Considerações iniciais
A docência universitária vem sendo estudada por diversos pesquisadores, como: Isaia, (2001); Zabalza (2004); Cunha (2014); Cunha e Zanchet (2010); Cunha, Zanchet e Ribeiro (2012); Papi e Martins (2009; 2010); Isaia e Bolzan (2008); Maciel (2009); os quais destacam que as estratégias e os espaços de profissionalização são produzidos por meio do desenvolvimento profissional docente, no exercício das atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão. Maciel (2009) explica que o desenvolvimento profissional docente resulta das transformações operadas durante a trajetória profissional, em um percurso em que se aprimoram as competências e os saberes necessários ao exercício da profissão. Trata-se de um fenômeno de (trans)formação, ao longo do ciclo de vida profissional (HUBERMAN, 2000; GARCIA, 1999, 2010), produzido por meio de ações pessoais e institucionais, com a intenção de qualificação docente.
Os estudos sobre o ciclo de vida profissional docente realizados por Huberman (2000) e García (1995, 1999) expressam que não há uma linearidade na trajetória profissional, pois cada pessoa se envolve com a profissão de diferentes formas, influenciados pelas condições objetivas e subjetivas, internas e externas vinculadas à sua percepção e aos significados pessoais, políticos e institucionais atribuídos à docência. Huberman (2000) organiza os estudos sobre a carreira docente em fases, de acordo com os anos de carreira: a entrada, a estabilização, a diversificação, a distância afetiva ou serenidade e o desinvestimento.
Com base nessas referências, neste estudo, buscamos ampliar as nossas compreensões sobre as fases do ciclo de vida profissional, delimitandoo à fase de desinvestimento da carreira docente, período de 35 a 40 anos de experiência (HUBERMAN, 2000), pois nos possibilita a reconstrução das aprendizagens construídas durante o ciclo de vida profissional, a partir dos significados atribuídos pelos docentes.
Gonçalves (2000) se refere à última fase da carreira docente como ‘renovação do interesse’ e ‘desencanto’, argumentando que no final da carreira existem algumas divergências em relação ao comportamento e sentimentos dos professores. Huberman (2000) descreve o desinvestimento da carreira docente ressaltando dois tipos: o sereno e o amargo, os quais correspondem aos sentimentos mobilizados pelo docente, podendo ser de tranquilidade e com boas recordações dos processos vividos na docência e, também, pela amargura, em decorrência das frustrações e das desilusões vivenciadas no percurso profissional.
Nesta linha, ressaltamos que o desinvestimento da carreira docente universitária é marcado por espaços, tempos e experiências da vida profissional que se constituem em uma malha relacional entre o passado e o presente, projetando o futuro. Envolve mudanças, (trans)formações, renovações que (re)configuram a vida pessoal e profissional, as quais afetam não apenas os docentes, mas a dinâmica e a cultura das instituições. Por isso, entendemos que a análise do exercício da docência fundamentada na noção do capital cultural, na perspectiva sociológica bourdieusiana1, contribui para a ampliação dos entendimentos que envolvem o ciclo profissional da carreira docente.
Para Carlindo (2016) uma docência de boa qualidade se expressa pela alta qualidade do capital cultural incorporado pelo docente na sua trajetória de vida mediante sua participação em diversos ambientes socioculturais, incluindo suas experiências institucionais por meio de seus recursos e de investimentos para qualificar o seu fazer. Nossa hipótese é de que, mediante a diversificação das atividades profissionais, por meio de ações de ensino, pesquisa, extensão e gestão, bem como a participação docente em diferentes espaços socioculturais, é ampliada e fortalecida a qualificação do desenvolvimento profissional docente, ampliando o capital cultural institucionalizado que se constitui, apenas, em uma forma de acesso à carreira.
O conceito de ‘capital cultural’2 Bourdieu (1998) foi dividido, para fins didáticos, sob três formas: no estado incorporado, no estado objetivado e no estado institucionalizado, porém é um conceito único e relacional. O capital cultural incorporado implica o investimento pessoal pelo agente social para a aquisição de saberes que se constituem em sua propriedade individual, por exemplo o domínio maior ou menor da língua facilita o aprendizado. O capital cultural objetivado se concretiza na forma de bens culturais como livros, pinturas, obras de arte, esculturas, isto é, em objetos que expressam na materialidade de diferentes conhecimentos, segundo Bourdieu (1998): “[…] os bens culturais podem ser objeto de uma apropriação material, que pressupõe o capital econômico, e de uma apropriação simbólica, que pressupõe o capital cultural.” (BOURDIEU, 1998, p. 77). Por último, o capital cultural institucionalizado, refere-se às competências culturais aferidas e materializadas por meio de diplomas escolares ao agente social: “[…] o diploma, essa certidão de competência cultural confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura”. (BOURDIEU, 1998, p. 78). Neste caso, referimo-nos aos títulos, especialmente, de mestre e doutor que se configuram como parte da condição necessária para o acesso à carreira docente no Brasil.
