a expressão de indissolubilidade de espaço e tempo (tempo como quarta dimensão do espaço). […] No cronotopo artístico literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN, 2014, p. 211)

Toda pesquisa se situa num espaço e num tempo. Esta não é diferente. Foi realizada no espaço escolar da Educação Infantil da Escola Nossa (EN), lugar onde realizamos diversos encontros com os bebês.

O contato com as crianças do Infantil 1 e 2 da EN - universo desta pesquisa - começou no início do ano letivo de 2017, local onde, na ocasião, ocupávamos a posição de coordenador pedagógico. Três vezes por semana visitamos regularmente o espaço onde estão localizadas as áreas destinadas à turma. Em todos os momentos em que fomos ao espaço da Educação Infantil, mesmo que não estivéssemos em contato direto com as crianças, dialogávamos com elas. O afeto, o zelo e a colaboração são alguns dos ingredientes dessa relação.

Assim, passados dois meses de acolhimento e integração na Educação Infantil, período recheado de insegurança, choro e desconfiança por parte de algumas crianças, fomos chegando devagar, sendo acolhidos também por eles. Eles estavam, nesse momento, inaugurando o encontro com a cultura escolar. Essa estratégia possibilitou o planejamento do processo criativo e relacional em cada uma das seis produções de teatro com bebês que realizamos.

Posteriormente, ficamos juntos em um período correspondente entre a chegada das crianças na escola, às 13h, até a saída, às 17h30min, inicialmente duas vezes por semana, participando de atividades do cotidiano.

Batidas de Molière ou terceiro sinal

Ao chamarmos esta seção de “Batidas de Molière” estamos fazendo uma homenagem ao dramaturgo Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, e correlacionando-a com os encontros-teatro. Cada encontro realizando o teatro com os bebês consideramos uma batida de Molière, com a qual chamamos atenção para outra maneira de, objetivamente, incluir os bebês no contexto cênico.

Somos espectadores e atores de nossas enunciações no teatro com bebês. Carregamos uma responsabilidade ética com eles. Temos conhecimento de que a produção de textos teatrais é vasta e, dentro dessa vastidão, inspiramo-nos em alguns autores e em alguns conceitos por eles desenvolvidos: Bertholt Brecht (1967) com o conceito de quarta parede e distanciamento no teatro épico; Tadeusz Kantor (2008), com o Manifesto do Teatro Zero; Antonin Artaud (2006), com o Manifesto do Teatro da Crueldade; Hans-Thies Lehmann (2011) com o teatro pós-dramático; Augusto Boal (1980) com o teatro do oprimido, entre tantos outros. A cena contemporânea e o teatro das formas animadas (AMARAL, 1996), com ênfase, nesta pesquisa, no teatro de objetos; as artes visuais foram também inspiradoras dessa realização.

Os bebês e suas teatralidades estão presentes na vida. Fizemos alterações estéticas em todos os encontros. Nesse dia, montamos um grande tecido de algodão cru, enchemos bolas de festa e as encobrimos por baixo dos relevos que desenhamos com o tecido no chão. Fizemos uma abertura no tecido e ficamos dentro dele, como se todo o piso fosse extensão do nosso corpo. As paredes da sala foram revestidas com um tecido voal preto, caracterizando o espaço cênico. O piso da sala foi encoberto por um longo tapete de algodão cru e uma mala verde fechada com os objetos dentro. O figurino foi o mesmo utilizado nos encontros anteriores: thai verde, uma bata indiana branca e meias. A narrativa se vinculou à retirada dos objetos de dentro da mala, sem o compromisso de linearidade e acabamento.

Aceitaram participar, por convite, cinco crianças: Pedro (terceira vez), Helena (terceira vez) Miguel Jorge (primeira vez), Beatriz (segunda vez) e Francisco (primeira vez). O espaço onde se realizou ao encontro foi a sala do Infantil 2. A professora Ana Elisa nos acompanhou nessa atividade, juntamente com a professora Luana. (IDEM)

As crianças entraram acompanhadas. Como Francisco ficara relutante em entrar, Ana Elisa permaneceu com ele na porta e demos início à atividade. Nenhuma criança se sentou. As meninas ficaram ao lado da Prof.ª Luana, que estava filmando. Começamos:

- Vamos fazer teatro?

