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Eccos Revista Científica

versão impressa ISSN 1517-1949versão On-line ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.53 São Paulo abr./jun 2020  Epub 31-Jan-2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n53.16705 

Artigos

EXPERIÊNCIA E EDUCAÇÃO ESTÉTICA: SENTIDOS E EPIFANIAS DE UM SARAU INFANTIL NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

EXPERIENCE AND AESTHETIC EDUCATION: SENSES AND EPIPHANIES OF CHILDREN´S SOIRÉE INTO THE FEDERAL UNIVERSITY OF BAHIA

Cilene Nascimento Canda, Doutorado em Artes Cênicas, Professora Adjunta1 
http://orcid.org/0000-0002-1792-079X

Leila Damiana Almeida dos Santos Souza, Doutorado em Cultura e Sociedade, Professora Adjunta2 
http://orcid.org/0000-0001-8491-2194

Kleber Peixoto de Souza, Mestre em Educação, Professor Adjunto3 
http://orcid.org/0000-0003-4940-1465

1Doutorado em Artes Cênicas Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia, (UFBA) Salvador, Bahia, Brasil.

2Doutorado em Cultura e Sociedade Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Feira de Santana, Bahia, Brasil.

3Mestre em Educação Professor Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Feira de Santana, Bahia, Brasil.


Resumo

A pesquisa refere-se à integração de ações desenvolvidas a partir do Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema. O Sarau se configura em diversificados espaços/tempos de apreciação e de produção artística, permeados por experiências corporais e sensíveis entre estudantes de licenciaturas da UFBA e crianças de escolas públicas. Intentamos pesquisar quais sentidos seriam produzidos pelos estudantes das licenciaturas a partir da experiência do Sarau Infantil, de modo que refletissem sobre os processos formativos a partir da vivência com as crianças. A fundamentação teórica se valeu dos estudos de Jacques Rancière (2005), acerca da partilha do sensível e a integração do saber, do pensar e do sentir; das contribuições de Friedrich Schiller (2002) sobre Educação Estética que permite passarmos do estado passivo da sensibilidade para o estado ativo do pensamento; dos estudos de Carbonell (2012) sobre o binômio “experiência-estética” que se relaciona ao exercício de sensibilidade; dos construtos Maffesoli (2008) sobre sensibilidade e razão. Metodologicamente, os pressupostos da Pesquisa Participante permitiram que os participantes se enxergassem como agentes ativos da pesquisa, produzindo conhecimento e intervindo artisticamente na realidade. Duas categorias conduziram as análises: 1. Os sentidos produzidos sobre a experiência do Sarau; 2. A experiência de cunho estético, sentidos e reflexões na formação. Concluímos que poucos licenciados tinham vivenciado experiências estéticas/sensíveis ao longo da graduação. Outro aspecto levantado foi o distanciamento das licenciaturas dos estudos sobre infâncias. O Sarau Infantil demonstrou ser um momento rico de formação, através do qual foi possível viver, pensar, dar sentido e realizar inferências autônomas nos percursos formativos.

Palavras-chave Educação estética; Crianças; Formação; Sarau infantil.

Abstract

The research refers to the integration of developed actions since the children´s soirée: Every Child is a poem. This soirée configures in diversifies spaces/times of appreciation and artistic production, permeated for corporal and sensitive experiences between undergraduate students from UFBA and children from public schools. We try to investigate which senses would be produced by the undergraduate students since the experience of Children´s soirée, so that they reflected on the formative processes from the experience with the children. Theoretical foundation was constructed since the studies of Jacques Rancière (2005), about the sharing of sensitive and the knowledge, thinking and feeling integration; contributions of Friedrich Schiller (2002) about aesthetic education that allow us a passing-trough from the passive mood of sensitiveness to active mood of thinking. The studies of Carbonell (2012) about the binomial “experience-aesthetic” related with the sensitiveness exercise; and, from the contributions of Maffesoli (2008) about sensitiveness and reason. Methodologically, the principles of participant research allow that the participants were capable to see their selves as active agents in the research, producing knowledge and intervening artistically in the reality. Two categories conducted the analysis: 1. The produced senses about the soirée experience; 2. The aesthetical stamp experience, senses and reflections in the formation. We conclude that a few undergraduates had lived experiences aesthetical-sensitive through the undergraduate program. Another arisen aspect was the distancing of undergraduate teacher training programs from the studies about childhood. The Children´s soirée showed to be a rich moment of formation, where it was possible to live, to think, to give sense and make autonomous inferences in the formative paths.

Key-Words Aesthetic education; Children; Formation; Children´s soirée.

1 Introdução

Pensar a educação, a partir de uma experiência criadora e sensível, e pautar o debate sobre sensibilidade, educação e infância faz-nos revisar posturas e práticas sociais, bem como problematizar a escola e a sociedade para além de um olhar imediatista, simplista e utilitário das artes, primando pelo direito à liberdade de ser livre (ARENDT, 2018).

A discussão que se inicia solicita a contraposição a um mundo que se desenha face à exploração do humano, à exclusão social e à violência. Assim, o nosso posicionamento assemelha-se à provocação feita por Ilma Passos Veiga, ao afirmar que “mais do que denúncia sobre essas perspectivas, há necessidade de contrapor novas perspectivas para a formação docente” (VEIGA, 2012, p. 85); cabe à formação não somente a análise de conjuntura política, mas também a construção de possibilidades educativas que visem preparar o sujeito para uma perspectiva de mundo em gestação: mais sensível, solidária e feliz, em um contexto com profundas transições e contradições, assumindo a necessidade de “gerar novas concepções mais concretas do trabalho pedagógico que o professor exerce ou vai exercer” (VEIGA, 2012, p. 85).

