Entrevistadores: Gostaríamos de agradecer sua generosidade por conceder esse tempo extra das suas atividades como pesquisador visitante da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisino, em projeto que contou com o apoio do CNPq. As perguntas nessa entrevista retomam alguns temas do seminário, de palestras e conversas informais deste período, e exploram possibilidades para ampliar nossa inserção na prática dos estudos comparados e na construção teórica da área. Para começar, seria importante saber um pouco mais de sua trajetória acadêmica. Especialmente, seu envolvimento com os estudos comparados em educação. Como os estudos comparados entram em sua vida acadêmica e o que eles aportam para o seu crescimento como pesquisador e educador?
Jürgen Schiewer: Bem, pode-se dizer que a abordagem comparativa, mais ou menos implícita, fez parte da minha vida pessoal e intelectual desde a infância. Pode parecer surpreendente, embora isso esteja ligado à história político-social da Alemanha no período pós-guerra. Nasci em Halle, uma antiga cidade universitária situada na antiga parte prussiana da Saxônia. A partir do verão de 1945, estas zonas pertenceram à zona de ocupação soviética, quer dizer, à posterior Alemanha Oriental. No entanto, devido às convulsões nos finais da Segunda Guerra Mundial e ao caos político e administrativo do pós-guerra, minha mãe decidiu, em 1948, mudar-se com seus filhos para a Alemanha Ocidental, onde meu pai ainda vivia em um campo de prisioneiros de guerra britânico. No outono de 1948, cruzamos a linha de demarcação. Não era uma fronteira verdadeira, não era o muro, mas uma linha de demarcação2. Lembro-me muito bem que éramos um grupo de 15 a 20 pessoas liderados por um guia, que secretamente nos conduzia pelas florestas da Turíngia. Quando os carros soviéticos se aproximavam com os soldados, nós nos escondíamos na neve para podermos ter a chance de finalmente alcançar o lado ocidental. Ao final de novembro de 1948, vi meu pai pela primeira vez. Eu tinha 6 anos e ele era um homem desconhecido para mim. Importante destacar o papel extraordinário desempenhado durante todo esse tempo, nesses processos, pelas mulheres que se obrigaram a manter a vida familiar, sustentar a vida, etc. Bem, chegamos então à Westfália3 e, no ano seguinte, nos mudamos para a Renânia4, onde passei toda minha infância e juventude e os primeiros anos de meus estudos universitários. Para minha irmã e para mim, a perda de nossa casa natal e o brusco reassentamento da Alemanha oriental, essencialmente luterana, para a Renânia ocidental, e profundamente católica significou algo como um choque cultural. A Renânia não era minha região natal. Nossa família se considerava forasteira na Renânia. Não falávamos o dialeto específico e qualquer um podia perceber claramente que éramos pessoas vindas da parte oriental da Alemanha. Isso quer dizer que, mesmo dentro do meu próprio país, eu era um pouco estrangeiro. Lembro-me muito bem das discussões familiares em torno da mesa, durante o jantar ou o almoço, quando éramos sempre nós e os outros… nós e os outros. Exatamente como o título de um livro publicado mais tarde por Edmund King, “Nossas Escolas e Outros”5, nós e os outros. Esse tipo de configuração é quase como o fundamento de não pertencimento, o que eu tentei explicar um pouco no seminário aqui na Unisinos. Mais tarde veio a habilitação profissional. Comecei meus estudos na Universidade de Bonn. Inicialmente, queria estudar Filosofia e Germanística6. Contudo, um professor de latím, de mais idade, já com mais de 60 anos que veio da Áustria antiga e foi oficial na Primeira Guerra Mundial, me disse que eu deveria estudar alguma coisa mais séria e não Filosofia (risos). Eu tinha um interesse particular pelo francês, assim o escolhi como uma terceira língua, e cujos estudos eram completamente gratuitos. Comecei com o latim, depois o inglês e então escolhi o francês. Depois, comecei a estudar Romanística na Universidade de Bonn. E a Romanística, enquanto estudo das línguas e literaturas românicas, geralmente cobre Francês, Espanhol, Italiano, Romano, Romeno, Português, etc. Também tive a felicidade de encontrar, já em Bonn, professores de literatura comparada, que tinham estabelecido novamente a cátedra de literatura comparada em uma universidade da Alemanha Oriental.