Pedro, vendo a mala, apontou para ela e falou:

- A malha.

Naquela ocasião, entendemos que ele dissera “agora”. Assistindo ao vídeo, ratificamos

- Agora? - pausa - Vai sair um monte de coisas interessantes daqui de dentro.

Helena descobriu uma bola e ficou segurando. Miguel Jorge, que não quisera participar do encontro anterior, dessa vez entrou com Ana Elisa. Pedro, curioso, expressava-se:

- Ham, ham, ham - sempre sorrido.

Retiramos da mala, silenciosamente, a alfaia. Miguel Jorge sorriu, num misto de espanto e cumplicidade poética. Ele e Pedro ficaram observando aquela peça sozinha sobre o pano branco do cenário. Helena achou outra bola sob o cenário. Contudo, como não descobriu como retirá-la de lá, interessou-se pela alfaia. Com a ponta dos dedos, tocou três vezes na alfaia dizendo:

- Assim!

Como Pedro permanecia em pé, querendo tirar os objetos da mala, falamos:

- Tem mais, vamos ver. Olhamos com mistério para a mala, abrindo só um cantinho e expressamos: - Ohhhh!

Pegamos o chocalho do Xingu. Pedro imitava:

- Ohhhhhhh hemmmm - sempre sorrindo, o interesse dele era a mala.

Miguel Jorge, em pé do lado da alfaia, ficou embevecido olhando para ela e também para a mala. Helena sorria de minhas expressões. Tiramos, pelo cantinho da mala, a boneca andina e expressamos surpresa:

- Haamm!

Deixamos perto de Helena, falando:

- Olha só!

Como Pedro insistia em saber o que havia dentro da mala, dissemos:

- Está duro de abrir aqui, né? Tá é ruim de tirar. Haaammmm.

Pegamos uma caixa pequena com o que sobrara do carrossel, a caixa de música cujos cavalinhos haviam se desprendido no encontro anterior. Como Pedro queria pegá-la de qualquer jeito, seguramos a caixa e demos corda na caixinha de música, sem tirá-la de dentro da caixa. Pedro, com zelo, retirou-a de dentro da caixa. Mantivemos a caixa na mão. Enquanto isso, a música do carrossel que Pedro segurava em sua mão ocupava todo espaço sonoro da sala. Pedro ficava falando:

- Iiiiiiiii iiiiiiiiiiiiiiiii.

Continuamos segurando a caixa. Em seguida, Pedro devolveu a caixinha de música para dentro da caixa. Miguel Jorge se agachou para pegar a tampa da caixa. Ao ver isso, Pedro tomou-lhe a tampa, como se querendo reafirmar que tal atitude seria, na verdade, dele e não do colega, resmungando e enunciando que caberia a ele tampar a caixa, fazendo-o:

- RHRHRHHHHHH!!!

Fazendo um movimento como se fosse apresentar a caixa para nós, disse:

- OAAAAAAAA.

Ele abriu de novo a caixa onde estava a caixinha de música. Retirou-a, manifestando-se surpreso e, de certa forma, decepcionado com o que vira:

- Oaaaaa iiiiiiiiiiiii.

Retirou a caixinha de música, falando:

- Iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, a não! A não ummbigho - vai falando, falando.

Ficamos imaginando o que acontecera. No encontro anterior, a caixinha de música tinha os cavalinhos do carrossel. Ele percebeu que faltava algo, uma vez que só havia a caixa, e gostava muito de ficar com o carrossel, ou seja, sua memória de uma semana encontrava-se ativa. Beatriz, que até então estava do lado da Prof.ª Luana, também se interessou pela movimentação de Pedro e sorriu. Miguel Jorge riu com ternura, percebendo a fala de Pedro sobre o carrossel.

Enquanto isso, a música do carrossel que Pedro segurava em sua mão continuava ocupando todo o espaço sonoro da sala. Num lapso de segundo, Miguel Jorge tocou com o dedo indicador na caixinha de música rindo. Francisco voltou para a varanda com a Prof.ª Ana Elisa. Beatriz e Helena ficaram em volta da Prof.ª Luana. Pedro, em seguida, guardou a caixa de música dentro da caixa onde estava o carrossel e que ficara sobre a mala. Retirei-a de cima da mala, colocando-a perto de Beatriz, que se mantinha perto da professora Luana ocupada em filmar.

