SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número52A RECEPÇÃO DE PAULO FREIRE DIANTE DO NEOCONSERVADORISMO NA FRANÇADESAFIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR EM CONTEXTOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.52 São Paulo jan./mar 2020  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n52.17099 

Dossiê 52 - Paulo Freire e a onda neoconservadora

PAULO FREIRE E O NEOCONSERVADORISMO

PAULO FREIRE AND NEOCONSERVATISM

PAULO FREIRE Y EL NEOCONSERVADURISMO

José Eustáquio Romão, Doutor em Educação, Diretor, Professor, Doutorado e Mestrado Acadêmico, Secretário Geral, Diretor Gundador1 
http://orcid.org/0000-0001-9276-0039

1Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil; Diretor e Professor no programa de Pós-Graduação (Doutorado e Mestrado Acadêmico) em Educação da Universidade Nove de Julho (PPGE-Uninove); Secretário Geral do Conselho Mundial dos Institutos Paulo Freire; Diretor Gundador do Instituto Paulo Freire


RESUMO

O presente artigo desvenda a transformação da metáfora “educação bancária” - usada por Paulo Freire para exprimir as práticas educacionais monológicas e autoritárias, opostas às dialógicas libertadoras por ele defendidas - em verdadeira política educacional formulada, implantada e implementada pela concepção educacional contemporaneamente denominada “Gerencial”. Demonstra, outrossim, que a luta contra as formas autoritárias de educação bancária não pode mais se limitar às salas de aula, mas devem ser travadas no universo mais amplo dos sistemas educacionais, invadidos por esse verdadeiro tsunami das práticas do novo processo de acumulação capitalista e de seus ideólogos, que as exprimem por meio de pensamento pedagógico verdadeira e concretamente bancário, porque mercantilista e especulativo.

Palavras Chave: Alienação; Educação; Libertação; Neoconservadorismo; Sistema.

ABSTRACT

This article reveals the transformation of the metaphor "banking education" - used by Paulo Freire to express the monological and authoritarian educational practices, opposed to the liberating dialogic defended by him - into a true educational policy formulated, implanted and implemented by the contemporary educational conception called "Managerial". " It further demonstrates that the struggle against authoritarian forms of banking education (without quotes) can no longer be confined to classrooms, but must be fought in the larger universe of educational systems, invaded by this true tsunami of the practices of the new process of capitalist accumulation and of their ideologues, who express them through true pedagogical and concretely banking thinking, because they are mercantilist and speculative.

Key Words: Alienation; Education; Liberation; Neoconservadorism; System.

Resumen

Esteartículo revela la transformación de la metáfora "educación bancaria", utilizada por Paulo Freire para expresar las prácticas educativas monológicas y autoritarias, opuestas al diálogo liberador defendido por él, en una verdadera política educativa formulada, implantada e implementada por la concepción educativa contemporánea llamada "Gerencial". Además, demuestra que la lucha contra las formas autoritarias de educación bancaria ya no puede limitarse a las aulas, sino que debe combatirse en el universo más amplio de los sistemas educativos, invadidos por este verdadero tsunami de las prácticas del nuevo proceso de acumulación capitalista y de sus ideólogos, que las expresan a través de un verdadero pensamiento pedagógico y concretamente bancario, porque son mercantilistas y especulativos.

Palabras Clave: Alienación; Educación; Liberación; Sistema; Neoconservadorismo.

1 Introdução

Desde o final do século passado até as duas primeiras décadas do século XXI, duas tendências emergiram como mais expressivas na administração pública, com destaque na gestão educacional: a “Gerencial”1 e a “Político-Pedagógica”. Embora ambas - e as demais menos expressivas - sejam baseadas em fundamentos profundamente políticos e ideológicos, a primeira (Gerencial) se proclama como “despolitizada” e assepticamente desideologizada. A segunda, por sua própria natureza, apresenta-se como fundamentalmente política e ideológica. Justifica-se, aqui, nem que seja sinteticamente, uma palabra sobre cada uma das duas concepções:

  1. a) Político-Pedagógica

    Já revela no próprio nome sua natureza carregada de fundamentos políticos e opções ideológicas, mostrando-se explicitamente comprometida com o esforço que busca construir a Pedagogia como ciência dos fenômenos educacionais. Considera a educação um mero meio para a construção de um determinado projeto de sociedade, comprometido com a democracia, com a igualdade, com a justiça e com o desenvolvimento sustentável. Por isso, apresenta a educação como um direito humano, a ser cobrado pela sociedade e a ser provido pelo Estado.

  2. b) Gerencial

    Toma a escola - seja de que nível for - como uma empresa, na medida em que considera a educação como um serviço, portanto, como uma “mercadoria” a ser negociada no mercado da sociedade burguesa, regida pelo modo de produção capitalista.

No entanto, sabe-se que nenhuma posição ou proposição, em qualquer campo do conhecimento ou da atividade humana pode se apresentar, nem se justificar, sem argumentos políticos, na medida em que todos fazemos opções político-ideológicas quando defendemos qualquer ideia ou proposta. Aliás, o mais exasperante para os que se auto denominam neutros é que, para “despolitizar” e “desideologizar” o discurso têm de fazer um discurso, explicita e expressivamente, político-ideológico.

Sabe-se, hoje, corriqueiramente que, para se diminuir os efeitos ideológicos nos interlocutores, exatamente ao contrário de se esconderem ou se negarem as opções políticoideológicas prévias, há que se revelá-las aos interlocutores para que eles possam aderir ou resistir conscientemente - também com suas opções políticas e ideológicas - às reflexões e propostas dos emissores. Em suma, é-se mais ideológico quando se pretende “ser neutro”, “sem partido”; ao contrário, o emissor é menos ideológico quando proclama abertamente suas prévias opções político-ideológicas.