Bourdieu (1998) ressalta que o capital cultural precisa ser analisado em seus três estados para conceber o todo, já que apropriar-se de um de seus estados não garante a aquisição dos demais. Neste sentido, a trajetória da docência universitária se constitui no entrelaçar das três formas de capital cultural. Percebe-se que a carreira docente “se estende pela totalidade cronológica da existência e não unicamente no quadro limitado dos tempos específicos de formação institucionalizada.” (BOLÍVAR, 2002, p. 128), assim o desenvolvimento profissional está constantemente transitando pela experiência vivida.
Desta forma, segundo Silva (2004), o capital cultural é um elemento para a ressignificação do professor: “[…] do capital cultural adquirido pelo professor vem a fertilidade das mediações criativas que implementam as especificidades dos conteúdos que ministra.” (SILVA, 2004, p. 59). Por isso, questionamos: Que elementos do capital cultural da docência universitária são destacados pelos docentes na fase de desinvestimento da carreira? Que sentidos e sentimentos são mobilizados no desinvestimento da carreira docente universitária? Com base nestes questionamentos, objetivamos analisar e compreender as experiências profissionais e seus efeitos para o (des)investimento da carreira universitária e analisar a aquisição do capital cultural (incorporado, objetivado e institucionalizado) para a qualificação das atividades que integram a docência universitária.
Entendemos qualidade, no âmbito da formação universitária, na perspectiva de Soares e Cunha (2017) como: “[…] tarefa educativa, essencialmente, voltada para a transformação dos sujeitos, mediante o desenvolvimento de capacidades cognitivas e atitudinais e a garantia dos recursos necessários para que essa transformação se processe.” (SOARES; CUNHA, 2017, p. 321). Ou seja, qualidade como (trans)formação de entendimentos, concepções e ações de ensinar e aprender, como incremento de conhecimentos e de competências que ampliam as possibilidades de integração aos processos de desenvolvimento social e de autodesenvolvimento profissional (PIMENTA; ALMEIDA, 2009).
Abordagem metodológica
A orientação metodológica deste estudo é de natureza qualitativa, de cunho narrativo (GIBBS, 2009), pois se propõe a interpretar e compreender o “universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (MINAYO, 2008, p. 21), vividos pelos docentes que se encontram no final da carreira universitária ou recentemente aposentados.
A narrativa é uma das formas pelo qual o sujeito organiza e expressa a sua compreensão do mundo, experiências passadas, histórias de vida, entre outras, pois ao narrar a sua história o sujeito tem a oportunidade de relatar, reconstruir e refletir sobre as suas experiências de vida (GIBBS, 2009). Para Cunha (1997), “quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos significados.” (CUNHA, 1997, p. 2). A produção dos dados da pesquisa ocorreu por meio de narrativa, incentivando os docentes universitários a contarem suas histórias de vida pessoal e profissional (GIBBS, 2009).
Para localizar os docentes, solicitamos à Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGEP) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), a listagem dos docentes que se encontravam na fase de desinvestimento da carreira ou recentemente aposentados. A partir disso, selecionamos os docentes considerando os seguintes critérios: professores efetivos, com titulação de Doutor, no final da carreira docente universitária ou que se aposentaram no período de 2017 a 2018 e os docentes que atuam ou atuaram nos cursos de licenciatura na área do ensino de Química, Matemática, Biologia, Física e Pedagogia. A delimitação nestes cursos se justifica pelo interesse em articular os resultados da pesquisa com os efeitos sobre a formação de professores e, também, porque temos cursos de mestrado e doutorado em que docentes destas áreas atuam. Salientamos que, neste estudo, consideramos as experiências e o tempo de serviço, anteriores à docência universitária, pois acreditamos que faz parte de um ciclo de vida pessoal e profissional que não se rompe com o ingresso na universidade.
Identificamos doze (12) docentes na fase de desinvestimento da carreira docente ou aposentados que se enquadram nos critérios descritos anteriormente, sendo que cinco (5) se disponibilizaram em participar da pesquisa.