Entendemos que a arte, enquanto possibilidade de trabalho pedagógico concreto, desempenhará, cada vez mais, um lugar essencial numa sociedade da informação interconectada e tecnológica - sob o domínio de um capitalismo avassalador - como campo de emancipação das potencialidades humanas em sua plenitude.

No texto, assumimos o lugar de pesquisadoras universitárias, protagonistas de uma experiência extensionista, o Sarau Infantil Toda Criança é um Poema, sob um olhar fenomenológico para a partilha do sensível (RANCIERE, 2005), para melhor compreender a produção de sentidos na imersão de um processo de educação estética. Por outro lado, tecer uma postura epistemológica sobre a educação estética requer o debruçar-se sobre problemas específicos de definição do próprio campo, seus limites, fronteiras e extensão na vida prática.

O primeiro problema posto diz respeito ao próprio entendimento do que seja educação estética, retomando o conceito primordial de estética, partindo do termo grego aisthetique, que dá origem ao verbo aisthésis, em latim, que significa sentir, sensibilidade, liberdade, estando ligado à produção de sentido na experiência (ISSE, 2007, p. 11). Assumimos como estética, portanto, o campo do conhecimento sensível, sensorial, que nos habilita a conhecer o mundo, por meio do corpo e seus sentidos imersos na experiência. Tal perspectiva nos remete ao que consideramos por educação de cunho estético:

A educação estética refere-se primordialmente ao desenvolvimento dos sentidos de maneira mais acurada e refinada, de forma que nos tornemos mais atentos e sensíveis aos acontecimentos em volta, tomando melhor consciência deles e, em decorrência, dotando-nos de maior oportunidade e capacidade para sobre eles refletirmos. (DUARTE JÚNIOR, 1998, p. 185).

Historicamente, atribui-se ao poeta, filósofo e dramaturgo alemão Friedrich Schiller (1759-1805) o pioneirismo na utilização do conceito de Educação Estética. Schiller escreveu, em 1795, a obra A Educação Estética do Homem. O ponto de partida do autor para abordar a estética foi o mesmo de Hegel (1974), ou seja, estética como a arte do belo. Este vai além quando defende a necessidade de humanização desse belo e a emancipação do sujeito. Ou seja, entende que a beleza pode ser influenciada pelo ser humano e, sendo assim, existe a possibilidade de aprendizagem do belo, portanto, essa aprendizagem pode transformar quem se constitui no processo de Educação Estética.

Para Schiller, a beleza existe graças ao equilíbrio entre sentimento e entendimento, entre forma e matéria. Diz o autor que, inicialmente, se manifesta no ser humano a oposição de duas forças opostas: os impulsos. Esses, por sua vez, se dividem em impulso sensível e impulso formal. O impulso sensível “parte da existência física do homem ou de sua natureza sensível” (SCHILLER, 2002, p. 63), acaba sendo limitador, pois, o homem não permite que seu espírito ultrapasse o mundo sensível, palpável. Já o impulso formal “parte da existência absoluta do homem ou da sua natureza racional e está empenhado a mantê-lo em liberdade” (SCHILLER, 2002, p. 63).

Se o impulso formal for predominante o ser humano tenderá se relacionar com a obra de arte, conduzido pela razão, tornando preponderantes as explicações acerca dessa obra. Por outro lado, o impulso sensível se relaciona com o que, por sua vez, faz emergir uma emoção que conduzirá as implicações com a obra de arte. A real compreensão da beleza acontecerá no momento e que houver um equilíbrio, a superação da tensão entre esses dois impulsos de modo que a pessoa consiga transitar entre ambos.

Essa síntese entre sentimento e entendimento nos remete às questões da Educação Estética. Se a estética é algo passível de ser aprendida é possível ultrapassarmos a abordagem pedagógica da educação estética, que, muitas vezes, remete a imagem de estruturas e ações que se enquadram nos padrões e parâmetros sociais de beleza, geralmente consagrados pelas culturas dominantes, brancas, masculinas e europeias. Em contraposição, a Educação Estética de Schiller ancora-se numa educação para o belo, pois considera que é possível a pessoa ser educada para ver, fruir e apreciar a beleza do mundo e ou das obras de arte.

Schiller defende que aprender o belo é necessário. Para tanto, além dos impulsos, sensível e formal, faz-se necessário nessa aprendizagem um terceiro impulso: o impulso lúdico. O autor considera esse movimento como um jogo, através do qual o sensível e o racional se equilibram. Retomamos, assim, a etimologia do termo estética - aisthésis - que se relaciona ao conceito de liberdade. Sobre essa relação, a pesquisadora Rosa Verástegui afirma que: “o impulso lúdico é o equilíbrio que o homem consegue quando se libera das limitações da sensibilidade e da razão, a partir de um salto dialético que supera esta oposição” (VERÁSTEGUI, 2007, p. 4).

Como o impulso lúdico nos permite o aprendizado de apreciação do belo, de acordo Schiller (2002, p. 113), é nesse processo que passamos do estado passivo da sensibilidade para o estado ativo do pensamento. Ao olharmos para as ações desenvolvidas na presente pesquisa verificamos ser possível uma educação estética que prime pela formação do homem sensível, de modo pleno e integral.