Por isso, após essa distinção e antes de abordar as relações entre educação e política, ou o tema das práticas educacionais no contexto de uma “educação bancária”, é necessário revelar as opções ideológicas para não se cair, in limine, nas contradições apontadas nos discursos pretensamente a-políticos, desideologizados, em suma, “neutros”, como se auto-proclamam os da primeira corrente mencionada. Nesta perspectiva, o autor deste trabalho assume por conta de suas convicções políticas e suas opções ideológicas que a educação é um direito universal - por isso, a ser ofertada a todos em qualquer grau de ensino - e que não pode ser confundida com um serviço nem com uma mercadoria a serem submetidos às leis da oferta e da procura que vigoram no mercado.

Tampouco se justifica mais o discurso de que a educação superior seria apenas acessível às minorias (elites dirigentes). Este discurso já havia sido superado no mundo contemporâneo mas, infelizmente, tem retornado recorrentemente nos países dominados pelas correntes neoconservadoras e, de modo especial no Brasil, após o golpe de Estado que tirou do poder uma presidente legitimamente eleita, interrompendo os processos dos governos pós-neoliberais brasileiros que vinham construindo um modelo de democracia social que vinha se transformando em referência latino-americana de formação social alternativa às do capitalismo selvagem. Não faz sentido condenar a maior parte da humanidade ao trabalho repetitivo, mecânico e desumanizante, reservando-se a uma minoria a fruição do legado cultural e tecnológico acumulado pela humanidade. Todos têm o direito de sonhar com e de usufruir os benefícios do “banquete civilizatório”.

Metodologicamente, este trabalho se alinha a Paulo Freire, que considera a dimensão política adstrita a todas as relações humanas, sejam de que natureza forem. Mais ainda: esta dimensão política precede e sustenta a dimensão específica que depende da natureza da relação estabelecida. Assim, por exemplo, nas relações amorosas, a dimensão política precede e fundamenta a dimensão afetiva; nas relações econômicas, a dimensão política antecede e fundamenta as relações de produção e, por fim, nas relações educacionais, a dimensão política vem antes e sustenta as dimensões gnosiológicas e epistemológicas. Ora, a prevalecer este referencial, não há como descolar a educação da política. E se, no campo educacional, a dimensão gnosiológico-epistemológica deriva da ciência - que, no fundo, é (cons)ciência -, a dimensão política deriva do que Paulo Freire chamou de “leitura do mundo”. Entretanto, é preciso tomar-se o cuidado de não confundir a dimensão política com a dimensão partidária que transforma a sala de aula em comício, a cátedra em palanque e a aula em um discurso eleitoral.

2 A Concepção Gerencial de Educação

Já na segunda metade do século XX, com o ressurreição do Liberalismo, atualizado como Neoliberarismo2, a teoria do “capital humano”, da meritocracia e do individualismo afastou o Estado Burguês do “Keinesianissmo”, que implantara o Welfare State (Estado de Bem-Estar). Emergiram como um verdadeiros tsunamis as teorias radicalizadas dos membros da Sociedade do Monte Pélerin - aí haviam se organizado os defensores da nova acumulação capitalista, que amargaram uma espécie de exílio doutorado na Suíça, desde o fim da II Guerra Mundial até meados da década de 80 do século passado. Com a ascensão dos governos neoconservadores de Margaret Thatcher (1979-1990) e de Ronald Reagan (1981-1989), os teóricos do Liberalismo Radical, impropriamente denominado, “Neoliberalismo”, recuperaram seu prestígio e passaram a pontificar e orientar as políticas de duas das mais poderosas economias mundiais. Moto contínuo, começaram a fazer verdadeiros “laboratórios” em suas antigas colônias, agora satélites, em um mundo ainda bipolarizado, dividido por uma “Cortina de Ferro” e por uma “Cortina de Dólar”3.

Para a ideologia neoliberal, o sujeito da criação cultural (econômica, associativa e simbólica) é o indivíduo; as relações econômicas não podem ser controlados por qualquer racionalidade científica, devendo suas estruturas e dinâmicas deixadas ao sabor do mercado, mais onipotente, onisciente e onipresente que o “deus ex-máquina” de Adam Smith. Neste sentido, até mesmo as conquistas das políticas sociais - “salário indireto” - do Keinesianismo deveriam ser sacrificadas no altar do chamado “Estado Mínimo”.

No campo específico da educação, a cara da concepção Gerencial se revela claramente nos processos de avaliação que, aliás, por sua natureza, ganha uma centralidade nas políticas educacionais. Em quase todos os países do mundo foram criados os órgãos públicos de avaliação, que implantaram os chamados “exames nacionais”, baseados nas classificações, nos rankings, nos bônus para os que seguem as cartilhas hegemônicas e castigos e punições para os professores(as) e mestres(as) que resistem aos processos avaliativos somativos. Esta cara se evidencia, também, na invasão e dominação do campo da educação pelas agências multilaterais do capital financeiro, como Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Mais do que nunca, a expressão “educação bancária”, atribuída à educação burguesa, é tão apropriada, deixando de ser uma metáfora e se transformando, lamentavelmente, numa verdadeira realidade sistêmica. Além disso, na sua nova fase de acumulação capitalista, a burguesia descobriu que a educação, em todos os graus de ensino, uma vez transformada em mercadoria, é um dos negócios mais lucrativos.

2.1 Educação Bancária

Para Paulo Freire a expressão “educação bancária” era uma metáfora para se referir a um conjunto de práticas educacionais autoritárias. Em várias partes de sua obra mais expressiva - Pedagogia do oprimido (2018) - Freire usou esta expressão para marcar a oposição reacionária a uma verdadeira educação emancipadora e promotora do ser humano. Foi também nessa obra que ele exprimiu de maneira mais completa sua concepção de “educação bancária”:

Na concepção bancária que estamos criticando, em que a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição.