Entrevistadores: Isso ocorreu em que ano?
Jürgen Schriewer: Em 1963. Recordo-me bem de Horst Rüdiger7, um sujeito muito intenso que fundou uma revista de literatura comparada e da qual gostava muito. Ele acabou me estimulando e me inspirando muito mais do que todos os seminários e conferências de que participei sobre Germanística ou Romanística. Um ano depois, mudei para a Universidade de Würzburg8, no norte da Baviera, como era habitual nestes tempos. As pessoas mudavam de uma universidade para outra e novamente tive satisfação de poder estar em contato com professores germanistas suíços, que desenvolviam a sua disciplina de uma forma intencionalmente comparada. Era tanto o caso da literatura alemã moderna, sempre examinada dentro do marco histórico comparativo na relação mais ampla com as literaturas europeias clássicas e moderna, como o caso do professor de literatura medieval que estudava sistematicamente as relações de influência da literatura medieval francesa, as suas tradições no alemão, suas adaptações, suas elaborações mais completas e mais poéticas, particularmente o mito antigo de Tristão e Isolda, que na minha opinião é a obra absolutamente mais majestosa de Gottfried von Strassburg9, uma das composições literárias mais poéticas da língua alemã, no alto alemão medieval o ‘alemánico’, falado no sudoeste do país.10 Os Alemanni se fixaram no sudoeste da Alemania, a maior parte da atual Suíça y Alsácia11, e é por isso que os franceses chamavam seus vizinhos limítrofes de alemães, mas o termo designa apenas uma parte linguística. Quase toda a literatura alemã da Idade Média foi produzida e redigida no dialeto alemânico. E é quase uma música em forma de linguagem.
Então, durante quase todos os meus estudos literários, ou histórico-literários e filosóficos, eu já estava preparado para estabelecer relações com os outros, uma espécie de interesse comparado. Também a formação de professores do ensino médio, nessa época, cotejava estudos em seus respectivos temas. Eram estudos de Germanística e Romanística para poder mais tarde ensinar o alemão, a literatura alemã e a francesa, sendo do mesmo modo obrigatório cursar as disciplinas de Pedagogia, Ciências da Educação e Filosofia. Realizei meus primeiros exames em Filosofia e Pedagogia em Würzburg. O professor de Pedagogia desta época me sugeriu que quando eu fosse à França, para dar sequência aos meus estudos, observasse um pouco as reformas que aconteciam por lá naquele momento. Quando retornei, apresentei-lhe um informe sobre as discussões da reforma educacional na França e, então, esse professor me ofereceu uma posição como pesquisador depois que eu realizasse os exames formais12. Depois de esperar mais de dois anos para que eu pudesse terminar e passar nos meus exames, pois eram provas muito difíceis na Baviera, ele manteve sua promessa e foi muito correto nesse sentido. Uma semana depois, ainda um pouco cansado de me preparar para os tais exames, que consistiam de avaliações escritas e orais durante um período de 5 meses aproximadamente, iniciei minhas atividades no Instituto de Ciências da Educação como assistente de pesquisa e escolhi como tema minha tese de doutorado as reformas nas universidades francesas. Um tema que no final dos anos 60 era muito atual. Com uma bolsa do governo francês, me estabeleci em Paris para adiantar minha pesquisa por alguns meses. No retorno conheci minha esposa, fomos morar juntos e terminei minha tese de pouco mais de 500 páginas. Um pouco descritiva, claro, mas bastante abrangente. Depois de obter o doutorado me perguntei: bem, o que você vai fazer a partir de agora? O professor de literatura medieval alemã propôs que eu me juntasse à sua equipe de pesquisa porque ele sabia de meus conhecimentos linguísticos no francês e alemão. Contudo, não me agradava dedicar toda minha vida à Filologia, entendida no sentido estrito. Eu também podia entrar na carreira das Ciências da Educação, como estimulou meu professor de Pedagogia, mas esse é um campo um tanto impreciso. E o que me interessou, naquela época, foi a abertura ao mundo que a educação comparada possibilitava. Eu tinha começado a ler publicações neste campo realizadas por outros professores desse tema na Alemanha. Estava muito interessado no conhecimento da Europa Oriental e seus diferentes países. Foi por isso que, depois de obter meu doutorado sobre as universidades francesas, decidi dedicarme à educação comparada. Esse assunto era emergente, mas já aos 30 anos de idade eu olhava para o meu crescimento pessoal e depois acadêmico, sempre observando questões comparativas: nós e os outros. Interessante, não é? Como se forma uma perspectiva naturalmente comparada.