O conceito de Educação Estética está intimamente ligado à produção de sentidos na experiência sensorial perpassado no olhar, ouvir, sentir, tocar de modo apurado, atento, presentificado, implicando em “aprendizagens fundadas na experiência, que impulsionem o aluno a conduzir o mundo para dentro de si” (CARBONELL, 2012, p. 65). Assim, o binômio “experiência-estética”, remete-se ao exercício de sensibilidade pelo sujeito com toda sua corporeidade e intelectualidade integradas em sua ambiência cultural. Processos educativos que instiguem ações coletivas que envolvam atos como ver, sentir, jogar com o corpo, dançar, entre outras são consideradas como experiência de cunho sensorial, sensível.

No entanto, tais princípios que dão base ao pensamento sobre educação estética e arte-educação carecem ser convencionados no sentido de entendimento sobre a necessidade, cada vez mais, emergente de experiências artísticas, de cunho estético, nas escolas. A necessidade de educação estética não é de cunho compensatório, no sentido de suprir a suposta falta de acesso às artes, nem assistencialista que promove o bem-estar para manter a situação social como está. As artes têm significativo valor nas perspectivas de emancipação humana e social.

A sensibilidade e seus canais de expressão encontram barreiras para manifestarem-se em um cotidiano pautado nos modelos educacionais sedimentados em paradigmas de ensino baseados na racionalidade e intelectualidade. A formação ofertada pela universidade, muitas vezes, ratifica e reforça a visão dicotômica entre razão e sensibilidade, postura debatida em muitas universidades de todo o mundo, frente ao movimento contínuo da sua superação.

Por defender uma amálgama entre sensibilidade e razão, Maffesoli (2008) critica os ditames de uma razão classificatória e engessada do racionalismo, afirmando que a razão por si só (com seus instrumentos e critérios padronizados e enrijecidos) não dá conta de explicar a complexidade da vida cotidiana e da organicidade social. Afirma, ainda, a necessidade de valorização da sensibilidade e de outras formas de conhecer a realidade, de modo associado à razão já tão reconhecida historicamente. Buscando “romper com a ortodoxia intelectual” (MAFFESOLI, 2008, p. 15) e alimentar o anúncio da constituição de uma nova vida, verifica-se a tendência de outro modo de produzir ciência, que já não se separa da vida, da sensibilidade e, no nosso caso, do fazer artístico e brincante do educador em formação.

Pensar este cenário é propor, enquanto Universidade, caminhos de resistência com alegria, que arrebatem os sentidos, que enaltecem o vigor estético e o pulsar humano, levando ao delírio, à magia e ao extravasar de sentidos de vida em partilha com o coletivo, em “experiências que transcendam o individual e se estendam para uma dimensão sociocultural, privilegiando, assim, a interação entre a escola e a vida” (CARBONELL, 2012, p. 65). Isto abrange um outro modo de produzir conhecimento e filosofia como avesso a um processo formativo disciplinar, engessado e destituído de sentidos, mas que também vise “proporcionar a aprendizagem do pensar apropriador e livre de autoridades externas, mas dependente das relações afetivas existentes no campo da experiência humana geral” (GALEFFI, 2017, p. 35).

Contudo, salientamos que a sensibilidade não apenas é silenciada e ofuscada, também é vetada e, progressivamente, censurada no bojo das relações pessoais entre crianças, adolescentes e adultos no ambiente escolar. Cada vez mais, a demonstração de afetividade e de sensibilidade vem sendo suprimida pela violência, pela rudeza e pela opressão social, denotando o compromisso histórico de construção de outras formas de relacionamento, mais pautadas na criação coletiva do que na competitividade e na partilha sensível da experiência comum do que na rivalidade e exclusão. Formar professores em sentido pleno demanda um contato direto com as crianças, entendê-las de perto, olho no olho, dialogando e interagindo a ponto de superar os caminhos já previstos e programados, criando afetos e aprendizados no convívio, nas epifanias e nos acasos que surgem de modo incerto na experiência sensível.

Sobre as epifanias, as entendemos como um sentimento que desperta, brota e expressa alguma forma de entendimento súbito da essência de algo, ou como um pensamento inspirado repleto de sentidos e gozo estético. Do ponto de vista epistemológico, o termo epifania se originou do grego epiphanéia, sendo traduzido como “manifestação” ou “aparição”.

O sentido filosófico desse texto compreende epifania enquanto uma profunda sensação de completude e plenitude na realização de algo, capaz de iluminar e compreender a natureza das coisas. É dessa maneira que interessa-nos pensar nos sentidos e epifanias que perpassam o sujeito em uma experiência estética produzida coletiva e colaborativamente na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, para abordar elementos e fios condutores de uma investigação no âmbito de um processo de educação sensível.

A experiência em questão, nomeada por Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema, foi realizada com crianças no ambiente universitário e definida como atividade de extensão do projeto Balaio de Sensibilidades na FACED/UFBA. O Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema é aqui abordado a partir da escuta das vozes dos estudantes participantes da experiência, com destaques para sentidos, compreensões e epifanias gerados no processo formativo. Trilhar pelos sentidos produzidos por estudantes à experiência do Sarau infantil permite-nos conhecer melhor a sua abrangência formativa, identificando modos singulares de operar e de dar sentido à experiência.

Entendendo os estudantes universitários como sujeitos ativos, pensantes e sensíveis, visamos nesse texto compreender os sentidos dados à sua formação universitária, uma vez “tudo anda junto no âmbito do que faz sentido” (GALEFFI, 2017, p. 27). Epifanias e sentidos produzidos no Sarau Infantil, uma experiência de viés participante, ajudam-nos a melhor compreendermos o espaço/tempo repletas de possibilidades simultâneas de acontecimentos, para livre escolha das crianças e adultos, como territórios plurais e diversificados de experiências sensíveis.