Daí, então, que nela:

  1. o educador é o que educa; os educandos, os educados.

  2. o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem.

  3. o educador é o que pensa; os educandos, os pensados.

  4. o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente.

  5. o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados.

  6. o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição.

  7. o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador.

  8. o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele.

  9. o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele.

  10. o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos (FREIRE, 2018, p. 143).

Trata-se, no limite, de uma concepção de educação “necrófila”, ou seja, de uma educação em que o educador, numa atitude narcisista, estebelece relações doentias com seus educandos: sente prazer em se relacionar com “cadáveres”. De fato, os educandos e as educandas, os estudantes e as estudantes são transformados e tranformadas em verdadeiros cadáveres, porque não podem reagir a nada e seus cérebros se tornam meras caixas receptoras nas quais o professor deposita sua “riqueza intelectual”. Os alunos e as alunas assistem e recebem, passivamente, os orgasmos intelectuais da sabedoria professoral. Foi o próprio Freire, na mesma obra citada, quem mencionou Eric Fromm, o criador da expressão, no sentido de sua aplicação à concepção de ser humano autoritário ou vítima do autoritarismo:

Mientras la vida, diz Fromm, se caracteriza por el crecimiento de una manera estructurada, funcional, el individuo necrófilo ama todo lo que no crece, todo lo que es mecánico. La persona necrófila es movida por un deseo de convertir lo orgánico en inorgánico, de mirar la vida mecánicamente, como si todas las personas vivientes fuesen cosas. Todos los procesos, sentimientos y pensamientos de vida se transforman en cosas. La memoria y no la experiencia; tener y no ser es lo que cuenta. El individuo necrófilo puede realizarse con un objeto - una flor o una persona - únicamente si lo posee; en consecuencia, una amenaza a su posesión es una amenaza a él mismo, si pierde la posesión, pierde el contacto con el mundo.” E, mais adiante: “Ama el control y en el acto de controlar, mata la vida (FROMM apudFREIRE, 2018, p. 155).

Com o neoconservadorismo que grassa pelo mundo, a expressão, infelizmente, ganhou uma nova dimensão e um novo significado. A “educação bancária” expandiu-se para fora das salas de aula e penetrou nos sistemas educacionais, institucionalizando-se como estratégia internacional de dominação de sistemas nacionais de educação, nos termos da Concepção Gerencial de educação. Em suma, a “educação bancária” deixou de ser um mero conjunto de práticas educacionais autoritárias para se transformar em “política educacional necrófila”, também no exato sentido desta expressão.

Quando Freire referiu-se à “educação bancária” não podia imaginar que ela seria literalmente concreta e que cobriria o universo dos sistemas educacionais. De fato, além da Educação Superior, os representantes do capital aberto, com sua Concepção Gerencial ou Empresarial da educação, vêm estendendo, sorrateiramente, seus tentáculos para a Educação Básica, fornecendo seus pacotes de apostilas, treinamentoa e assessorias, aos estados e às municipalidades, com o canto da sereia das “competências” e da “eficácia”. Em suma, não apenas fortalecem a “educação bancária” metaforicamente assim considerada, como enraízam a educação bancária (sem aspas) controlada pelo capital especulativo.

2.2 Estado Avaliador

Embora remonte à Antiguidade Oriental, a emergência da avaliação no campo educacional somente ganhou prestígio como objeto de pesquisa no final da segunda metade do século XX, aparecendo, a partir daí, recorrentemente, como tema de congressos, como componente curricular da formação docente e de gestores e, finalmente, como objeto de ampla e diversificada literatura publicada sobre avaliação. Diante dessa conquista de prestígio acadêmico, a avaliação educacional acabou virando “tema da moda” a partir do último decênio do século passado, em três modalidades: avaliação institucional, avaliação de desempenho e avaliação da aprendizagem.

Há cerca de duas décadas, era tarefa fácil levantar as concepções de educação, pois era possível contar nos dedos das mãos o número de obras publicadas, pelo menos em Português, sobre o tema. Hoje, a tarefa se tornou mais difícil, dado o fato de que avaliação virou um tema da moda. Muita gente tem escrito sobre ela e se se tentasse reunir todos os títulos publicados em livros impressos, seriam necessárias algumas malas para carregá-los. Além disso, o tema se tornou bastante complexo, na medida em que surgiram tantas concepções de avaliação da aprendizagem quantos são seus formuladores.

Por que a avaliação educacional era um tema ausente das preocupações dos educadores e pensadores da educação e, de uma hora para outra, virou um tema da “moda educacional”4? Se, há duas décadas, a avaliação não figurava nos currículos das agências de formação de educadores; se ela não aparecia nos programas dos congressos sobre educação e eventos congêneres da época; se ela não figurava no universo dos temas que povoavam as investigações de pesquisadores de prestígio na área; se ela carecia de uma literatura específica, a ponto de se poder contar as obras sobre o tema nos dedos das mãos - e ainda assim, a maioria era constituída por livros muito técnicos e eram traduções -, enfim, se a avaliação educacional não era tema da moda, cabe indagar, como já o fiz em outra obra (ROMÃO, 1998):

  1. º) Por que a avaliação aplicada à educação se tornou um tema da moda nas últimas décadas?

  2. º) Quem faz a moda em educação?

  3. º) Com que intencionalidade a moda educacional é feita e disseminada?