Entrevistadores: Muito obrigado por compartilhar essas experiências de sua vida e formação. Provavelmente foi assim que, na França, Durkheim entra muito fortemente em sua vida acadêmica…
Jürgen Schriewer: Depois de conseguir meu primeiro cargo de professor em Frankfurt estudei muito o trabalho durkheimiano. Na realidade, eu era fascinado por Emilio Durkheim e, inclusive, foi até possível, em Frankfurt, nos anos 1970 ou 1980, organizar um seminário com 10 a 12 alunos para estudar e debater seus textos em francês, o que atualmente seria impossível.
Entrevistadores: E agora, Professor Schriewer, dando um salto de Durkheim para os momentos atuais. Como você vê a educação comparada, hoje? Quais as principais tendências, a partir dessas origens com Durkheim?
Jürgen Schriewer: Gostaria de começar com a citação de uma análise de história comparada cujo tema eram os processos de alfabetização e o papel desempenhado pela escola primária em certas partes da Alemanha e da França. Esse estudo foi realizado por um historiador francês, que ainda vive em Berlim, e ele assim se refere ao tema: “Nada é mais fascinante que o estudo histórico comparado, mas nada é mais difícil”. Embora essa seja uma percepção muito perspicaz e pertinente sobre a tarefa comparada, infelizmente, o que observo durante os grandes congressos, não só na Alemanha, mas na Europa, nos Estados Unidos, ou seja, internacionalmente, é que muitas pessoas estão trabalhando com a educação comparada como se fosse a matéria mais fácil do mundo. Na verdade, esse é um dos campos de estudo educacional mais difíceis e pressupõe conhecimento da linguagem, bem como de diferentes áreas com seus domínios culturais e intelectuais específicos. Pressupõe, ainda, uma enorme sensibilidade com relação às diferenças, às particularidades culturais.
Além, é claro, do conhecimento teórico necessário para poder conceituar, para explicar de maneira razoável tudo isso, para chegar a conclusões convincentes. Nesse sentido, no âmbito da educação comparada, de maneira geral, da forma como ela se apresenta em grandes conferências mundiais, encontramos muitas propostas, apresentações e documentos que não despertam grande interesse. São trabalhos descritivos vinculados a algumas interpretações fáceis e que favorecem posições reformadoras. Por isso, existe um choque entre a realidade e um campo fascinante que se desenvolve, assim, digamos, de forma um pouco insuficiente. Assim se amplificaram todos os estudos que estivemos discutindo durante dois dias sobre comparações simples e complexas, sociocentrismo e perspectivismo13 e toda esta série discussões que finalmente nos auxiliam a identificar o sociológico e epistemológico. Ao seguir uma lógica epistêmica, a educação comparada parece estar sendo muito mais materializada pelos sociólogos do que pelos educadores, principalmente em certos estudos norte-americanos, o que, de certa forma, é instigador. Posso me referir a teóricos como Erwin Epstein ou Joseph Farrell, grandes especialistas da América Latina, e também aos nossos amigos de Stanford, da corrente neoinstitucionalista14, tais como Francisco Ramírez, natural das Filipinas. Ramirez mudou-se para os Estados Unidos e compartilha um pouco do profundo encontro pessoal com diferentes áreas de estudo, sendo professor de educação comparada.
Entrevistadores: Confirma-se a importância da trajetória pessoal nas escolhas profissionais.