Pela sua natureza versátil e inventiva, o Sarau Infantil não se caracteriza como um método de organização permanente, mas como experiência inspiradora de outras práxis de educação de professores e de crianças, com centralidade na sensibilidade. Partimos do pressuposto de que o sentido é elaborado na experiência de pensar/perceber/sentir e não como algo pronto, reproduzível ou aplicável em diferentes contextos, pois “o perceber e o pensar são afetações do vivido no vivente. Pensar consiste em afetar-se como corpo pensante vivente. Um corpo vivo em busca pulsiva de mais-vida” (GALEFFI, 2017, p. 25, grifos do autor). Entender como os estudantes elaboram os sentidos de suas experiências no campo da arte-educação e como pensam e se afetam no convívio sensível com as crianças são fios de compreensão do Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema como experiência estética.

2 Metodologia: o sarau infantil: toda criança é um poema como experiência de educação estética

Ao educar o educador, o seu corpo e seus sentidos também estão sendo formados. O corpo-linguagem dos estudantes fala, atribui sentido ao que vivencia. Não sendo mero receptor doutrinável, o corpo provoca e registra as experiências vividas, somando saberes que se traduzem em conhecimentos a serem partilhados.

É nessa conjectura que convocamos Jacques Rancière, em A partilha do sensível, para endossar a discussão sobre outros modos de produzir conhecimentos, integrando o saber, o pensar e o sentir, e operando diferentes modos de pensabilidade (RANCIÈRE, 2005, p.13). Tal postura nos aponta para a disseminação de reflexões acerca de abordagens que valorizem e revelem as capacidades múltiplas do corpo no âmbito da aprendizagem inventiva, da atividade de pesquisa e da produção de sentido(s). Entendemos, portanto, que o corpo todo é cognitivo, atravessado por experiências de afetos, sensações e significados. O conhecimento gerado na experiência estética é um saber corporificado, captar e analisar experiências como estas potencializam o nosso entendimento sobre produção e memória.

Por tais razões, optamos por um horizonte metodológico que dialogasse com a ação dos envolvidos, em constante interação e participação efetiva na pesquisa, a Pesquisa Participante. Pedro Demo (2004) ressalta o valor qualitativo da pesquisa, com lugar para a mediação participante, de forma não-linear, com busca incessante para alcançar as sutilezas “escondidas ou soterradas” que se configuram em valores e atitudes dos sujeitos em formação na pesquisa, uma vez que:

O lado qualitativo da pesquisa torna-se bem mais explícito, além de complexo e exigente. Embora não seja fácil delimitar “qualidade” (...), contento-me em salientar sua face intensa e não-linear. Por intensidade entendemos dimensões mais profundas da realidade, muitas vezes escondidas ou soterradas, mais propriamente subjetivas e pessoais, que marcam comportamentos e atitudes e contextuam fenômenos fundamentais da cidadania, como participação. (DEMO, 2004, p. 21 e 22).

Pensando no contexto da formação desta turma, de suas epifanias e sutilezas compartilhadas, bem como “[...] os atos estéticos como configurações da experiência, que ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas da subjetividade política” (RANCIÉRE, 2005, p. 11), consideramos significativo ouvir os estudantes envolvidos no planejamento e na realização do Sarau Infantil como um todo. Assim, passaremos à análise dos depoimentos dos estudantes de licenciaturas sobre esta experiência de cunho estético. Esse destaque para as vozes estudantis permite-nos, na condição de educadores, compreender como eles elaboram e expressam os sentidos produzidos na experiência do Sarau Infantil e, também, como pensam e dão significado à formação.

A experiência estética, constituída como campo de pesquisa e natureza extensionista permanente, foi realizada no componente Arte-Educação, na Faculdade de Educação da UFBA, organizado em uma perspectiva de integração entre teoria e prática, por entendermos que “a construção e a emancipação de saberes docentes é um processo amplo e não linear, devendo ocorrer da forma mais coletiva possível, refletindo situações práticas concretas” (VEIGA, 2012, p. 77). Assim, foram criadas situações práticas, no Sarau Infantil, como os espaços para a criação artística, como também para experiências de ouvir, ver imagens, sentir, jogar, cantar, dentre outras ações de teor sensível.

Na perspectiva de integrar ensino, extensão e pesquisa, o componente curricular Arte-Educação se definiu como eixo articulador da experiência de 23 estudantes de diversos cursos de Licenciatura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como: Pedagogia, Letras, Teatro, Dança, Ciências Sociais, Ciências Naturais, Desenho e Plástica, assim como Bacharelados Interdisciplinares de Humanidades e de Artes, cuja interface também se dá no campo da educação.