Helena estava procurando as bolas de festa. O relevo no tecido do chão chamou sua atenção. Continuamos a narrativa:

- Vamos ver o que tem mais dentro da mala?

Helena parou de procurar as bolas, olhando-nos muito interessada. Beatriz não saiu de perto da Prof.ª Luana. Como ela estava atrás da câmera, até esse momento ainda não havíamos falado nada dela.

Começamos a retirar as caixas no estilo matrioska que trouxéramos.

- Hammmm, uma caixa que está dentro da caixa.

Enquanto isso, Francisco ainda estava relutante em entrar na sala, permanecendo na porta com a professora Ana Elisa. Embora não tivesse entrado completamente na sala, via tudo e prestava atenção, aparentando alguma curiosidade. Sua atenção voltou-se para a bola de festa azul que Helena tinha deixado cair na entrada.

- Outra caixa, outra caixa! - continuamos.

Pedro e Miguel Jorge se interessaram de imediato, apossaram-se das caixas e agacharam para terminar os destampes. Miguel Jorge segurou uma em seus braços, sorrindo. Falamos:

- Não é?

Nesse momento, Pedro, enxergando a bola azul que Helena tinha deixado cair no início, disse bem alto:

- Aquiii boooooo!

Todos olharam para ele, desejosos de um desdobramento ou de vontade de ter ido lá pegar a bola ou de estar com aquela bola naquele momento. Sentindo-se observado, dirigiu-se para o centro da sala e, sorrindo, falou:

- Ohhhh! - dando um tapa na bola com a outra mão e jogando-a para o alto, num instante poético e de encantamento. A bola caiu no chão. Miguel Jorge falou:

- Ahaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! - como se desejasse que aquele momento se expandisse por mais tempo.

Pedro sorriu e jogou de novo a bola para o alto. Nesse momento, pedimos para a professora Luana mudar o local da filmagem para ter outras possibilidades de olhar para aquele momento e também para observar o que aconteceria com Beatriz.

A Prof.ª Ana Elisa optou por não fechar a porta da sala e ficou acompanhando Francisco na porta. Continuamos a narrativa:

- Tem mais coisas dentro da mala.

Retiramos dois pneus de borracha pequenos e empurramos um deles rolando pelo cenário. Miguel Jorge desejou ficar com o outro.

Beatriz, com a troca de lugar da Prof.ª Luana, ficou ainda em pé onde estava e, juntamente com Helena, continuava observando o que retirávamos da mala, sem muitas reações. Pedro estava com a bola na mão. O trajeto do pneu chamou atenção de todas as crianças. Pedro voltou a se interessar pelas coisas que saíam de dentro da mala. Helena tropeçou no relevo e caiu sem chorar.

Retiramos duas cuias de coco seco e começamos a fazer com elas o som de cascos de cavalo. As crianças olharam, querendo identificar que som era aquele. Pedro, referindo-se à bola, falou:

- A gooool.

- A gool saiu - dissemos.

Empurramos a bola na direção de Miguel Jorge, que se alegrou, mas Pedro reclamou:

- AIIIIII - expressando-se como se a bola fosse dele.

Miguel Jorge agarrou com vontade a bola. Nesse momento, retiramos o candeeiro da mala, acendendo-o e apresentando-o para Helena e Beatriz, sem falar nada, apenas com a ação.

Pedro, inicialmente, abandonou a ideia da bola que Miguel Jorge segurava com tanta avidez. Exercitando sua curiosidade, abriu a mala e, debruçando-se sobre ela, expressou:

- AHHHHH!