Jürgen Schriewer: Não tenha dúvida! Os Ramirez são uma das grandes famílias filipinas de origem castelhana. Gostaria de destacar também os historiadores dedicados à história comparada como Fritz Ringer15, de origem alemã, mas que emigrou para os Estados Unidos com sua família aos 6 ou 7 anos e, talvez por isso, dedicou-se durante toda a sua vida a temas comparativos entre a Europa e a América do Norte, como por exemplo, a explicação da trajetória político-ideológica da Alemanha dentro desse marco das sociedades ocidentais. Um grande historiador! Um de seus livros mais famosos chama-se O Declínio dos Mandarins Alemães. Os grandes catedráticos das Ciências Sociais dividiram-se entre uma corrente minoritária dos modernistas, uma corrente majoritária dos conservadores e um grupo de pessoas sem vinculação alguma. E alguns dos grandes nomes de Ringer eram Max Weber, Georg Simmel, enfim, os modernistas. Então, o encontro com historiadores comparativos e todo o resto também acabaram me estimulando a perceber a diferença entre uma reflexão reformadora internacional e uma ciência da educação comparada propriamente dita. Isto se mostra claramente em meus trabalhos desenvolvidos durante minha estada em Frankfurt, por exemplo obras que tratavam das estruturas da educação profissional e vocacional na França e na Alemanha. Mais tarde apresentei um grande projeto de pesquisa sobre a organização universitária e o desenvolvimento teórico-conceitual da Pedagogia ou da Ciência da Educação também na França. Enfim, existia muita ênfase nas comparações franco-alemãs. Quase nunca publiquei estudos de caso sobre um país apenas. Sempre procurei introduzir a comparação sistemática combinada com uma abordagem histórica. Dessa forma, desenvolvi pessoalmente, com meu estilo de trabalho, a perspectiva de estudos histórico-comparados conceituais, e na medida do possível, de acordo com os referenciais teóricos estabelecidos.
Entrevistadores: Neste sentido, como a sua visão se relaciona com os neoinstitucionalistas? Como dialoga com a concepção neoinstitucionalista?
Jürgen Schriewer: Numa primeira fase de leituras, portanto, de recepção, achei essa perspectiva muito instigante, muito pertinente. Existe um sentimento ambíguo quando se lê esses textos, pois sempre parecem absolutamente convincentes. Contudo, quando você reflete sobre eles e quando se confronta essas leituras com a realidade e seus próprios conhecimentos, os questionamentos aparecem. Quando eu já estava em Berlim, começamos a estruturar uma pesquisa longitudinal, mais de oito décadas, em grande escala sobre o desenvolvimento das externalizações em diferentes áreas, com o objetivo de examinar certas hipóteses da abordagem neoinstitucionalista.
Entrevistadores: Poderia falar um pouco da externalização, como um conceito fundante em sua reflexão?
Jürgen Schriewer: Esse conceito foi desenvolvido no final dos anos 80. O primeiro ensaio onde tentei desenvolver o conceito usando todas as fontes retiradas da Sociologia e da Antropologia Histórica do conhecimento foi apresentado em uma Festschrift16 dedicado a Niklas Luhmann, discutido pessoalmente com ele. Participei de um evento acadêmico em homenagem aos seus 60 anos e foi um debate muito produtivo. Mais tarde tive o privilégio de descobrir, cada vez mais, em suas notas de publicações posteriores, bem (risos)… uma referência para Jürgen Schriewer, nos ensaios, artigos ou livros. Isso foi, de certa forma, intermediado por um colega de Hamburgo, Karl-Eberhard Schorr, que foi coautor de Luhmann, talvez seu mais íntimo amigo pessoal. Luhmann era uma pessoa muito fechada, muito seca, um jurista, um administrador, que podia parecer um burocrata, e que ao mesmo tempo possuía uma capacidade extraordinária de elaboração, e também para desenvolver e combinar dados, lidar com os mesmos em quadros teóricos, de jogar com diferentes hipóteses, etc. Karl-Eberhard Schorr, um herdeiro de uma grande família industrial de Hamburgo. Schorr morava em sua casa, à beira do Rio Elba, e, eventualmente, convidava pequenos grupos de aproximadamente vinte e cinco pessoas da área para debater temas que pudessem ser de interesse compartilhado por Luhmann. Karl-Eberhard Schorr, esse personagem impressionante, operou como um mediador para