Hoje, por razões muito diversas, tanto os defensores da concepção Gerencial quanto os da Político-Pedagógica defendem a importância da avaliação. Por isso, ela se tornou um tema recorrente. Como a discussão detalhada das diferenças escapa aos limites deste trabalho, podese dizer apenas, sinteticamente, que os primeiros defendem uma avaliação classificatória e os segundos uma avaliação diagnóstica; defendem respectivamente, a avaliação somativa e a formativa. Em suma os defensores da concepção Gerencial entendem que toda avaliação, especialmente a da aprendizagem, deve identificar e separar os de melhor e os de pior desempenho. Já os defensores da concepção Político-Pedagógica entendem a avaliação como a identificação dos desempenhos e com base na diferença de resultados, deve-se retomar o planejamento e os procedimentos didático-pedagógicos para ajudar os que apresetarem mais fragilidades, no sentido de elevá-los à condição dos de melhor desempenho.

Respondendo à segunda questão, ao contrário do que se deveria imaginar, não têm sido os órgãos responsáveis pela educação que têm feito a moda no campo educacional. Em geral, as agências multilaterais de desenvolvimento econômico, como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é que têm capitaneado a forja dos modismos temáticos em educação. Assim ocorreu com o “planejamento”, com o “currículo”, com a “avaliação” e, mais recentemente, com as “metodologias ativas”.

Responder à terceira questão implica na assunção explícita de uma posição política porque significa atribuir à concepção Gerencial uma intencionalidade estrutural de seu projeto de sociedade: a criação de um paraíso na Terra para uma minoria com a exclusão das maiorias. É que, com a concepção de avaliação que defendem, além de excluir os de desempenho mais fraco, debitam na conta deles próprios as razões do fracasso, de modo a evitar as resistências mais radicais.

Os estudos mais recentes sobre o tema da avaliação têm identificado uma multiplicidade de concepções. Esta multiplicidade conceptual exprime-se por meio de diferenças secundárias, mais de forma do que de substância, na medida em que cada autor busca inscrever seu próprio nome na história da pesquisa sobre essa temática. No entanto, se se examina a questão com mais cuidado, percebe-se que cada concepção de avaliação fundamenta-se em uma visão de educação e esta, por sua vez, referencia-se em uma visão de mundo. Ora, as visões de mundo, enquanto elaborações de grupos sociais privilegiados (classes sociais)5 ocorrem em número reduzido em cada formação social e, por isso, é possível estabelecer uma lista quase exaustiva de concepções de avaliação realmente distintas e antagônicas.

É claro que do lado neoconservador, a tentativa de responder a essas mesmas questões, exigiria uma melhor análise da passagem do Estado de Bem Estar (Welfare State, Estado Benefactor, L’État Providence, Wolfhartsstaat) para o Estado Avaliador (Evaluator State, Estado Evaluador, L’État Évaluateur, Staat-Bewerter), no sentido de verificar, nessa transformação, os fatores que impulsionaram a avaliação institucional, mormente a avaliação institucional na Educação Superior.

No caso brasileiro, a emergência da pesquisa sobre avaliação institucional provocou, inclusive, a criação de um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), antes mesmo da criação do próprio Sistema Nacional de Educação6. Caberia agregar ainda mais uma indagação: Seria o Estado Avaliador o novo “Príncipe”, ou seria ele a nova expressão, no campo da educação, do mais importante agente público do Neoliberalismo? Mais precisamente, teria a avaliação institucional se tornado um instrumento de exclusão nesta nova fase da acumulação global capitalista? Esta questão é oportuna, porque há um relativo consenso no sentido de se considerar que a emersão do Estado Avaliador se deu no contexto do Neoliberalismo. Pelo menos é o que diz o criador do conceito (v. NEAVE, 2012, passim).

É claro que as respostas a tantas e tão importantes questões, emersas no cenário contemporâneo dos sistemas nacionais de educação, não serão possíveis nos limites de um trabalho como este. Por isso, mas sem sacrifício total de uma reflexão sobre os eixos estruturantes contidos nas questões formuladas neste texto, este trabalho limitar-se-á à fazer uma sumaríssima consideraçnao sobre a avaliação institucional na Educação Superior.

A avaliação educacional como a conhecemos é um fenômeno contemporâneo no Mundo dito “Ocidental” e, no Brasil, ela é muito mais recente ainda. É claro que a avaliação da aprendizagem, formal ou informal, existe desde que existe a educação, mas o relativo distanciamento do fenômeno para lograr a reflexão organizada sobre ele é bem mais próximo de nossa época. Ainda que mais antigas em outras áreas das atividades humanas, as reflexões sobre avaliação em educação, pelo menos no Ocidente, datam da segunda metade do século XIX. Em suma, as teorias da avaliação, ou os esforços para a construção de uma inteligência sobre o tema, para a formulação de uma “Ciência da Avaliação”, são muito novos entre nós. Não são poucos os estudiosos e especialistas que referendam essa constatação sobre a verdadeira “juventude” do tema. Segundo Verhine, os “Estados Unidos deram início ao processo de avaliação [educacional] muito antes do que em qualquer outra parte do mundo” (2014, p. 11). Esta afirmação é ratificada por outros conceituados pesquisadores do tema no Brasil, como José Dias Sobrinho (2003) e Dilvo Ristof (2000), cujo referencial teórico tem sido a literatura anglo-saxã especializada sobre o tema.

Sem querer repetir o maniqueísmo tão frequente nas obras que tratam de avaliação educacional entre nós, que oscilam entre uma concepção “mais avançada” (“da moda”) e uma “mais tradicional” (“superada”)7, propomos uma tipologia também dual, mas com base em fundamentos classistas, com a qual seria possível classificar as concepções de avaliação da aprendizagem que mais estão pressionando a Educação Básica no Brasil.