Beatriz, aparentemente, ainda não se interessara por participar ou pegar alguma coisa. Helena, embora apresentasse claro interesse no que estava acontecendo, pegara apenas um único objeto, a bola, que pegara no início do nosso teatro. Pedro, depois que ‘perdera’ a bola para Miguel Jorge, colocou as mãos na cabeça, como que se perguntando “E agora”? Pegamos a sineta e tocamos, colocando-a em direção a Francisco. Fechamos a mala. Pedro se interessou pelo pneu. Beatriz e Helena encontraram a caixa com o que sobrara do carrossel e com o candeeiro. Miguel Jorge ainda continuava com a bola, enquanto Pedro se interessava pelo sinete.

- Olha outra coisa que está guardada - falamos, tirando debaixo do cenário um cavaquinho com três cordas com capa. Tiramo-lo da capa, tocamos em suas cordas, chamando atenção de Helena, Miguel Jorge, Pedro e Francisco. Helena ficou envolvida com a caixinha de música e Pedro tocava a sineta. Helena se interessou pelo som do cavaquinho. Interessando-se também pelo som do cavaquinho, Pedro bateu na alfaia com a sineta, logo em seguida pegou o chocalho indígena e começou a tocar. Helena e Beatriz se encontraram com o candeeiro, as caixas e a caixa de música do carrossel. Miguel Jorge pegou a cuia de coco, olhando, curioso, para a disposição dos objetos.

Pedro largou o chocalho e pegou um pneu. Francisco, que estava ainda com a professora Ana Elisa na porta, começou a repetir algumas palavras:

- Hauhanauhna.

Perguntamos se seu nome era Francisco e ele respondeu:

- Herhananummm.

Chamamos Pedro e pedimos para ele entregar o cavaquinho a Francisco. Ele atendeu nosso pedido e entregou-lhe o cavaquinho. Pedro tocou o sinete para Francisco e riu alto:

- HEHEHEHEH.

Francisco sorriu e Pedro continuou a tocar o sino. Nesse momento, retiramos de debaixo do cenário uma das irregularidades do relevo: uma bola de festa.

- Olha, uma bola!

Uma pequena disputa pela bola entre Pedro e Miguel Jorge começou e falamos:

- Outra bola! - Esticando-nos, conseguimos pegar a terceira bola embaixo do cenário e falamos: - Outra bola.

Pegamos a caixinha de música, demos corda e o som ecoou pelo espaço da sala. Pedro ficou com uma bola, Miguel Jorge com duas, Francisco com o cavaquinho e Beatriz e Helena sentadas com os objetos que estavam ao seu redor, o candeeiro, uma boneca e as caixas. Miguel Jorge se apoderou de três bolas. Com o silêncio da utilização dos objetos, sons que pareciam desejar ser palavras saíam das bocas das crianças. Pedro jogou sua bola para o alto. Aproximamos os objetos das meninas. Com esse movimento, Miguel Jorge se dirigiu até elas e começou a acompanhá-las até que Helena jogou uma das bolas para longe, levandoa a ir atrás dessa bola.

Eles começaram a caminhar pela sala. Jogamos, então, algumas bolas para o alto, com o que Pedro ficou animadíssimo. Como Francisco largou no chão o cavaquinho, Miguel Jorge o pegou e ficou dedilhando ali mesmo. Francisco começou a pedir uma bola, sem, porém, soltar o dedo da professora Ana Elisa.

- Pegue, Francisco - falamos.

Quando Francisco percebeu que Miguel Jorge pegara o cavaquinho, começou uma disputa por ele. A Prof.ª Ana Elisa interferiu e fez com que ele largasse o violino. Enquanto isso, Francisco não parava de falar:

- Haehahha hhaaaaa hahahhhjjjmm.

Importante lembrar que a atitude da professora não correspondia ao propósito do teatro com bebês, muito embora as duas crianças estivessem perguntando com quem ficaria o cavaquinho para ela com seus olhares. Francisco reagiu, reclamando:

- Mamamamh hamham.

Enquanto isso, pegávamos mais um objeto na mala, um livro.

- Um livro que conta uma história da mala que tinha um monte de coisa dentro, coisas que não servem, coisas inservíveis, mas que, em nossas mãos, têm alguma utilidade.