Analisamos as narrativas que foram transcritas e analisadas, a partir das orientações propostas por Gibbs (2009), iniciando pela codificação de cada uma das narrativas e a leitura do material transcrito para nos familiarizarmos com a estrutura e os conteúdos. Logo, construímos a escrita de um resumo destacando as principais ideias temáticas. Identificamos os temas destacando, com uma cor específica, os elementos que se complementam ou se diferenciam. E, por último, agrupamos as narrativas em eixos temáticos com as principais ideias (GIBBS, 2009). Nesse contexto, identificamos três (3) eixos temáticos: a) iniciação à docência; b) carreira docente universitária; e c) aposentadoria e envelhecimento.
A complexidade da vida à vida da complexidade: dimensões do (des)investimento da vida Iniciação à docência3
“O início da docência foi desafiador” (N1).
O início da carreira docente corresponde à primeira fase da trajetória de vida profissional e do exercício da docência. Hubermam (2000) evidencia a iniciação à docência a partir dos estudos sobre o ciclo de vida profissional4 dos professores, identificando como a entrada na carreira até o terceiro ano de docência.
Outros autores como Cavaco (1999), Imbernón (1998), Veenman (1988), Tardif (2002) se dedicam aos estudos sobre os ciclos profissionais e o desenvolvimento profissional, com enfoque no período inicial da docência. Para estes, o tempo que o professor vivencia esta fase pode variar, pois depende dos elementos que coexistem na vida do professor, de cunho pessoal e profissional, os quais direcionarão os percursos profissionais. Nesse viés, Cavaco (1999) compreende o início da carreira docente até o quarto ano de exercício da docência. Imbernón (1998) ressalta os anos iniciais da docência até os três primeiros anos de profissão, podendo se estender até o quinto ano. Para Veenman (1988), esta fase se estende até o quinto ano de docência. Tardif (2002) defende que tal período se refere até aos sétimos primeiros anos de carreira.
García (1999) revela que o início da carreira é um momento importante na constituição da identidade docente5, pois é na inserção da docência que ocorre a transição da condição de estudante para professor. Em outras palavras, “os primeiros anos de ensino são especialmente importantes porque os professores devem fazer a transição de estudantes para professores e, por isso, surgem dúvidas, tensões […]” (GARCÍA, 1999, p. 113). Cunha (2010) utiliza a expressão “rito de passagem” para sinalizar a transição de estudante para professor, isto é, ao iniciar a profissão docente, assume-se outro papel no sistema de ensino, com uma posição que requer novas atitudes e decisões junto aos pares.
A iniciação à docência é uma fase de transição em que o professor se integra na cultura educacional e institucional, incorporando códigos e normas que constituem a profissão docente. Em outras palavras, é necessário desenvolver o habitus professoral a partir de um conhecimento adquirido e uma prática incorporada à ação (BOURDIEU, 1989, p. 61). No entanto, Silva (2005), argumenta que: “[…] a formação do habitus professoral será desenvolvido somente no e com o exercício da docência.” (SILVA, 2005, p. 160).
Nesse cenário, podem surgir desafios e turbulências na iniciação à docência. Huberman (2000) destaca e caracteriza dois estágios neste período: a sobrevivência e a descoberta. Para o autor, a sobrevivência está relacionada com o conceito de ‘choque do real’, isto é, o confronto entre a realidade e as expectativas do ser e fazer docente. A descoberta é caracterizada pelo entusiasmo, a exaltação em ser e sentir-se professor, integrar o corpo de profissionais e ter a sua sala de aula (CAVACO, 1999), proporcionando ao docente o equilíbrio pessoal para manter-se na profissão.
Nesse sentido, as narrativas docentes revelam os aspectos de sobrevivência e descobertas:
[…] eu não tenho nem experiência, eu nem sei trabalhar, nem quero isso. […] eu sempre conto isso porque é muito marcante na minha vida. (N1)
Tinha uma turma que me marcou bastante, era uma turma muito agitada, chegava na sala e perdia a voz porque tinha que gritar muito, não conseguia dar conta, saia estressada da escola. Eles (estudantes) tinham 16 e 17 anos e eu tinha 21 anos, era muito próxima da idade deles. Então, mudei a minha atitude com eles, percebi que não era por aí, mesmo sendo nova, eu era a professora e tinha que dar um jeito de conviver com aquela turma e eles entenderem que ali era um momento de aula. Foi bem interessante porque no final do ano eles fizeram uma festa e fui a única professora convidada, sabe aquela turma que marcava na escola?! A turma mais desafiadora. Então foi uma coisa bem marcante. (N3)
As narrativas expressam que a iniciação à docência foi marcada pelos sentimentos de insegurança em virtude dos desafios do ensino, envolvendo diversos fatores: o contexto, a idade do docente, a inexperiência, a organização da proposta de ensino, etc. Esses fatores revelam um período de tensões e de turbulências na inserção no contexto profissional, no trabalho pedagógico e os significados da profissão docente (BORGES, 2018).