Em momentos de partilhas das experiências vividas em sala de aula, alguns estudantes passaram a refletir sobre a escassez de momentos de cunho sensível e participativo no âmbito do ensino. No que tange à experiência artística, diversos educandos relataram que nunca ou quase nunca passaram com experiências estéticas, ou seja, sensíveis, ao longo da graduação. Outro aspecto levantado pela turma referiu-se ao distanciamento dos cursos de licenciatura do campo de estudos sobre infâncias. Ao deflagrar a escuta de tais estudantes, nos inquietamos e passamos a provocá-los para produzirem um Projeto que cumprisse alguns princípios, como a integração entre teoria e prática, a articulação com a educação básica e indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Como procedimentos metodológicos utilizados, elencamos os seguintes: a turma foi convidada a atuar na extensão universitária (Sarau Infantil) e na experiência de pesquisa (Reflexões sobre a prática), integrando-se e coparticipando da concepção e da produção da quarta edição do Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema, realizado em 2018 e prontamente o desafio foi aceito. Seguimos o semestre, lendo textos sobre Arte-Educação, vivenciando e compartilhando experiências estéticas e organizando espaços e materiais que oportunizassem vivências de cunho sensível e prático, associadas aos referenciais teóricos basilares da área de Arte-Educação, visto que “toda prática artística se desenvolve a partir de motivações teóricas implícitas ou explícitas. Ao mesmo tempo toda teoria se alimenta da prática por ela fundada”. (ROUBINE, 2003, p. 9).

Refletir e criar são processos complementares que se retroalimentam na experiência de sujeito. Após a realização em si do Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema, os estudantes foram convidados a participarem de uma roda de conversa e à produção de textos livres sobre que sentidos despertaram com a experiência estética e brincante com as crianças. Cada sujeito efetuou as suas elaborações de sentido e sua partilha segundo “o horizonte de cada um em sua singularidade e conjuntura” (GALEFFI, 2017, p. 27).

Neste artigo, examinamos a experiência Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema, caracterizada como uma atividade de ensino, pesquisa e extensão constituída por interações criativas e lúdicas entre crianças e adultos. Tal ação integra o conjunto de atividades do projeto de extensão Balaio de Sensibilidades, coordenado por uma das autoras, no bojo do Grupo de Estudos em Educação, Didática e Ludicidade (GEPEL), da Faculdade de Educação (FACED) da UFBA. Por ser este um espaço democrático de expressão artística, aberto para todos aqueles que querem mostrar a sua criação para o público, o Sarau Infantil se justifica pela importância da formação cultural em que é construído, a partir de ações de intercruzamento de saberes sensíveis.

No âmbito da pesquisa qualitativa, optamos pela abordagem metodológica da Pesquisa Participante (PP), por esta possibilitar, de acordo com os estudos de Pedro Demo, uma participação efetiva dos sujeitos da pesquisa, valorizando a autonomia, a voz ativa e os saberes elucidados no processo de produção:

A PP pode ser alocada dentro do espaço da pesquisa prática, como corrente específica, embora prefiramos colocar ambas como sinônimas. A PP busca a identificação totalizante entre sujeito e objeto, de tal sorte a eliminar a característica de objeto. A população pesquisada é motivada a participar da pesquisa como agente ativo, produzindo conhecimento e intervindo na realidade própria. (DEMO, 2004, p. 43).

Desse modo, o Sarau Infantil é identificado como lugar formativo que provoca a “identificação totalizante entre sujeito e objeto” (DEMO, 2004), em uma produção criativa resultante da investigação colaborativa. Compreendido como um conjunto de espaços coletivos de fruição e experimentação simultânea ou de confluência artística que reúnem fazedores da cultura, o Sarau Infantil proporciona o compartilhamento de expressões nas áreas de música, poesia, performances, teatro, audiovisual, dança, artes visuais, dentre outras linguagens.

Analisaremos os dados parciais obtidos com base em duas perguntas primordiais: 1. Quais os sentidos produzidos pelos estudantes de licenciaturas sobre a experiência do Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema? 2. Como a experiência de cunho estético afetou os sentidos e reflexões nos participantes em formação universitária?

Os procedimentos metodológicos de base empírica utilizados nos auxiliam a entender a produção de sentidos compartilhados, na medida em que entendemos que “certamente, no contato com a realidade reconstruída descobrem-se coisas que a teoria sequer havia suspeitado (...), descobre-se que o mundo teórico é por vezes ordenado, porque irreal” (DEMO, 2004, p. 39).

Nessa Pesquisa Participante, os estudantes da turma de Arte-Educação foram incentivados a refletirem sobre a sua formação, o vínculo com a infância e a realização em si do Sarau Infantil, enquanto campo diversificado de experiências de cunho sensível, não tão ordenado, mas com existência real, vibrante e mobilizadora.

3 Resultados: vozes, sentidos e epifanias dos estudantes

O Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema é um objeto de grande complexidade por assumir questões polêmicas, como a convergência das diversas artes, a promoção de linguagens artísticas em tempos de barbárie, em comunhão com as culturas de jogos e brincadeiras e, especialmente, por ocupar o espaço universitário com crianças. Estudos prévios sobre o Sarau Infantil, enquanto fruição da educação estética, apontam que:

O Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema, entendido como espaço/tempo de integração entre diferentes linguagens artísticas para crianças, a partir de ações de intercruzamento entre saberes e experiências de cunho sensível, o que explica o destaque para seu caráter interdisciplinar. (AUTORA1, et al., 2019, p. 235).

A liberdade de experimentar e de interagir sem demarcação de tempo ou de regras verticalizadas, assim como a sua versatilidade, são marcas de um convívio entre estudantes e crianças em formação.

No Sarau Infantil, múltiplos espaços (acolhimento, visualidades, brincadeiras e interações, musicalidades, poemas e histórias) são partilhados com as crianças em ações de brincar, jogar, apreciar ou fazer arte, sem fronteiras, direcionamentos, controles, nem paredes ou divisões por idade, tempos e ambientes.