Miguel Jorge foi se proteger do meu lado com o cavaquinho com apenas três cordas. Helena foi para perto da Prof.ª Ana Elisa e, quando começamos a falar, ficou em pé ao nosso lado. Falamos das coisas inservíveis e ela ficou atenta. Pegamos uma cuia de coco e jogamos poeticamente para cima enquanto falávamos. O som da caixinha de música ecoava ainda pela sala. Beatriz continuava interessada nas caixas, na boneca e muito atenta ao que era falado. Dirigimo-nos para Miguel Jorge:

- Um cavaquinho desafinado com apenas três cordas.

Miguel Jorge pegou a caixinha de música do carrossel.

- Uma caixinha de música de carrossel sem o carrossel, os pneus pequenos sem os carros.

Pedro, descobrindo um objeto que saíra da mala, um cesto dos desejos oriundo dos índios do Xingu, perguntou:

- E ahiiiiiiiii?

- Aqui é onde a gente guarda nossos desejos e nossas vontades - respondemos.

Enquanto isso, Helena, descobrindo o tecido preto transparente que encobria as paredes, foi para trás dele, sendo seguida por Francisco que também foi para lá, rindo.

Nesse momento, os risos de Francisco e Helena chamaram atenção de Miguel Jorge que se dirigiu para onde eles estavam com o cavaquinho na mão, rindo muito e falando:

- Oiiiiiiiii!

- Oiiiiiiiii - respondemos Francisco, gostando, continuou falando:

- Oiiiiiiii.

Miguel Jorge, rindo, saiu do grupo. Enquanto isso, Pedro aderiu facilmente à cena atrás do tecido transparente. Rindo muito, Beatriz finalmente se levantou e foi para onde estava Helena rindo. Enquanto Helena entrava, Francisco saía e ia se sentindo à vontade.

Pronto, agora eram os quatro, Helena, Beatriz, Francisco, que voltara, e Pedro atrás do tecido. Todos rindo muito e conversando entre si.

- Aoia, haaa, heeee, mamama. O som da caixinha de música era repetido como um mantra. Miguel Jorge dedilhava as três cordas do cavaquinho desafinado e as risadas das crianças produziam a música do ambiente. Nisso, falamos: - Ninguém quer entrar aqui em baixo né? Ohh.

Por um instante, entramos debaixo do piso do chão, retiramos as bolas restantes, jogando uma delas em direção aos quatro. Essa ação pouco chamou atenção. Francisco, a seguir, interessou-se pelo chocalho do Xingu, apontando:

- Esse, esse.

Ele insistia que alguém pegasse para ele, não tomando a iniciativa de fazê-lo. Miguel Jorge pegou o pneu, Francisco, a alfaia e Pedro gritou:

- Nãooo!

Francisco entregou a alfaia para a Prof.ª Ana Elisa, que a segurou. Nós o observávamos enquanto ele continuava a apontar o dedo para o chocalho. Ele, finalmente, caminhou até o chocalho, pegou-o e foi em direção à alfaia que estava no colo de Ana Elisa, começando a fazer de baqueta o chocalho do Xingu. Pedro e Beatriz continuavam atrás do cenário transparente. Descobrindo que poderiam andar por toda a sala, começaram a fazê-lo, rindo. Helena saiu de trás do cenário e caminhou pela sala, enquanto Miguel Jorge continuava com o cavaquinho e o pneu.

O chocalho do Xingu que estava com Francisco começou a se quebrar. Miguel Jorge, com o cavaquinho, começou a andar pela trilha deixada por Pedro e Beatriz atrás do cenário. Também permanecemos atrás do cenário na parede atrás de nós. As crianças estavam totalmente à vontade, cada uma encontrando alegria no que estava fazendo. Embora fosse um clima de quase caos, ao mesmo tempo propiciava que cada uma das crianças protagonizasse as suas enunciações. Tudo era permitido, ou seja, elas não eram impedidas de fazer o que quisessem e descobriram isso. Pedro saiu de trás do tecido e jogou os pneus para o alto. As sementes do chocalho do Xingu tocado por Francisco na alfaia começaram a soltar e Beatriz, Helena e Miguel Jorge se interessaram pelo evento. E o chocalho quebrou… Francisco riu muito. Todos ficaram em volta dessa cena. Helena ficou com a caixinha de música. Beatriz, tentando colocar a mão na alfaia, correndo o risco se ser machucada pelas batidas de Francisco, falou:

- Quebouuu, eita - colocando os restos do chocalho no chão. Todos olharam. Como num ritual, Pedro se agachou, pegou o chocalho em profundo silêncio, falando baixinho:

- Quebou. Tentou juntar os cacos e a cena continuou. Para nós, foi um exercício do desapego.