certos especialistas das ciências da educação conhecidos por seus interesses teóricos, repassando a Luhmann todas as nossas observações, já que eles trocavam reflexões permanentemente. Dessa forma, desenvolvi a primeira versão básica, no final dos anos 80, que foi mais tarde retomada para suavizar um pouco todos os conceitos abstratos, para enriquecê-la com um conteúdo mais empírico, bem como delinear uma forma de incorporar outras sociedades e o desenvolvimento internacional como um argumento dentro das discussões sobre políticas educacionais. Esse conceito também pode ser observado na esfera política, onde muitos políticos reinterpretam épocas históricas e figuras da história trazendo-os como pressupostos para o debate atual. E isso pode ser encontrado em muitas áreas. Por exemplo, li recentemente um artigo sobre novas formas de organização na carreira acadêmica de jovens pesquisadores em universidades alemãs e concluí que é importante compatibilizar nossas carreiras acadêmicas no cenário internacional. Mas: o que são carreiras acadêmicas no contexto internacional? Elas não existem! Elas são muito diferentes na Grã-Bretanha, na França, nos Estados Unidos, em todas as partes do mundo. Seria preciso adaptá-las para torná-las compatíveis com carreiras internacionais. Essa é uma maneira insensata de pensar e que contribui para alinhamentos fáceis que levam ao desenvolvimento de tendências dominantes, mas que não correspondem à realidade. Nesse sentido, me opus cada vez mais à discrepância com que se administra a diversidade de instituições, de práticas, de modelos, já que me parece importante evitar exatamente essas tendências. Há aproximadamente 10 anos fui convidado para participar do Fórum de Pequim, um grande congresso internacional, especialmente porque reúne representantes de todos os países asiáticos. Um cientista político norte-americano, de origem alemã, apresentou um documento concluindo que “há virtude na diversidade”. Essa é uma citação que retomo frequentemente nos meus escritos: “há virtude na diversidade”. É muito importante manter uma pluralidade de soluções para se evitar as armadilhas de uma forma única e simples de pensar.
Entrevistadores: Os sistemas autorrefenciais não tendem a se diluir [verschmelzen] atualmente?
Jürgen Schriewer: Não, acho que não, a não ser que seja para ampliar horizontes, para evitar divergências, para expandir, para enriquecer um pouco seus pontos de referência, seus significados complementares, mas que podem contribuir para certos modos de pensamento único. Esse é o perigo.
Entrevistadores: Então, o que existe de fato é uma ampliação das possibilidades de externacionalização? Com mais possibilidades de referências…
Jürgen Schriewer: Sim, a citação “existe virtude na diversidade” é mais ou menos a linha de argumentação geral do Plano para uma Antropologia Comparativa, texto de Wilhelm von Humboldt17. Antes mesmo do desenvolvimento de todas as metodologias necessárias para estabelecer comparações sistemáticas, ele já possuía uma visão do grande campo que estava estabelecido em suas pesquisas linguísticas. Ele teve uma visão preliminar e queria traçar comparações sistemáticas para possibilitar explicações causais, enfatizando ao mesmo tempo que todos os objetos históricos, pessoas, grandes pensadores de todos os países de todas as épocas, períodos históricos, sociedades, culturas, que todos esses objetos tinham um valor próprio que cabia preservar e não unificar. Diz ele que o ideal da humanidade é atingido a partir da grande variedade de objetos históricos. É quase como se nós fossemos os guardiões da riqueza da humanidade. É um texto maravilhoso que estudei com meus alunos algumas vezes e a cada leitura descobria novas facetas em termos de significados. É possível fazer comparações esquemáticas não para unificar todos esses objetos, mas preservá-los. O ideal da humanidade é sua enorme riqueza.
Entrevistadores: Parece que sempre há os países de referência, regiões de referência. Na América Latina se critica o que nós aqui chamamos “eurocentrismo”, que seria exatamente uma crítica a essa possibilidade de diversidade. Como você vê o papel da Europa hoje nesse contexto internacional? E eventualmente, como percebe a América Latina neste grande mundo?