Para os estudantes, o Sarau Infantil demonstra ser um momento rico de formação, que só pode ser acessado por meio da partilha do sujeito, ou seja, da expressão ou verbalização do que foi vivido, pensado, sentido, com inferências próprias e autônomas em seus percursos formativos.

Nessa ambiência estético-pedagógica que é o Sarau Infantil, a Arte faz parte dos processos de interação entre os sujeitos, sendo ora a sua mediadora entre os diferentes e desconhecidos, ora enquanto experiência em si mesma compartilhada, como um “depositário de uma beleza específica, (...) que caracteriza propriamente o regime estético das artes” (RANCIÉRE, 2005, p. 47).

Aproximamo-nos da concepção de arte produzida por John Dewey como atitude imbricada na vida, no seu cotidiano social, e toda a vitalidade gerada no processo artístico é resultante de troca entre os indivíduos, cada um com suas experiências diferentes, chegando a afirmar que “a experiência é a arte em estado germinal” (DEWEY, 1971, p. 84).

Este tipo de experiência tende a reverberar nos sujeitos que são autônomos em seus sentidos produzidos, alterando o olhar sobre o mundo, gerando surpresa, conflitos, desejos e epifanias. Enfatizamos a dimensão estética do Sarau Infantil, compondo uma efusão de cores, formas, interações, leituras e texturas, com vistas a aguçar o olhar e outros sentidos das crianças e também dos adultos presentes no sarau, em favor de processo de formação estética defendido por João-Francisco Duarte Júnior:

A educação da sensibilidade, o processo de se conferir atenção aos nossos fenômenos estésicos e estéticos, vai se afigurando fundamental não apenas para uma vivência mais íntegra e plena [...] Uma educação que reconheça o fundamento sensível de nossa existência e a ele dedique a devida atenção, propiciando o seu desenvolvimento, estará, por certo, tornando mais abrangente e sutil a atuação dos mecanismos lógicos e racionais de operação da consciência humana. (DUARTE JÚNIOR, 2001, p. 171).

Assim, valorizar as artes na experiência de mundo da criança e dos educadores em formação significa investir em processos que abranjam não apenas aspectos racionais e conteudistas, mas que ampliem as dimensões sensíveis e criativas da experiência humana. O contato com cores, texturas, imagens, cenas, interações favorece a ampliação dos canais de percepção e de comunicação, tanto das crianças quanto dos adultos.

Tais postulados integram fundamentos teóricos e metodológicos do campo da educação estética, provocando “transformações significativas no olhar, que possibilitem que o conhecimento construído não fique apenas na superfície, mas que deixe marcas indeléveis no sujeito” (CARBONELL, 2012, p. 65).

Estudar esses rastros de memórias, marcas dos sentidos e das epifanias poéticas vividas e partilhadas no coletivo é o enfoque primordial dessa pesquisa e dos seus postulados teórico-metodológicos. Tais elementos que se apresentam como indícios de um resultado de viés estético ficaram evidentes em alguns depoimentos prestados pelos estudantes em seus textos produzidos e repensados a partir da pesquisa participante no Sarau Infantil:

Me aguçou o olhar crítico para um pensamento que perpassa a universidade de que a academia não é local de crianças. Na minha percepção, muito pelo contrário. Ao adentrar nesse ambiente, muitas dessas crianças, com suas vidas marginalizadas pela sociedade, podem perceber que aquele lugar pode e deve ser ocupado por elas, no futuro. (Estudante de Letras).

No dia do Sarau Infantil, a minha impressão foi de que a Faculdade de Educação continuava a mesma. Não sei o porquê, mas acreditei que estaria tudo diferente. Talvez a minha expectativa sobre o local tenha me deixado um pouco frustrado, porém, de tudo o que aconteceu no Sarau, em minha opinião, isso é o mais importante: o lugar é transitório e o que acontece ali é transitório e por isso é singular; as experiências vividas ali, o que foi dito, o que foi caminhado, o que foi visto, o que foi brincado, nuca mais serão, e por assim serem, serão eternos. (Estudante de Letras).

Este relato confirma o entendimento de que quem produz o lugar são as relações humanas e suas formas diversas de interação. No caso do Sarau Infantil, as crianças, na condição de sujeitos brincantes e apreciadores, deram o sentido ao espaço, e foi este sentido empregado nessa ação de cunho estético que a tornou uma experiência marcante, que mobiliza, provoca, sensibiliza, ou seja, dá sentido ao espaço/tempo habitual, do cotidiano da Faculdade de Educação. Este local habitual e cotidiano foi ressignificado e redefinido a partir das ações das crianças, estudantes, professores, artistas, poetas e brincantes, estetizando-se, ou seja, oportunizando um acontecer formativo de cunho sensível, possibilitando-nos

(...) navegar de modo relativamente autônomo no oceano conturbado da vida planetária contemporânea, tendo em mira não o alcance de fins substanciais absolutos e objetivos, mas o modo de ser-mais-com que implica no sentido final da experiência humana como acontecimento criador. (GALEFFI, 2017, p. 17).

Neste ato de ser-mais-com e de refinar a visão sobre os acontecimentos ao redor, de tomar consciência desta realidade modificada, ressignificada, o mesmo estudante complementa o raciocínio a respeito do espaço da Universidade e do sentido produzido na relação com as crianças, bem como destas com o espaço físico destinado ao Sarau Infantil:

Ao vê-las ocupando o espaço que eu já estava habituado a utilizar de outras formas, eu me senti maior, como Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, não por conhecer o espaço, mas a mim mesmo no momento da formação estética de professores em que eu estava interagindo com as crianças. [...]. O espaço voltou ao seu tamanho usual quando eu voltei à Universidade dois dias depois. O espaço voltou a ser o mesmo; eu, não. (Estudante de Letras).