Outros interesses surgiram. Francisco reclamando, quase com manha, queria pegar o cavaquinho cuja posse Miguel Jorge disputava com ele, acabando por consegui-lo. Francisco, insistindo, conseguiu recuperar o cavaquinho. A disputa continuava. Miguel Jorge sentado e Francisco em pé no canto da sala quase chorando, dizendo:

- Mãeeeeeeee.

De certa forma, acabaram dividindo o instrumento. Pedro, demonstrando não gostar que Miguel Jorge o dedilhasse, falava:

- Não!

Pedro se apropriou do cabo de madeira, o que sobrara do chocalho, e começou a bater nas bolas que ele mesmo jogava para o alto.

Assim foi terminando nosso encontro. Beatriz brincando com o carrossel; Helena, com a bola azul, nós desmontando lentamente o cenário de panos transparentes. Pedimos para ajudar a guardar os objetos. Como fizera no último encontro, Beatriz ajudou a guardar os objetos na mala. As demais crianças continuavam brincando. Ao que parecia, elas não tinham a sensação de término, achavam que iria começar outra novidade a qualquer momento. Pedro, logo após de entregar o cavaquinho para guardar, pegou-o novamente para tocar. Agradecemos a todos. As professoras foram chamando as crianças para a varanda. Cada uma, a seu tempo, foi saindo. Enquanto isso, ficamos desmontando o cenário, guardando os objetos nas malas e refletindo sobre esse encontro.

A cortina continua aberta

Este artigo, pela tradição acadêmica, tem como objetivo principal apresentar as considerações finais. No entanto, ao considerarmos que no teatro com bebês, enquanto acontecimento, mesmo depois que a atividade chega ao fim eles continuam criando interesses brincantes, não seria sensato, tendo em vista a poética das crianças, apresentar uma conclusão.

A possibilidade de brincar pode ser considerada uma das características significativas do teatro com bebês. A oferta de brincadeira com situação imaginária, narrativa e objetos não objetiva a intencionalidade de regras: “Qualquer brincadeira com situação imaginaria é, ao mesmo tempo, brincadeira com regras e qualquer brincadeira com regras é brincadeira com situação imaginária.” (VIGOTSKI, 2008, p. 28) As possiblidades de apresentar o teatro para e com os bebês na Educação Infantil são múltiplas e estar disponível para essa vivência é fundamental para os processos de instrução e aprendizagem.

No texto Sobre o teatro infantil, Vigotski (1923, apud PEREIRA, 2018, p. 83) fala do teatro de crianças e discorre sobre a complexidade da denominação ‘teatro infantil’:

O teatro para crianças ou teatro das crianças - numa palavra - para o adulto existe um monte de questões pedagógicas, artísticas, um monte de dificuldades e dúvidas insolúveis naquilo que é denominado teatro infantil.

Porém, para a criança, está tudo decidido e tudo claro: o teatro para ela é uma brincadeira elevada (ou seja, duas vezes mais interessante), e não uma nova narrativa do conto que ela compreende sem a representação. E como é bom que as crianças não se interessam por questões pedagógicas. […] Há tantos círculos de dramatização nas escolas, quantos espetáculos. Não precisa procurar as crianças prodígio, mas inventar e organizar uma vez num certo tempo uma grande brincadeira para as crianças. É preciso semear não apenas “o racional, a bondade, o eterno”, mas cuidem de alguma forma também do divertido, do ócio, do interessante. Ponham sal do pedacinho de pão para a criança, senão fica insosso e seco - sal de riso e lágrimas, sal do teatro.