Jürgen Schriewer: Indiscutivelmente, vivemos situações de certa dependência intelectual. No caso da América Latina, percebe-se a dependência da Europa e também dos Estados Unidos; e na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, é possível traçar também certas relações de dependência intelectual de tudo o que veio dos norte-americanos, em todos os campos do esporte, da música, da vida cultural, dos filmes e também nas correntes de pesquisa Não estou certo de que os europeus, profissionais acadêmicos e universitários, já tenham conseguido, hoje em dia, assegurar suas próprias posições e tradições. Num certo momento, os franceses tiveram mais destaque com seus grandes intelectuais, suas filosofias, mas isso parece haver terminado. Durante as últimas duas décadas, a França não tem desempenhado um grande papel. No que se refere ao mundo acadêmico da Alemanha, as universidades alemãs poderiam ter desempenhado um papel muito maior se não estivessem amarradas de forma tão profunda a tantas restrições administrativas e burocráticas. Penso que o problema é exatamente o fato de que elas são quase todas públicas, geridas pelos governos de diferentes Estados federados (os Länder), com sua visão estreita, uns burocratas que não conhecem o mundo. Além de toda a legislação universitária existente, os acórdãos do Tribunal Constitucional de Karlsruhe18, que impõe outras restrições. Com tudo isso, eles não são livres para desenvolver seus potenciais. E, nesse sentido, elas se encontram em uma situação de dependência que somente depois do governo de Schröder19 e de seu ministro federal de ensino superior, conseguiram mudar um pouco o panorama. É o chamado programa Iniciativa para a Excelência20, processo realizado para estimular certa competitividade entre as universidades, que, tradicionalmente, eram valorizadas de forma igualitária. Pela Iniciativa para a Excelência, se introduziu uma forma de competição para colocar em destaque algumas universidades alemãs que tenham maior alcance internacional. Assim, no transcurso de menos de duas décadas, surgiram as universidades de maior destaque: as duas universidades de Munique, a Universidade Técnica de Munique21 e a Universidade Ludwig-Maximilian (de caráter geral)22. Também as duas universidades de Berlim, a Universidade Livre de Berlim23 e a Universidade de Humboldt24. O que é um enorme salto em se considerando que em 1991 Humboldt era uma universidade da Alemanha Oriental. Uma mudança radical, de pessoal, de marcos de referência, de conteúdo, de pesquisa. É incrível. Mas hoje, certas universidades alemãs ocupam boas posições, segundo o ranking da Times Higher Education25. Elas são a Universidade Tecnológica de Karlsruhe26, talvez o melhor da Alemanha, além da Universidade Técnica de Munique e, também, Heidelberg27. Então, duas de Munique; duas de Berlim, Karlsruhe, Heidelberg, e dentro de certas flutuações, Freiburg28 e Tübigen29. Infelizmente, a Universidade de Göttingen30 que foi o exemplo histórico muito destacado da modernização se movimenta neste ranking na direção descendente, enquanto que a Universidade Técnica de Dresden31 está subindo nessa avaliação. Nesse sentido, acredito que esse processo nos auxiliará a dar mais um passo rumo a um desenvolvimento de maior independência institucional, de pujança na pesquisa, de visibilidade e, portanto, também de autonomia na expansão dos marcos teóricos e filosóficos. Penso que a Europa tem se esforçado para se manter numa posição mais independente durante as duas últimas décadas através de uma evolução sustentável, estimulada ainda mais pelo desenvolvimento dos Estados Unidos. Quando Angela Merkel retornou da Cúpula do G-7 na Sicília, no ano de 2017, depois de ter se reunido por três vezes com um certo cavalheiro americano (risos), ela declarou publicamente que os tempos em que podíamos confiar nos Estados Unidos são, até certo ponto, coisas do passado. A Europa deve lidar com os seus próprios problemas de forma muito mais completa do que estávamos acostumados a fazer. São as consequências de longo prazo das guerras desastrosas do século passado.
Entrevistadores: E qual é o papel, dentro disso, que o processo de Bolonha desempenha?
Jürgen Schriewer: Antes, deixe-me responder à segunda parte da sua questão anterior sobre a América Latina. Tenho um professor amigo na Universidade de Sydney, na Austrália, muito importante também, filho de uma família de imigrantes judeus, descendente dos territórios poloneses do Império dos Habsburgo. Após a Primeira Guerra Mundial, a família se mudou para Viena e, depois de 1938, acabaram tendo que emigrar para a Austrália. Desde os anos 1960, alguns de seus membros regressaram à Europa. Assim, este amigo, depois de terminar seus estudos de pós-graduação na Universidade de Londres, como tantos outros imigrantes, se dedicou particularmente à educação comparada.