Partindo dessa realidade, compreendemos a sobrevivência e descoberta como antagônicos e complementares. Em outras palavras, os docentes são produtos e produtores dos sentimentos mobilizados na vida profissional, visto que são mutuamente produzidos para manter a organização (MORIN, 2015). Outra narrativa expressa que:
[…] estava em uma das escolas, o professor Dorneles (secretário de Educação do Município do Rio Grande na época - grifo do autor) passou a fazer visita nas escolas [são fatos marcantes eu sempre falo sobre isso] e foi visitar os setores e chegou na nossa sala e perguntou: “E ai professora?”. Eu era uma pessoa muito jovem, tinha vinte um ou vinte dois anos, e resolvi dizer para ele tudo o que eu pensava […] e fui falando uma série de coisas que eu achava. A supervisora da secretaria me olhava com uma cara estranha. No outro dia, estava na outra escola e recebi um telefonema que eu tinha que me apresentar na SMEC (Secretaria Municipal de Educação e Cultura). Fui para casa e chorava tanto, pensando que iriam me demitir e eu precisava trabalhar. No outro dia cheguei lá (SMEC) e ele me convidou, junto com outras duas professoras para estruturar o plano de carreira do município e foi muito legal. (N1)
A partir do exposto, cada professor se (re)organiza a partir dos desafios e das expectativas em relação à docência. Nono e Mizukami (2006) ressaltam que os docentes iniciantes: “sobreviveram às maiores dificuldades, passando a aceitar a ansiedade e os conflitos como característicos da docência e como fontes de aprendizagem profissional, desenvolvendo maior segurança e domínio sobre as situações cotidianas que enfrentam.” (NONO; MIZUKAMI, 2006, p. 09). Compreendemos que, nessa fase, as experiências vivenciadas interferem nas decisões de continuar ou não na profissão docente, pois esse período é marcado por diferentes sentimentos, desafios e aprendizagens. Ressaltamos, também, que as características apresentadas pelos autores não são estanques e vividas somente na entrada da carreira docente, podendo ocorrer em qualquer fase da carreira.
Carreira docente universitária
“[…] foram anos de aprendizagem, de contato, de entender o que era docência no Ensino Superior […]”. (N1)
A narrativa expressa a carreira docente universitária como uma atividade complexa (CUNHA, 2010), pois envolve a multidimensionalidade de elementos, ações, compreensões e concepções epistemológicas que orientam o ser e o fazer-se professor universitário ao longo do percurso pessoal, profissional e institucional.
Para compreendermos as especificidades da carreira docente universitária, partimos do entendimento de carreira enquanto uma sequência de experiências profissionais que o indivíduo desempenha ao longo da sua vida. A carreira é um processo construído a partir de condições internas e externas, isto é, experiências, interesses, valorização do trabalho, políticas e cultura educacional, entre outros aspectos. Por isso, a carreira é um processo que ocorre durante o ciclo de vida dos indivíduos (SUPER, 1990).
No que diz respeito à carreira universitária, pautamo-nos no Plano de Carreiras e Cargos do Magistério Federal6 (BRASIL, 2012) e no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC) para entender os elementos que compõe a carreira docente universitária, desde o ingresso nas Instituições de Educação Superior Federal (IES) até o desinvestimento. Desse modo, a admissão na docência universitária ocorre mediante a concurso público nos quais são avaliados, por meio de provas e títulos, conhecimentos científicos, didáticos e a trajetória acadêmico-científico e formativa, sendo exigida formação acadêmica na pós-graduação, à nível de mestrado e/ou doutorado, primando pelo capital cultural objetivado e institucionalizado.
Além disso, a carreira docente das universidades públicas federais está estruturada em cinco classes e subníveis, nos quais o professor pode ser auxiliar, assistente, adjunto; associado e titular. Essa denominação e hierarquia da carreira universitária ocorre devido a progressão e promoção que poderá ocorrer por desempenho acadêmico e científico com base em critérios pré-definidos pela legislação vigente5 (BRASIL, 2012).