A brincadeira é, portanto, um dos aspectos importantes no teatro para crianças, conquanto essa concepção ainda não esteja consolidada na contemporaneidade. A evidência do irrepetível, da produção do novo para e por cada criança nos faz refletir sobre os aprisionamentos viciantes do cotidiano. O teatro com bebês tem o compromisso com o desenvolvimento desse protagonismo, com essa teatralidade e com as suas enunciações na vida. Na Educação Infantil, somos todos atores, artistas plásticos, músicos, contadores de histórias, professoras e professoras brincantes, entre tantas outras possibilidades pedagógicas. É a partir dessa lógica que o teatro com bebês se insere na Educação Infantil. Quando falamos de teatro envolvendo os bebês, reconhecemos que a brincadeira deve ser considerada o principal objetivo dessa atividade.

Entendemos que a transformação dos contextos, do teatro, das relações com os bebês, na Educação Infantil, além de estudos, requer disponibilidade para manter um projeto que tenha por princípio a valorização do ser humano em sua potência criadora.

No teatro com bebês, deparamo-nos com a imitação. As crianças, em alguns momentos, imitam a fala, a ação do outro. Portanto, a imitação foi um dos fatores encontrados no teatro com bebês nos seis encontros realizados na pesquisa. Ela aparece como um movimento das crianças numa perspectiva de criação. Fazemos relação da imitação com o drama. Embora não esteja discutindo o conceito de drama, é oportuno lembrar as crises ou revoluções na periodização das idades (VIGOTSKI, 2006). O drama apresenta, em sua estrutura, duas sensações, a de certa norma e sua violação (VIGOTSKI, 1999). Um dos aspectos que foi evidenciado nesta pesquisa foi a dimensão do irrepetível. Os acontecimentos oriundos da oferta de um teatro com bebês promoveram possibilidades de exercício de suas autorias, de suas ações e de suas diversões nas brincadeiras, com seus enunciados e polifonias. A polifonia é da ordem do discurso e, portanto, do acontecimento: outras vozes se fazem ouvir, num dado momento, num dado lugar, dando origem a uma multiplicidade de sentidos (AMORIN, 2002, p. 12). Podemos fazer aproximações do irrepetível com o movimento, enquanto caráter permanente das transformações. O irrepetível, no teatro com bebês, surge enquanto um movimento das crianças, sendo, sobretudo, um ato criador. Retomamos aqui alguns recortes de narrativas para exemplificar o movimento, o irrepetível e a polifonia.

Outro aspecto que esteve presente durante os encontros foi o gesto de apontar. Esse sinalizador de interesses e quereres apareceu várias vezes e em circunstâncias distintas, principalmente quando um objeto ou brinquedo era revelado, provocando curiosidade. “O gesto de apontar é uma operação que articula uma relação com o objeto ao qual ela se refere ao mesmo tempo com outros sujeitos, aos quais os gestos se dirigem.” (FICHTNER, 2010, p. 252)

As núpcias entre os reinos da brincadeira, do drama, da imitação e a presença constante do irrepetível nessa cronotopia foram se alargando do primeiro ao último encontro com os bebês. Os entusiasmos com a oferta do novo, do surpreendente, as descobertas inusitadas e as correlações com o pré-existente. O diálogo na narrativa, os momentos em que aquele objeto tem dono e é nosso. A disputa pela novidade, a alegria, o silêncio, os gritos, o exercício de suas individualidades, de suas colaborações, no caso da entrega do cavaquinho de Miguel Jorge a Francisco, as produções de acontecimentos constantes e o infindável. O teatro com bebês só se encerra em virtude de as crianças deixarem o espaço, caso contrário, contaríamos outras narrativas a partir das novas descobertas.

A linguagem corporal se envolve intensamente com os objetos e artefatos do mundo, pois o movimento não é um ato mecânico, mas uma das fortes linguagens das crianças, que em conjunto com outras linguagens situam-nas em sua existência no mundo. O teatro com bebês é poesia, pois permite o fluir da vida, das sensações, dos medos, das alegrias, das angústias, do querer, do não querer, o se relacionar com os objetos, com os outros, de ter um espaço que permita um tempo alargado para a experiência com o mundo…

Chegando ao final, mas não fechando a cortina, se é que vamos conseguir fechá-la, assumimos a busca de outras formas de se colocar na vida das crianças, de trazer a experiência do teatro, dessa invenção humana que emergiu em muitos espaços do mundo. Reconhecemos que há muitas formas de fazer teatro e suas interfaces com os bebês e as crianças. Talvez a expressão de Vigotski de Teatro de Crianças (incluindo aí os bebês) possa ser uma escolha acertada, dada a multiplicidade de expressões artísticas possíveis e, nesse sentido, o teatro com bebês, como aqui apresentamos, seja mais uma delas.