Qualquer fenômeno cultural8 pode ser submetido à avaliação, ou seja, toda ação humana deve ser avaliada para orientar os processos de tomada de decisão, no sentido da busca de correção de rumos (objetivos, estratégias ou procedimentos), como escreveu LUCKESI (1995). Sob esta concepção, a constatação e análise dos equívocos, dos erros e dos mal-entendidos têm mais valor do que a verificação dos acertos, pois estes últimos já eram previstos e esperados das performances submetidas à avaliação. Nesta perspectiva teórica, ela pode ser considerada como diagnóstica, na medida em que se volta para o levantamento de dificuldades de determinado desempenho humano que, uma vez constatadas, recebem um tratamento para serem superadas. Neste caso, ela visa à inclusão do agente no universo dos que lograram êxito no mesmo desempenho.

Lamentavelmente, a avaliação tem se voltado mais para a reiteração dos acertos, porque tem estado mais a serviço da meritocracia, da discriminação e, no limite, da exclusão. Ela tem funcionado mais como julgamento, exarando veredictos mortais sobre o desempenho humano dos mais fracos, dos discriminados e dos excluídos. Na sua versão julgadora, ou classificatória, identifica acertos e erros para premiar ou punir seus respectivos agentes, confirmando sua teleologia excludente em relação aos últimos. Em suma, a avaliação pode funcionar como diagnóstico, ou como exame; como pesquisa, ou como classificação; como instrumento de inclusão, ou de exclusão; como canal de ascensão social, ou como critério de discriminação.

Examinado mais profundamente e sem preconceitos, o processo de avliação educacional, seja em que versão for, ele sempre carrega consigo uma dimensão classificatória: mesmo que se compare a qualidade do desempenho de alguém a partir da verificação dos impactos positivos de um processo de aprendizagem. Ou seja, ainda que se compare momentos diferentes da performance da mesma pessoa, sem comparações com os desempenhos de outrem, haverá sempre uma dimensão comparativa, classificatória. Quando se indaga se o aluno “avançou” em relação ao desempenho que apresentava anteriormente, após um processo de aprendizagem, a própria pergunta carrega consigo um ponto de chegada desejável. Afinal, ele “avançou” para onde, em que direção, para que ponto desejável? Para a verificação de seus avanços em relação às suas próprias situações anteriores, é necessário compará-los a padrões desejáveis e previamente estabelecidos nos pontos para os quais “ele avançou”9. Portanto, mesmo na sua dimensão diagnóstica, a avaliação apresenta sempre um viés comparativo, classificatório. Da mesma forma, pode-se dizer que toda avaliação carrega consigo uma dimensão diagnóstica, já que, mesmo que o avaliador não disponha de recursos, nem de vontade, para ajudar os que apresentaram mau desempenho, a constatação das fragilidades potencializa correções.

Contudo, a predominância de uma ou outra dimensão depende da concepção de educação que se tem, em cada contexto específico. Como vivemos em uma sociedade dominada pelo modo de produção cuja tendência estrutural é a produção e reprodução da meritocracia, da discriminação e, no limite, da exclusão, a dimensão avaliativa aí predominante é a classificatória. Este tipo sociedade opera, simultaneamente, com promessas de abertura de canais de ascensão social, com proclamações ideológicas de “igualdade de oportunidades”, mas atua com procedimentos concretos de obstrução dos canais de ascensão, potencialmente abertos, com critérios de discriminação social que, em obstruindo aqueles canais, esvaziam, na prática, as promessas e proclamações de “igualdade de oportunidades”. É exatamente aí que a avaliação passa a desempenhar um papel importante, porque, se aplicada como exame ou julgamento, fundamentará os álibis do débito dos fracassos na conta do próprio “fracassado”. Como a avaliação da aprendizagem realizada pelos Estados Burgueses tem sido apelidada de “exames”, Cipriano Luckesi propôs uma distinção que trai o significado original dos termos. Avaliar significa atribuir valor; examinar significa verificar para encontrar causas de um mal, que deve ser diagnosticado e tratado. Ora, “exame”, então, estaria mais próximo da concepção diagnóstica, que visa a incluir. Já a avaliação, co o nome de “avaliação” mesmo, que se aproxima mais de uma concepção quantitativista e, portanto, classificatória, não deveria ser chamada de “exame”, porque não tem qualquer pretensão diagnóstica, nem formativa. Assim, enquanto o termo “avaliação” deveria estar adstrita à concepção específica de verificação do desempenho humano mais preocupada com a política da exclusão, o vocábulo “exame” seria mais apropriado para as verificações voltadas para a identificação e inclusão dos “menos capazes”. Luckesi propôs exatamente o contrário, por causa da denominação “exames nacionais” atribuída às avaliações externas realizadas pelos poderes públicos e que têm um caráter nitidamente classificatório, voltado para os rankings e os índices10.

As duas concepções - diagnóstica e classificatória - têm estado presentes nas diversas modalidades de avaliação que pontuaram (e pontuam) a educação brasileira, com uma clara predominância, infelizmente, da última.

É bom lembrar que o “furor avaliativo” dos últimos anos, com a criação e implantação dos “sistemas nacionais de exames”, com testes padronizados, rankings e indicadores quantitativistas (PISA, IDEB, IDESP etc.) e premiação (bônus) ou punição, nos termos da cartilha neoliberal, revela um enorme equívoco: o principal fator da melhoria da aprendizagem, seja do ponto de vista quantitativo, seja do qualitativo, depende, fundamentalmente, do fator humano. Ora, o modelo de avaliação predominante nos sistemas nacionais de exames desconfia, sobretudo, dos professores, submetendo-os aos vexaminosos processos de avaliação padronizada e “rankiada”, ameaçando-os com punições na carreira e cooptando a minoria deles com os chamados “bônus”. Nada mais contrário aos resultados positivos de uma avaliação qualitativa.