Assim, a formação para atuação na carreira docente universitária ocorre por meio de cursos de pós-graduação strictu senso, de mestrado ou doutorado, sendo esta uma formação voltada à pesquisa. Partindo desse contexto, o capital cultural surge no momento em que sujeito tem o contato com diferentes conhecimentos e incorpora-os como parte de sua vida. O capital cultural não pode ser comprado ou adquirido, ele é uma construção da e para a vida, tornando-se parte integrante do sujeito, um habitus (NOGUEIRA; CATANI, 1998). As narrativas demonstram essa realidade:
Entrei em dezembro de 1993 e trabalhei 1994, 1995, 1996 e 1997. Em 1998 e 1999 eu saio para fazer mestrado, trabalhei 4 anos direto com esses cursos e sai para fazer mestrado, dedicação total no mestrado e com bolsa. A universidade investia no processo de formação do docente. (N1)
Neste período, a formação mínima para ingresso na carreira universitária era graduação ou mestrado. Observa-se que a formação nos cursos de pós-graduação strictu senso é orientada pela pesquisa, contribuindo com o desenvolvimento de competências de investigação e para a socialização profissional de atividades envolvendo gestão de grupos de pesquisa, processos de orientação de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses, organização e submissão de projetos às agências de fomento, etc.. No entanto, nas dimensões didática e pedagógica, ainda são superficiais, principalmente no que se refere às práticas de ensino nos cursos de pós-graduação.
Nesse sentido, deduzia-se que a formação do docente na pós-graduação potencializaria a construção de competências e habilidades para atuação no ensino, isto é, o docente universitário “saberia automaticamente ensinar” (MASETTO, 1998, p. 11), mas as narrativas demonstram que ainda é necessário formação pedagógica:
Quando comecei na FURG, nós dávamos 27h ou 28h aulas, aulas mesmo, mas foi muito bom porque eu comecei a estudar, comprar livros que fossem adequados para trabalhos na Geografia e na Matemática. Nós sabemos que a didática tem uma base teórica de sustentação para qualquer atividade, mas eu achava que aquilo não dava conta que eu tinha que ser específica (N1).
Notamos o processo autoformativo do docente universitário, por meio da autonomia e de estratégias para estabelecer interlocuções com os saberes didáticos e científicos, tornando-se protagonista da sua própria formação. Concomitante com os processos formativos, é necessário pensar sobre as outras dimensões da docência universitária que são essenciais para a atuação neste nível de ensino: a formação técnico-científica, a formação prática e a formação pedagógica (TARDIF, 2002). Por isso, Soares e Martins (2014, p. 19) expressam que a qualidade dos processos de ensino e aprendizagem “[…] pressupõe uma mudança na forma dos professores e estudantes trabalharem, portanto envolve intencionalidade, motivação, implicação dos docentes”. Carlindo e Silva (2017, p. 87), também corroboram com este entendimento: “Muitos professores, devidamente diplomados, não detêm o capital cultural, em sentido bastante largo, como quer Bourdieu, para exercerem uma docência de boa qualidade”.
A atuação docente universitária envolve o ensino em coexistência com atividades de pesquisa, de extensão, de gestão, de orientação, de administração de projetos, programas, cursos e instituições (MOROSINI, 2000). Nesse sentido, os docentes ressaltam a satisfação em desenvolver atividades de pesquisa e extensão, conforme expressamos no seguinte excerto:
[…] um outro momento é entrar na pós-graduação, a pesquisa era uma coisa que eu gostava muito, até hoje sou apaixonada, voltar (do doutorado) e orientar […]. Então, começa a minha trajetória: na construção do grupo de pesquisa que hoje fez 16 anos e vai fazer 17 anos (em 2019) e uma trajetória em termos de pesquisa, de publicação, de produção de outros materiais de formação inicial e continuada. Acho que seriam esses os grandes marcos que têm (N2).
O ingresso do docente universitário na pós-graduação é um fio condutor na construção do conhecimento, da consolidação de grupos de estudos e de pesquisa, produção de trabalhos científicos, entre outros. Para Severino (2006, p.69),
[…] o processo de ensino-aprendizagem nesse nível é marcado por essa finalidade: desenvolver uma pesquisa que realize, efetivamente, um ato de criação de conhecimento novo, um processo que faça avançar a ciência na área.