Referências

AMARAL, A. M. Teatro de formas animadas: máscaras, bonecos, objetos. 3a ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. [ Links ]

AMORIN, Marília. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho, 2002. [ Links ]

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. (Org. J. Guisburg, Silvia Fernandes Telesi e Antônio Mercado Neto) São Paulo: Perspectiva. 2004. [ Links ]

______. O teatro e seu duplo. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1987. [ Links ]

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo. Martins Fontes, 2006. [ Links ]

______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. [ Links ]

______. Questões de Literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2014. [ Links ]

BARBOSA, M. C. S.; FOCHI, P. S. O teatro e os bebês: trajetórias possíveis para uma Pedagogia com crianças pequenas. Espaços da Escola. Editora Unijuí. Ano 21, nº 69 Jan./Jun. 2011. p. 29-38. [ Links ]

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras estéticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. [ Links ]

BRECHT, Bertolt. Teatro Dialético. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1967. [ Links ]

FRABETTI, Roberto. A arte na formação de professores de crianças de todas as idades: o teatro é um conto vivo. Pro-Posições. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Campinas, SP, v. 22, mar 2011. [ Links ]

FICHTNER, Bernard. Instrumento - signo - mímeses o potencial de “representações simbólicas” na perspectiva da teoria histórico-cultural In: SILVA, Léa Stahlschmidt Pinto; LOPES, Jader Janer Moreira. Diálogos de pesquisas sobre crianças e infâncias. Niterói, RJ: Editora da UFF, 2010. [ Links ]

GASSNER, John. Mestres do Teatro I. Trad. e org. Alberto Guzik e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1991. (Coleção Estudos) [ Links ]

GERALDI, Joao Wanderley. Heterocientificidade nos estudos linguísticos. In: Estudos de Gêneros do Discurso - GEGe-UFSCar. Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da metodologia bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012, p 19-39. [ Links ]

______. A aula como acontecimento. In: GERALDI, Joao Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015. [ Links ]

KANTOR, Tadeusz. O teatro da morte. Org. Denis Bablet. Perspectiva, 2008. [ Links ]

LERMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. Cosac Naify, 2007. [ Links ]

LOPES, Jader Janer Moreira; MELLO, Marisol Barenco de. Autorias infantis: processos intermodais de criação. In: ARAÚJO, Vania Carvalho (org.). Infâncias e educação infantil em foco. Curitiba, PR: CRV, 2017. [ Links ]

______. Quando perdemos a confiança na linguagem? Revista Brasileira de Alfabetização - ABAlf. Vitória, ES, v. 1, n. 5, jan./jun. 2017. p. 15-30. [ Links ]

PAVIS, Pavis. Dicionário de Teatro. Trad. de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005. [ Links ]

PEREIRA, Luiz Miguel. Teatro com bebês, estreia de olhares. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2014. [ Links ]

______. Teatro com bebês, enunciações e vivências: encontros da arte com a vida. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2018. [ Links ]

PINO, Angel. As marcas do humano: as origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2001. [ Links ]

VIGOTSKI, Lev Semyonovich. Quarta aula: a questão do meio na pedologia. Tradução de Márcia Pileggi Vinha. Psicologia USP, São Paulo. 2010. [ Links ]

______. Obras Escogidas. Tomo IV: Psicología Infantil. Madri: Machado Libros, 2006. [ Links ]

______. Psicologia da arte. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [ Links ]

______. Imaginação e criação na infância. Trad. Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. [ Links ]

______. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000. [ Links ]

______. A brincadeira e seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Trad. Zoia Prestes. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, UFRJ- COPPE. Rio de Janeiro, Jun., 2008. [ Links ]

VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaievich. A construção do enunciado e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. [ Links ]

Recebido: 30 de Junho de 2019; Aceito: 04 de Setembro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.