As avaliações instucionais das universidades por rankings iniciaram-se no final do século XIX, nos Estados Unidos, e, a partir da década de 80 do século XX, ganharam notoriedade, quando os norte-americanos passaram a publicar indicadores da produção universitária em revistas como a U.S. News & World Report. A Universidade de Shanghai (Jiao Tong) criou, em 2003, um processo de avaliação institucional universitária de que resultou (e resulta ainda) um relatório periódico que passou a ser conhecido “Ranking de Shanghai”, considerado como de “excelência acadêmica” e vindo a tornar-se referência inclusive no Ocidente. Sua denominação oficial é Academic Ranking of World Universities (ARWU), que acabou consagrando a expressão “world university” (“Universidade Mundial”). Imediatamente surgiram outros imitadores ou concorrentes, como o relatório publicado pela revista inglesa Times Higher Education (THE), que também ganhou e vem mantendo grande prestígio entre os gestores de universidades que, quando bem avaliados, usam os próprios resultados como marketing e, quando mal classificados nos relatórios periódicos, tentam esconder os resulatdos para não amargar queda nas matrículas e dificuldades de obtenção de financiamentos. Todas essas avaliações institucionais usam dados objetivos, destacando a produção científica e as patentes ou publicações delas resultantes. Mais recentemente, a publicação de papers (artigos) de alto impacto (repercussão na comunidade científica por meio das citações) vem ganhando destaque no peso das pontuações das Instituições de Educação Superior (IES). No Brasil, por incrível que pareça, as classificações das universidades apareceram, pela primeira vez, na revista Playboy11, seja pela astúcia do marketing de quem defendia este tipo de avaliação, seja por uma traição freudiana de quem se compactua com este tipo de pornografia sofisticada. No entanto, somente nos primeiros anos do século XXI, foi que as classificações das universidades passaram a influenciar, sistematicamente, as estratégias das políticas de desenvolvimento universitário expressas em seus Planos de Desenvolvimento Institucional (PDIs), chegando, na atualidade, à “criação de escritórios de indicadores nas universidades incumbidos de abastecer de dados os rankings internacionais” (PESQUISA FAPESP, 2020, p. 39) para orientar os processos decisórios dos gestores dessas instituições.

Conforme demonstrou Luiz Carlos de Freitas, no Seminário Internacional sobre Diretrizes Conceituais e Operacionais para a Avaliação na Educação Básica, promovido pelo

Conselho Nacional de Educação, em outubro de 2011, a aplicação da “cartilha neoliberal” ipsis litteris, que tem neste tipo de avaliação sua mais poderosa arma de desconfiança e de intimidação de docentes, revelou seu mais profundo fracasso, como se pode comprovar nos sistemas nacionais de educação dos países que se alinharam às diretrizes dos chamados, por ele, “reformadores empresariais da educação”. Já os países que não se alinharam a essas diretrizes, tiveram muito sucesso, como é o caso da Finlândia. Ainda segundo o Professor Luiz Carlos de Freitas, esta deve ser a razão pela qual, tanto os que fracassaram quanto os que tiveram sucesso sumiram da grande imprensa: os primeiros, porque são a prova positiva da inadequação do projeto neoliberal de educação; os segundos, porque são a prova negativa dessa mesma inadequação.

A expressão “avaliação institucional” tem sido atribuída aos recentes esforços que vêm sendo despendidos na busca do “estado da arte” das instituições educacionais, especialmente as de ensino superior. A avaliação institucional tem sido entendida como processo de verificação da satisfação dos agentes internos e do sucesso dos egressos de uma instituição escolar12. Nesta modalidade de avaliação, os intelectuais orgânicos desta nova fase da acumulação capitalista têm recomendado, também, a avaliação padronizada, os rankings, os indicadores etc.

3 A Concepção Libertadora de Educação D

Não há mais dúvidas sobre ser Paulo Freire a maior expressão da concepção libertadora de educação do século XX. Por meio de um conjunto de obras, já a partir de Educação e atualidade brasileira (1959)13 - seu primeiro livro publicado e o único de um prolífero conjunto baseado numa empiria concreta (a realidade brasileira da segunda metade dos anos 50 do século XX) -, Freire consolidou uma concepção de educação e, mais do que isso, uma concepção de ciência, de cultura, enfim de civilização, em que o diálogo é o veículo orientador e a liberdade é coextensiva a todos os seres humanos, independentemente de sua condição econômico-social, étnica, de gênero etc.

No universo de uma formação social emancipadora, a educação como prática da liberdade se torna a ferramenta principal da libertação e da promoção humanas, porque mais do que a transmissão de conhecimentos, habilidades e procedimentos, ela é o meio de expressão das culturas que se confrontam na relação educacional e pedagógica. Nessa perspectiva, o círculo de cultura substitui a aula e o educador se transforma em pesquisador da realidade cultural dos educandos, em animador cultural quando o círculo de cultura se instala e em sistematizador das manifestações livres de todas as expressões das “culturas primeiras” - segundo a feliz expressão de Snyders (1988) - que se deram na realização do círculo.

Se o diálogo é sua ferramenta fundamental, o eixo estruturante da educação libertadora é a conscientização, ou seja, a apropriação crítica da realidade histórico-social das relações humanas, com todas as suas características: alienantes ou conscientizadoras, opressoras ou emancipadoras e, por isso, política. Segundo Freire, não existe uma educação a-política, seja porque a politicidade é o alicerce de todas as relações humanas, seja porque a defesa da apoliticidade só pode ser feita por um racicínio político. Além disso, a pretensa “despolitização” do sistema educacional já é uma defesa política de um determinado sistema educacional (vigente e hegemônico).

Paulo Freire, ao longo de sua obra e, mais especificamente na última que publicou em vida (Pedagogia da autonomia, 1997), sempre afirmou que o homem (ser incompleto, inacabado e inconcluso) só inicia o processo de plenificação, de acabamento e de autoconclusão de sua humanidade no momento em que toma consciência daquela incompletude. O processo de desalienação inicia-se, então, com a consciência dos próprios limites, ou com a apreensão crítica da própria realidade alienada. Esta conscientização nada mais é do que um profundo processo de auto-avaliação, de verificação da própria ontologia, na medida em que a pessoa se debruça, diagnosticamente, sobre si mesma, na busca da superação dos próprios limites.