O autor ressalta a pós-graduação e a pesquisa como um caminho no processo de ensino e aprendizagem, bem como a produção do conhecimento científico que, junto às atividades extensionistas, possibilitam a construção e a consolidação de conhecimentos e de processos de aprendizagem da docência.
A etimologia da palavra ‘extensão’ origina-se do latim extensione, isto é, ampliar, estender, ir além (TAUCHEN, 2009). Desse modo, a extensão universitária, propõe-se expandir as compreensões demandas das comunidades e da sociedade como um todo, possibilitando a problematização e a produção do conhecimento com a universidade, por meio das atividades de ensino e de pesquisa, promovendo realimentar outras ações de ensino e aprendizagem. O docente entrevistado evidencia essa conexão da extensão com a comunidade por meio dos projetos PIBID7 e Cirandar8, contribuindo para pensar em outras proposições para a educação:
Fiquei no PIBID quase 10 anos, ele foi estruturante no modo para eu compreender a relação da universidade com a escola, o modo de compreender as próprias escolas[…]. Teve um outro fato que me telefona a pró-reitora (na época) […] pedindo formação por conta da reestruturação curricular (do ensino médio) […] e eu invento o Cirandar (N5).
Percebe-se que o capital cultural incorporado, construído ao longo do ciclo de vida profissional, por meio da assimilação de saberes provenientes de diferentes bases, está vinculada ao investimento pessoal do docente. Para Bourdieu (1998, p.74-75), “[…] o trabalho de aquisição é um trabalho do ‘sujeito’ sobre si mesmo […]. Aquele que o possui ‘pagou com sua própria pessoa’ e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo.” Por isso, conforme destacam Carlindo e Silva (2017, p. 85),
a estrutura mais contundente do habitus professoral é a disposição do agente social, neste caso, do professor - o que pressupõe um investimento pessoal e não apenas profissional - para a incorporação do capital cultural (fazer parte do seu ser; cultivar-se).
Habitus é definido por Bourdieu (2003) como estruturas ou sistemas predispostos a atuarem como estruturantes, como princípios geradores das representações, as quais foram coletivamente orquestradas. Assim, no desinvestimento da carreira universitária mobiliza as memórias e as experiências pessoais que também expressam as construções sociais da carreira e suas representações.
Aposentadoria e envelhecimento
“Essa palavra ‘aposentar’ é um peso. Esse é um dos grandes problemas, as representações que tu traz com isso” (N2).
O fragmento da narrativa ressalta os sentidos da palavra ‘aposentadoria’ e as representações que nela estão imbricadas: rompimento e desvinculação das atividades profissionais (SCHEIN, 1978). E, com isso, articulam-se a sentimentos negativos, baixa-estima, incapacidade de trabalhar, envelhecimento, etc.
Santos (1990) elucida a aposentadoria como sendo um momento de transformação da vida, podendo se envolver apenas com a vida pessoal, rompendo com os laços profissionais. DEPS (1994, p.5) entende esse momento da vida como o “afastamento e redimensionamento da natureza interpessoal, bem como novas formas de ocupação do tempo e, consequentemente, novos comportamentos e novas autopercepções”.
Para tanto, é complexo atribuir apenas uma representação para a aposentadoria, pois não existe uma linearidade, mas sim acontecimentos, ações, interações, retroações, desordem, acasos e o incerto que interligamse com a chegada da aposentadoria (MORIN, 2015). Esse momento também caracteriza-se como uma nova fase da vida do professor, podendo ser vislumbrada a partir de diferentes sentidos e sentimentos, como: oportunidade de realizar projetos; investir em outras áreas de interesse do docente; descobrir novas aptidões; tempo para dedicar-se a si; mas, também, perda de referenciais na vida pessoal e profissional; demonstrar sentimentos negativos; sentir-se perdido sem saber como recomeçar; entre outros (ZANELLI; SILVA, 1996).
Acreditamos que os sentidos e sentimentos vividos no desinvestimento da carreira e na aposentadoria são constituídos pelas histórias de vida (pessoal e profissional), pelas relações traçadas com os pares, pelas atividades desenvolvidas na universidade, pelo reconhecimento na profissão docente, etc. e, também, pela forma como os docentes percebem e se posicionam diante das novas adaptações da vida, conforme expressa a narrativa: “vou me aposentar porque já dei minha contribuição. Me aposento realizada com o meu trabalho” (N3). A narrativa revela as relações que foram traçadas nos percursos da docência universitária. Para Formosinho (2009), as diferentes formas dos professores se (re)ligarem ao trabalho tem relação com o percurso acadêmico, formativo e profissional. Por isso, a docente ressalta que se aposentará realizada com o trabalho, visto que o seu envolvimento com essas dimensões se tornaram significativas ao longo do percurso profissional.