O depoimento anterior demonstra, com beleza e sensibilidade, como o espaço, além de transitório, é compositório de sentidos. O espaço é transformado a partir das experiências de quem o habita, dando movimento, sentido e beleza por meio das interações humanas, uma vez que

O conhecimento se revela, assim, como um eco da própria existência, que o sujeito vê desdobrar-se para testemunhar a experiência humana universal. A Educação Estética desvela o homem em sua grandeza, em um modo de existência essencialmente humano. (CARBONELL, 2012, p. 65).

Uma experiência só pode ser considerada como tal pelo próprio sujeito que dá sentido e significado ao que vivencia. Então, para validar a relevância da realização do Sarau Infantil para a formação dos estudantes, é fundamental ouvir os estudantes envolvidos na concepção e na concretização do Sarau Infantil, refletindo sobre suas experiências únicas, não-repetíveis, bem como as suas impressões acerca da Educação Estética.

Dentre todos esses semestres na Faculdade de Educação, este em particular, tem me feito enxergar com outros olhos o sentido de todas as discussões que se elaboram em cada sala de aula deste local. (Estudante de Ciências Sociais).

Analisando a minha caminhada na formação acadêmica, o Sarau Infantil possibilitou que as teorias que li a respeito do saber sensível, do contato físico e sincronia mental fosse posto em prática, e as crianças demonstram bem essas características, de modo que mostra a infância como um objeto cientificamente a ser estudado. Existe uma imensa epistemologia na área formação estética de professores e eu consegui fazer a análise desses fatores para que eu possa inserir na minha bagagem acadêmica como produção de formação e estudo. (Estudante de Ciências Naturais).

Tomando os estudos de Schiller para nossas análises percebemos que “enxergar com outros olhos o sentido” algo que antes não percebia nos faz concluir que nessas descobertas o impulso lúdico se fez presente ao permitir aos estudantes apreciarem uma beleza que antes não via, pois não vivenciaram os momentos criativos com as crianças na Universidade e também não tinham acessado o “saber sensível” compartilhado. Esse aprendizado se deu justamente porque, na perspectiva de Schiller, aconteceu a passagem do estado passivo da sensibilidade para o estado ativo do pensamento (2002, p. 113).

Os depoimentos acima endossam também a ideia de que, cada vez mais, os estudos e pesquisas no campo educacional apontam para a necessidade de construção de um olhar epistemológico sobre as crianças, compreendendo-as como “[...] seres sociais plenos, dotados de capacidade de acção e culturalmente criativos.” (SARMENTO e GOUVÊA, 2008, p. 374). De um modo geral, o debate sobre a infância ainda é bastante escasso em muitos cursos de licenciaturas e isto foi destacado por uma estudante:

Falar com as crianças e não somente delas, sem a presença das mesmas e, acima de tudo, escutá-las, vê-las ocupando este espaço, que talvez elas nunca encarem como seu, mas que são delas, me fez saltar os olhos e disparar o coração de muita alegria e satisfação. (Estudante de Pedagogia).

Quanto à necessidade de um olhar epistemológico, em detrimento dos escassos debates sobre a infância nos cursos de licenciaturas, ressaltamos que criança como ser social é algo recente nos diversos campos de estudo. De acordo com Autora2 (2019, p. 86), “por muitos anos, imperou um estatuto pré-social a respeito da infância, pois a invisibilidade das crianças não as deixava ser consideradas no discurso social e nem permitia que as mesmas fossem vistas como seres sociais de pleno direito”. Esse ocultamento das crianças na dimensão social ainda hoje se arrasta é pode ser percebida em alguns espaços, como, por exemplo, a Universidade.

Depoimentos como esse nos leva ainda a pensar nas barreiras simbólicas e materiais que separam as crianças oriundas de classes populares do ingresso à Universidade e a estudante demarcou tal questão. Sobre este aspecto, um fato vale ser pontuado: no retorno para a casa, uma das crianças nos perguntou “que dia eu vou voltar aqui na Faculdade?”, nos levando a considerar que este lugar, apesar de ser prioritariamente destinado a adultos, para as crianças, esta experiência provocou o significado da Universidade como um lugar acolhedor, diverso e não-hostil, uma vez que suscitou o seu desejo de retorno a este espaço:

[...] local onde muitos universitários, normalmente, passam o tempo, estudam, comem ou fazem atividades relacionadas ao ambiente acadêmico e que, por muitas vezes, não envolvem crianças. (Estudante de Letras).

Em meio a tanto cinza das nossas paredes: cores, corpos indomáveis, incontíveis, que se batiam com os outros em meio a um gargalhar que nos invadia e tomava conta. Ações como essas sempre valerão a pena, sempre acenderá aquela fagulha que por pouco não havia sido apagada por todas as atribuições e distanciamentos da própria Universidade - sua contradição eterna, talvez. Sair da zona de conforto e perceber a importância da vivência de tudo que elaboramos na fala, faz-nos entender a importância desses sujeitos e que eles têm voz e vez. (Estudante de Pedagogia).