Aparentemente, esta constatação constitui uma pobreza ontológica do ser humano em relação aos demais seres da natureza, porque, embora igual a eles na incompletude, na inconclusão e no inacabamento, diferentemente deles, toma ciência de todos esses “ins”. Porém, o que poderia parecer inferioridade, na verdade constitui sua marca distintiva no universo: a tendência estrutural incoercível para a busca de sua completude, de sua conclusão e de seu acabamento, por força da insatisfação gerada pela consciência da incompletude, da inconclusão e do inacabamento. Por isso, somente o ser humano é um ente esperançoso e pedagógico. Esperançoso, porque, eternamente insatisfeito com a prórpia condição, busca continuamente a perfeição - jamais alcancada e configurada na plenitude, na conclusão e no acabamento. Daí, a dimensão dinâmica e ativa da esperança, em contraposição à passividade da espera. O ser humano é, também, fundamentalmente pedagógico porque a busca da completude, da conclusão e do acabamento o leva, incessantemente, ao ato educacional e ao esforço de reflexão pedagógica. É da natureza deste ato e desta reflexão a dimensão da esperança: quem procura qualquer locus educacional e qualquer solução teórico-científica pedagógica, busca-o na esperança de ser mais do que é no próprio momento da busca.

Em conclusão, o ser humano é um ente ontologicamente auto-avaliador e, ao mesmo tempo, tentado à hétero-avaliação, dado que não se completa sozinho, mas - parafraseando Paulo Freire - só se completa em “comunhão [com os outros], mediatizado pelo mundo” (2018, p. 164-165). E é aí que ele encontra outro componente importante de sua “essencialidade ontológica”14: a liberdade.

Somente no pensamento conservador, os componentes dos pares liberdade/necessidade histórica, contingente/necessário, sujeito/objeto, presente/futuro, realidade/utopia são dicotômicos. Ao contrário, para os que se inserem no universo dialético, a liberdade começa a se construir quando o ser humano se torna sujeito de sua própria história e isto somente acontece quando ele toma consciência da necessidade histórica da correlação de forças históricas, que, por sua vez, são contingentes, porque mutæaveis. Assim, a liberdade não nega a necessidade histórica, mas se constrói a partir de seu reconhecimento. Também o contingente não é a negação do necessário, mas com ele se imbrica da tessitura do mundo e deve ser assim apreendido criticamente pelos seres humanos. O futuro, da mesma forma, não é a anulação do passado e do presente, mas o resultado das projeções dos dois outros tempos, a síntese histórica dos processos, das tendências e das contradições engendrados no passado e no presente. Finalmente, realidade não é obstáculo à utopia, mas sua base, seu patamar de impulso, seu suporte inicial.

Ao se considerar o fenômeno educacional e, de modo especial, o da avaliação, não como há deixar de levar em conta dois aspectos: o primeiro diz respeito às implicações ontológicas e o segundo, à sua historicidade.

4 Considerações finais Ê

Queremos concluir este trabalho com algumas considerações sobre o que parece ser estratégico numa sociedade como a que se tem tornado hegemônica neste início de milênio. Numa formação social em que a desigualdade e, no limite, a exclusão constituem sua principal tendência estrutural, a educação e a avaliação tendem, também estruturalmente, a adotar a lógica do “exame”, no sentido que lhe conferiu Luckesi, do julgamento e, consequentemente, a da exclusão. Diante de cada canal de ascensão social, ela tende a criar um critério de discriminação correspondente, para anular as possibilidades criadas por aquele canal. Na verdade, os critérios de discriminação social funcionam como vasos constritores dos canais de ascensão social, também criados pelas sociedades estratificadas verticalmente como álibi ideológico da “igualdade de oportunidades”.

Assim, a educação, que é apresentada como canal de ascensão social, tem sua potencialidade equalizadora diminuída, senão anulada, por uma racionalidade seletiva. A avaliação educacional funciona como controle que, de certa forma, levanta barreiras nos canais de inclusão formalmente abertos a todos. A inclusão é admitida, geralmente apenas como exceção, e funciona, ao mesmo tempo, como mecanismo de cooptação de alguns poucos egressos das camadas dominadas. Aliás, esta filosofia política esconde a seletividade e debita a exclusão na conta do próprio excluído15.

Felizmente, por mais hegemônica que seja, a ideologia da meritocracia, da seletividade e da exclusão - que, no fundo, é o fundamento do individualismo burguês - seus procedimentos correspondentes encontram-se em movimento dialético, ou seja, apresentam-se, ao mesmo tempo, como necessários e contingentes. Necessários porque decorrente da gênese e evolução da correlação de forças históricas desfavoráveis à solidariedade e à construção de uma sociedade mais humana; contingentes, porque são reversíveis e, portanto, podem ser mudados pela força da utopia dos que miram o futuro lendo o passado e o presente.

A luta contra a “educação bancária” sempre se deu no território da sala de aulas, no enfrentamento dos perocedimentos didático-pedagógicos autoritários astutamente disfarçados ou explicitamente impostos. Contemporaneamente, ela não pode se limitar às salas de aulas. Hoje, os docentes que limitarem seu combate, mesmo que seja pela libertação humana, ao universo das aulas - e este embate continua importante - estarão fadados à derrota, se não se dedicarem, simultaneamente, à verdadeira guerra intransigente contra os “sistemas educacionais bancários”.

1 Alguns autores brasileiros, como Luiz Carlos de Freitas, denominaram-na “empresarial”; outros preferiram batizá-la de “neoliberal”, “neotecnicista” etc.