Por outro lado, é possível perceber o interesse e a intenção de continuar na carreira universitária após a aposentadoria: “estou num momento extremamente importante da minha carreira profissional e tenho muito a contribuir” (N2). A aposentadoria não necessariamente representa o desligamento das atividades docentes, pois a permanência na carreira universitária está atrelada ao sentimento de reconhecimento, o status de uma identidade profissional, o vínculo profissional e afetivo com os grupos de pesquisa e extensão, envolvimento com a gestão universitária. Os sentidos construídos sobre a profissão, seu projeto de vida, a ocupação do tempo, o sentimento de vitalidade e de juventude, entre outros aspectos, motivam os docentes universitários a permanecerem e a continuarem contribuindo com a universidade.
Ainda nesse sentido, a narrativa complementa: “quando me aposentar, volto como colaboradora na pesquisa, por causa da pós-graduação, e na extensão […]” (N2). Essas duas atividades são marcantes na carreira universitária de alguns docentes, pois são nesses espaços que é construído um legado na pesquisa, na orientação de mestrandos e doutorandos, compartilhando pesquisas, reconhecimento dos pares, entre outros aspectos. Para alguns professores a aposentadoria é o final da carreira docente, para outros é o início de uma nova organização de vida profissional pautada pela maior autonomia, liberdade e significado. Por isso, o docente complementa: “[…] não dá para pensar assim ‘uma pessoa aposentada é uma pessoa velha’. O mundo mudou completamente, a expectativa de vida” (N2).
As compreensões sobre o envelhecimento partem do processo biológico vinculado a idade cronológica, experiência individual, construção social e cultural, orientado por discursos que cria e recria as expectativas da vida do sujeito (STANO, 2001). No entanto, as expectativas da vida que orientam os sujeitos nessa fase do desenvolvimento humano, é individual e particular de cada sujeito, articulado com os diferentes modos de viver. A docente revela que:
[…] é difícil envelhecer, pois envelhecer é algo complexo. Não associo a aposentadoria ao envelhecimento porque se eu associar vou morrer ali mesmo. Tenho que sair agora, sou jovem, estou bem física, moralmente, emocionalmente, afetivamente, não quero ficar pensando “me aposentei e a vida acabou” (N1).
De acordo com a narrativa, o termo ‘envelhecer’ é complexo, pois envolve um tecido de acontecimentos, interações, retroações que apresentam traços inquietantes, de incertezas e desordem. Os discursos sobre a aposentadoria e o envelhecimento discorrem sobre a disponibilidade e a ociosidade do tempo e o pensamento ‘sou aposentado, logo sou velho’. A visão linear do tempo, associada, principalmente ao tempo cronológico e biológico, reduz, nega a diversidade que existe no ciclo vital e não amplia as noções dos tempos de vida vividos pelos sujeitos (psicológico e social) e, por outro lado, entende que o tempo produtivo é o tempo colonizado pelo tempo do trabalho delimitado pelo outro e por este valorado.
Por isso, compreendemos e articulamos o envelhecimento a partir dos múltiplos tempos da vida ou temporalidades (PINEAU, 2003), tendo em vista que o tempo é contínuo e descontínuo, movimento, derivações e dispersões, desenvolvimento, regeneração e reorganização da vida. Por fim, o tempo de aposentadoria e o envelhecimento não podem ser contratempo, mas sim, a possibilidade de construir um tempo de viver e (re)nascer, regenerando e reconstruindo outros caminhos e novos significados para vida, por meio do que já foi percorrido (STANO, 2001).
Considerações finais
O desinvestimento da carreira docente integra a organização da vida profissional e pessoal, marcada por tempos, espaços, experiências, transformações, renovações e regenerações entre o passado, o presente e as possibilidades para o futuro. Por isso, pautamo-nos em compreender as particularidades do desinvestimento da carreira docente, as experiências profissionais e pessoais, os sentidos e sentimentos que integram o final da carreira docente universitária.