Um dia ele me disse que os europeus, em especial, os alemães, possuem uma relação idealizada com a América Latina, uma visão romântica. E isso, até certo ponto, é verdade. Carlos Fuentes32 aponta em um de seus livros que, para os europeus, a América Latina é quase o sonho inacabado do Renascimento Europeu e me parece convincente (risos). Combinar esse sonho com a realidade às vezes é difícil. O sonho se estabelece quando não se tem contato com a América Latina. No momento em que se tem uma convivência com a realidade surge uma pequena desilusão. Portanto, são relações muito complexas entre projeção, idealização e alguma decepção, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento político e econômico das últimas décadas, que é desastroso. Sempre disse aos meus colegas, minha família, minha esposa, como é possível que um país tão lindo, tão avassalador quanto o México, esteja em uma situação política, econômica … não tanto econômica, mas política e ideológica tão desastrosa quanto o México da atualidade, com as máfias das drogas, crimes, etc. É um desenvolvimento trágico, bem, vocês sabem muito melhor do que eu o grau de dificuldades que se coloca quando se trata de melhorar as coisas.
Entrevistadores: São observações importantes para estudos comparados. Parece que a atenção ao desenvolvimento histórico oferece luzes importantes para nosso trabalho, aqui.
Jürgen Schriewer: Com certeza. Deixe-me apresentar também uma comparação histórica. Vocês estão familiarizados com a Guerra dos Trinta Anos que aconteceu entre 1618 e 1648 - predominantemente - embora não exclusivamente - entre príncipes católicos e protestantes na Alemanha e na qual participaram tanto os imperador dos Habsburgo como países como Suécia, França, Espanha e outros. Durante meus anos de estudo em Würtzburg pude avaliar as consequências de longo prazo desta guerra. Usando um exemplo: A primeira grande igreja da cidade, construída depois da guerra dos Trinta Anos, não pode ser terminada até 100 anos depois da Paz de Westfália.33 Cem anos depois! Quase um século para se recuperar totalmente dessas guerras lamentáveis, para reconquistar um nível de desenvolvimento econômico e cultural razoavelmente elevado. No século XVI, a Alemanha foi um país muito rico, muito diversificado, com grandes cidades embelezadas durante o Ranascimento e que abarcavam todas as profissões e casas comerciais como a dos Fugger34, o banco privado mais desenvolvido do mundo nessa época e que financiou Carlos V em suas expedições. E tudo isso foi completamente destruído durante a guerra de 30 anos. Quase todas as grandes cidades foram destruídas. Em Würzburg, houve um grupo de historiadores paleógrafos, que traçaram o caminho que Gustavo Adolfo35 seguiu do Sul da Alemanha até a Suécia a partir da descoberta de livros encontrados em diferentes bibliotecas locais, os quais haviam sido roubados de grandes mosteiros de Würzburg e usados mais tarde para apoiar as rodas dos carros que afundavam na terra. Uma catástrofe enorme!
E destruições do mesmo tipo ocorreram no século XX. Inicialmente, a catástrofe primordial de toda a Europa, a Primeira Guerra, que mais tarde estimulou um nacionalismo desenfreado a partir da humilhação sofrida pela Alemanha e que favoreceu a ascensão de Hitler. E a Segunda Guerra Mundial foi absolutamente desastrosa, não foi? Inclusive naquilo que nos toca, no nível intelectual e acadêmico. Imagine o estágio da física na Alemanha nos anos 20, início dos anos 30. Mas quase todos os grandes cientistas emigraram. Imagine também os grandes historiadores, historiadores de arte e especialistas de numerosas outras disciplinas - incluindo a nossa na pessoa de Robert Ulrich - que emigraram para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Imagine que, em 1945, os americanos confiscaram todo o acervo científico e tecnológico de patentes, direitos e marcas reunidos tanto na Secretaria Alemã de Patentes como em centenas de institutos de pesquisa, universidades técnicas e empresas industriais. A julgar pela recente pesquisa histórica36, os americanos pegaramsob o título de “reparações intelectuais” - todos os arquivos, todas as patentes com a proposta de compartilhá-las internacionalmente, mas, na verdade, eles só as usaram para potencializar suas próprias empresas. As estimativas desta gigantesca transferência de propriedade intelectual ascendem a 10.000 milhões de dólares, em valores de 45/46. E com todas essas perdas, bem… todo o mundo acadêmico alemão teve que se recuperar e se observarmos o tempo de restauração necessário após a Guerra dos 30 anos, você pode imaginar o que é necessário, o que é preciso para se reabilitar de uma destruição quase total do país. Não se consegue imaginar a destruição de grandes cidades como Hamburgo, como Colônia, como Frankfurt, como Berlim. Gigantesco. Neste sentido, tudo isso desempenha um papel muito interessante para explicar certa dependência intelectual no que se refere às universidades, ao mundo acadêmico, ao desenvolvimento da moda, dos estilos de vida, da vida cultural e recentemente se abriram possibilidades de se renovar em todo o mundo. A Europa, espero, pode recuperar um papel mais importante.