Acompanhar a modificação do espaço através da relação com os corpos, as vozes, as interações, sair da zona de conforto, possibilitar-se a experimentar novas vivências, linguagens e contato com crianças são alguns dos sentidos dados à experiência formativa do Sarau Infantil. De um modo geral, os depoimentos destacam o espaço como lugar poético de produção de vida, de alegria e de comunhão com a infância. Apontam também para uma compreensão mais abrangente para além do ensino e da instrução, ressignificando o entendimento de que

Educar é um ato impregnado de estética. Educador e educando, juntos, ressignificam mutuamente suas experiências. Ao criar novos sentidos para sua existência, ao transformar seu olhar sobre o mundo, o indivíduo mobiliza seu corpo inteiro: razão e emoção, afetividade e cognição, respondendo com todo o seu ser intelectual, sensível e sensual. Ao refletir sobre os significados criados, o sujeito desprende seu olhar sobre si mesmo e vê o ser humano em sua maravilha. O lugar do conhecimento é o corpo do indivíduo, por isso o ato de aprender é estético por natureza. (CARBONELL, 2012, p. 63).

Tal abordagem compreensiva de Carbonell aproxima-se daquilo que assevera o educador Miguel Almir Araújo, de que os espaços educativos são construídos como entre-lugares em que os indivíduos se encontram para partilhar e expandir a diversidade de seus saberes e sentires (ARAÙJO, 2008, p. 199).

Portanto, o Sarau Infantil como espaço educativo possibilitou que vozes e corpos diversos se entrelaçassem num movimento que permitiu a real vivência da educação estética. Experiência que “pressupõe outro mundo humano fundado no cuidado incondicional ao mundo da vida em sua efervescência poética. Ela é o avesso do plano disciplinar de homologação do homogêneo estético ser em si surdo em sua incomensurável perdição fragmentária” (GALEFFI, 2017, p. 30).

Como atitude política frente à dimensão estética da educação, advogamos em favor de processos formativos que rompam com a fragmentação do conhecimento da vida e do mundo social, promovendo outros espaços, tempos e formatos de educar o educador.

Considerações finais

O Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema, objeto de estudo do presente texto, foi constituído por espaços e convívio estético entre crianças e adultos, caracterizando-se como espaço/tempo de vivência, significação e valorização das infâncias e de suas culturas brincantes, e estimular vivências estéticas, sensíveis e artísticas.

Produzido por professores e estudantes, o sarau infantil contou com uma pluralidade de situações de partilhas sensíveis, demarcando o entendimento de que a criança e o educador de infâncias precisam de espaços/tempos/atividades brincantes, sensíveis, artísticas, estéticas e afetivas e que a universidade tem o papel importante de provocar reflexões e promover formas de integração coletivas e criativas.

Entendido como uma oportunidade de experimentar este formato de atividade voltada para as crianças e de registrar a concepção dos espaços e das atividades que contemplassem uma gama de possibilidades de brincadeiras e interações, propomos esse texto de cunho compreensivo sobre a experiência de sensibilidade. O texto abordou princípios que delimitaram a experiência, enquanto ambiente de interação e de aprendizagem fruído e significado a partir da leitura feita pelos estudantes em formação em diversas licenciaturas da UFBA.

Compreendido como espaço/tempo de aprendizagem e de interação entre educadores em formação e crianças de diferentes idades, o Sarau Infantil oportunizou a geração de resultados significativos, a saber: a) A percepção dos estudantes acerca do espaço modificado da universidade como lócus de discussão sobre educação estética e infâncias, interferindo sobre os sentidos produzidos; b) A oferta de espaço e tempo de partilha do sensível, imbricada com o compromisso de liberdade de ação e de fruição estética; c) O Sarau aguçou a capacidade de entender a liberdade de ação como sendo o direito das crianças, ampliando o olhar de superação de práticas educativas fragmentadas e disciplinares; d) A ação comprovou as potencialidades de processos de formação estética, com significativa articulação entre a universidade e a educação básica; e) A educação estética de estudantes em formação, ampliando a compreensão sobre a própria formação, bem como expandindo o repertório estético, cultural e brincante de estudantes de licenciaturas e bacharelados interdisciplinares; f) As epifanias e os sentidos produzidos pelos estudantes oportunizam-nos a compreensão de que experiências como estas precisam ser mais ofertadas no cotidiano acadêmico, uma vez que urge a oferta de espaços formativos universitários, como ambiências de formação estética e cultural, com vistas à superação de concepções e práticas utilitaristas, fragmentadas, acríticas, pragmáticas e deterministas de educação.

É possível, portanto, concluir que o Sarau Infantil, enquanto ação estética de natureza extensionista, tende a favorecer o convívio e a partilha do sensível, ampliando o campo da formação universitária. Destaca-se, na experiência empreendida, o partilhamento de experiências estéticas e a confluência entre várias linguagens artísticas, entre adultos e crianças.

Assim, o Sarau Infantil se configura em diversificados espaços/tempos de apreciação e de produção artística, permeados por experiências corporais e brincantes entre estudantes de licenciaturas e bacharelados interdisciplinares da UFBA e crianças de escolas públicas, oriundas da parceria com a Faculdade de Educação. Os atos primordiais do Sarau Infantil são, sem dúvida, as artes, a poesia, a atitude brincante, a experiência estética e o brincar social espontâneo de livre fluxo. Por fim, a realização colaborativa do Sarau Infantil: Toda Criança é um Poema representa uma nova forma de organização do trabalho pedagógico na universidade, especialmente em processos de formação inicial e continuada de professores, apresentando uma faceta estética, resistente e criativa da educação.

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Recebido: 02 de Março de 2020; Aceito: 28 de Junho de 2020

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