Os primeiros achados do estudo estão vinculados ao início da carreira docente, os quais revelam que nesta fase estão presentes sentimentos de insegurança, desafios e turbulências. Para Huberman (2000), há dois estágios que podem ser vividos pelos docentes: a sobrevivência (está relacionada com o confronto entre a realidade e as expectativas do ser e fazer docente) e a descoberta (caracterizada pelo entusiasmo, a exaltação em ser e sentir-se professor). Cada docente reage e (re)organiza-se a partir dos desafios e expectativas em interação com o seu repertório formativo e suas competências profissionais, bem como o seu capital cultural. Neste sentido, a carreira docente pode ser regenerada ao longo do percurso profissional, por meio da auto-organização e das interações entre os pares, nas quais os professores se desenvolvem a partir dos desafios e das aprendizagens sobre si, sobre o outro e sobre a docência.
É importante ressaltar que a fase de desinvestimento da carreira docente pode estar associada com o momento da aposentadoria e o sentimento de envelhecimento. Compreendemos a aposentadoria como sendo um momento de transformação da vida, com acontecimentos, ações, interações, incertezas, etc., caracterizando-se como possibilidade de uma nova fase da vida do professor universitário: como trabalho voluntário, pode dar continuidade às atividades de pesquisa e orientação da pós-graduação com maior flexibilidade de horários e autonomia; pode vincular-se à outras instituições universitárias, entre outros. O envelhecimento pode estar associado a aposentadoria, mas representa um processo biológico, individual e particular de cada sujeito, articulado com os diferentes modos de viver. Por isso, entendemos que a aposentadoria e o envelhecimento não podem estar associados ao desligamento das atividades docentes, mas sim, com a possibilidade de construir um tempo de viver e (re)nascer, regenerando e reconstruindo outros caminhos e sentidos para a vida.
Destacamos que a fase de desinvestimento da carreira docente universitária também pode causar desconfortos em relação às funções exercidas. Por isso, é importante promover ações de preparação e de socialização dos docentes universitários para o encontro com esta fase, pautando-se no reconhecimento profissional, na importância do seu capital cultural para a universidade, nos vínculos culturais com a universidade, entre outras.
O capital cultural construído ao longo do desenvolvimento profissional docente, reconfigurado durante o desinvestimento da carreira, constitui um patrimônio ou capital simbólico que pode e deve ser socializado e compartilhado nos espaços institucionais, gerando impactos qualitativos sobre as aprendizagens da docência junto às demais etapas do ciclo de vida profissional. Aprendizagens relativas à gestão e organização de projetos de pesquisa, captação de fomento, coordenação de equipes interinstitucionais, gestão de grupos de pesquisa, orientação de pós-graduação, gestão de cursos de graduação e de pós-graduação, entre outras atividades ainda pouco sistematizadas do ponto de vista estratégico e de organização, podem ser subsidiadas pelas experiências de desinvestimento compartilhadas, contribuindo com a socialização do habitus professoral (SILVA, 2005).
Entendemos que o capital cultural, em seu estado objetivado e institucionalizado, evidenciado por meio da titulação e dos artefatos culturais que integram o currículo do docente universitário, é um tipo de capital que demanda autonomia e capacidade de (trans)formação do seu portador, pois apenas registra um valor convencional e jurídico da titulação. Percebemos que a experiência da prática educativa ressignificada é o elemento propulsor do habitus profissional docente e que este extrapola o capital cultural institucionalizado proveniente da titulação universitária, posto que esta, de forma geral, registra as competências voltadas para a produção do conhecimento.
O capital cultural incorporado, construído ao longo da trajetória docente, expresso por meio do respeito, do prestígio ou reputação docente, reveste-se de poder simbólico, em voz autorizada e reconhecida pelos pares, podendo subsidiar ações institucionalizadas de qualificação da docência e das atividades universitárias. Por isso, “as políticas externas e seus critérios de avaliação da qualidade só fazem sentido se suscitam e apoiam essa transformação pessoal e a busca de alternativas conscientes e adequadas ao contexto” (SOARES e MARTINS, 2014, p. 19).Portanto, os entendimentos sobre a qualidade das instituições, que tem como um dos indicadores o capital objetivado e institucionalizado, precisa ampliarse, valorizando o capital incorporado que expressa, em última instância, as marcas da cultura e da identidade de cada organização universitária e da sua capacidade ecoformativa dos docentes. Se por um lado, os estudos sobre o desinvestimento colocam em relevo os processos autoformativos de cada docente, por outro, em seu conjunto, dão pistas sobre a cultura formativa, as oportunidades e os apoios institucionais para o seu desenvolvimento, os quais vinculam-se à sua qualidade político-pedagógica.