2 Aqui grafados com maiúsculas, por se tratar de concepções políticas específicas.

3 São muito conhecidas as fracassadas experiências do Chile, do México e até mesmo do Brasil (especialmente nos governos Sarney e Collor), embora aí com menos ímpeto que nos dois primeiros.

4A moda tem qualquer coisa de exasperante, já que ela baseia sua substância na evidência expositiva, ou seja, com base no princípio de que “falem mal, mas falem de mim”.

5 Segundo Lucien Goldmann, ao longo de toda sua obra e, mais especificamente, em Le Dieu Caché (1959, p. 13 e seguintes). No sentido goldmanniano, classe social não são todos os grupos que se fundam em interesses econômicos comuns, mas os que direcionam estes interesses para a transformação ou manutenção da estrutura global da sociedade.

7 Do qual já tratei mais detalhadamente em Avaliação dialógica (ROMÃO, 1998).

8 Entendendo-se por cultura a humanização da natureza ou tudo que é processo ou produto da ação humana, nos termos da antropologia clássica.

9 Tratei desse aspecto mais detalhadamente em Avaliação dialógica, especialmente no capítulo 4 (p. 55 e seguintes). O mal do maniqueísmo não está em perceber duas concepções de avaliação, mas em contrapô-las radicalmente, como mutuamente excludentes, conforme tentamos demonstrar nessa mesma obra.

10 Cipriano Luckesi expôs, na mesa-redonda de que também participamos, no II Fórum Nacional de Educação, realizado em São Luís (MA), em 13 de junho de 2002, a diferença entre “avaliação” e “exame”, ligando primeira à avaliação inclusiva e o segundo à avaliação excludente.

11Playboy, homônima da original norte-americana, foi uma revista mensal masculina brasileira, publicada, inicialmente, a partir de 1975, pela editora Abril. Teve, no Brasil, 487 edições, por um período de 40 anos. Com os direitos de publicação adquiridos pela PBB Entertainment, em 2016, passou a ter edições irregulares, até desaparecer em 2017.

12 Seria desejável, mas ainda não não se chegou à avaliação dos sistemas educacionais e, principalmente, à dos gestores das Secretarias de Educação e órgãos equivalentes, bem como do próprio Ministro da Educação. Este tipo de avaliação, deveria ser feita pela população, direta e indiretamente. Diretamente, pelo julgamento do desmepenho desses gestores, com a possibilidade de substiuí-los, se avaliados negativamente; indiretamente, por meio dos processos eleitorais dos mandatários que escolheram os dirigentes desses órgãos.

13 Paulo Freire preparou uma edição “doméstica” do texto que apresentou no concurso para docente à Faculdade e Belas Artes de Recife. Com sua autorização, condicionada a uma “contextualização”, o autor deste trabalho preparou uma edição (2001) que se poderia chamar de “profissional” dessa obra, que carrega em si todo o potencial das grandes teses que consagrariam Freire como um dos maiores pensadores do século XX.

14 As aspas aqui se justificam porque se trata apenas de uma força de expressão, já que nem Freire nem qualquer um de seus seguidores defendem concepções essencialistas.

15 Basta atentar, por exemplo, para os discursos das autoridades da República que atribuem aos próprios trabalhadores a culpa de estarem na condição de “inimpregáveis”, com base no argumento de que não cuidaram de sua requalificação para se manterem “competitivos” no mercado de trabalho.

Referências

BELTRÁN LLAVADOR, José; VILLAR, AGULLÉS, Alícia. La medida de la educación: algunas consideraciones a propósito de los indicadores. In: Educação e Linguagem, v. 13, n.º 21, p. 131-149, jan.-jun. 2010. [ Links ]

DIAS SOBRINHO, José. Avaliação: políticas educacionais e reformas da educação superior. São Paulo: Cortez, 2003. [ Links ]

DIAS SOBRINHO, José. RISTOFF, Dilvo I. (org.). Universidade desconstruída: avaliação institucional e resistência. Florianópolis: Insular, 2000. [ Links ]

FAPESP. PESQUISA FAPESP. São Paulo: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, n. 287, jan. 2020. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez, 2001 [1959]. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 18. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática pedagógica. 3. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 (Col. “Leitura”). [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. [ Links ]

FREIRE, Paulo .Pedagogia do oprimido. 10. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido: o manuscrito. São Paulo: Ed.L. Insrtituto Paulo Freire; Ed. Uninove; BT Acadêmica, 2018. [ Links ]

FREITAS, Luís Carlos de. Os empresários e a política educacional: como o proclamado direito à educação de qualidade é negado na prática pelos reformadores empresariais in: Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 6, n. 1, p. 48-59, jun. 2014. [ Links ]

GOLDMANN, Lucien. Le Dieu Caché. Paris: Gallimard, 1959. [ Links ]

LUCKESI, Cipriano C. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez, 1995. [ Links ]

NEAVE, Guy. The evaluation state, institutional autonomy and re-engineering higher education in Western Europe: the prince and his pleasure. London: Palgrave Macmillan, 2012. [ Links ]

ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação dialógica. São Paulo: Cortez/IPF, 1998 (“Guia da Escola Cidadã, 2). [ Links ]

SNYDERS, Georges. A alegria na Escola. Tradução Bertha Halpern Guzovits; Maria Cristina Caponero, São Paulo: Manole, 1988. [ Links ]

TRINDADE, Hélgio. Desafios, institucionalização e imagem pública da CONAES. Brasília: UNESCO; MEC, 2007. [ Links ]

VERHINE, Robert. Olhares sobre os sistemas de avaliação no mundo em geral e sobre o modelo brasileiro em particular in: ABMES. Estudos: Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior, ano 29, n.º 40, dez. 2012, p. 11-17. [ Links ]

Recebido: 30 de Abril de 2020; Aceito: 02 de Junho de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.