Entrevistadores: E este seria, a seu ver, um problema de América Latina? Esta dependência intelectual?
Jürgen Schriewer: Sim.
Entrevistadores: E a internacionalização que se promove hoje com muita força, poderia ser um problema nesse sentido?
Jürgen Schriewer: Parece-me interessante. Penso que é necessário que os países latino-americanos desenvolvam mais suas próprias tradições, suas próprias ideias e nem sempre sigam exemplos estrangeiros sem considerações mais profundas. Existe sempre o perigo de se usar o argumento internacional. Não é conveniente. E o mito institucionalizado é usado nesse sentido, no sentido forjado pelos neoinstitucionalistas. Não é um mito, no sentido mais cotidiano da palavra, mas sim um modelo, um modelo definido, construído, aceito por muitos e que, desta forma, se eleva a um alcance normativo.
Entrevistadores: Em esse sentido, você fala que Bolonha…
Jürgen Schriewer: Sim, sim, nesse sentido, introduzi no título do capítulo do livro que lancei durante o Seminário: um mito neo-europeu37. É um mito, como expliquei durante o seminário. Estou convencido de que em 2050, Bolonha não existirá mais.
Entrevistadores: Professor Schiewer nosso tempo vai avançando e a conversa está muito boa.
Jürgen Schriewer: Já falamos demais, não? (risos)
Entrevistadores: Não, pelo contrário. O que você tem a nos dizer é muito útil. Mas queríamos fazer uma última pergunta. A iniciativa para a elaborar o convite para a sua vinda à Unisinos partiu do nosso Centro de Estudos Internacionais em Educação. Nós apreciaríamos muito ouvir algumas sugestões e recomendações suas para o trabalho neste Centro. Como nós podemos desenvolver nosso trabalho?
Jürgen Schriewer: Bem, primeiro é necessário desenvolver investigações sérias e bem fundamentadas. E também se colocar a ênfase nas comparações entre os países latino-americanos, já que os norte-americanos e outros continentes estão olhando para a América Latina com um pouco de condescendência. As pesquisas devem ser realizadas por vocês, com todos os procedimentos metodológicos e teóricos, e com as fontes indispensáveis que vocês possuem, de forma que vocês possam construir um fundo de conhecimento incontornável e indispensável para todas as outras áreas acadêmicas. Isso é fundamental para se tornar um centro de pesquisas relevante e de grande reputação. Em seguida, vocês devem procurar fundos de financiamento de trabalho, se possível, para grandes projetos e que sejam duradouros. Não sei de qual órgão, o Conselho Nacional de Pesquisa, de pesquisas científicas ou a CAPES, ou outros fundos, um fundo de financiamento garantido. Além disso, também fortalecer o corpo de acadêmicos que trabalham nestas pesquisas, impulsionando doutorandos que sejam capazes de um trabalho sério e, talvez, estabelecer novos postos de professores para constituir uma equipe, uma série de medidas para desenvolver este centro. E o melhor, mais adequado e talvez mais fácil, penso, que seja tornar-se referência entre os diferentes países da América Latina, sempre levando em conta as tradições linguísticas portuguesas e as castelhanas.
Entrevistadores: E inclusive, para nosso caso aqui, tradições linguísticas de povos originários.
Jürgen Schriewer: Sim. Quechua38 acima de tudo. Completamente desconhecido.
Entrevistadores: Professor Schiewer, muito obrigado por seu tempo e contribuições. Esperamos tê-lo conosco em outras oportunidades.